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Revista40 2
Revista40 2
2011
TEXTOS
O QUARTO TEMPO DO
CIRCUITO PULSIONAL1
Simone Mädke Brenner2
Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications.
The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation
and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all.
Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile.
1
Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves,
Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa,
os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi
possível escrever.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail:
smbrenner@sinos.net
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74
O quarto tempo do circuito funcional
3
Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011.
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Simone Mädke Brenner
ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que se
encontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e ela
responde: “É, parece... deveria ser....”.
Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logo
depois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas e
eu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teria
deixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minha
resposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma cara
muito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direi
os nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muito
vir aqui, muitas vezes!”
Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, de
agressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstrava
muito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensava
muito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhos
fazem com as pessoas, maltratá-lo.
Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com a
sua tragédia, canta a seguinte música:
muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai ao
banheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!”
Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta:
4
As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetória
variam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seu
conteúdo e sua significação (livre tradução).
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O quarto tempo do circuito funcional
que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível o
trabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei.
No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível no
momento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”,
que para Dolto representam:
se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, com
isso, pôr em risco o circuito?
Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontro
com o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, em
momentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em que
o sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressões
maternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algo
que, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo:
crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro)
ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelos
efeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontro
com o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último,
é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendo
condição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipo
de contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexo
do espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses são
alguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, a
pulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou.
O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatuto
simbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega ao
outro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se
“deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esse
endereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três tempos
anteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendo
aquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebê
de que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra.
Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essa
castração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aqui
penso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração não
simbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração,
porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos.
Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência a
castração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Uma
mãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que a
castração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem a
ilusão de poder controlar a castração.
Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativa
de entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsional
a partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às
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O quarto tempo do circuito funcional
na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhe
garantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato é
um brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém da
ineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minha
paciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeito
deslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina,
fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo.
No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estava
inscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e com
seu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suas
palavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpo
como objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim,
altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto sua
posição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se coloca
ativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muito
sobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientemente
marcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que não
pôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, há
um não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criança
seja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica.
Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criança
precisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofrido
o interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criança
fica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o risco
de se perder de seus pais.
Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quando
sofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se sente
amada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistir
no quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor,
um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito na
poesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavras
atos de corpo.
É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dos
significantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso.
Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, sua
impermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suas
convulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração em
áreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real do
corpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma,
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O quarto tempo do circuito funcional
quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adulto
quer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serão
retiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impede
que a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo...
Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais as
crianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexo
do que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criança
viver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamental
importância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeito
de fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), é
necessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração.
Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e deseja
comer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que um
simples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou
(e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia,
passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas próprias
se vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpo
do seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar.
Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: os
que são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem não
só a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque no
outro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional,
isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num lado
só: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para que
assim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!),
pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, a
criança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, a
pune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemos
que isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder de
si mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-se
como belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpo
que não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numa
negativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquer
maneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, de
poder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado.
Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quem
se submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quando
vemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouquece-
os porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões.
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Simone Mädke Brenner
REFERÊNCIAS
DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva,
1992.
FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires:
Santiago Rueda, 1953.
______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 2004.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
Recebido em 15/12/2011
Aceito em 20/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011
Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extension
of elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admission
at the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as an
exercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilities
for invention which characterize play.
Keywords: children, play, elementary school of nine years.
1
Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novas
políticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do
Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora do
CNPq. E-mail: simonemoschen@gmail.com
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Simone Moschen
adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criança
tem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adulto
que, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de sua
imagem.
A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humano
determina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretação
simbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinada
culturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com que
suas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavras
dos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidos
atualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nunca
se atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referência
mítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou em
um corpo desnaturado.
A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, da
interpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nos
acompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está no
fato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos e
cognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é sua
colagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante,
quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é sua
dependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhor
dizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profunda
dependência.
Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprio
é nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando está
iniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referirá
a si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança fala
de si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugar
desde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora o
enunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o do
outro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança
3
“Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior ao
sujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que,
além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, o
sujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo
que pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157).
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A infância como tempo de iniciação...
poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eu
e o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente do
uso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qual
estamos nos situando para falar.
Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro coloca-
nos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade de
nos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades,
como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as crianças
mais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem um
impacto que não é de se negligenciar.
Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância,
estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos,
sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação.
Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessário
que pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quando
elaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer a
matrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamos
construindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se trata
somente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, que
produzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criança
em nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarão
a essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo que
lhes transmitimos.
Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposições
de Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e da
família. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz ver
como mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencia-
lizam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra a
tese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura,
teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala de
parto da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiência
nascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempo
que chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vida
adulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidades
que o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou a
Modernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempo
presente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites.
A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivo
a uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o
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Simone Moschen
em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimento
de infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazer
parte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempo
também passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que não
reconhecemos na adultez a necessidade de brincar.
Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos em
que aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características:
a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posição
passiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar.
Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva à
posição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar.
Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavras
dos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada,
acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos.
Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeações
que lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esse
Outro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar de
sujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaborado
com o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte do
lugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão séria
para a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança não
brinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispor
dos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempo
enlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo.
O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual a
criança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamento
da infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre
– o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamos
construindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrar
cada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro!
As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequências
de um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomando
a tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas as
suas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas próprias
mãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez mais
dependente e vulnerável ao Outro.
Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, a
de que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posição
adulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente
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Simone Moschen
não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era
esquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara o
pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que
o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como
um rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003).
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação.
Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis
anos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006.
Recebido em 10/11/2011
Aceito em 20/12/2011
Revisado por Gláucia Escalier Braga
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011
TEXTOS A EDUCAÇÃO
ESTRUTURANTE NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dorisnei Jornada da Rosa1
Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation process
of children attending kindergartens and nursery schools, to propose the
conceptualization of Structuring Education.
Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play.
1
Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais;
Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0
a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e Psicopedagogia
Inicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:dorisneijornada@yahoo.com.br
99
99
Dorisnei Jornada da Rosa
2
Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires
para referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos.
3
Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos
Aires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimento
motor, aprendizagem, etc.
4
SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cerca
de 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da Educação
Infantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
5
Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos,
conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para a
criança. Doravante referida neste artigo por EP.
6
Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimento
de 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI.
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A educação estruturante...
formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil.
Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores e
suas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observações
na sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com os
educadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho de
assessoria em EP e PI na escola infantil.
De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis,
os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo”
(criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o
“Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Havia
muito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam o
ensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nome
próprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos.
Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolas
especiais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escuta
dos cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos das
crianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nome
próprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocupar
uma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nas
questões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes no
planejamento escolar.
É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que não
as tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com uma
rede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticulada
conforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando um
transtorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-la
aos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomos
os atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultas
com profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímos
intervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9
que atendem essas crianças na escola infantil.
7
Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15
crianças.
8
Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses)
com 20 crianças
9
Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25
crianças.
101
Dorisnei Jornada da Rosa
Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais de
EP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com várias
especialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas e
as crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pela
urgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto,
identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas pelos
educadores:
1. Impotência e paralisação
pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali,
brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam a
ausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final do
dia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”.
O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dos
jogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço,
empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação,
espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelas
beiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar,
tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeiras
têm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpo
da criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causa
aqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança,
a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo em
que o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete à
indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavra
introduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, os
especialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo o
olhar do Outro em suas aventuras.
O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”,
compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição de
transicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objeto
de desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho,
etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher os
objetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagem
do âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essa
razão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer um
brinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa.
Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certo
ímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço de
apego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importante
lembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna,
e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles se
torna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer.
Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra do
educador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade ou
brincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado,
falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche é
um elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço
106
A educação estruturante...
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3.
ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III.
______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na
subjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Recebido em 09/11/2011
Aceito em 23/04/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
108
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011
TEXTOS
CAMINHOS DE OFICINA NO
ENCONTRO COM O OUTRO1
Ieda Prates da Silva2
Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeutic
workshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposing
that the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listening
of the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference,
by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language.
By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of this
workshops.
Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents.
1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de Novo
Hamburgo. E-mail: iedaps@uol.com.br
109
109
Ieda Prates da Silva
3
Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema
Único de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornos
mentais.
4
Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas de
rodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo que
permite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamente
na fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompe
a continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e faz
furo, ao mesmo tempo.
110
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essa
experiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é o
Outro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produto
que sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiência
ela é produtora de pensamento e de subjetividade.
A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceria
com uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questões
psíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, na
circulação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularam
Dando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermos
nele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casos
em que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via de
acesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a uma
posição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para os
quais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização da
escrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, nas
palavras de Leda Bernardino (2011)5:
5
Gentilmente cedido pela autora.
111
Ieda Prates da Silva
6
Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço,
inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?”
(Chemama, 1991, p.23).
112
Caminhos de oficina no encontro com o outro
minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morar
mais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algum
lugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar a
casa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falando
verdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e a
data.)
2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qual
motivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.)
3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim.
A) Você tem namorada (Sim) ou (Não)
B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não)
C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não)
D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não)
E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não)
F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não)
4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria
morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cueca
eu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria.
Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo que
se dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, é
claro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido,
vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempo
disciplinar:
114
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo com
ele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município.
Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço de
cada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quis
levar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas que
localizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidade
da cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadaria
do centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para a
concretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa);
“Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formas
diferentes (a escada no real e sua representação gráfica).
Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, se
recusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que se
divertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que ele
conseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado pelo
Residente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essa
oficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminho
de volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar:
B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....”
I – “Tu jogaste com eles”.
116
Caminhos de oficina no encontro com o outro
REFERÊNCIAS
ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalho
apresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalítica
de Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado)
CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gente
traça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanálise
da Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26.
COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissão
de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/
Libretos, 2007, p.147-54.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola de
Estudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d.
PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalho
apresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre,
17 de novembro de 2005.
PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. Revista
Imago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Disponível em: http//
www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012.
Recebido em 08/12/2011
Aceito em 07/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
118
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011
TEXTOS
IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1
PEEVE OR BULLYING
Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions about
the act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake of
part of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributes
to interpret the teasing between the subjects and their implications.
Keywords: bullying, adolescence, fantasy.
1
Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica de
Curitiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail:
lmees@portoweb.com.br
119
119
Lúcia Alves Mees
U ma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz coro
com a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante
reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografá-
lo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meias
sujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora,
vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo.
Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante se
pergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação de
parceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigos
pela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles.
Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo,
infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo e
a dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna.
A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suas
características principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cada
um. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“o
diretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agente
implicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implica
responsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar o
zoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São esses
três aspectos que as cenas de implicância trazem consigo.
A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro a
pergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidade
de jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva,
do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/
implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicância
talvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade de
implicação se esvazia.
Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejo
parental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobre
quem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é o
escolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiro
para o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervenção
do terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer o
corte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cada
um a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ou
ele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário da
escolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe o
lugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se.
120
Implicância ou bullying?
3
Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011).
121
Lúcia Alves Mees
122
Implicância ou bullying?
123
Lúcia Alves Mees
125
Lúcia Alves Mees
4
Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nos
que sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotard
foi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase no
terceiro grau.
126
Implicância ou bullying?
Isso porque,
127
Lúcia Alves Mees
5
Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/
2012.
128
Implicância ou bullying?
6
“[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidos
demais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’,
estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, que
possuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]”
(Rolim, 2010, p.103).
7
“uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de
‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é que
aquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente”
(idem, p.106).
129
Lúcia Alves Mees
8
Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011).
130
Implicância ou bullying?
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
Ed. 34, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
Fenômeno bullying e a educação física escolar. In: http//www. bullying.com.br/
BConceituacao21.htm#inicio. Último acesso em 15/02/2012.
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da
origem das perversões sexuais. [1919] In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. v. XVII.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto e as estruturas freudianas.
Publicação para circulação interna da APPOA, 1956-1957.
_____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de
Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
_____. El saber del psicoanalista. Publicação para circulação interna da ENAPSI,
1971-1972.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2008.
MEES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes
e Ofícios, 2001.
_____. Freud e Annas. Correio da APPOA, n. 203, julho 2011.
PINHO, Gerson. O sujeito do bullying. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA,
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RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. In:
Adolescência:entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.
RIBEIRO, Eduardo M. Bullying: uma violência em busca de sentido. In: Autoridade e
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ROLIM, Marcos. Bullying: o pesadelo da escola. Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2010.
SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2008.
Recebido em 13/04/2012
Aceito em 11/05/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
132
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011
DO BRINQUEDO
TEXTOS AO TRABALHO:
os avatares na passagem
da infância à adolescência
Carmen Backes1
1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é ser
brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade
(Editora da UFRGS, 2008). E-mail: cbackes@cpovo.net.
133
133
Carmen Backes
***
2
Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase da
libido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário.
136
Do brinquedo ao trabalho...
o jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”.
Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são os
pensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, é
novo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro,
da mesma forma apaixonada de sempre.
Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e
“toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupom
fiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite)
que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmo
que lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associação
e não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto de
gasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia de
Fernanda.
Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associa-
dos ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum é
suficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, que
teria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo a
insistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certa
recusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura
– se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavo
denota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna e
revelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele
“detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovando
incansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, pois
não suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo na
reedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis dos
complexos familiares colocam em ação.
Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeito
necessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras.
Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe
138
Do brinquedo ao trabalho...
3
Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol.
4
Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico que
abandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira do
mar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf.
141
Carmen Backes
5
Expressão utilizada por Penot (2005).
143
Carmen Backes
REFERÊNCIAS
CABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009.
FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras
completas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.
______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2.
______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3.
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Do brinquedo ao trabalho...
Recebido em 17/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
145