Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Alessandro Fernandes
Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos; Assessor na Unidade de Segurança Institucional
do Banco do Brasil; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
0356-2565; e-mail: alfernandes@edu.unisinos.br.
RESUMO: Este estudo tem como objetivo avaliar o nível de risco associado
às transações financeiras envolvendo recursos provenientes de jurisdições ca-
racterizadas como paraísos fiscais, no que diz respeito à detecção de indícios de
lavagem de dinheiro por parte das instituições financeiras, bem como identificar
e propor estratégias para mitigar esse risco. A pesquisa foi conduzida por meio
de uma análise documental com uma abordagem exploratória e qualitativa,
culminando na criação de uma matriz de risco que identifica e quantifica
possíveis vulnerabilidades. Os resultados indicam que o uso de paraísos fiscais
em operações suspeitas de lavagem de dinheiro é provável em sua ocorrência e
crítico em termos de severidade.
Introdução
Paraísos fiscais, geralmente caracterizados por países com territórios
reduzidos e escassez de recursos naturais, têm como objetivo atrair empresas
e recursos para garantir sua subsistência, compensando a falta de riquezas na-
turais. A origem desses paraísos fiscais remonta à década de 1920, como uma
resposta ao aumento da tributação sobre grandes fortunas, um movimento
que surgiu na esteira da Primeira Guerra Mundial, visando à recuperação das
nações europeias (Góes; Mendes, 2021).
PARAÍSOS FISCAIS E LAVAGEM DE DINHEIRO
113
1 Lavagem de Dinheiro
A expressão “Lavagem de Dinheiro” teve sua origem nos Estados
Unidos, na década de 1920. Nesse período, as organizações criminosas, no-
tadamente as máfias, estabeleceram uma rede de lavanderias para dissimular
a origem ilícita dos recursos obtidos em suas atividades ilegais, em especial
no contexto do contrabando de bebidas alcoólicas, que era ilegal na época
(Tondini, 2006). Apesar de a denominação ter surgido recentemente, a prática
em si parece ser bem mais antiga. Há relatos de piratas na Idade Média que
já procuravam desvincular os recursos provenientes de atos ilícitos de sua
origem (Callegari; Weber, 2017).
A lavagem de dinheiro é um processo pelo qual os recursos provenientes
de atividades ilegais e criminosas são inseridos no sistema econômico, usando
artifícios para ocultar sua origem, tornando difícil a conexão com seu histórico
criminoso. Para isso, são realizadas uma série de transações comerciais ou
financeiras que visam dar uma aparência legítima a esses valores, permitindo
que eles retornem ao sistema econômico ou financeiro com uma aparência
legal (Badaro; Bottini, 2016).
A Lei nº 9.613/98, com as alterações introduzidas pela Lei nº
12.683/2012, apresenta de forma concisa e direta a definição de lavagem de
dinheiro em seu art. 1º1:
1 Com a promulgação da Lei nº 9.613/98, a caracterização do crime de lavagem estava condicionada à ocorrência de
um dos denominados “crimes antecedentes” listados em seu artigo inicial, o que estabelecia uma lista exaustiva,
seguindo o princípio da taxatividade. No entanto, a Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012, aboliu essa lista, passando
a considerar qualquer infração penal como possível crime antecedente (Ortigara; Guarani, 2014).
PARAÍSOS FISCAIS E LAVAGEM DE DINHEIRO
115
temente, várias operações são conduzidas para mascarar a origem dos bens,
culminando na reintrodução desses recursos na economia com uma aparência
legítima (Badaro; Bottini, 2016). Embora essas três etapas do crime de lavagem
de dinheiro geralmente estejam interligadas e, às vezes, se sobreponham, elas
não ocorrem necessariamente de maneira simultânea e sequencial. A distin-
ção entre elas, normalmente, é feita apenas por razões didáticas, servindo
principalmente como um instrumento conceitual (Aránguez-Sánchez, 2000).
A etapa inicial, chamada de “ocultação” (placement), envolve o primeiro
passo para dissociar o dinheiro de sua origem criminosa, por meio de mudanças
qualitativas nos bens, afastamento do local do crime ou ações semelhantes
(Badaro; Bottini, 2016). Nesta fase, os criminosos estão mais expostos, pois
a conversão de grandes quantias de dinheiro atrai a atenção das autoridades,
aumentando a probabilidade de detecção (Callegari; Weber, 2017).
A “dissimulação” (layering) representa a fase central da lavagem de di-
nheiro, na qual busca-se encobrir ou disfarçar a origem dos fundos por meio
de uma série de transações financeiras e/ou comerciais destinadas a eliminar
qualquer rastro perante investigadores, ocultando a verdadeira fonte e a
propriedade dos recursos, criando uma justificativa “limpa” para sua origem
(Silva; Marques; Teixeira; 2011).
A última etapa, conhecida como “integração” (integration), envolve a
incorporação do “dinheiro limpo” na economia por parte do “lavador”, que,
por meio das fases anteriores, faz com que esses recursos pareçam ter sido
adquiridos legalmente (Silva; Marques; Teixeira; 2011). Ao final desse proces-
so, os ativos são formalmente integrados ao sistema econômico, adquirindo
uma aparência de legalidade, como se tivessem sido obtidos por meios lícitos
(Callegari, 2017).
Vale ressaltar que, devido à natureza transnacional do crime de lavagem
de dinheiro, essas etapas podem envolver transações em múltiplos países,
tornando relevante a observação de Souto (2001, p. 48):
2 Paraísos Fiscais
Paraísos fiscais são jurisdições2 que implementam um regime de tri-
butação baixa ou nula. Além disso, são caracterizados pela adoção de regras
flexíveis para a formação de empresas, conhecidas como offshores, que não
exercem atividades na economia local, bem como pela utilização de arranjos
legais, como trusts, que garantem o sigilo das informações sobre os verdadei-
2 Quando se trata de abordar paraísos fiscais e centros offshore, é comum empregar o termo “jurisdições” em vez de
“países”, uma vez que ele se refere a qualquer território com seu próprio sistema legal, independentemente de ser
ou não um estado soberano. A caracterização como paraíso financeiro dependerá, em última análise, do regime
estabelecido pelo sistema legal desse território (Dallagnol, 2013, p. 408).
Revista Brasileira de Direito Comercial Nº 55 – Out-Nov/2023 – Doutrina
118
Há uma queixa constante por parte da Europa de que países com cargas
tributárias relativamente baixas estão envolvidos em uma competição fiscal
desleal, pressupondo que os gastos governamentais desempenham um papel
crucial na garantia do bem-estar social. Isso levou a uma conotação negativa
associada ao termo “paraíso” (Enfedaque, 2016). No entanto, alguns autores
argumentam que uma verdadeira competição fiscal internacional pode trazer
benefícios globais, e os paraísos fiscais desempenham um papel importante
ao viabilizar essa competição3 (Rahn, 2002).
Heleno Torres discorda do uso da nomenclatura “paraíso fiscal”4, ar-
gumentando que é um termo originado nos países de tradição Common Law
e que está superado pela redação do art. 24 da Lei Federal nº 9.430/965. Ele
3 Em que pese estudos comprovarem o impacto negativo significativo da lavagem de dinheiro sobre os fundamentos
macroeconômicos (Quirk, 1997, p. 7-8).
4 Ainda se encontra a utilização das terminologias “refúgio fiscal, oásis fiscal, esconderijo fiscal, jurisdição fiscal mais
vantajosa, regime tributário mais vantajoso, zona de exclusão fiscal, regime fiscal preferencial, território de regime
fiscal privilegiado” (Pinto, 2007, p. 143-144).
5 “Art. 24. As disposições relativas a preços, custos e taxas de juros, constantes dos arts. 18 a 22, aplicam-se, também,
às operações efetuadas por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil, com qualquer pessoa física
ou jurídica, ainda que não vinculada, residente ou domiciliada em país que não tribute a renda ou que a tribute à
alíquota máxima inferior a vinte por cento. § 1º Para efeito do disposto na parte final deste artigo, será considerada a
legislação tributária do referido país, aplicável às pessoas físicas ou às pessoas jurídicas, conforme a natureza do ente
com o qual houver sido praticada a operação. § 2º No caso de pessoa física residente no Brasil: I – o valor apurado
segundo os métodos de que trata o art. 18 será considerado como custo de aquisição para efeito de apuração de
ganho de capital na alienação do bem ou direito; II – o preço relativo ao bem ou direito alienado, para efeito de
apuração de ganho de capital, será o apurado de conformidade com o disposto no art. 19; III – será considerado
como rendimento tributável o preço dos serviços prestados apurado de conformidade com o disposto no art. 19;
IV – serão considerados como rendimento tributável os juros determinados de conformidade com o art. 22. § 3º Para
os fins do disposto neste artigo, considerar-se-á separadamente a tributação do trabalho e do capital, bem como as
dependências do país de residência ou domicílio. § 4º Considera-se também país ou dependência com tributação
favorecida aquele cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas
jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.”
(Brasil, 1996)
PARAÍSOS FISCAIS E LAVAGEM DE DINHEIRO
119
propõe, em vez disso, um conceito para países com tributação favorável, como
pode ser observado abaixo:
6 O processo de kwon your customer é a linha mestra da política de aceitação de cliente, objetivando inibir a entrada ou
a manutenção de clientes que tenham suas atividades ligadas ao crime de lavagem de dinheiro (Callegari; Weber,
2017).
Revista Brasileira de Direito Comercial Nº 55 – Out-Nov/2023 – Doutrina
120
3 Resultados e Discussões
Adquirir um cartão de crédito de uma administradora sediada em
uma jurisdição de paraíso fiscal, por exemplo, permite a compra de bens
em qualquer parte do mundo, sem o risco de rastreamento dos fundos ilí-
citos usados para pagar a fatura, dificultando a identificação de sua origem
(Lilley, 2006).
Além disso, é crucial expandir nossa compreensão das estratégias
comumente adotadas para a utilização de paraísos fiscais como meios para a
lavagem de dinheiro. Geralmente, duas estratégias principais emergem como
as táticas preferidas pelos criminosos financeiros.
A primeira estratégia envolve a criação de empresas offshore em juris-
dições de paraísos fiscais. Essas empresas muitas vezes são concebidas de
maneira a ocultar as identidades dos criminosos por trás delas; ou, então, os
criminosos podem ser incluídos em outros arranjos legais, como trusts, que
têm a capacidade de ocultar a verdadeira propriedade. Essa tática permite que
PARAÍSOS FISCAIS E LAVAGEM DE DINHEIRO
121
7 Segundo o GAFI, essa técnica é uma das seis mais associadas às medidas para ocultar recursos oriundos de atos de
corrupção (Pinto, 2007, p. 151).
Revista Brasileira de Direito Comercial Nº 55 – Out-Nov/2023 – Doutrina
122
Crítica 4 4 8 12 16
Severa 3 3 6 9 12
Moderada 2 2 4 6 8
Reduzida 1 1 2 3 4
Método 5W2H
Implementar medidas adicionais de controle de movimentações
What bancárias, em função do risco crítico de operações com origem ou
destino de recursos provenientes de paraísos fiscais.
Who Comitê de Riscos.
Diretorias responsáveis pela condução do Processo de Análise e
5W Where
Detecção de Lavagem de Dinheiro (PLD) e de Comércio Exterior.
Medidas devem ser implementadas sempre que a movimentação
When
financeira tenha origem ou destino proveniente de paraísos fiscais.
Considerações Finais
Este estudo se empenhou em uma tarefa fundamental: a identificação
e análise dos impactos decorrentes dos riscos associados às movimentações
financeiras envolvendo jurisdições rotuladas como paraísos fiscais. Esses riscos
se apresentam como uma preocupação crítica, já que podem comprometer
seriamente os esforços de análise e detecção de indícios de lavagem de dinheiro,
um crime financeiro de extrema gravidade e complexidade. Compreender
Revista Brasileira de Direito Comercial Nº 55 – Out-Nov/2023 – Doutrina
124
TITLE: Taxpayers and money laundering: relevant strategies in the analysis and detection process by
financial institutions.
ABSTRACT: This study aims to assess the level of risk associated with financial transactions involving funds
from jurisdictions characterized as tax havens, with regard to the detection of signs of money laundering
by financial institutions, as well as to identify and propose strategies to mitigate this risk. The research
was conducted through a documentary analysis with an exploratory and qualitative approach, culminating
in the creation of a risk matrix that identifies and quantifies possible vulnerabilities. The results indicate
that the use of tax havens in suspected money laundering operations is probable in its occurrence and
critical in terms of severity.
KEYWORDS: Money Laundering. Favored Tax Countries. International Tax Law. Risk Management.
Financial Institutions.
PARAÍSOS FISCAIS E LAVAGEM DE DINHEIRO
125
Referências
ALMEIDA, A. J. Compliance officer e a nova circular nº 3.978/2020 do Banco Central. Jota. 15 fev. 2020.
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/compliance-officer-e-a-nova-circular-
-no-3-978-2020-do-banco-central-15022020. Acesso em: 25 jun. 2023.
ARÁNGUEZ-SÁNCHEZ, C. Delito de blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2000. 437 p.
BADARO, G.; BOTTINI, P. C. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo:
RT, 2016. 470 p.
BANCO CENTRAL DO BRASIL – BACEN. Circular nº 3.978, de 23 de janeiro de 2020. Dispõe sobre a
política, os procedimentos e os controles internos a serem adotados pelas instituições autorizadas a funcionar
pelo Banco Central do Brasil visando à prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática dos
crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, de que trata a Lei nº 9.613, de 3 de março
de 1998, e de financiamento do terrorismo, previsto na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Brasília:
Banco Central do Brasil, 23 jan. 2020.
BANCO CENTRAL DO BRASIL – BACEN. Nova legislação moderniza o marco legal do mercado de câmbio e
dos capitais internacionais. 30 dez. 2021. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17596/nota.
Acesso em: 05 jul. 2023.
BOTTINI, P. C. Mudança do Coaf para o BC e o combate à lavagem de dinheiro. Consultor Jurídico, 29
out. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-29/direito-defesa-mudanca-coaf-bc-
-combate-lavagem-dinheiro. Acesso em: 03 jul. 2023.
BOTTINI, P. C. Os excessos do compliance e o fenômeno de-risking. Valor Econômico, 24 jul. 2023, p. E2.
BRASIL. Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a legislação tributária federal, as contri-
buições para a seguridade social, o processo administrativo de consulta e dá outras providências. Diário
Oficial da União, 30 dez. 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9430.htm.
Acesso em: 3 jul. 2023.
BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens,
direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria
o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Brasília: Diário
Oficial da União, 4 mar. 1998.
BRASIL. Lei nº 14.286, de 29 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital
brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no País e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil.
Brasília: Diário Oficial da União, 30 dez. 2021.
CALLEGARI, A. L.; WEBER, A. B. Lavagem de dinheiro. Barueri: Atlas, 2017. 256 p.
CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS – COAF. Jurisdições de alto risco sujeitas
a um chamado para a aplicação de medidas. Brasília: COAF: Comunicados do GAFI, abr. 2023(a). Disponível em:
https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/informacoes-as-pessoas-obrigadas/avisos-e-alertas/comunicados-
-do-gafi/jurisdicoes-de-alto-risco-sujeitas-a-um-chamado-para-a-aplicacao-de-medidas-2013-fevereiro-
-de-2023-1. Acesso em: 14 jul. 2023.
CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS – COAF. Jurisdições sujeitas a mo-
nitoramento intensificado. Brasília: COAF: Comunicados do GAFI, abr. 2023(b). Disponível em: https://
www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/informacoes-as-pessoas-obrigadas/avisos-e-alertas/comunicados-do-gafi/
jurisdicoes-sujeitas-a-monitoramento-intensificado-2013-fevereiro-de-2023. Acesso em: 14 jul. 2023.
CORDERO, I. B. La lucha contra el blanqueo de capitales procedentes de las actividades delictivas em
em marco de la Unión Europea. Eguzkilore, v. 15, p. 07-38, 2001.
DALLAGNOL, D. M. Tipologias de lavagem. In: CARLI, C. V. D. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle
penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 377-458.
ENFEDAQUE, N. D. El misterioso origen de la expresión “paraíso fiscal”. eXtoikos, p. 91-92, 2016.
FINANCIAL ACTION TASK FORCE – FATF. The FATF Recommendations. Paris, France: FATF, 2019.
GÓES, L.; MENDES, V. Paraísos fiscais e terrorismo: desafios para o compromisso das empresas com os
direitos humanos. In: SOUZA, A. L.; COSTA, L. D.; VELOSO, L. H. Direitos humanos, paz, sustentabilidade
e empresas globais. Curitiba: CRC, 2021. p. 103-114.
Revista Brasileira de Direito Comercial Nº 55 – Out-Nov/2023 – Doutrina
126