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Lavagem de dinheiro: o conceito de


produto indireto da infração penal
antecedente no crime de lavagem de
dinheiro
André Elali

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LAVAGEM DE DINHEIRO: CRIME INSTANTÂNEO OU PERMANENT E?


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BULLET ALT ERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO DE @BULLET ALT ERAÇÕES NA LEI DE LAVAGEM @BULLET A INV…
Adolfo Rocha
Lavagem de dinheiro: o conceito de produto indireto da infração penal
antecedente no crime de lavagem de dinheiro*

Gustavo Badaró **

ÁREA DO DIREITO: Penal; Processual

RESUMO: O artigo tem por objeto analisar o conceito de produto indireto da infração penal
antecedente, como objeto do crime de lavagem de dinheiro, na figura básica do caput do
art. 1º da Lei nº 9.613/1998, com a redação dada pela Lei nº 12.683/2012. Pretende-se
demonstrar que, no caso de mescla de bens, a aplicação simplista da teoria da conditio
sine qua non é insuficiente para delimitar, em níveis razoáveis, a responsabilidade penal,
sendo necessária a adoção de limites normativos à imputação do crime de lavagem de
dinheiro.
PALAVRAS-CHAVE: lavagem de dinheiro – produto do crime – mescla de bens

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do crime de lavagem de dinheiro: as diversas fases de um processo único –


3. Produto de infração penal: somente acréscimo patrimonial ou inclusão conceitual da não redução
patrimonial – 4. O conceito de “produto, direto ou indireto, de infração penal”– 5. O produto indireto do
crime e a necessidade de limites à consideração da proveniência ilícita de um bem criminoso – 6.
Conclusão.

1.   INTRODUÇÃO

O artigo caput do art. 1º da Lei nº 9.613/1998, com a redação dada pela


Lei nº 12.683/2012, em sua figura básica, admite que o produto, direto ou indireto da
infração penal antecedente, possa ser objeto do crime de lavagem de dinheiro.

                                                                                 
*
Artigo originariamente publicado, sob o mesmo título, em Revista dos Tribunais – Caderno Especial, São
Paulo, v. 967, p. 73-93, maio 2016.
**
Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado do
Departamento de Direito Processual, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado
Criminalista e Consulto Jurídico.
No caso do produto, isto é, a utilidade diretamente obtida com o resultado
da infração antecedente, há uma total ilicitude do bem, produto ou valor, sendo inconteste
a possibilidade de lavagem de dinheiro.

Já no caso de produto indireto, a aplicação pura e simples da teoria da


conditio sine qua non pode levar a uma ampliação exagerada das situações
caracterizadoras da lavagem de dinheiro, tendo por consequência a possibilidade de se
retirar da circulação econômica uma parcela significativa dos bens, produtos e valores
existente na economia mundial.

Assim, no caso de produtos indiretos da infração penal, a relação de


causalidade é uma condição necessária, mas não suficiente, para que um determinado
bem possa ser considerado com apto a ser objeto do crime do art. 1º da Lei nº 9.613/1998.

Pretende-se analisar possíveis limites normativos ao conceito de


causalidade, especialmente no caso de mescla de bens lícitos e ilícitos, em que a porção
contaminada seja muito pequena e seus reflexos na configuração da tipificação do crime
de lavagem de dinheiro.

2. Do crime de lavagem de dinheiro: as diversas fases de um processo único

A análise do conceito de produto direito e indireto da infração, e a


necessidade de uma limitação normativa desse último conceito, no caso de mescla de
bens, será realizada tendo em vista a figura básica do caput do art. 1.º da Lei
nº 9.613/1998, com a redação dada pela Lei nº 12.683/2012. Isto é, a ocultação ou a
dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade
de bens, direitos ou valores, provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

Não é necessária uma análise retrospectiva e longa do crime de lavagem


de dinheiro e suas diversas formas de cometimento. Até mesmo porque há inúmeras
tipologias, algumas mais simples, como a de Bernasconi, que distingue a lavagem de
capitais de primeiro grau e de segundo grau,1 até outras muito mais complexas, como o
modelo de ciclos de Zund, que chega a ter 10 fases distintas.2

Adota-se, pois, o padrão mais usual com que o tema é tratado. Ainda que
com variações terminológicas, costuma-se decompor o crime de lavagem de dinheiro em
três fases comunicantes denominadas, segundo a tipologia proposta pelo GAFI,3
ocultação, dissimulação e integração. De modo muito simples, a primeira é aquela na qual
se procura tornar os bens ilícitos menos visíveis; a segunda tem por objetivo distanciar o
dinheiro de sua origem ilícita; e a terceira se dá quando se converte o capital ilícito em
lícito.

Na fase de ocultação, também denominada “placement”, colocação ou


conversão, o dinheiro ou produto obtido diretamente com a atividade criminosa passa por
sua primeira alteração, visando ter uma menor visibilidade. Para tanto, como
normalmente o produto direto é uma elevada quantidade de papel-moeda, tal numerário,
num primeiro momento, costuma ser distribuído em valores menores e colocado no
sistema financeiro em bancos, corretores de valores ou bolsas. Mas também pode ser
ocultado mediante a compra de joias e obras de arte. A troca em moedas estrangeiras, nas
casas de câmbio, também é comum. Qualquer dessas opções servirá para, numa primeira

                                                                                 
1
Paolo Bernasconi, Schweizerische Erfahrungen bei der Untersuchung und strafrechtlichen Erfassung der
Geldwäscherei, in: Macht sich Kriminalität bezahlt? Aufspüren und Abschöpfen von Verbrechensgewinnen,
Arbeitstagung des Bundeskriminalamtes Wiesbaden, von 10-13, november, 1986, Bundeskriminalamt
Wiesbaden, 1987, p. 165 e segs., apud Isidoro Blanco Cordero, El Delito de Blanqueo de Capitales, 2. ed.
Navarra: Aranzadi, 2002, p. 55-56) refere-se à lavagem de dinheiro em primeiro grau (“Money laundering”)
considerada como verdadeiro branqueamento de capitais, entendido como conjunto de atividades por meio
das quais se libera os bens contaminados, num curto período de tempo, de seu rastros de origem delitiva; e
lavagem de dinheiro de segundo grau (“recycling”), como conjunto de operações por meio das quais os
bens já lavados uma vez são posteriormente tratados até que não seja mais possível demonstrar sua conexão
com um crime concreto, e que seja considerado um lucro legal.
2
André Zund (Geldwäscherei: Motive-Formen-Abwehr, Der Schweizer Treuhänder, 9/1990, p. 403 e segs,
apud Blanco Cordero, El Delito de Blanqueo ..., p. 57-59) foi o criador do “Kreislufmodel” que procura
descrever a circulação do dinheiro mediante uma analogia com o ciclo da água na natureza: (1) precipitação,
para se referir à produção do dinheiro em cédulas, normalmente de pequeno valor; (2) filtragem, ou primeira
depuração dos valores obtidos, normalmente transformando o dinheiro em cédulas maiores; (3) rios
subterrâneos, em que há constituição de um concurso com empresário, convertendo o dinheiro em outras
formas patrimoniais; (4) lagos subterrâneos, para relacionar a lavagem com a preparação da remessa dos
valores para o exterior; (5) nova acumulação em lagos, em que a preparação para a legalização, colocação
dos bens ou valores em mãos dos especialistas; (6) estação de bombeamento, com a reintrodução do
dinheiro no mundo financeiro legal; (7) estação de depuração, em que há uma segunda depuração,
normalmente envolvendo “testas de ferro”; (8) aplicação ou aproveitamento, em que há transferências e
investimentos, depois de já superadas as barreiras dos sistema financeiro; (9) evaporação, com a
reintegração do dinheiro no país de destino; e, por fim, (10) nova precipitação, com o investimento na
manutenção da organização criminosa.
3
GAFI, Rapport demandé par les chefs d’Etat lors du Sommet de l’Arche. Collection des rapports officiels,
París, 1990.
operação, transformar o produto direto do crime em proveito de natureza diversa, isto é,
seu produto indireto, pela primeira sub-rogação.

A segunda fase ou etapa, chamada de dissimulação, mascaramento ou


“layering”, tem por finalidade, uma vez já realizada a primeira operação de ocultação da
origem ilícita, realizar atos sucessivos para distanciar ou afastar, ao máximo, o dinheiro,
bem ou valor de sua fonte espúria, apagando os vestígios de sua obtenção. Para tanto,
normalmente há uma rede ou conjunto de operações e atividades econômico-financeiras,
muitas vezes envolvendo vários atos e instituições, compra e venda de ações em bolsas
de valores, remessas de dinheiro já convertido em moeda estrangeira, para paraísos
fiscais, por exemplo, via dólar-cabo, transferências eletrônicas sucessivas, em valores
diferentes e por diversas contas bancárias etc.
Finalmente, a terceira etapa, de integração (“integration”), busca concluir
o ciclo, com a reinserção do dinheiro, antes sujo, agora com aparência de legalidade, na
economia formal. É quando se dá, propriamente, a conversão do dinheiro “sujo” em
capital lícito, constituindo empresas e estabelecimentos lícitos, realizando venda de
imóveis com valores diferentes daqueles de mercado, ou em empréstimos de regresso
(loanback) etc. Constitui, pois, o culminar de um processo de aparente legitimação dos
bens e valores ilícitos.

Essas fases, contudo, embora possam ser separadas, para fins didáticos,
não podem ser analisadas independentemente, pois, como destaca Tigre Maia, “a
reciclagem é um ‘processo’ suscetível de análise com os instrumentos da ciência
econômica ou da ciência jurídica mas dificilmente desdobrável em fases distintas (...).
Com certeza, as definições legislativas que tentam decompor o processo em fases
cronológica e logicamente distintas são destinadas à inadequação”.4

Ao mais, do ponto de vista objetivo, no ordenamento jurídico brasileiro,


tanto a ocultação em si, quanto a simples dissimulação, são aptas, por si sós, a caracterizar
o crime de lavagem de dinheiro. Isso porque, o delito do art. 1º, caput, da Lei nº
9.613/1998, é crime de ação múltipla. Logo, se um mesmo bem, dinheiro ou valor for
ocultado e, depois, dissimulado, haverá crime único, não sendo admissível a imputação
de mais de um crime.5

                                                                                 
4
Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 37.
5
Nesse sentido: Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65; Marco
Antonio de Barros, Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007,
Por outro lado, se um bem, direito ou valor, é ilícito, mas em relação a ele
são praticados atos sem aptidão de ocultar ou dissimular sua origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade, não haverá conduta típica de lavagem de
dinheiro.

3. Produto de infração penal: somente acréscimo patrimonial ou inclusão conceitual


da não redução patrimonial

Antes de analisar a questão do produto indireto e a necessidade de


estabelecer alguma limitação de tal conceito, é necessário discutir uma questão prévia,
sobre a natureza dos “bens, direitos ou valores” quanto ao impacto patrimonial para o
autor do delito.

Normalmente se pensa no produto ou proveito ilícito como um ganho, uma


vantagem que o crime agrega ao patrimônio de seu autor. O dinheiro furtado, a coisa
roubada, o valor pago na extorsão mediante sequestro, a propina na corrupção passiva.

Evidente que, em tais casos não se disputa que há bens, direitos ou valores
ilícitos acrescidos ao patrimônio do criminoso e que, se houver ocultamento ou
dissimulação de sua origem, natureza, procedência etc. estará caracterizado o crime do
art. 1.º da Lei nº 9.613/1998.

Mais complexa é a admissão de que a “não redução patrimonial”


decorrente de prática criminosa, também poderá ser considerada como produto do crime,
apto a ser reciclado.

O tema é objeto de intensa disputa doutrinária, sendo normalmente tratado


sob o enfoque de crime tributário, na modalidade de reduzir ou suprimir tributo. O
contribuinte ou o responsável tributário, que deveria ter recolhido aos cofres públicos
uma determinada quantia a título de tributo, deixa de fazê-lo. Ontologicamente, seu
patrimônio não se altera. Nenhum ativo é acrescido a ele. O sonegador tinha certa

                                                                                 
p. 60; Guilherme de Souza Nucci, Leis penais e processuais penais comentadas. 4 ed. São Paulo: Ed. RT,
2009, p. 827, Willian Terra de Oliveira, Dos Crimes e das Penas, in Cervini, Raul; Oliveira, Willian Terra
de; Gomes, Luiz Flavio. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: Ed. RT, 1998, p. 326; Pierpaolo Cruz
Bottini, Dos tipos penais, in Gustavo Henrique Badaró; Pierpaolo Cruz Bottini, Lavagem de Dinheiro:
aspectos penais e processuais penais, 2 ed. São Paulo: RT, 2013, p. 65-66.
disponibilidade em dinheiro ou valor em contas correntes ou aplicações financeiras, e
continuará exatamente com o mesmo dinheiro ou valor, após deixar de pagar o tributo.
Seus ativos se manterão inalterados. Por outro lado, é de se considerar que ocorrendo o
fato gerador previsto em lei, o valor do tributo deveria ser recolhido ao Fisco, com a
consequente redução patrimonial do contribuinte. O não pagamento do tributo, portanto,
implicará que, ilegalmente, seu patrimônio não seja reduzido. Assim, seria um mero jogo
de palavras considerar-se que o crime tributário não gera uma vantagem economicamente
aferível ao sonegador.

A resolução da questão envolve correntes que podem ser denominadas, de


um lado, restritivas, e de outro, ampliativas. Uma linha de entendimento, que se
convencionou denominar “dinâmica”, considera que o conceito de “proveniência” deve
ser analisado sob a ótica do fluxo de riqueza ilícita que incrementa o patrimônio do autor
da infração antecedente. Ou seja, o delito deve ter gerado um ganho, um acréscimo
patrimonial, que depois será objeto da lavagem. A segunda corrente, entende que o
conceito de “proveniente do delito” deve ser entendido, do ponto de vista econômico,
tanto no sentido de incremento ilícito do patrimônio, quanto da ausência de redução
patrimonial.6

Na doutrina nacional, a redação originária da Lei nº 9.613/1998 inclinava-


se, claramente, no sentido de exigir que os bens, direitos ou valores, provenientes da
infração, “implicassem um acréscimo ao patrimônio do criminoso”.7 Aliás, não foi por
outro motivo que, declaradamente, ficou fora do rol de delitos antecedentes, o crime de
sonegação fiscal.

A Exposição de Motivos do Poder Executivo referente ao texto original da


Lei (EM 692/MJ/96) é bastante enfática: “(...) o projeto não inclui, nos crimes
antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação, ao patrimônio do agente,
de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação fiscal. Nesta, o núcleo do
tipo constitui-se na conduta de deixar de satisfazer obrigação fiscal. Não há, em
decorrência de sua prática, aumento de patrimônio com a agregação de valores novos.

                                                                                 
6
Nesse sentido, na doutrina italiana: Cristiano Cupelli, El reciclaje en el Código Penal italiano, In Miguel
Abel Souto; Nielson Sánchez Stewart (Coords.), IV Congreso Internacional sobre Prevención y Represión
del Blanqueo de Dinero. Valencia: Tirant Lo Banch, 2014, p. 208, aponta a corrente restritiva como
prevalecente. Nesse sentido posiciona-se Simone Faiella, Riciclaggio e crimine organizzato
transnazionale. Milano: Giuffrè, 2009, p 68-69.
7
Tigre Maia, Lavagem de Dinheiro …, p. 63.
Há, isto sim, manutenção de patrimônio existente em decorrência do não pagamento de
obrigação fiscal. ” (EM item 34). Em outras palavras, não se incluiu o delito fiscal – à
época – como crime antecedente, porque este não gera produto algum, a não ser o
quantum economizado pelo não pagamento.

Evidente que, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012,


eliminando o rol de crimes antecedentes, não há mais qualquer vedação abstrata para que
a sonegação fiscal possa, em tese, figurar como delito antecedente da lavagem de
dinheiro.

Isso, contudo, não afastaria, teoricamente, o problema: como a sonegação


fiscal gera, como produto ilícito, apenas uma não redução patrimonial do contribuinte,
esse valor ilegalmente não recolhido ao Fisco poderá ser considerado com objeto material
do crime de lavagem de dinheiro? Tem prevalecido, na doutrina nacional, a resposta
positiva.8

Em suma, o art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/1998, prevê que pode ser objeto
material da lavagem de dinheiro qualquer bem, direito ou valor que seja produto de
infração penal. Não havendo qualquer limitação legal, é de se considerar que o produto
pode ser tanto o efetivo acréscimo patrimonial ilícito, como também uma não redução
patrimonial, que seria legalmente exigível, na medida em que isso gera um valor ilícito
no patrimônio do autor do delito.

4. O conceito de “produto, direto ou indireto, de infração penal”

Inicialmente, é de se ter em conta a distinção entre produto e proveito, de


um lado, e objeto do crime, de outro. Ou, em outras palavras, a coisa que provem
diretamente do crime (producta sceleris) e o objeto que provem indiretamente do delito
(fructus sceleris).9

                                                                                 
8
Nesse sentido: Carla Veríssimo de Carli, Avaliando o nexo entre infração penal antecedente e o crime de
lavagem de dinheiro: o que significa ‘ser proveniente’, direta ou indiretamente, de infração penal. In Carla
Veríssimo De Carli; Eduardo Fabián Caparrós e Nicolás Rodriguez García (Orgs.). Lavagem de Cpaitais e
Sistema Penal. Contribuições hispano-brasileiras a questões controvertidas. Porto Alegre: Verbo Jurídico,
2014, p. 37-38.
9
Nesse sentido: Roberto Lyra, Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942. v. II. p. 462;
José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1966. v. III. p. 300; Bento de
Faria, Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho, 1942, v. i, p. 194; Eduardo Espínola
O produto direto, ou simplesmente, produto da infração, é “corresponde o
resultado útil imediato da operação delinquencial”,10 como por exemplo, ou veículo
furtado, ou um dinheiro roubado. Já o Ao produto indireto, também chamado de
“provento da infração ou proveito do crime” corresponde o resultado útil mediato da
operação delinquencial”, isto é, o benefício obtido pelo delinquente, decorrente da
utilização ou transformação econômica do produto direto do crime. Continuando no
exemplo anterior, seria, v.g., o numerário obtido com a venda do veículo furtado, bem
assim o imóvel comprado com o dinheiro roubado.

Como explica Sérgio Pitombo, “os bens alcançados por meio do produto
da infração penal, sejam producta sceleris, sejam fructi sceleris, marcam-se pela
proveniência ilícita”. 11

Não se pode confundir, de outro lado, o produto – direto ou indireto – do


crime, com o objeto material do crime, isto é, a pessoa ou coisa sobre o qual incide o
crime. Aníbal Bruno explica que o “objeto material do crime é a pessoa ou coisa sobre a
qual recai essencialmente a ação: a coisa que se subtrai, a pessoa que é morta ou ferida”.12

Por fim, há que se diferenciar do produto do crime os instrumentos do


crime. Estes são as coisas que servem ao seu cometimento, empregadas na realização da
atividade punível13 como, p. ex., a arma no crime de roubo, ou a dinamite no crime de
explosão.

Valendo-nos da síntese de Asúa:

Tais conceitos são perfeitamente compatíveis com o direito posto


brasileiro, como deixam bem claras as alíneas a e b do inciso II do caput do artigo 91 do

                                                                                 
Filho, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. 6 ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, v. II, p. 374;
Rogério Lauria Tucci, Sequestro prévio e sequestro no CPC: distinção, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 5, p. 137-147, jan./mar. 1994, p. 143; Na doutrina estrangeira: Vincenzo Manzini, Trattato di
Diritto Penale Italiano. Nuova edizione, Torino: UTET, 1950, v. III, p. 355.
10
S é r g i o M a r c o s d e M o r a e s P i t o m b o , Do sequestro no processo penal brasileiro. São Paulo:
Bushatsky, 1973. p. 9.
11
Do sequestro ..., p. 10.
12
Direito Penal: Parte Geral. 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. 2, p. 211. No mesmo sentido posiciona-
se Giuseppe Bettiol (Direito Penal. trad. e notas Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco, 2 ed. São
Paulo: RT, 1977, v. I, p. 229), para quem o objeto material do crime é: “aquela porção do mundo exterior
sobre a qual incide a atividade delituosa. Assim, a coisa material no delito de furto, o corpo humano, no
delito de homicídio ou de lesões”.
13
Como explica Luis Jiménez de Asúa (Tratado de Derecho Penal: El delito. 5 ed. Buenos Aires: Losada,
1950. t. III, p. 111): ““En suma: el objeto material o de la acción, es toda persona cosa que forma parte del
tipo descriptivo en la ley. Podemos decir, por ende, que científicamente, el objeto material y el cuerpo del
delito pueden identificarse, pero no con sus instrumento”.
Código Penal, distinguindo conceitualmente o produto do crime (producta sceleris), o
proveito do crime (fructus sceleris) e instrumento do crime (instrumenta sceleris).14

Transportando tais conceitos para o delito de lavagem de dinheiro, na sua


figura básica, da cabeça do art. 1º, a lavagem de dinheiro consiste em ocultar ou
dissimular a origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de “bens,
direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Assim, os bens, direitos ou valores, da infração antecedente ou primária,


em tese, poderiam ser pensados como: (i) produto do delito; (ii) proveito do delito, isto é,
benefício decorrente do crime; (iii) objeto material do crime; (iv) preço do crime.

Até mesmo pela redação do tipo penal do art. 1º, caput, da Lei 9.613/1998,
em que há referência a bens “provenientes, direta ou indiretamente” da infração penal, é
tranquila a consideração de que tanto o produto direto, quanto o produto indireto do crime,
podem ser objeto material da lavagem. Ou seja, o resultado diretamente obtido pelo delito
antecedente (p. ex.: o dinheiro furtado de um banco), quanto o seu proveito ou provento
(p. ex.: certa quantidade de ouro adquirida com o dinheiro furtado). Em outras palavras,
podem ser branqueados tanto o producta sceleris, isto é, o produto um crime quanto o
fructus sceleris, como o proveito da infração. Tais considerações são tranquilas na
doutrina nacional.15

                                                                                 
14
Deixa-se de analisar a questão do instrumento do crime, porque irrelevante para o presente estudo, bem
como porque a doutrina é tranquila no sentido da impossibilidade de o instrumenta sceleris ser objeto
material da lavagem de dinheiro. Nesse sentido: Tigre Maia, Lavagem de Dinheiro ..., p. 62; Bottini, Dos
tipos penais, in Badaró; Bottini, Lavagem de Dinheiro ..., p. 71; De Carli, Avaliando o nexo entre infração
penal antecedente ..., in De Carli; Fabián Caparrós e Rodriguez García (Orgs.). Lavagem de Capitais e
Sistema Penal … , p. 27. Na doutrina estrangeira: Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales …,
p. 242; Juana Del Carpio Delgado, El delito de blanqueo de bienes en el nuevo Código Penal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 1997, p. 103; Carlos Aranguez Sánchez, El delito de blanqueo de capitales, Barcelona:
Marcial Pons, 2000, p. 205; Andrea Castaldo; Marco Nadeo, Il denaro sporco. Prevenzione e repression
nella lotta al riciclagio, Padova: CEDAM, 2010, p. 150.
15
Nesse sentido: Pitombo, Lavagem de dinheiro …, p. 106-107; Marcia Monassi Mougenot Bonfim e
Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 42. Na doutrina
italiana: Faiella, Riciclaggio e crimine organizzato transnazionale …, p. 65; Gaetano Pecorella, verbete
“Denaro (Sostituzione di), in Digesto delle Discipline Penalistiche, Torino: Utet, v. III, 1989, p. 376; Marco
Angelini, verbete “Riciclaggio”, in Digesto delle Discipline Penalistiche, Torino: Utet, Aggiornamento,
2005, p. 1403 Em outros ordenamentos jurídicos, contudo, o tema gerou polêmica, como por exemplo, na
Espanha, em que a caracterização da lavagem de bens que eram resultados de substituição ou conversão
prévia, recebeu a seguinte consideração de Fabian Caparros (E. A. Fabian Caparros (Consideraciones de
urgencia sobre la Ley Orgánica 8/1992, de 23 de diciembre, de modificación del Código penal y de la Ley
de Enjuiciamiento Criminal en materia de tráfico de drogas, in Anuario de Derecho Penal e Ciencias
Penales, 1993, p. 606.): “queda en el aire una cuestión realmente importante con es determinar qué quiere
decir la norma cuando exige que teles bienes procedan de alguno de los delitos de drogas expresado en los
artículos anteriores. Ante la ambigüedad de la ley, habrán de ser los tribunales los que decidan sobre si será
necesario que tal procedencia sea inmediata – y, así, por ejemplo, el dinero derivado directamente de la
Também tem se admitido que o “preço do crime”, isto é, a recompensa ou
outra vantagem que o autor de um delito recebe como retribuição econômica para cometer
o crime ou pelo crime já praticado, pode ser objeto da reciclagem.16 Por exemplo, o preço
pago ao matador, ou o valor recebido pelo funcionário público corrupto. Todavia, para
que o preço do crime seja suscetível de caracterizar objeto da lavagem de dinheiro, deve
ter expressão econômica, isto é, ser suscetível de ser valorado economicamente. Mais do
que isso, tem que ser passível de comércio ou circulação econômica. Não poderia ser
lavado, por exemplo, favores sexuais que um policial criminoso recebesse de uma mulher,
para não a prender em flagrante delito.17

Por fim, com relação ao objeto material do crime, enquanto a pessoa ou


coisa sobre a qual recai ação delitiva, poderia ser objeto da lavagem de dinheiro?
Obviamente, não se trata de qualquer “bem, direito, ou valor”. Por exemplo, num crime
de vilipendio a cadáver, dificilmente o objeto material, o próprio cadáver, poderá ser
submetido à dissimulação ou ocultação de sua origem ilícita. Evidente que, além de direta
ou indiretamente ilícito, o objeto material da lavagem de dinheiro tem que ser passível de
“incorporação ao tráfico econômico”.18

Em suma, entre nós, há regra clara no sentido de que o bem, direito ou


valor pode ser proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal. Isto é, o objeto
material da lavagem de dinheiro pode ser algo diretamente ilícito ou indiretamente ilícito.

5. O produto indireto do crime e a necessidade de limites à consideração da


proveniência ilícita de um bem criminoso

                                                                                 
venta de estupefacientes – o si también podrán ser objeto del delito aquellas ventajas económicas por las
que hayan sido sustituidos los beneficios directos – y así, por ejemplo, los valores patrimoniales adquiridos
con ese dinero” De se observar que, a referência dizia respeito ao tipo penal que tinha como objeto material
“bienes que procedan di tales delictos” (CP, art. 344 –bis, h). Posteriormente, com a Lei Organica 10/95,
o novo Código Penal de 1995, passou a prever o crime no art. 301.1, referindo-se a bens “que tengan su
origen” em um delito grave.
16
Nesse sentido, admitindo a possibilidade de o preço do crime ser objeto de lavagem de dinheiro: Tigre
Maia, Lavagem de Dinheiro ..., p. 63; é aceita por Antonio Sérgio Pitombo, Lavagem de dinheiro …, p.
109. Na doutrina estrangeira: Aranguez Sánchez, El delito de blanqueo de capitales…, p. 204; Faiella,
Riciclaggio e crimine organizzato transnazionale …, p. 65. Em sentido contrário, não admitindo a lavagem
do “preço do crime”: Pecorella, verbete “Denaro (Sostituzione di) …, p. 376
17
Angelini (verbete “Riciclaggio”…, p. 1403) observa que no caso de uma prestação pessoal é muito difícil
imaginar que, mesmo tendo proveniência criminosa, seja suscetível de lavagem de dinheiro, por ausência
de dimensão econômica.
18
Carpio Delgado, El delito de blanqueo de bienes …, p. 99.
O grande problema, para a imputação da lavagem, não é o caso de produto
direto do crime, mas de seu proveito ou produto indireto.

A questão central a ser resolvida é: há limites para relação de causalidade


quanto ao produto indireto? Ou, dito de outro modo: até que nível de sub-rogação o
produto indireto, seja ele bem, direito ou valor, continuará a ser ilícito, em razão de uma
longínqua origem espúria?

Duas respostas são, em tese, possíveis. A primeira, é considerar que a


marca de ilicitude tornar-se-á uma mancha indelével do bem, direito ou valor, a mantê-lo
indefinidamente maculado. A solução diversa, é considerar que há um limite, no caso de
sucessivas especificações, para que tal bem, em sentido amplo, possa continuar sendo
considerado ilícito e, portanto, apto a caracterizar-se como objeto material do crime de
lavagem.

O tema tem gerado grande discussão na legislação estrangeira, em especial


diante de expressões como “proceed”, no direito norte americano, ou “tengan origen”, do
Código Penal espanhol, “provenienti da delito” do direito italiano, ou ainda, “bienes
provenientes”, do direito penal argentino.19 A grande discussão da doutrina estrangeira,
em torno do conceito de “proveniente”, se repete entre nós.

Evidente que nos ordenamentos em que não se delimita ou explicita, se a


proveniência se limita ao produto direto, ou se também abarca o indireto, a discussão é
ainda mais tormentosa. Mas o fato de haver previsão expressa de possibilidade de
branqueamento de bens que provenham indiretamente, ou por sub-rogação, do crime
antecedente, não elimina o problema, apenas mudando sua natureza. A questão deixa de
ser: É possível a lavagem do produto indireto do crime? Em seu lugar, passa-se a indagar:
Em qualquer caso, uma origem ilícita contaminará, indefinidamente, todos os produtos
indiretos posteriores?

                                                                                 
19
Para Gustavo Fabián Trovato (La recepción de las propuestas del GAFI en la legislación penal argentina.
In Miguel Bajo Fernández e Silvina Bacigalupo (Eds.), Política criminal y blanqueo de capitales. Madrid:
Marcial Pons, 2009, p. 71), analisando o art. 278.1.a do CP argentino, afirma que “La acción debe recaer
sobre un determinado objeto. Al decir ‘los bienes originarios o los subrogantes’ el texto da a entender que
es indiferente que la operación de lavado recaía sobre las cosa directamente derivadas del delito o sobre los
bienes que hubieren entrado en el patrimonio en el lugar de la cosa originaria”.
Isso porque, posta a premissa da possibilidade de uma ilicitude indireta, é
necessário cogitar de alguma forma de limitação desse efeito à distância. Depois de uma,
duas, três, quatro ... sub-rogações, o bem continuará a ser ilícito? No caso de mescla, a
mistura de bens ou valores ilícitos com outros lícitos gera uma contaminação destes, pela
natureza espúria daqueles? Em caso positivo, em qualquer proporção?

Esse tema não é muito debatido na doutrina nacional, que geralmente


estende ao máximo a proveniência indireta do bem ilícito, como se verifica da seguinte
passagem de Rodolfo Tigre Maia: “não importa, aqui, que tal produto seja obtido
diretamente (e.g., quando já é o próprio oriundo do crime primário) ou indiretamente
(quando se trata de outro bem derivado do que resultou do crime anterior), quer mediante
especificação sucessiva (e.g., quando se fundem moedas de ouro em uma barra), quer
após revenda (e.g., quando aliena o bem e obtém algo em troca), quer, ainda, quando
criado pelo próprio delito-base (e.g., quando falsifica moeda e adquire bens); ou, ainda,
que configure mero exaurimento do crime pressuposto (e.g., recebimento do preço na
extorsão mediante sequestro).20

Há, por outro lado, quem se preocupe com a fixação de um limite à


derivação ilimitada dos bens originários, para que tal processo não seja levado ao infinito.
Surge, pois, a necessidade de estabelecer hipóteses de “descontaminação” do bem com
origem viciada.21

Embora a lei brasileira se refira a “produto, direto ou indireto”, tal


expressão indica apenas uma relação causal, ainda que, mediata. Isso não impede,
contudo, que do ponto de vista jurídico, se possa estabelecer barreiras dogmáticas a
impedir que tal nexo causal possa ser estendido indefinidamente.

Na Espanha, por exemplo, Cobo del Rosal e López-Gómes defendem que


“com a prescrição do delito [antecedente] se descontaminam os bens que procedem do

                                                                                 
20
Lavagem de Dinheiro ..., p. 62. Com base no posicionamento de José Manuel Palma Herera, Los Delitos
de Blanqueo de Capitales. Madrid: Edersa, 1999, p. 363-36, Bonfim e Bonfim (Lavagem de Dinheiro …,
p. 43) adotam posicionamento semelhante: “Na hipótese de mescla, será objeto material da lavagem apenas
a parte que procede de um dos delitos, não o bem, direito ou valor em sua totalidade. No caso de
transformação, ao revés, os bens, direito ou valores mantêm a origem delitiva, independentemente da perda
ou não da identidade do bem. Por fim, nos casos de substituição, o bem de origem lícita, que toma o lugar
do daquele de origem criminosa, adquire o mesmo caráter delitivo, sem contar que esse bem (de origem
delitiva, que foi substituído por um de procedência lícita) permanece contaminado, não havendo
saneamento. A contaminação atinge o bem substituído e o bem substituto”.
21
De Carli, Dos crimes: aspectos objetivos …, in De Carli (Org.), Lavagem de Dinheiro …, p. 268.
mesmo”.22 Tal solução, contudo, seria de difícil aplicação no direito brasileiro, ante a
regra expressa da acessoriedade limitada, que afasta a necessidade de que seja punível a
infração antecedente, para a caracterização da lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998,
art. 2º, § 1º, parte final).

Na doutrina estrangeira, é muito utilizado o modelo de Barton,23 que


propõe critérios para definir quando um bem procede ou não de um delito antecedente,
para evitar que possa ser considerado, para sempre, como inapto para a circulação
econômica e, consequentemente, fique excluído das transações comerciais.24 Barton
analisa a conexão entre a ilicitude inicial do bem obtido pela infração antecedente e sua
possibilidade de ser objeto de lavagem de dinheiro, à luz da relação de causalidade, seja
em sua feição clássica da teoria da equivalência das condições, seja por mecanismos de
imputação que limitam a causalidade, por meio da teoria da causalidade adequada ou a
da imputação objetiva.

A teoria da causalidade com base na equivalência das condições,


tradicionalmente conhecida como teoria da conditio sine qua non,25 é considerada
inadequada, por estender, ad infinitum, a contaminação originária do bem, mesmo após
uma cadeia de atos de conversão, substituições ou transformações.26 Para Barton, a
questão da relação entre um delito prévio e os bens que dele procedem deverá ser tratada,
do ponto de vista causal, sob a “titularidade econômica” do bem: um bem procede de um
fato criminoso, quando suprimindo mentalmente, esse fato prévio, o bem desapareceria
em sua concreta configuração ou em sua titularidade econômica, não mais constituindo
uma situação patrimonial atual ou presente. Os resultados de tal teoria são claramente
insatisfatórios, como se verifica do seguinte exemplo de Barton:

                                                                                 
22
Manuel Cobo del Rosal e Carlos Zabal López-Gómes, Blanqueo de capitales. Madrid: CESEJ, 2005, p.
109. Solução semelhante é proposta entre nós, embora ainda mais restrita, por Bonfim e Bonfim (Lavagem
de Dinheiro …, p. 43), que consideram que “o bem somente perde sua origem delitiva nos casos em que o
delito prévio não é mais considerado crime, por uma lei posterior (abolitio criminis)”.
23
A teoria foi desenvolvida em famoso trabalho, Barton, Stephan. “Das Tatobjekt der Geldwäsche: Wann
rührt ein Gegenstand aus einer der im Katalog des § 261 I Nr. 1-3 StGB bezeichnet Straftaten her?”, In
Neue Zeitschrift für Strafrecht, vol. 4, 1993, pp. 159ss. Uma análise ampla da tese de Barton pode ser
consultada em Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales ..., p. 287 e segs..
24
Barton, Stephan. “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 160.
25
Muito basicamente, segundo tal teoria, toda as condições que, do ponto de vista causal, tenham
concorrido para a produção do resultado, são igualmente necessárias para que esse aconteça e, portanto,
equivalentes. A fórmula da conditio sine qua non significa que uma condição constitui uma condição causal
do resultado, quando suprimindo-a mentalmente, o resultado não ocorreria tal como aconteceu.
26
Barton, Stephan. “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 160.
Um criminoso obtém a importância de 1000 DM do tráfico de drogas. Esse
valor constitui um bem que é produto de um delito.
Primeira transformação: o criminoso mescla esse dinheiro com o seu
dinheiro (não ilícito). Com isso, forma-se a importância de 10.000. Esse novo
valor seria considerado proveniente do tráfico de drogas, porque nele estariam
misturados os 1.000 DM.
Segunda transformação: O criminoso compra um carro, cujo preço no
valor de 100.000 DM, pelo qual paga utilizando os 10.000 DM. Esse novo
bem (o veículo) procede de um fato criminoso, porque uma parte do seu preço
foi pago com dinheiro procedente do tráfico de drogas.
Terceira transformação: o criminoso vende o automóvel, após algum
tempo, por 50.000 DM. Tanto o veículo, como os 50.000 DM passarão a ser
considerados bens originados de um delito, porque não poderiam ser
pensados, sem as transformações anteriores.
Quarta transformação (referente ao veículo): o novo comprador utiliza o
veículo por algum tempo e, depois, quando já não mais tem serventia, vende
para um “ferro-velho” por 50 DM: tanto os destroços ou peças do carro, como
os 50 DM seriam considerados bem originários do tráfico de drogas. Por outro
lado, com relação aos 50.000 da terceira transformação, todas as transações
em que uma parte desse dinheiro seja utilizada, gerariam bens que teriam sua
origem no tráfico de drogas.

Diante de tal exemplo, conclui acertadamente que essa interpretação


excessivamente ampla do conceito de procedência (para nós, “produto, direto ou
indireto”), faz com que a conexão causal subsista ilimitadamente, enquanto o bem se
mantiver circulando na economia. Ou seja, o vício de origem seguiria o bem
indefinidamente e contaminaria outros bens, podendo levar a uma contaminação de
grande parte da economia legítima.27

Passa então Barton a analisar a “teoria da adequação”, com base na qual


se procura distinguir entre causas e condições, com vistas a excluir da relação de
causalidade as conexões causais totalmente extraordinárias e imprevisíveis, do ponto de
vista do juízo normal dos homens. Assim, somente são relevantes as condições que, do

                                                                                 
27
Barton, Stephan. “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 1601-162, citado por Blanco Cordero, El delito
de blanqueo de capitales ..., p. 290-291.
ponto de vista de um observador objetivo e prudente, que se colocasse ex ante, no
momento da ação, com todos os conhecimentos da situação que dispunha o autor da ação,
somados àqueles que poderia ter tido o observador, seriam consideradas adequadas para
produzir o resultado. Por outro lado, faltará relação de adequação quando o resultado,
com base em um “juízo de previsibilidade objetiva” ou um “juízo de prognóstico”, era
totalmente improvável.

Partindo de tais premissas, Barton formula o seguinte exemplo: “Um


traficante de drogas, com dinheiro ilícito, compra um bilhete de loteria que,
posteriormente, é premiado e ele ganha 100.000 DM. Dificilmente se poderia dizer que o
“prêmio” da loteria “procede” de um delito de tráfico de drogas.28 Isso porque, do ponto
de vista da teoria da adequação, o prêmio procederia da sorte, que é algo que não entra
no juízo de probabilidade objetiva. Assim, o valor recebido e cujo bilhete foi adquirido
com dinheiro sujo não seria considerado procedente de um crime antecedente.

Por fim, Barton analisa a questão à luz da teoria da imputação objetiva,


deslocando o problema da relação entre o crime antecedente e o seu produto ilícito de um
plano ontológico para a esfera normativa. Assim, não basta a mera relação causal, sendo
necessária para a responsabilização penal a imputação do resultado. Um resultado
causado por uma ação humana somente será imputável ao seu autor quando tal ação tenha
criado um perigo juridicamente reprovável que tenha se transformado em um resultado
típico. Por outro lado, não será imputável o resultado ao autor da ação quando o risco
juridicamente relevante não tenha se realizado em um resultado típico. Para Barton, a
partir das premissas da imputação objetiva, um bem não será considerado procedente de
uma infração penal quando, segundo a teoria da imputação objetiva, considerações
normativas permitam romper o nexo causal, quando a infração antecedente não é
“juridicamente significativa” para o bem.29

E para definir quando há significação jurídica, é necessário trabalhar com


“aspectos econômicos”, entre os quais se inclui a “mescla de bens”.30

                                                                                 
28
Barton, Stephan. “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 162, citado por Blanco Cordero, El delito de
blanqueo de capitales ..., p. 293.
29
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 295.
30
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 295.
Barton parte de uma premissa econômica, analisando a situação do ponto
de vista da correlação entre a parte limpa e a parte suja do dinheiro. Tal correlação foi
denominada “nível de significância”, que irá variar de caso para caso, considerando,
ainda, a natureza dos bens e o nível absoluto do valor considerado e da parte ilícita
mesclada. Será o nível de significância que determinará quando a totalidade dos bens
mesclados será considerada apta ou não a ser objeto do crime de lavagem de dinheiro.

O caso mais problemático ocorre quando a parte manchada de um bem é


insignificante em relação com a parte limpa. Para Barton, em determinadas situações pode
ocorrer o que ele qualifica como “ausência de relevância ou significância jurídica” do
fato prévio, do ponto de vista da correlação entre a parte manchada e a parte não machada
do bem.31 Em casos, em que a parte ilícita seja “uma partícula atômica” da mescla, os
bens mesclados não poderão ser considerados como procedentes de uma infração penal
prévia.32

Tal critério socioeconômico, traduzido objetivamente em expressões


matemáticas, foi formulado da seguinte maneira: se fração dos bens ilícitos originários
do crime antecedente varia entre 1/1000 e 5/100, ou seja, entre 0,1% e 5%, então esses
bens não podem ser considerados de procedência ilícita; por outro lado, se tal proporção
supera 5% do total, já pode ser caracterizado como um bem idôneo para a lavagem de
capital.33

Tal limite não é fruto de uma simples escolha aleatória ou, muito menos,
uma proposta de criação doutrinária de um bill de indenidade. Há um sentido teleológico
em tal proposta. As regras de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro têm por
objetivo evitar que o delinquente possa desfrutar do lucro da atividade criminosa,

                                                                                 
31
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 297.
32
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 297.
33
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 297. O mesmo ponto de vista é defendido, na doutrina espanhola, por Carlos Áranguez
Sánchez, El delito de blanqueo de capitales ..., p. 210. Para uma análise da posição de Barton, na doutrina
nacional, cf.: Carla de Carli, Dos crimes: aspectos objetivos, in Carla Veríssimo De Carli (Org.), Lavagem
de Dinheiro. Prevenção e Controle Penal, 2 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 267-268. Solução
semelhante é defendida por Aranguez Sánchez, El delito de blanqueo de capitales …, p. 211-212, embora
sem uma quantificação numérica. Mais ampla é a proporção da correlação defendida por Carsten Leip, Der
Straftatbestand der Geldwäsche: Zur Auslegung des § 261 StGB . Berlin, 1995 p. 109-110, apud, Blanco
Cordero, El delito de blanqueo de capitales ..., p. 297, nota 336) que, partindo da normativa relativa aos
impostos, conclui que um bem parcialmente contaminado deve ser considerado ilícito em sua totalidade,
quando a parte manchada constitua mais de um quarto da totalidade do valor.
inclusive “reinvestindo” parte dos seus ganhos sujos para aprimorar ou ampliar sua
atividade criminosa. Mas não é, nem pode ser objetivo de tal normativa impedir a
circulação de bens e valores de uma parte significativa da economia.34

A solução acima proposta vai além dos efeitos patrimoniais da perda dos
bens ou valores objeto da lavagem de dinheiro, situando-se, no plano da própria
atipicidade da conduta, com a não ocorrência da lavagem de dinheiro.

Evidente que isso refletirá no próprio conteúdo da imputação, quando se


tratar de lavagem de bens, direitos ou valores, que tenham origem ilícita apenas de modo
indireto. Não bastará narrar uma relação de causalidade remota, sendo necessário
descrever também, no caso de mescla, um “nível de significância” do bem ilícito, em
correlação com o bem lícito. E, mais do que isso, nos casos de “ausência de relevância
ou significância jurídica” do valor sujo que se misturou a uma quantidade muitíssimo
superior de valores lícitos, ter-se-á que reconhecer a atipicidade da conduta.

Não é tudo.

A análise dos efeitos da “mescla” de dinheiro limpo com dinheiro sujo,


também repercutirá no plano das consequências sancionadoras, quanto ao efeito
sancionador civil da condenação, consistente na perda do dinheiro ou valor que é produto
do crime antecedente ou o próprio objeto da lavagem.

Neste caso, colocam-se questões como: havendo a mistura de valores


lícitos com ilícitos, haverá contaminação de toda a importância? A resposta positiva
permitirá o “confisco” de todo o dinheiro, por exemplo, depositado em conta corrente,
incluindo o que era originariamente lícito. Por outro lado, a resposta negativa, permitirá
um “confisco” proporcional, somente do equivalente ao valor que era produto ou proveito
de infração penal, preservando-se a propriedade das somas originariamente lícitas.

Nesse sentido, a Convenção de Viena, no art. 5.6.b, prevê que, nos casos
de mescla, só poderão ser objeto de confisco os bens até o valor do produto de origem
ilícita que foi misturado a bens lícitos.35

                                                                                 
34
Barton, “Das Tatobjekt der Geldwäsche ..., p. 163, citado por Blanco Cordero, El delito de blanqueo de
capitales ..., p. 297.
35
O art. 5.6, da Convenção de Viena, de 20.12.1998, Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas, promulgada pelo Decreto nº 154, de 26.06.1991, ao tratar do confisco de bens estabelece
que: “a) Quando o produto houver sido transformado ou convertido em outros bens, estes poderão ser objeto
das medidas, mencionadas no presente Artigo, aplicáveis ao produto. b) Quando o produto houver sido
misturado com bens adquiridos de fontes lícitas, sem prejuízo de qualquer outra medida de apreensão ou
O tema é tratado, entre nós, por Pierpaolo Bottini que, no caso de produto
indireto nega aplicação da teoria da conditio sine qua non no caso de mescla de bens, e
propõe que a questão seja resolvida “sob a perspectiva da proporcionalidade, pautada
pela ideia da contaminação parcial” somente se reconhecendo a contaminação dos bens
“na proporção do valor de dinheiro sujo nela envolvido”,36 sendo a outra parte
considerada lícita.

Do contrário, como adverte Blanco Cordero, “el ingreso de una sola peseta
en la cuenta bancaria contagiaría a la totalidad del dinero ingresado, por lo que una sola
unidad podría contaminar millones”.37

Em suma, no caso de produto indireto da infração antecedente, a relação de


causalidade entre o produto ilícito apto a ser lavado e sua origem infracional é necessária,
mas não suficiente para a incidência do art. 1º da Lei nº 9.613/1998. É necessário
estabelecer limites normativos, para a imputação da proveniência ilícita aos bens, a
temperar uma excessiva e ilimitada relação de causalidade, no plano ôntico.
Especialmente nos casos de mescla é importante averiguar aspectos econômicos a
justificar tal limitação, considerando como critério limitador a quantidade de capital sujo
que compõe o conjunto, e a partir dessa constatação excluir a natureza ilícita do todo, por
sua ausência de relevância ou significância jurídica, ou considerar o produto final como
contaminado em seu todo, se houver um nível de significância elevado da contaminação.

Por fim, é de se registrar que, além do critério socioeconômico como


limitador normativo, a partir da imputação objetiva, da relação causal indireta, em outros
ordenamentos a definição do sujeito ativo do branqueamento tem também um importante
papel de contenção. Nos ordenamentos em que não se pune a autolavagem, a
impossibilidade de que aquele que obteve o produto do crime possa ser o autor da
lavagem desse produto ou proveito por si só, já é um forte limitador à imputação pela
mescla de capitais. Isso porque, o sujeito que, de alguma forma, em sua atividade
principal e de natureza lícita, obtém a maior parte de seus recursos, se a eles agregarem
valores ilícitos, não poderá responder por lavagem de dinheiro, exatamente por ser o autor
da atividade ilícita que gerou o proveito sujo que se misturou com a receita lícita.

                                                                                 
confisco preventivo aplicável, esses bens poderão ser confiscados até o valor estimativo do produto
misturado”.
36
Bottini, Dos tipos penais …, in Badaró e Bottini, Lavagem de Dinheiro …, p. 71-72. No sentido de que
apenas os bens provenientes do delito são objeto material da lavagem, Bonfim e Bonfim, Lavagem de
dinheiro ..., p. 43.
37
El Delito de Blanqueo de Capitales ..., p. 296.
A não punição da autolavagem também funciona como fator natural de
restrição de uma eventual contaminação ad infinitum dos valores lícitos pelos ilícitos. É
o que ocorre, por exemplo, na Alemanha,38 França,39 Argentina40 e, até recentemente, na
Itália.41 Nesses sistemas, o tipo penal de lavagem de dinheiro caracteriza uma “fattispecie
a soggettività ristretta”, não imputável ao autor do crime antecedente. Se quem praticou
o crime que gerou o acréscimo patrimonial ilegal, realiza manobras para ocultar ou
dissimular a origem, natureza ou propriedade de tais bens manchados, essa atividade de
branqueamento será considerada somente um post factum não punível.42

6. Conclusão

O art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/1998 considera que o bem, direito ou valor
pode ser proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal. Pode ser objeto da
lavagem de dinheiro tanto o produto direto da infração, quanto o seu proveito ou produto
indireto. Também pode ser objeto do branqueamento o preço do crime. Por outro lado,
não se incluem em tal conceito os instrumentos do crime utilizados para a prática da
infração antecedente.
Quanto ao produto indireto, a previsão legal de que um nexo causal
indireto permite que sejam considerados como ilícitos os proveitos da infração
antecedente e suas sucessivas sub-rogações, sendo apto a configurar objeto material do
crime de lavagem de dinheiro.

É necessário, em relação ao produto indireto, que se estabeleçam limites


dogmáticos para evitar que esse vício de origem permaneça indefinidamente sobre os

                                                                                 
38
O § 261 da StGB exclui os autores do crime antecedente, mediante a utilização da fórmula “bens
resultantes de crime perpetrado por outra pessoa” (die Vortat eines anderes).
39
O Code Pénal, no art. 222.38, prevê a exclusão dos envolvidos no crime anterior: “á justification
mensongère de l’origine des biens ou des revenus de l’auteur d’un crime ou d’un délit ... ”.
40
O Código Penal da Argentina, no 278.1.a, pune a conduta de quem branqueia bens “provenientes de un
delito en el que no hubiera participado ...”.
41
A tipificação do crime de riciclaggio do Codice Penal, no art. 648-bis, inserido pela Lei nº 55, de
19.03.1990, prevê: “Fuori dei casi di concorso nel reato, chiunque ...”. Posteriormente, contudo, a Lei nº
186, de 15.12.2014, instituiu o delito de “autoricilaggio, acrescentando o art. 648-ter. 1 ao Código Penal
italiano: “Art. 648-ter. 1. - (Autoriciclaggio). Si applica la pena della reclusione da due a otto anni e della
multa da euro 5.000 a euro 25.000 a chiunque, avendo commesso o concorso a commettere un delitto
non colposo, impiega, sostituisce, trasferisce, in attività economiche, finanziarie, imprenditoriali o
speculative, il denaro, i beni o le altre utilità provenienti dalla commissione di tale delitto, in modo da
ostacolare concretamente l’identificazione della loro provenienza delittuosa”.
42
Pecorella, verbete “Denaro (Sostituzione di) …, p. 370.
bens e contamine os que dele decorrem, implicando a retirada da circulação econômica
de um significativo conjunto de bens, direitos e valores.

No caso de mescla de bens, em que parte é de origem lícita, e outra ilícita,


nos casos de “ausência de relevância ou significância jurídica” do fato prévio, do ponto
de vista da correlação entre a parte manchada e a parte não machada do bem, os bens
mesclados não poderão ser considerados como procedentes de uma infração penal prévia.

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