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06/10/2018 Chomsky: ‘eu recém visitei Lula, o mais proeminente preso político da atualidade’

CHOMSKY: ‘EU RECÉM VISITEI


LULA, O MAIS PROEMINENTE
PRESO POLÍTICO DA
ATUALIDADE’
Noam Chomsky
2 de Outubro de 2018, 8h00

Foto: Fabio Vieira/FotoRua/NurPhoto via Getty Images

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Prisões lembram a famosa observação de Tolstói sobre famílias


infelizes: cada uma “é infeliz à sua maneira” ainda que haja algumas
características comuns – para prisões, o reconhecimento sombrio e
sufocante de que outra pessoa tem poder sobre a sua própria vida.

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06/10/2018 Chomsky: ‘eu recém visitei Lula, o mais proeminente preso político da atualidade’

Minha esposa, Valeria, e eu recentemente estivemos em uma prisão


para visitar aquele que é, provavelmente, o prisioneiro político mais
proeminente da atualidade, uma pessoa de notável significância na
política global contemporânea.

Considerando os padrões das prisões americanas que já vi, a


Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, no Brasil, não é
formidável ou opressiva – ainda que isso seja uma baixa expectativa.
Não é nada como algumas das que visitei em outros países – nem
remotamente parecida com Khiyam, a câmara de tortura de Israel no
sul do Líbano, mais tarde bombardeada e destruída para ocultar o
crime, e muito distante ainda dos indescritíveis horrores da Villa
Grimaldi de Pinochet, onde os poucos que sobreviveram às
requintadas sessões de torturas eram jogados em uma torre para
apodrecerem – uma das maneiras encontradas para assegurar que o
primeiro experimento neoliberal, sob a supervisão dos principais
economistas de Chicago, poderia ir adiante sem vozes disruptivas.

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Apesar disso, é uma prisão.

O prisioneiro que visitamos, Luiz Inácio Lula da Silva – “Lula”, como


ele é universalmente conhecido – foi sentenciado ao aprisionamento,
em uma solitária, com nenhum acesso à imprensa ou aos jornais e
com visitas limitadas uma vez por semana.

No dia após nossa visita, um juiz, citando a liberdade de imprensa,


concedeu ao maior jornal do país, a Folha de São Paulo, o direito de
entrevistar Lula, mas outro juiz rapidamente interveio e revogou
aquela decisão, apesar do fato de que os criminosos mais violentos do
país – líderes de milícias e traficantes de drogas – são rotineiramente
entrevistados na prisão.

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Para a estrutura de poder do Brasil, aprisionar Lula não é suficiente:


eles querem garantir que a população, enquanto se prepara para
votar, não possa ouvi-lo de nenhuma forma, e estão, aparentemente,
dispostos a fazer uso de qualquer medida para alcançar este objetivo.

O juiz que revogou a permissão não estava fazendo nada de novo. Um


predecessor dele foi o promotor de acusação na condenação de
Antonio Gramsci em 1926 pelo governo fascista de Mussolini, que
declarou que “nós temos que impedir o cérebro dele de trabalhar por
20 anos.”

“A história não se repete, mas frequentemente rima”, disse Mark


Twain.

Linguista americano e ativista político, Noam Chomsky (à esquerda) fala com militantes do
PT depois de visitar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão no dia 20 setembro.
Foto: Heuler Andrey/AFP/Getty Images

Nós ficamos motivados, mas não surpresos, ao descobrir que apesar


das onerosas condições e o chocante erro judiciário, Lula permanece

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em seu estado enérgico, otimista sobre o futuro e cheio de ideias


sobre como retirar o Brasil de seu atual caminho desastroso.

Sempre há pretextos para a prisão – talvez válidos, talvez não – mas


geralmente faz sentido buscar quais são as razões reais. Isso se aplica
nesta situação. A primeira acusação contra Lula, baseada em delações
premiadas de empresários sentenciados por corrupção, é a de que a
ele foi oferecido um apartamento no qual ele nunca morou. Nada de
extraordinário.

O crime alegado é quase imperceptível para os padrões brasileiros – e


há mais a dizer sobre esse conceito, mas retornarei a ele
posteriormente. Fora isso, a sentença é tão totalmente
desproporcional ao crime alegado que é importante buscar as razões.
Não é difícil desenterrar coisas sobre candidatos. Lula é, de longe, o
candidato mais popular e facilmente ganharia uma eleição justa, não
sendo este o resultado preferido da plutocracia. Embora suas políticas
enquanto estava no cargo fossem pensadas para ajustar as questões
financeiras domésticas e internacionais, ele é desprezado pelas elites,
em parte, sem dúvida, por conta de suas políticas de inclusão social e
benefícios aos menos afortunados, porém outros fatores parecem
intervir: primeiramente, o simples ódio de classe. Como pode um
trabalhador pobre sem educação superior que nem sequer fala
português corretamente ser o líder de nosso país?

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Da esquerda para a direita, o ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim, o ex-


presidente Lula, o presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad, o primeiro-ministro turco Recep
Tayyip Erdogan, e o ministro turco Ahmet Dav Davutoglu, se cumprimentam em Irã, em maio de
2010, antes de assinar acordo para enviar a maior parte do urânio enriquecido do Irã para a
Turquia em um acordo de troca de combustível nuclear. Foto: Vahid Salemi/AP

Em seu governo, Lula foi tolerado pelo poder ocidental, mas com
reservas. Havia pouco entusiasmo por seu sucesso, através de seu
Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, em impulsionar o
Brasil ao centro do palco mundial, começando a cumprir as predições
de um século atrás de que o Brasil se tornaria “o colosso do Sul”.
Algumas de suas iniciativas foram rapidamente condenadas,
especialmente suas medidas com vistas a resolver o conflito dos
programas nucleares do Irã em coordenação com a Turquia em 2010,
diminuindo a insistência dos Estados Unidos em protagonizar a
situação. De forma geral, o papel de liderança do Brasil em promover
forças independentes do poder ocidental, na América Latina e além,
não era bem-vindo por aqueles acostumados a dominar o mundo.

Com Lula impedido de concorrer, há uma boa chance de que o


favorito da direita, Jair Bolsonaro, vença a Presidência e intensifique
muito as políticas duramente regressivas do presidente Temer, que
substituiu Dilma Rousseff,que sofreu impeachment em processos
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ridículos em um estágio anterior do “golpe branco” agora em curso


no país mais importante da América Latina.

Bolsonaro se apresenta como um autoritário grosseiro e bruto, um


admirador da ditadura militar que vai restaurar a “ordem”. Parte de
seu apelo é sua pose de alguém que vem de fora e que desmantelará o
sistema político corrupto, que muitos brasileiros desprezam por bons
motivos, o análogo local da amarga reação em grande parte do
mundo aos efeitos do ataque neoliberal da geração passada.

Bolsonaro afirma que ele não sabe nada sobre economia, deixando
essa questão ao economista Paulo Guedes, um produto ultraliberal de
Chicago. Guedes é claro e explícito sobre sua solução para os
problemas do Brasil: “privatizar tudo”, toda a infraestrutura nacional
(Veja, 22 de agosto), para pagar a dívida pública aos predadores que
estão roubando o país. Literalmente tudo, garantindo que o país
decline à insignificância como um brinquedo dos mais ricos e das
instituições financeiras dominantes. Guedes trabalhou por um tempo
no Chile sob a ditadura de Pinochet, então talvez seja útil retomar os
resultados do primeiro experimento do neoliberalismo de Chicago.

O experimento, iniciado após o golpe militar de 1973 e que preparou


o caminho através do terror e da tortura, foi conduzido sob condições
quase perfeitas. Não poderia haver dissidentes – lugares como a Villa
Grimaldi deram conta disso. Foi supervisionado pelos superstars da
economia de Chicago. Tinha um grande apoio dos Estados Unidos, do
mundo corporativo e de instituições financeiras internacionais. Os
planejadores econômicos também foram sábios o suficiente para não
interferirem com a altamente eficiente empresa nacional de
mineração de cobre, a Coldeco, a maior do mundo, e que provinha
uma base sólida para a economia. Por alguns anos o experimento foi
altamente elogiado, e depois o silêncio reinou.

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As mulheres acenam com lenços brancos ao exigir a renúncia do presidente Salvador Allende em
Santiago, Chile, em 5 de setembro de 1973. Foto: AP

Apesar das quase perfeitas condições, em 1982 os “Chicago boys” foram


bem-sucedidos apenas em destruir a economia. O estado teve que
assumir mais da economia do que durante o governo de Allende.
Engraçadinhos chamaram de “a estrada de Chicago para o
socialismo”. A economia estava amplamente entregue novamente aos
administradores tradicionais e enfrentava dificuldades, embora não
sem os resíduos remanescentes do desastre nos sistemas de educação,
assistência social e outros.

Voltando às receitas de Bolsonaro e Guedes para destruir o Brasil, é


importante ter em mente o gigantesco poder das finanças na política
econômica do país. O economista brasileiro Ladislau Dowbor relata
que, conforme a economia brasileira afundava na recessão em 2014,
grandes bancos aumentaram seus lucros entre 25% e 30%, “uma
dinâmica em que, quanto mais os bancos lucram, mais a economia é
estagnada” já que “intermediários financeiros não financiam a
produção, mas a drenam” (“A Era do Capital Improdutivo”, em
tradução livre).

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Além disso, Dowbor continua, “após 2014, o PIB caiu fortemente


enquanto juros e lucros de intermediários financeiros aumentaram
entre 20% e 30% ao ano”, uma característica sistemática de um
sistema financeiro que “não serve à economia, mas é servido por ela.
É produtividade líquida negativa. A máquina financeira está vivendo
às custas da economia real.”

O fenômeno é mundial. Joseph Stiglitz resume a situação de forma


simples: “Onde antes o financiamento costumava ser um mecanismo
para colocar dinheiro em empresas, agora ele funciona para retirar
dinheiro delas.” Essa é uma das nítidas reversões da política
socioeconômica trazida ao mundo pelo ataque neoliberal, juntamente
com a acentuada concentração da riqueza nas mãos de poucos
enquanto a maioria se mantém estagnada, os benefícios sociais
declinam e a democracia em funcionamento é prejudicada por meios
óbvios enquanto o poder econômico se concentra cada vez mais nas
mãos de instituições financeiras. As consequências são a principal
fonte de ressentimento, raiva e desdém por instituições de governo
que estão tomando conta de boa parte do mundo, sentimentos
comumente chamados erroneamente de “populismo”.

Este é o futuro planejado pela plutocracia e seus candidatos favoritos.


Ele seria reduzido pela renovação da presidência de Lula, que atendeu
os interesses das instituições financeiras e do mundo dos negócios em
geral, mas não o suficiente na atual era do capitalismo selvagem.

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O candidato à Presidência Jair Bolsonaro no primeiro debate presidencial à frente das


eleições gerais de 7 de outubro, na rede Bandeirantes em São Paulo, em 9 de agosto de 2018.
Foto: Nilton Fukuda/Estadão Conteudo/Agência Estado via AP

Nós podemos nos reter por um momento naquilo que ocorreu no


Brasil durante os anos de Lula – “a década de ouro”, nas palavras do
Banco Mundial (maio de 2016). Durante esses anos, os estudos do
Banco relataram que:

“o progresso socioeconômico do Brasil tem sido extraordinário


e internacionalmente percebido. Desde 2003 [o início do
período de Lula no cargo], o país se tornou reconhecido por seu
sucesso em reduzir a pobreza e desigualdade e sua habilidade
em criar empregos. Políticas inovadoras e efetivas para reduzir
a pobreza e garantir a inclusão de grupos anteriormente
excluídos permitiram que milhões de pessoas saíssem da
pobreza.”

Além disso,

“o Brasil também tem assumido responsabilidades globais. Ele


teve sucesso em buscar a prosperidade econômica enquanto
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protege seu patrimônio natural único. O Brasil se tornou um


dos mais importantes novos doadores emergentes, com
compromissos abrangentes, particularmente na África
Subsaariana, e um importante ator nas negociações
internacionais sobre o clima. O caminho de desenvolvimento
do Brasil durante a última década mostrou que crescimento
com prosperidade compartilhada, mas equilibrado com o
respeito pelo meio ambiente, é possível. Brasileiros estão
certamente orgulhosos dessas conquistas reconhecidas
internacionalmente.”

Alguns brasileiros, pelo menos, mas não aqueles que detêm o poder
econômico. O relatório do Banco Mundial rejeita a visão comum de
que o progresso substancial teria sido “uma ilusão, criada pelo boom
das commodities, mas insustentável no ambiente internacional
menos complacente de hoje.” Ele responde a essa afirmação com um
“‘não’ qualificado. Não há razão para que os recentes ganhos
socioeconômicos devam ser revertidos; de fato, eles devem ser
estendidos com as políticas certas.”

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Manifestantes ligados a sindicatos protestaram na avenida Paulista, em São Paulo, contra o


desemprego e juros altos em 2 de junho de 2015. Foto: J. Duran Machfee / Estadão
Conteudo/Agência Estado via AP

Tais políticas certas deveriam incluir mudanças radicais no quadro


estrutural geral que foi legado pelos anos de Lula e Dilma quando as
demandas da comunidade financeira eram atendidas, mantendo
políticas dos anos anteriores do governo de Fernando Henrique
Cardoso, incluindo a baixa taxação dos ricos (muitas vezes evitada
inteiramente pela fuga maciça de capital para paraísos fiscais) e taxas
de juros absurdamente altas que levaram a enormes fortunas para
poucos enquanto atraíam capital para financiamentos ao invés de
investimentos produtivos.

A plutocracia e o monopólio da mídia afirmam que políticas sociais


drenaram a economia, mas, na verdade, estudos econômicos
mostram que o efeito multiplicador da ajuda financeira aos pobres
melhorou a economia enquanto a renda financeira obtida com taxas
de juros usurárias e outros benefícios aos financiadores foram a causa
real da crise de 2013 – uma crise que poderia ter sido superada pelas
“políticas certas”.

O importante economista brasileiro Bresser Pereira, ex-ministro da


Fazenda, entende o fator crucial da crise em vigor de forma sucinta:
para bloquear despesas públicas enquanto se mantêm as taxas de
juros altas, “não há uma explicação econômica; a causa fundamental
das taxas altas de juros no Brasil é o poder de credores e financistas”
com suas drásticas consequências, auxiliadas pela legislatura (eleita
com financiamento corporativo) e o monopólio da mídia que é,
amplamente, a voz do poder privado.

Dowbor observa que, ao longo da história moderna do Brasil, desafios


ao regressivo quadro estrutural levaram a golpes, “começando com a
renúncia e suicídio de Vargas [em 1954], e o golpe militar de
1964”(fortemente apoiado por Washington). Há uma boa chance de
que o mesmo esteja ocorrendo durante o “golpe branco” em vigor
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desde 2013. Essa campanha de elites tradicionais, agora concentradas


no setor financeiro e servidas pela mídia altamente concentrada, foi
intensificada em 2013 quando Dilma Rousseff buscou reduzir as
bizarras taxas de juros a um nível civilizado, ameaçando diminuir o
afluxo de dinheiro fácil para o pequeno setor capaz de entrar em
mercados financeiros.

A atual campanha para preservar o quadro estrutural e reverter os


feitos da “década de ouro” está explorando a corrupção em que o
partido do governo de Lula, o Partido dos Trabalhadores (PT),
participou. A corrupção é muito real, e séria, mas colocar o PT em
evidência em busca de demonização é puro cinismo, considerando as
escapadas dos acusadores. E como já mencionado, as acusações contra
Lula, mesmo se alguém desse crédito a elas, não podem de nenhuma
forma ser levadas a sério como base da punição administrada para
removê-lo do sistema político. Tudo isso o qualifica como um dos
presos políticos mais importantes do período atual.

A reação comum da elite às ameaças do contexto estrutural da


economia sociopolítica brasileira é refletida pela resposta
internacional aos desafios impostos pelo Sul Global ao sistema
neocolonial legado após séculos de devastação imperial por parte do
Ocidente. Nos anos 50, nos primeiros dias da descolonização, o
movimento não-alinhado buscou entrar nos assuntos globais. Foi
rapidamente colocado de volta em seu lugar pelos poderes ocidentais.
Um símbolo dramático disso foi o assassinato do promissor líder
congolês Patrice Lumumba, nas mãos dos governantes belgas
tradicionais (que deixaram a CIA para trás). O crime e suas
consequências brutais encerraram as esperanças do que deveria ser
um dos países mais ricos do mundo mas continua a ser “O horror! O
horror!”, com ampla participação dos torturadores tradicionais da
África.

No entanto, enquanto a descolonização seguia seu caminho


agonizante, a incômoda voz das vítimas tradicionais continuava

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aparecendo. Nos anos 60 e 70, com contribuições importantes de


economistas brasileiros, a Conferência da ONU sobre Comércio e
Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês) propôs planos para
uma Nova Ordem Econômica Internacional na qual as preocupações
das “sociedades em desenvolvimento”, a grande maioria da população
mundial, seriam contempladas. A iniciativa foi rapidamente
esmagada pela regressão neoliberal. Alguns anos mais tarde, na
Unesco, o Sul Global pediu uma Nova Ordem Internacional de
Informação fora do virtual monopólio ocidental. Isso levou a um
ataque histérico, de todos os vieses políticos, com mentiras
assombrosas e acusações absurdas, e a Reagan retirando os EUA da
Unesco sob falsos pretextos. Tudo isso foi revelado em um estudo
devastador (e, portanto, não lido) feito pelos estudiosos da mídia
William Preston, Edward S. Herman e Herbert Schiller (o estudo foi
intitulado Hope and Folly ou “Esperança e Tolice”, em tradução livre).

Também foi silenciado o estudo elaborado em 1993 pelo South


Centre, mostrando que a hemorragia de capitais dos países pobres em
direção aos mais ricos agora se somava à exportação de capitais para
o FMI e o Banco Mundial, que agora “recebiam mais recursos do que
emprestavam aos países em desenvolvimento”. O mesmo aconteceu
com a declaração elaborada após o primeiro encontro do South
Summit, que reuniu 133 países em 2000, em resposta à entusiasmada
auto-adulação do Ocidente em relação a sua nova doutrina de
“intervenção humanitária”. Aos olhos do Sul Global, “o
autointitulado ‘direito’ à intervenção humanitária” é uma nova cara
para o imperialismo, “que não tem base legal na Carta das Nações
Unidas ou nos princípios gerais da lei internacional”.

Não é surpresa alguma que o poder é contrário àqueles que o


desafiam, e possui muitas maneiras para combatê-los ou silenciá-los.

Mais deveria ser dito sobre a corrupção endêmica na América Latina,


que com frequência é piamente condenada no Ocidente. É verdade: é
uma praga que não deve ser tolerada. Mas a praga não está

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exatamente confinada no “mundo em desenvolvimento”. Não é uma


mera aberração quando bancos gigantes recebem multas de dezenas
de bilhões de dólares (JP Morgan Chase, Bank of America, Goldman
Sachs, Deutsche Bank, Citigroup…), normalmente em “acordos” fora
do tribunal, de modo que ninguém é legalmente culpado pelas
atividades criminosas que destroem milhões de vidas. Assinalando
que “as corporações norte-americanas estão tendo cada vez mais
dificuldades para ficar no lado certo da lei”, a revista
londrina Economist relata 2.163 casos de condenações a executivos
entre 2000 e 2014 (na edição de 30 de agosto de 2014) – e as
“corporações norte-americanas” têm bastante companhia em Londres
e no continente europeu.

A corrupção vai desde a escala massiva descrita acima até a crueldade


mais mesquinha. Um exemplo particularmente vulgar e instrutivo é o
“roubo de salários”: toda fraude corporativa que causa redução direta
ou indireta no ganho dos trabalhadores. Esse tipo de atividade se
tornou uma epidemia nos EUA. Estima-se que dois terços dos
trabalhadores que recebem baixos salários tenham algum pagamento
roubado a cada semana, enquanto três quartos têm uma parte ou
mesmo todas as suas horas extras roubadas. As quantias roubadas dos
contracheques anualmente superam o total de roubos a bancos,
postos de combustível e lojas de conveniência – somados.
Praticamente não há fiscalização. Manter essa impunidade é de vital
importância para o mundo empresarial, a tal ponto que constitui
uma alta prioridade para o principal lobby das empresas, o American
Legislative Exchange Council (ALEC), que conta com grande
participação corporativa. O objetivo primário do ALEC é desenvolver
leis estaduais, um alvo fácil devido à dependência dos legisladores
por financiamento de campanha vindo das empresas, bem como uma
atenção limitada da mídia. Programas sistemáticos e intensos da
ALEC são capazes de mudar os contornos de políticas para todo o país
de forma quase despercebida, um ataque furtivo à democracia que
produz um efeito substancial. Uma das suas iniciativas legislativas

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busca garantir que o roubo de salários não estará sujeito à inspeção


ou aplicação da lei.

Mas a corrupção que é tecnicamente criminosa, seja massiva ou


pequena, é apenas a ponta do iceberg. A maior corrupção é
legalizada. Por exemplo, a busca por paraísos fiscais que retiram um
quarto ou mais dos US$ 80 trilhões da economia mundial, criando um
sistema econômico independente que é livre de qualquer vigilância
ou regulamentação, um paraíso para todos os tipos de atividades
criminosas – e, também, para escapar dos impostos. Também não é
tecnicamente ilegal que a Amazon, que recentemente se tornou a
segunda corporação com valor de mercado superior a um trilhão de
dólares, seja beneficiada enormemente pelas isenções fiscais que são
concedidas às suas vendas. Ou para que a Amazon use cerca de 2% da
eletricidade dos EUA a preços muito reduzidos, seguindo “uma longa
tradição americana de transferir os custos das empresas para os
moradores pobres, que já gastam cerca de três vezes mais do que as
famílias ricas nas contas de casa, em valores proporcionais à renda”,
de acordo com a imprensa voltada ao mundo empresarial.

Há inúmeros outros exemplos.

Um exemplo importante é a compra de eleições, um tópico que foi


estudado a fundo pelo cientista político Thomas Ferguson. Sua
pesquisa e a de seus colegas mostraram que a capacidade de se eleger
para o Congresso e para cargos executivos pode ser prevista, com
uma precisão notável, pela simples variável dos gastos de campanha,
uma tendência muito forte que vem de um passado remoto na
história política americana e se mantém até as eleições de 2016
(Ferguson, Golden Rule; Ferguson et al., “Industrial Structure and
Party Competition in an Age of Hunger Games: Donald Trump and
the 2016 Presidential Election,” Working Paper No. 66, Jan. 2018,
Institute for New Economic Thinking). Transformar a democracia
formal em um instrumento nas mãos da riqueza privada é

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perfeitamente legal, e não corrupção, ao contrário da praga latino-


americana.

Eleitores americanos em um local de votação em Alexandria, Virgínia, em 8 de novembro de


2016. Foto: Alex Wong/Getty Images

É claro que a interferência nas eleições não está fora da agenda. Ao


contrário, a alegada interferência russa nas eleições de 2016 ainda
hoje é uma das principais questões cotidianas, um tópico de
investigações intensas e comentários frenéticos. Em contraste, o
imenso papel do poder corporativo e da riqueza privada em
corromper as eleições de 2016, seguindo uma tradição de mais de
século, é pouco notada. Afinal, é algo perfeitamente legal, e até
mesmo endossado e fortalecido pelas decisões da Suprema Corte mais
reacionária de que se tem memória.

Comprar eleições é a menor parte da intervenção corporativa na


imaculada democracia americana que está sendo manchada pelos
hackers russos (de forma indetectável). Os gastos de campanha vão
para as nuvens, mas são pequenos diante do lobby, de valor estimado
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em dez vezes mais – uma praga que cresceu rapidamente desde os


primeiros dias da regressão neoliberal. Os efeitos disso na legislação
são enormes, chegando ao ponto de lobistas literalmente escreverem
as leis enquanto o congressista que assina o projeto está em algum
outro lugar levantando doações para a próxima eleição.

A corrupção é, realmente, uma praga no Brasil em particular e na


América Latina em geral, mas eles são peixes pequenos nessa
competição.

Tudo isso nos remete à prisão onde um dos mais importantes


prisioneiros políticos do nosso tempo é mantido em isolamento para
que o “golpe branco” no Brasil possa seguir em frente, com
consequências que provavelmente serão severas para a sociedade
brasileira, e para boa parte do mundo, considerando o papel
potencial do Brasil.

Possa seguir em frente, quer dizer, se o que está acontecendo for


tolerado.

Foto em destaque: O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acena para seus apoiadores na
sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde foi realizada uma missa em memória de sua
falecida esposa Marisa Leticia, no dia 7 de abril.

Tradução: Maíra Santos

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