Você está na página 1de 10

SOBRE A MERCADORIA EM MARX E O PROBLEMA DO

VALOR-SIGNO EM BAUDRILLARD:
aproximações ou divergências?
Paulo Marcondes Ferreira Soares
Prof. do Depto. de Ciências Sociais
CFCH - UFPE

APRESENTAÇÃO

De início, quero esclarecer que o alcance deste trabalho limita-se a apresentar,


muito sumariamente, algumas indicações sobre a interpretação da mercadoria em Marx
para, em seguida, identificar certos aspectos apontados por Baudrillard no que toca ao
estudo da sociedade de consumo.
Ao que parece, e este é o ponto de meu maior interesse, é possível identificar uma
preocupação comum em ambos os autores: a de que as relações sociais se encontram
condicionadas por determinada esfera de coisas, cuja explicação os remete à elaboração de
distintas teorias do valor. Assim, por exemplo, enquanto em Marx o valor, como valor de
troca, se manifesta através do dinheiro como “equivalente geral”; em Baudrillard, o
conceito de valor-signo expressa a instância pela qual se representa a dimensão do prestígio
social.
Em linhas gerais, ainda que tais teorias partam de pressupostos divergentes - em
Marx predomina a categoria das “necessidades humanas” e em Baudrillard a da “prestação
social e da significação” -, creio ser de grande importância, hoje, investigar a própria
medida em que esses mesmos pressupostos contribuem para uma maior compreensão do
consumo e da mercadoria nas sociedades atuais, levando em conta o possível diálogo que
Baudrillard tenta manter com o pensamento marxista (KROKER, 1988), procurando
transpor a ênfase do valor/trabalho para o valor-signo na análise das relações sociais.
Nesse sentido, houve a elaboração de um certo roteiro para este estudo.
Primeiramente, serão apresentados alguns dos elementos principais enunciados por Marx
na interpretação que faz da mercadoria e da sua teoria do valor/trabalho, como processo
reificado no fetichismo da mercadoria (e suas inversões no âmbito das relações sociais).
Em seguida, vai-se partir das colocações feitas por Baudrillard a respeito do consumo e do
seu significado em algumas indicações que faz a propósito de sua teoria do valor-signo. Por
fim, à guisa de conclusão, tentarei destacar em que medida considero útil a confrontação de
certas idéias apresentadas por um e por outro autor, para a investigação de diversos
problemas da atualidade: sobretudo no que se refere ao problema das relações na sociedade
moderna (do consumo de mercadorias e/ou objetos, dependendo da ênfase em um ou outro
autor).
ASPECTOS DA MERCADORIA EM MARX

“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas
propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas
necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera em nada na coisa.
Aqui também não se trata de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se imediatamente,
como meio de subsistência, isto é, objeto de consumo, ou se indiretamente, como meio de
produção”.(Marx)

Segundo o pensamento marxista os homens, para garantirem os meios de sua


própria existência, entre em relações sociais determinadas e necessárias. Essas relações,
estabelecidas entre si e com a natureza, condicionam um dado processo de sua formação
social, em que se constitui e passa a predominar um certo modo de produção. Partindo
desse a priori, seguindo a orientação dada pela epígrafe, podemos afirmar que uma
categoria central em Marx, talvez determinante em todo o seu pensamento, é a das
necessidades humanas. Daí a importância não só de pensar como os homens produzem
mas, sobretudo, o tipo de relação de produção que estabelecem entre si.
Quando Marx analisa o fenômeno da mercadoria, não faz outra coisa que não o
esforço de apreender a forma tomada pelos produtos da ação humana, no que se refere ao
fato de se apresentarem por conexões de troca. Nesse sentido, as sociedades para as quais
Marx volta o interesse de sua análise da mercadoria são aquelas em que domina o modo de
produção capitalista.
Em essência, analisar uma coisa em si útil, implica considerá-la sob o aspecto
qualitativo e quantitativo. Com efeito, Marx assinala que a descoberta da utilidade de algo,
bem como, de sua medida social nos remete à esfera das condições históricas (MARX,
1985: 45). Interessante ver que, quando encara o duplo caráter assumido por uma
determinada “coisa útil”, o autor chama a atenção para duas características primordiais a
ela incorporada. De um lado, no que se refere ao poder que demonstra ter quanto à
satisfação das necessidades humanas (ponto de vista qualitativo); enquanto, de outro, temos
o processo de medição do poder de aquisição e troca que pode engendrar (ponto de vista
quantitativo). Em outras palavras, podemos identificar como primeira característica, a
instância mesma em que algo se apresenta como “valor de uso”. Em seguida, como segunda
característica, a instância em que algo se dá como “valor”, que vai se manifestar pela troca
- “valor de troca”: ou seja, o lócus privilegiado da discussão levada a cabo por Marx a
propósito da mercadoria como elemento de análise.
Em todo caso, ainda que dedique sua principal atenção ao estudo do valor na
mercadoria (valor de troca), Marx deixa ver que nela podemos encontrar o fundamento
dialético que opera “utilidade” e “valor”. Por suas propriedades exclusivas, qualidades, a
mercadoria se identifica em seu corpo e conteúdo, como valor de uso: enquanto tal, não
apresenta a característica da troca; sendo assim, apenas quando compõe, pela abstração de
sua utilidade, a matéria resultante do trabalho humano, reduzida a uma condição
basicamente quantificável, é que podemos localizar a característica de troca do valor. Como
diz o autor:

“Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas
apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o
produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos” (...) “Ao desaparecer

2
o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas
desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua
totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato” (IDEM: 47).

Até o momento, pode-se concluir que, em significação ampla, o valor de uso não
participa da troca, visto que se mostra como qualitativamente variável e incompatível na
diversidade de seu uso; ou ainda, como assina, mais uma vez, Marx:

“Uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua
utilidade para o homem não é mediada por trabalho” (...) “Uma coisa pode ser útil e
produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua
própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria,
ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de
uso social. (E não só para outros simplesmente” (...) “Para tornar-se mercadoria, é
preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio
da troca.)” (IDEM: 49).

Nesse sentido, em contrapartida, o valor na mercadoria se expressa tanto de um tipo


qualitativamente igual (posto que apenas oculta e implicitamente se concebe aí a utilidade
da coisa), quanto, por outro lado, quantitativamente desigual (visto que o valor aqui
atribuído está fundamentado no tempo de trabalho socialmente necessário à produção de tal
ou tal coisa). Outrossim, embora cada mercadoria apresente entre si uma diversidade de
valores de uso, a opacidade desses valores faz ressaltar uma propriedade de valor que goza
de uma validade quantitativamente visível como valor de troca que, embora diversamente
quantificável, se vislumbra enquanto medida na categoria dinheiro, assim como uma
indicação bastante genérica do trabalho social é identificada como emanação do valor nessa
forma mesmo abstrata. Ou seja, em termos da teoria do valor/trabalho, no tanto que há o
valor de uma determinada mercadoria pelo tempo de trabalho socialmente despendido ao
seu feito; há, também, um valor abstrato geral das mercadorias em geral cuja referência,
medida em dinheiro, que se expressa na forma de preço, encontra no “trabalho humano
abstrato” o seu núcleo central.
Em síntese, a mercadoria expressa a unidade de dois fatores essenciais, como já
vimos, que se manifesta na forma de coisa útil e de coisa permutável. A utilidade de uma
mercadoria diz respeito ao usufruto que alguém pode dela fazer, sendo portanto algo que se
apresenta de uma maneira variada como corpo da mercadoria. Nesse sentido, ainda, valor
de uso não estabelece relação fundamental para a medição de valor, permutável, da
mercadoria. Caso em que, ao que podemos ver, a objetividade do valor encontra-se
sistematicamente relacionada ao tempo de trabalho socialmente necessário à produção das
mercadorias, condicionando o próprio estabelecimento de suas relações de troca. Sendo
assim, o estudo das relações de produção e do avanço das forças produtivas é de
importância vital ao estudo do valor de troca das mercadorias, fator este mediado pelo
valor/trabalho. Com efeito, aí reside a “pista” percorrida por Marx para identificar o ponto
de maior relevância a ser estudado, no que se refere à noção de valor. Por outro lado, muito
embora a utilidade de um produto não seja de maior questão para Marx (salvo o fato de que
alguém só troca algo que é considerado útil e de usufruto para outros, ainda que lhe seja a

3
si próprio valor, mercadoria), fica claro que mesmo uma tal utilidade depende do conjunto
das forças produtivas e relações de produção em certo momento do conjunto das relações
sociais numa dada formação: algo de grande utilidade para uma complexa organização
social, poderá não representar nada para uma organização de tipo tribal.
Ora, o que o autor deixa antever, na sua ênfase à dimensão do valor de troca, é que
as relações existentes das mercadorias entre si não representam apenas uma expressão
imaginariamente elaborada; ao contrário, em sua concepção, tais relações são concretas,
uma vez mesmo que a produção de mercadorias encontra-se condicionada por relações
sociais de produção que se apresentam na forma da divisão social do trabalho. Com efeito,
a substância de valor não pode ser identificada pelo fato de que os corpos das mercadorias,
sua utilidade, podem ser trocados entre si. Muito além disso, a substância de valor é
essencialmente o trabalho, medido na forma de tempo de trabalho socialmente despendido
na produção das mercadorias, observado na/pela categoria genérica de trabalho abstrato.
Um aspecto digno de nota é o fato de que o trabalho, como substância de valor tal
qual se apresenta, também tem utilidade. Nesse sentido, na própria diversidade dos corpos
das mercadorias, sua forma útil, vamos igualmente identificar uma ampla diversidade de
trabalhos úteis gerados pela divisão social do trabalho - a própria “condição de existência
para a produção de mercadorias” (IDEM: 50). Em todo caso, assim como abstraímos o
valor de uso das mercadorias com o fim de apreendermos o seu valor, também o fazemos
com o caráter útil do trabalho, à medida que o observamos, em Marx, como dispêndio da
força de trabalho humano.
Nestes termos, não apenas o “trabalho humano abstrato” expressa a objetividade do
valor, bem como, a medida atribuída ao valor de troca das mercadorias (forma pela qual se
apresenta), justamente em função do dispêndio do tempo de trabalho socialmente
necessário à produção. Assim sendo, se há mudanças na esfera da produção, aumentando o
índice de produtividade, haverá, em contrapartida, a ocorrência da diminuição do tempo de
trabalho e, conseqüentemente, uma diminuição no valor da mercadoria. Por outro lado, sua
inversão atua de uma forma totalmente oposta. Se o valor da mercadoria é diretamente
proporcional ao tempo de trabalho a ela incorporado, mostra-se, pois, inversamente
proporcional ao volume demonstrado de sua produtividade.
Dito isto, cabe investigar a forma duplicada de valor que os produtos assumem
enquanto mercadoria: sua forma natural e sua forma de valor. O que Marx denomina de
forma natural, diz respeito à qualidade de valor de uso de um produto. Quanto à forma de
valor, ele afirma não haver qualquer expressão de “matéria natural” em sua objetividade.
Esta aparece em sua característica tipicamente social, materializada portanto na relação de
troca das mercadorias, cujo valor está condicionado à “unidade social de trabalho humano”
(IDEM: 54); e, neste caso, valor não é algo próprio de uma mercadoria isoladamente mas,
ao contrário, só existe na medida que se estabelece por uma relação social com outra
mercadoria, que se estabelece por uma forma comum de valor que se expressa como
dinheiro - aqui, Marx vai percorrer toda a dimensão do valor, desde a sua forma simples até
a forma dinheiro.
Na sua forma simples, duas mercadorias representam posições distintas. A
mercadoria “A” expressa o seu valor ativo na mercadoria “B” e, portanto, “B” empresta sua
materialidade passiva à expressão de valor de “A”. Nessa direção, “A” encontra sua forma
relativa de valor, ao passo que “B” expressa sua forma equivalente. Ambas as formas se
apresentam de uma maneira excludente mas inseparável da expressão de valor. Mas, se a

4
matéria da mercadoria “B” é a expressão da mercadoria “A”, ou seja, sua forma
equivalente; é aqui que vamos encontrar a dimensão característica do trabalho como
categoria social que engendra valor não apenas a uma, mas aos diversos tipos de
mercadorias em relações de troca determinadas.
Ademais, se a forma equivalente de uma mercadoria é, pois, a forma permutável que
ela assume em relação a uma outra (IDEM: 59), é porque, definindo o valor de outra
mercadoria, não define o seu próprio valor. Nesse sentido, valor de uso assume a aparência
de valor, assim como o trabalho propriamente transpõe-se em trabalho humano abstrato e o
trabalho privado em atividade social. Ora, tomando a “forma geral de valor”, se uma
determinada mercadoria tem seu valor correlato a uma diversidade de outras mercadorias,
estas, inversamente, expressam também seu valor naquela. Por fim, um “equivalente geral”
do valor de uma mercadoria, que se apresenta como a mercadoria que representa o valor de
todas as demais, condicionada pela esfera do trabalho em geral, vai ser expressa na forma
de “mercadoria-dinheiro” (IDEM: 68-9).
Pelo que vimos, até o momento, a mercadoria se apresenta como unidade de valor,
medida pelo tempo de trabalho socialmente despendido, que se expressa na forma de valor
de troca, cuja aparência é a de seu valor de uso. Posto desta maneira assim esquemática,
interessa ver, neste momento, como Marx vai buscar o caráter misterioso de que se reveste
cada mercadoria. Assim, assinala o autor: “(...) logo que ela aparece como mercadoria, ela
se transforma numa coisa fisicamente metafísica” (IDEM: 70). Com efeito, isto significa
que, embora sejam produzidas pelas condições de produção socialmente dominantes,
reificadoras do processo de relações sociais mantidas pelos indivíduos entre si e com os
objetos/mercadorias de sua trocas; no capitalismo, tais mercadorias assumem a aparência
de produtos com características de existência natural, e não propriamente social: em Marx,
sua forma real de ser.
Por outro lado, não são apenas as mercadorias, como produtos do trabalho, que
assumem a característica de coisas existindo naturalmente. Ora, justamente por ser fruto do
trabalho humano, o mistério da mercadoria parece ter a sua contrapartida na fantasmagoria
assumida pelas relações sociais dos seus próprios produtores, uma vez que estas se lhes
aparecem como “relações entre coisas”. Traçando paralelo com o mundo da religião, em
que figuras imaginárias passam a existir como entidades autônomas, Marx procura explicar
o que acontece com o mundo das mercadorias, resultante da ação humana em dadas
condições sociais de produção, a saber: o sistema de produção capitalista. Nesse sentido,
ainda, ele vai chamar de fetichismo essa forma aparente de autonomia assumida tanto pelos
produtos do trabalho humano como mercadoria, quanto pelas próprias relações sociais
mantidas entre os seus produtores:

“Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém, como a análise


precedente já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz
mercadoria” (IDEM: 71).

Por certo, a forma aparente que as relações sociais de produção e dos produtos de
sua ação apresenta, não pode ser concebida como pura falsificação de um dado processo
social real: embora o fetichismo da mercadoria aja como mecanismo que oculta o caráter
concreto das relações sociais (entre os produtores de coisas que, existindo pela equivalência
do valor/trabalho, tomam a forma de mercadorias), tal efeito deve ser tomado não como

5
uma irrealidade imaginária, mas como reificação que rege o conjunto das relações sob o
capitalismo - onde propriedades de caráter eminentemente social, aparecem sob uma forma
natural. Enfim, a objetividade de tais propriedades como formas naturais, oculta o próprio
tipo de relações produtivas que lhe é determinante.
Um elemento importante a ser aludido, é o fato de que há, na análise do fetichismo
da mercadoria, tal como apresentada por Marx, um roteiro de investigação nos moldes de
uma abordagem sociológica, em que relações sociais determinadas assumem a aparência
objetivada de coisa natural; e não econômica, portanto, nem social - como foi dito, tal
aparência tem sua razão de ser no conjunto das relações concretas dos homens, na medida
em que oculta os condicionamentos subjacentes de sua determinação. Com efeito, este é o
aspecto que tento observar na confrontação com a noção de valor-signo em Baudrillard.
Ao que tudo parece indicar, não é apenas a inversão provocada pelo fetichismo da
mercadoria que pode ser explicada em termos de processos reificantes configuradores do
valor; visto que não menos importante o é, ainda que por uma categoria de explicação bem
distinta e opositora, a vertente interpretativa tendente a observar, no sistema dos objetos, a
presença de um conjunto de significações a eles incorporado, na forma de prestígio social:
a hierarquização social do prestígio que uma determinada marca ou moda ou prática social
impõe aos objetos, cuja noção básica para o estudo da sociedade de consumo é a de valor-
signo. Vejamos como essa idéia se apresenta em Baudrillard.

ELEMENTOS DO VALOR-SIGNO EM BAUDRILLARD

“O que percebemos no objeto ‘simbólico’ (o presente, e também o objeto tradicional, ritual


ou artesanal) é não só a manifestação concreta de uma relação total (ambivalente, e total
porque ambivalente) de desejo, mas também, através da singularidade de um objeto, a
transparência das relações sociais numa relação dual ou numa relação do grupo integrado. O
que percebemos na mercadoria é a opacidade das relações sociais de produção e a realidade
da divisão do trabalho. O que percebemos na atual profusão dos objetos-signos, dos objetos
de consumo, é a opacidade, a imposição total do código que rege o valor social, é o peso
específico dos signos que regem a lógica social das trocas”.(Baudrillard)

De início, um aspecto fundamental a ser colocado é o fato de que, se em Marx a


análise da mercadoria apresenta-se como crítica da economia política clássica, a análise do
valor-signo em Baudrillard se define como a crítica da economia política do signo, ou seja,
como crítica sociológica da semiologia. Conforme ficou dito anteriormente, não há aqui
maiores pretensões além de apresentar as linhas gerais do que pode ser mais significativo
em ambas às formas críticas em estudo - notadamente, no que se refere às noções de valor
de troca: econômica em Marx, do signo em Baudrillard. Neste momento, embora procure
enfatizar a noção de valor-signo neste autor, partindo dos pontos principais por ele
apresentados, farei menção às críticas que o mesmo orienta contra o pensamento de Marx,
principalmente considerando a sua tentativa de avançar na compreensão do fenômeno da
opacidade do valor-signo que, como diz a epígrafe, rege a “lógica social das trocas”
(BAUDRILLARD, sd: 61-2).
Outrossim, quando me interrogo sobre as aproximações e/ou divergências contidas
nos conceitos de “valor de troca da mercadoria” e de “valor de troca/signo”, não coloco a
idéia de que sejam necessariamente operacionais entre si ou, mesmo, em contrapartida,
excludentes; apenas, neste caso, parto de um mesma ordem das coisas: desejo observar em

6
que medida a confrontação teórica pode ser válida para uma melhor explicação da questão
do valor nas sociedades atuais.
Numa primeira incursão sobre o assunto, podemos entender o conceito de valor de
troca-signo como algo que se manifesta como fenômeno incorporado ao objeto e que passa
a lhe atribuir uma dada condição social de prestígio. Enquanto em Marx o valor de troca se
expressa pelo dinheiro como equivalente geral, vemos no valor-signo um processo social
de caracterização do prestígio pelo consumo ostentatório. Nessa direção, não vamos
entender por valor-signo apenas a dimensão do valor simbólico, pois este tem um sentido
desprovido do prestígio. O valor-signo é um valor socialmente atribuído de prestígio,
identificado na “marca” incorporada do objeto de consumo: sendo assim, o valor-signo
existe sem a prerrogativa de ser valor de uso. Para o autor, a forma atual do valor deve
mesmo ser orientada pela lógica do valor-signo, como fundamento de transmutação dos
valores de uso e de troca, já que a considera como a lógica da atualidade na sociedade de
consumo (MELO, 1988: 72).
Desde o início de sua crítica à dupla função dos objetos de consumo, como prática
socialmente distintiva e como ideologia política a ela ligada, Baudrillard chama atenção
para a importância de se romper com a “hipótese empirista” do princípio antropológico das
naturais necessidades do homem e, portanto, do caráter utilitário e funcional a que estaria
submetida a relação de tais objetos. Assim sendo, o autor se esforça em elaborar toda uma
explicação do fato em termos bem distintos: não é a necessidade o aspecto essencial que
explica o estatuto do consumo nas sociedades modernas, mas o caráter prestigioso do
consumo ostentatório. Como ele nos diz:

“Longe de o estatuto primário do objeto ser um estatuto pragmático que um valor


social de signo viesse depois sobredeterminar, é o valor de troca-signo que é o
fundamental - não passando, muitas vezes, o valor de uso de sua caução prática (ou
mesmo de pura e simples racionalização): tal é, sob a sua forma paradoxal, a única
hipótese sociológica correta” (BAUDRILLARD, sd: 11-2).

E mais:

“Uma verdadeira teoria dos objetos e do consumo fundar-se-á, não numa teoria das
necessidades e sua satisfação, mas numa teoria da prestação social e da significação”
(IDEM).

Embora esteja aludindo às sociedades contemporâneas, o autor vai buscar em


clássicos estudos da antropologia e da economia, importantes exemplos negadores do
fundamento da necessidade e seu critério de utilidade como princípio que rege a relação
social dos objetos. Todavia, mesmo identificando os riscos que corre em tomar de
empréstimo tais exemplificações, Baudrillard vai ver no desaparecimento do kula e do
potlatch, a contrapartida de princípios que ainda permanecem orquestrando a relação atual
dos objetos. Apoiando-se na noção de “gasto ou consumo de prestígio”, encontrada, por
exemplo, em Veblen, Baudrillard chega à categoria dos objetos não pelo que propriamente
servem ou são necessários, mas, muito mais, pelo que transgridem ou excedem ao
meramente funcional, no que apresentam de ocioso, fútil, supérfluo, decorativo, inútil -
segundo pensa, é justamente aí que vai residir o ponto essencial para a análise do consumo

7
dos objetos como definidor da posição social diferenciada do prestígio, “que ‘designam’
não já o mundo, mas o ser e a categoria social do seu possuidor” (IDEM: 14).
Em todo caso, um tal processo se mostra de forma ambivalente no que se refere à
sociedade atual. Além do caráter da obrigação social do consumo ostentatório de
diferenciação hierarquizada do prestígio, que tem na ociosidade e na inutilidade o seu
fundamento de valor, temos a contraposição de uma moral que se apresenta como negadora
da ociosidade e da inutilidade, onde todas as coisas existem em sua funcionalidade que,
para Baudrillard, não passa de um simulacro funcional (simulação da funcionalidade)
orientado pela “ética puritana do trabalho”, que o autor vai buscar nos estudos de Weber.
Mesmo assim, o que se pode tirar desta oposição é o fato de que tanto o estatuto do
gasto e da ostentação, quanto o da utilidade e funcionalidade dos objetos do consumo
participam de um mesmo jogo de ambivalências em que o conflito é de ordem moral:

“No limite, é o Gadget: pura gratuidade a coberto de funcionalidade, pura


prodigalidade a coberto de moral prática” (IDEM: 15).

Efetivamente, o que conta ainda é a questão de ver, na estruturação inconsciente do


valor nas relações sociais, a configuração de um imperativo que aponta a possibilidade do
consumo ostentatório como a instância própria das hierarquias sociais, como elemento
sígnico, mais que econômico, de distinção social.
Neste ponto, podemos assinalar que a recusa de uma lógica da necessidade como
princípio antropológico de caracterização do valor na sociedade de consumo é, justamente,
o que leva Baudrillard a criticar o duplo conceito de valor, como valor de uso e valor de
troca, bem como, o fetichismo da mercadoria, tal como se encontra em Marx. Noutra
direção, o conceito de valor-signo e seu aspecto diferenciador é apresentado como a
verdadeira lógica da análise da sociedade de consumo, em contraposição às lógicas
funcionais ou econômicas: em síntese, o valor-signo é o que compõe a própria lógica das
trocas simbólicas e do imaginário das representações da hierarquia social.
Ainda que de uma forma esquemática, contudo, o autor procura estabelecer a
distinção típica de uma teoria geral dos valores; onde os princípios da utilidade, da
equivalência, da ambivalência e da diferença vão reger, respectivamente, a “lógica
funcional do valor de uso”, a “lógica econômica do valor de troca”, a “lógica da troca
simbólica” e a “lógica diferencial do valor-signo” (IDEM: 149). Por certo, há um paralelo
entre valor-signo e valor de troca, bem como, entre troca simbólica e valor de uso. Nestes
termos, como o valor de uso encontra-se abstraído no valor de troca, a troca simbólica está
desinvestida do valor-signo. Por outro lado, não há uma forma operacional entre as
distintas categorias do valor, como era previsto; quando muito, há uma ruptura de
passagem na conversão de ditos valores. Impressionante a série de conversões descrita no
capítulo que apresenta a teoria geral do valor-signo (IDEM: 149-57). Com efeito, sendo o
valor-signo, em geral, constituído de significante e significado, uma imagem
correspondente na teoria do valor/mercadoria aponta para uma dada equação em que valor
de uso está para valor de troca, assim como significado está para significante em termos de
valor-signo.
Apesar de tais considerações, Baudrillard firma sua crítica a Marx no que identifica
como uma “metafísica da utilidade”, visto que o valor de uso não expressa mais que um
pragmatismo simulado numa ideologia das necessidades. Sendo assim, na relação entre

8
valor de uso e valor de troca, não seria este último o único a deter a lógica equivalente de
valor, pois também aquele participa da equivalências na forma de funcionalidade da coisa
útil que é comum a toda mercadoria (IDEM: 163-6). Apontando o possível equívoco desta
restrição na análise elaborada por Marx, o autor via criticar o limite desta tese, entre outras
coisas, pelo caráter racionalista do princípio das necessidades, com que articularia Marx a
sua “metáfora fetichista” - até muito proximamente ao conceito de alienação. Segundo
Baudrillard, essa limitação encontrada na obra de Marx, serviria para demonstrar a
inadequação do valor de troca como princípio de explicação do caráter de consumo nas
atuais sociedades industriais (IDEM: 93-5).
Por fim, uma teoria que opere o valor-signo como fundamento de análise da
sociedade moderna, vai identificar, na hierarquia dos objetos em relação, o significado
principal da representação social do consumo, para além de qualquer categoria das
necessidades:

“Qualquer indivíduo ou grupo, antes mesmo de assegurar a sobrevivência, encontra-


se na urgência vital de ter de produzir-se como sentido num sistema de trocas e de
relações. Simultaneamente com a produção de bens, há urgência em produzir
significações, sentido” (IDEM: 73-4).
“O objeto tornado signo já não ganha o seu sentido na relação concreta entre duas
pessoas; ganha o seu sentido na relação diferencial com outros signos” (...) “E
somente então, quando os objetos se autonomizam enquanto signos diferenciais e
assim se tornam (relativamente) sistematizáveis, que se pode falar de consumo e de
objetos de consumo” (IDEM: 62).

E é justamente este caráter autônomo da relação diferencial dos signos, que leva
Baudrillard a recusar o sentido de inversão que o fetichismo da mercadoria provoca na
relação social dos objetos - inversão esta relacionada ao aspecto utilitário da mercadoria,
alterado pela condição do valor nas relações de produção das atuais formações sociais.
Para Baudrillard, a análise do fetichismo da mercadoria, na medida em que se funda
na lógica das necessidades, é uma crítica da falsa consciência e da reificação; não
considerando, justamente, que os objetos passam por um processo social de representação
sígnica, orientados mais por uma demonstração de prestígio que de necessidade. Aliás, a
crítica que o autor elabora aqui, vem completar a que ele profere contra a forma utópica
com que o valor de uso parece se apresentar, ou seja: como coisa que tem uma utilidade
primeira, apreendida no corpo da mercadoria; onde uma dada utilidade se abstrai no valor
de troca, que é a manifestação do valor; valor que se constitui pelo valor/trabalho, em
determinadas condições sociais de produção. Bem, uma vez que desapareça as condições
de produção que engendram relações sociais fetichizadas, tal como Marx as apresenta,
ganha o valor de uso a sua forma revolucionária de supressão do valor de troca da
mercadoria e do seu fetichismo reificador. Mas é exatamente o aspecto funcional e utilitário
das necessidades que o valor-signo se empenha em destruir, em sua própria definição da
primazia da significação e da prestação social sobre possíveis critérios das necessidades
naturais do homem.

9
CONCLUSÃO

O confronto entre os conceitos de valor de troca da mercadoria e do valor de


troca/signo, não deve ser encarado meramente como o diálogo entre uma abordagem que
toma na base os fundamentos da economia política e, de outro lado, a que se expressa pela
dimensão cultural. Longe disso, o que podemos encontrar é a oposição entre a ordem
produtiva do mundo do trabalho que, pelo valor/trabalho, rege o valor de troca das
mercadorias; e a ordem do simulacro como código da significação, que vai reger, no âmbito
de uma economia política dos signos, ou seja, de uma economia do campo semiológico, o
valor de troca/signo na afluente sociedade de consumo. Com efeito, o que o conceito de
valor-signo experimenta é o desafio de apresentar a questão do valor para além de uma
condição do trabalho, levando em conta uma outra dimensão do valor, como código
simulacional e definidor do caráter diferencial do prestígio: enquanto prestação social do
consumo ostentatório. Segundo creio, esta oposição conceitual do valor-signo surge como
tentativa de atualizar a noção geral do valor no âmbito da relação de troca dos objetos, e
seu sentido, na sociedade de consumo - visto que diante do conjunto de significações
daquele valor-signo, o valor/trabalho se mostra como expressão obsoleta ou inacabada do
valor (KROKER, 1988).

BIBLIOGRAFIA

BAUDRILLARD, J. (sd) Para Uma Crítica da Economia Política do Signo. SP, Martins
Fontes.
KROKER, A. (1988) “El Marx de Baudrillard”. IN: PICÓ, J. (Comp.) Modernidad y
postmodernidad. Madrid, Alianza Editorial.
MARX, K. (1985) O Capital: Crítica da Economia Política. Vol.1 - Tomo 1. 2o ed. SP,
Nova Cultural.
MELO, H. B. (1988) A Cultura do Simulacro: Filosofia e Modernidade em Jean
Baudrillard. SP, Loyola.

10

Você também pode gostar