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ACERVO
E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L
E S T U D O S S O B R E A
V I O L Ê N C I A
Presidência da República
Arquivo Nacional
ACERVO
R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L
Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República
Pedro Pullen Parente
Diretor-Geral do Arquivo Nacional
Jaime Antunes da Silva
Coordenadora-Geral de Divulgação e Acesso à Infor mação Documental
Mary Del Priore
Editoras
Alba Gisele Gouget e Maria do Carmo Teixeira Rainho
Conselho Editorial
Ana Maria Cascardo Varela, Adriana Cox Hollós, Clóvis Molinari Junior, Maria do Car mo T.
Rainho, Mary Del Priore, Maria Isabel Falcão, Maria Izabel de Oliveira, Mauro Lerner Markowski
e Mônica Medrado
Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Leite Costa,
Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloísa Liberalli
Belotto, Ilmar Rohloff de Mattos, Jaime Spinelli, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, José
Carlos Avelar, José Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza
Neves, Maria Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley e Solange Zúñiga
Edição de Texto, Revisão e Resumos
Flávia Roncarati Gomes
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Editoração Eletrônica, Capa e Ilustração
Giselle Teixeira e Maria Judith Azevedo Vieira
Secretária
Ana Teresa de Oliveira Scheer
Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X
CDD 981
S U M Á R I O
Apresentação
03
Entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro
07
As Empadas do Confeiteiro Imaginário
A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a história
da violência no Rio de Janeiro
Marcos Luiz Bretas
23
As Rusgas da Identidade
Rio de Janeiro, 1831-1833
Ivana Stolze Lima
39
Entre o Crime e a Conciliação
A violência contra a mulher na justiça do Rio de Janeiro
Ana Lúcia Enne, Adriana R. B. Vianna e Sérgio Carrara
59
Violência contra Crianças e Adolescentes
Aramis Antonio Lopes Neto
79
Crime e Castigo
As civilizadas práticas jurídicas de uma Idade Moderna
Márcia de Paiva
95
Os Sindicatos na Idade da Pedra
Adhemar Lourenço da Silva Jr.
115
A Escravidão nas Propriedades Jesuíticas
Entre a caridade cristã e a violência
Paulo de Assunção
133
O Discurso da Ordem
A composição da imagem do menor
Gutemberg Alexandrino Rodrigues
155
Perfil Institucional
Regina Novaes
161
Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O
Editora
R V O
Entrevista com
Paulo Sérgio Pinheiro
P
aulo Sérgio Pinheiro, doutor em Arquivo Nacional. O senhor tem uma
ciência política, é o atual longa trajetória acadêmica. A partir de
secretário de Estado dos Direitos sua experiência como secretário de
Humanos, tendo sido nomeado em 2001. Estado dos Direitos Humanos, o senhor
Responsável, em 1978, com o historiador diria que suas reflexões sobre o tema da
Michael Hall, pela criação do Arquivo de violência passaram por transformações?
História Social Edgard Leueronth, da
Unicamp, e em 1987, com o professor Paulo Sérgio Pinheiro. Em verdade,
Sérgio Ador no, pelo Núcleo de Estudos minha experiência enquanto secretário
da Violência da USP, instituição do qual de Estado de Direitos Humanos, só tem
é diretor. Atualmente é presidente da confirmado aquilo que suspeitava
Subcomissão das Nações Unidas para a teoricamente, vale dizer, que tanto o
Promoção e Proteção dos Direitos Estado como a sociedade brasileira são
Humanos, além de exercer a função de profundamente autoritários e fazem,
relator especial das Nações Unidas para muitas vezes, um uso indiscriminado da
o Mianmar. Professor da Universidade de violência. A descoberta, para mim, é
São Paulo desde 1985 é autor de diversos constatar in loco a diferença de
livros, ensaios e artigos sobre direitos participação dos vários níveis da
humanos, violência e história social. federação: municípios, estados e União.
As Empadas do
Confeiteiro Imaginário
A pesquisa nos arquivos da justiça
criminal e a história da violência
no Rio de Janeiro
N
ão é de hoje que os arquivos quando passou a ser muito utilizada, sob
de processos criminais atraem o impacto da história social inglesa e de
a atenção dos pesquisadores Foucault. Estas análises tor nar-se-iam
da história do Brasil. A preocupação lati- mais e mais comuns, na medida em que
na com o registro dos autos motivou a chegavam ao Brasil trabalhos de Robert
produção de documentos preciosos para Dar nton, Carlo Ginzburg e Natalie Z.
buscar tanto a identidade dos indivídu- Davis, baseados em fontes semelhantes.
os envolvidos como suas falas, O grande volume de trabalhos então pro-
freqüentemente alcançando grupos soci- duzido tinha como ponto de partida
ais que deixaram pouquíssimos registros metodológico a discussão sobre as pos-
de outros tipos. Fazer a revisão sibilidades de conhecimento histórico a
historiográfica destes estudos tomaria um partir dos processos; se seria possível ali
espaço alentado, além do que me propo- encontrar “a voz” de grupos excluídos,
nho aqui. Importa apenas marcar que ou apenas mais um discurso do poder,
após o uso inovador deste tipo de acer- com o qual só seria possível fazer uma
vo por Maria Sílvia de Carvalho Franco, história do poder judiciário.
ainda nos anos 1960, a análise de pro-
cessos criminais per maneceu pouco ex- É possível que esta discussão tenha fi-
plorada até o final da década de 1970, cado para trás, mas a riqueza e a diver-
sidade encontradas nestas fontes me leva de Maio. Dona Julieta, aos quarenta
a retomar estas questões, propondo a anos, era viúva, e foi recebida pressuro-
multiplicidade de métodos e temas que samente por seus filhos – Hercília, de 23
os arquivos criminais podem oferecer e anos, Alice, de vinte e Alberto de 18 –
– o que talvez seja o ponto crucial – o que providenciaram a vinda do doutor
número de questões ainda por resolver. Júlio César Suzano Brandão, morador
Neste sentido, uma proposição curiosa, nas vizinhanças. O médico diagnosticou
mas fundamental, é que a riqueza dos um envenenamento alimentar e inquiriu
documentos foi utilizada para questões dona Julieta, que informou ter se alimen-
as mais diversas, deixando de lado seu tado apenas com pão e café antes de ir
aspecto mais óbvio, que é a história do para a cidade, onde comeu empadas e
crime e da violência no Brasil, sem men- pastéis de camarão na confeitaria do lar-
cionar a história da justiça. Como teste go de São Francisco 32, canto da rua dos
desta proposição, tentarei discutir neste Andradas. A suspeita de envenenamen-
trabalho se os processos criminais per- to foi comunicada à 16ª Delegacia de Po-
mitem pensar o Rio de Janeiro do início lícia, que abriu inquérito. A situação era
do século XX como uma cidade violenta. tão grave que dois dias depois dona
Julieta veio a falecer.
Seguindo este enfoque, pretendo apre-
sentar – provavelmente com muita sim-
As investigações dirigiram-se para a con-
patia – algumas das regras do que se
feitaria, suspeita de ter vendido os ca-
constitui como a história social brasilei-
marões fatais. O delegado ouviu no dia
ra recente. Um bom exemplo destas re-
seguinte os responsáveis. Primeiro falou
gras, que infelizmente já quebrei e es-
o senhor José Joaquim Ferreira, um por-
pero não seja tarde para remediar, é que
tuguês de 68 anos, sócio e gerente da
um trabalho comme il faut começa com
confeitaria. Ele negou qualquer possibi-
uma boa história. Fosse um folhetim, a
lidade de problema com as empadas e
próxima parte desta introdução seria
pastéis; no dia anterior haviam servido
intitulada: “Onde se explica o título des-
mais de mil pessoas, tendo vendido an-
te trabalho”.
tes das 9 horas da noite todas as três
Dona Julieta Cordeiro Dias chegou em mil e duzentas empadinhas e pastéis de
casa passando muito mal. O trajeto de camarão produzidos. Os produtos eram
bonde entre o largo de São Francisco e frescos, os camarões adquiridos no mer-
sua casa, na rua Santa Luísa, foi muito cado e rejeitados quando de má aparên-
penoso, entre vômitos e mal-estar, pre- cia. A cozinha tinha bom equipamento e
cisando mesmo da ajuda generosa da o estabelecimento gozava de bom con-
professora Elisa Brandão, que ia também ceito, tendo entre seus fregueses o almi-
no mesmo carro para sua casa à rua 24 rante Pinheiro Guedes e o doutor Guilher-
Iorque), ainda que as diferentes formas deria ser um bom indicador da penetra-
de coleta tornem arriscada qualquer con- ção de relações sociais de tipo moderno
clusão. ou capitalista no Brasil. Por outro lado,
como os dados apresentados por
A variação temporal parece ser um ele-
Holloway para o Rio de Janeiro do sécu-
mento importante a ser levado em con-
lo XIX, quando confrontados com as es-
ta. A criminologia contemporânea tem
tatísticas do início do século XX, pare-
aceitado algumas variações como carac-
cem indicar um movimento inverso ao
terísticas da construção das sociedades
europeu, com os crimes contra a pessoa
ocidentais modernas: em primeiro lugar
passando a suplantar os crimes contra a
haveria um declínio marcado da “violên-
propriedade, torna-se necessário apre-
cia” desde o fim da Idade Média até a
sentar hipóteses explicativas desta dife-
primeira metade do século XX – acentu-
rença. Uma primeira possibilidade é acei-
ado no século XIX – para depois come-
tar a análise clássica de Maria Sílvia de
çar um movimento ascendente nos últi-
Carvalho Franco, que considera o
mos cinqüenta anos. Em segundo lugar,
escravismo brasileiro do século XIX
parece haver um correspondente aumen-
como já dotado do espírito do capitalis-
to de crimes contra a propriedade, que
mo, voltado para o lucro, possível de ser
vão suplantando os crimes contra a pes-
obtido tanto no mercado como no furto.
soa, na medida em que se consolida a
Mas dados de outras regiões do Brasil,
sociedade capitalista.
apresentados por Maria Helena Machado
Esta variação na longa duração, ainda e Maria Cristina Wissenbach, por exem-
que aceita, não parece fazer muito sen-
plo, não correspondem ao que Holloway
tido diante da experiência colonial e encontrou no Rio de Janeiro. Desta for-
escravista brasileira, sem falar do cará- ma, a situação do Rio de Janeiro parece
ter meramente indicativo dessa tendên-
ser específica, mesmo no quadro do Bra-
cia, diante da inexistência de dados mi- sil do século XIX – nesse sentido se po-
nimamente confiáveis para análises de deria imaginar que só esta cidade já pe-
longo prazo. Olhando para frente, ao con-
netrara no mundo capitalista.7
trário, o movimento parece apresentar
alguma lógica, que per mite a construção
Com isso já chamamos a atenção para a
imaginária de um passado melhor: com-
importância da comparação com outras
parado com o que viria depois, o Rio de
cidades do mesmo período, ainda que a
Janeiro belle époque não pode ser con-
realidade urbana brasileira da virada do
siderado violento. 6
século fosse extremamente limitada, e o
Dentro desse contexto a correlação en- papel do Rio de Janeiro muito distinto
tre crimes contra a pessoa ou contra a do de outros núcleos urbanos menores. 8
propriedade tem maior significado. Po- As comparações mais facilmente realizá-
veis são com cidades européias ou dos sária de resolução de conflitos. Deste
Estados Unidos, onde as estatísticas são tipo de cultura fariam parte os italianos,
abundantes, mas o poder explicativo das portugueses e espanhóis que compu-
comparações mais limitado. Além de pro- nham o grosso da imigração que viria a
cessos sociais bastante diversos, come- constituir a sociedade brasileira urbana
ça a se mostrar necessária a qualifica- do início do século XX. Aceitando-se este
ção dos graus de violência de que se está componente de identificação cultural de
falando. Mesmo definindo “violência“ sociedades mais afeitas ao uso da vio-
como um fenômeno relacionado com o lência, torna-se necessário buscar for-
uso da força física, esta ainda pode ser mas de avaliar a violência cotidiana, não
utilizada em graus bastante diversos, necessariamente de conseqüências fa-
desde as brigas de rua sem o uso de ar- tais. 9 Certamente, a sociedade carioca
mas, até o homicídio. O grau mais alto é do início do século XX apresenta um ele-
certamente o que atrai maior atenção e vado nível estatístico de pequenos con-
produz mais – e quiçá melhores – com- flitos, configurado no imenso registro de
parações. Além disso, como é comum ofensas físicas leves (artigo 303 do Có-
apontar-se para o número de ocorrênci- digo Penal de 1890). Por dá cá aquela
as criminais que escapam aos registros palha iniciava-se uma briga, que poderia
oficiais, o número de homicídios é um se travar a tapa, com objetos atirados –
dos que mais se aproxima das cifras re- o que houvesse disponível de imediato,
ais – provavelmente muito poucos homi- vassoura ou açucareiro –, ou quem sabe
cídios passam desapercebidos, exceto, mesmo na faca ou tiro, quando algum
talvez, em tempo de guerra. Assim, atra- dano mais grave poderia resultar. Outras
vés da taxa de homicídios, seria possí- cidades brasileiras do mesmo período
vel afirmar que o Rio de Janeiro do iní- não hesitavam em diagnosticar sua vio-
cio do século era uma cidade muito me- lência pela presença destes imigrantes
nos violenta que o Rio de Janeiro de desordeiros, como São Paulo ou Belo
hoje, e que, entre as cidades da época, Horizonte. 1 0 O caso do Rio de Janeiro
mantinha taxas já bem mais elevadas do era um pouco mais complicado; nosso
que as grandes capitais do mundo, ain- imigrante era principalmente o português,
da que se mantivesse num padrão com- menos identificado pela violência, mais
patível com a cultura mediterrânea, misturado no cenário social da cidade, e
encontrável em Roma ou Buenos Aires. avaliado talvez de forma positiva diante
da massa de homens pobres de cor oriun-
As chamadas sociedades mediterrâneas, dos da escravidão, de onde viriam os
onde a honra teria um papel fundamen- mais perigosos desordeiros e capoeiras.
tal na or ganização social, teriam a vio- Mesmo assim, para os dirigentes polici-
lência como uma forma legítima e neces- ais do período, a presença de imigran-
tes era considerada como um dos prin- quente, latino, que faria de uma certa
cipais fatores explicativos para as ocor- forma de violência parte integrante da
rências criminais com que se defronta- cultura ou forma legítima de resolução
vam. de conflitos. Pelo primeiro a violência se
torna invisível, pelo segundo normal. Es-
Convém destacar que aqui começamos
tas explicações, quase que contraditóri-
a introduzir um novo tipo de problema
as, parecem fazer parte do senso comum
na discussão, peça importante na
para serem utilizadas quando se faz ne-
historiografia contemporânea. Quando
cessário explicar ou pedir comportamen-
pensamos se o Rio de Janeiro do início
tos em situações de conflito. Na ordem
do século seria uma sociedade violenta,
do discurso constrói-se a idéia de que
estamos nos referindo a um conceito
“o brasileiro” é coletivamente pacífico –
nosso de violência – ou a padrões pro-
povo ordeiro nas manifestações políticas
duzidos pelo historiador – ou estamos
– e individualmente violento na sua
discutindo dentro das categorias do pe-
domesticidade – resultado do sangue
ríodo, se os cariocas de então pensavam
quente e da latinidade.
viver numa cidade violenta? Mesmo sem
hierarquizá-los, é preciso reconhecer que Este enfoque geral torna improdutiva a
se tratam de dois problemas diferentes. discussão de conjunturas específicas,
A idéia de sociedade mediterrânea pode como a do início do século. A violência
ser proposta como modelo explicativo de seria um atributo constante no qual pe-
análise ou ser reconhecida nas explica- quenas variações ocorreriam pela entra-
ções produzidas pelos contemporâneos, da dos grupos estranhos produzindo ti-
como faziam os dirigentes policiais. En- pos de desordem pouco características.
quanto boa parte da historiografia cor- Se este tipo de abordagem pode satisfa-
rente se preocupa com a criminalização zer a certos grupos nas ciências sociais,
e o controle dos negros, o discurso utili- ele certamente não responde a questões
zado no período parece apontar para colocadas pela história. Ao contrário, a
uma preocupação muito maior com o produção e o vigor destas grandes teori-
mau imigrante, que estaria contaminan- as é que deve ser objeto de estudo. A
do a pacífica e ordeira sociedade brasi- honra como motivo de violência pode ser
leira. bastante importante, especialmente no
quadro das relações familiares em mu-
Dois grandes quadros explicativos pro-
dança no final do século XIX,11 mas não
venientes da área da cultura parecem se
deve ser tomada como variável
defrontar: de um lado a tradição ordeira
explicativa para todo a presença da vio-
do povo brasileiro, tor nando irrelevantes
lência na cultura carioca ou brasileira.12
ou exógenas as manifestações de violên-
cia. De outro a presença de um sangue Talvez o elemento central a ser guarda-
do deste debate é que os contemporâ- balhos sobre a polícia têm tentado mos-
neos tinham explicações articuladas so- trar que o estado era mais complexo do
bre a violência em sua sociedade. Isso que isso, e que a transformação em ação
pode parecer óbvio à primeira vista e política dos discursos oficiais enfrenta-
objeto de uma extensa bibliografia so- va dificuldades de monta. Dentro dos di-
bre o discurso jurídico ou médico do iní- ferentes escalões do estado coexistiam
cio do século. Mas existe sempre o pro- diagnósticos diversos dos motivos e for-
blema, freqüentemente ignorado pela mas da violência carioca motivados por
historiografia brasileira, de tomar a dis- expectativas diversas e que acarretavam
cussão inter na de um grupo profissional contradições nas ações contra a desor-
– como médicos ou advogados – como dem; os problemas percebidos nos gabi-
expressão de questões sociais significa- netes não eram necessariamente os mes-
tivas. 13
Além disso, estas explicações mos que incomodavam os operadores na
nem sempre dão conta dos efeitos práti- ponta do sistema. Da mesma for ma,
cos destes discursos, isto é, de até que ações produzidas no policiamento coti-
ponto as preocupações e explicações da diano – como as inúmeras prisões por
violência presente na sociedade serviam vadiagem – podiam resultar num núme-
de orientação para ações individuais de ro mínimo de condenações pela justiça,
autoproteção ou para a definição de po- insensível à mecânica policial. 14
líticas públicas.
As ações públicas indicam uma percep-
A for mulação de políticas públicas de ção da existência de um grau significati-
contenção da violência no início do sé- vo de violência na sociedade. Em algu-
culo XX tem sido extensamente estuda- ma medida isto deve ser encarado com
da, sendo considerada uma das princi- desconfiança; aparelhos públicos de se-
pais matrizes de orientação do novo es- gurança precisam sempre apontar para
tado republicano. Para conter a pobreza a violência da sociedade até mesmo
urbana este estado teria optado por uma como forma de justificar sua existência
política de repressão constante – utilizan- e as verbas destinadas à sua manuten-
do por sua vez de violência, desta vez ç ã o . 1 5 Ainda assim, a inquietação das
oficial, ainda que nem sempre legal – que elites no final do século XIX era real,
atingia desde os sem-trabalho até os tra- mesmo que seus motivos talvez não fos-
balhadores que tentavam se organizar. sem. As transformações sociais do sécu-
Relatórios de ministros da justiça e che- lo haviam produzido uma massa de po-
fes de polícia oferecem abundante evi- bres urbanos que participou ativamente
dência destas preocupações e do esfor- de distúrbios e revoluções, ampliando
ço dos gestores do estado em produzir em muito o medo à multidão urbana e
ordem na capital da república. Meus tra- incentivando o desenvolvimento de um
à vida e obra dos rapinantes que infes- está ao alcance de todas as bolsas,
tam a cidade do Rio de Janeiro, com ra- deixa de comer quem não quer, por-
mificações por São Paulo e Minas: estu- quanto o infeliz nunca bate em vão à
1903. 17
O jovem Vicente Reis iniciou em geral, generoso.
uma carreira como delegado de polícia
Demais, entre nós, o trabalho não es-
e escritor no Rio de Janeiro, antes de
casseia. Toda a gente encontra ocupa-
transferir-se para o Amazonas, onde par-
ção e o serviço tem sempre paga
ticipou por longo tempo da vida pública.
compensadora. 18
Neste livro ele utiliza sua experiência e
o depoimento de um escroque, o doutor Mesmo neste cenário paradisíaco, o po-
Cornélio, para descrever as práticas dos licial alerta para os perigos. Como as leis
criminosos cariocas. Seu diagnóstico ini- são frágeis e a polícia mal preparada, a
Rio, ao contrário da Europa, seria uma se estabelecendo por aqui, o crime vem
cidade muito pacífica, pois os ricos não aumentando, e “atinge a mil o número
ca. Através dos diversos jor nais, revis- cidade vivia sob um “grande medo”, que
tas, ou utilizando alguns cronistas recor-
não deve ser tomado como mera ma-
rentes no início do século – Machado de
nifestação histérica de setores médi-
Assis, João do Rio, Lima Barreto e Olavo
os cercados por uma realidade de ex-
Bilac entre os mais citados, mas há uma
trema iniqüidade social. As classes po-
infinidade de outros – é possível cons-
pulares também se vêem ameaçadas
truir diferentes visões do problema da
pelas hordas de desocupados e desva-
violência carioca. Seria extenso demais
lidos que perambulam pelas ruas da
tentar analisar cada cronista e seu dis-
capital...21
curso sobre a violência – ou qualquer
Neste ponto, a evidência da imprensa
outro tema. Para nossos objetivos basta
parece ser bastante limitada. As recla-
deixar claro que se tratam de posições
mações de fato existiam, mas é difícil
bastante distintas, assim como podem
precisar quem reclamava e, principal-
ter os jor nais. A expansão da imprensa
mente, quem não reclamava e qual era
diária no início do século XX motivou
o objeto das reclamações. Fica sempre
uma diversificação de estratégias para
para a imaginação do leitor o que acon-
conquistar o público, entre as quais o
tecia quando alguém estava se queixan-
apelo a narrativas e crimes foi das mais
do que “maltas de menores desocupados
empregadas. Discutir a violência tendo
cometiam toda a sorte de desatinos, [...],
como fonte o Jornal do Comércio, o Cor-
no bulevar 28 de Setembro”. 22 O desati-
reio da Manhã , ou A Noite pode levar a
no de uns podia ser a alegria de outros...
resultados bastante diversos. A tentati-
O espaço urbano carioca vivia em rápi-
va mais consistente de analisar o trata-
da transformação, onde visões
mento jor nalístico dos problemas urba-
conflitivas sobre a ordem urbana eram
nos foi feita por Eduardo Silva. 19 A par-
expressas nessas opiniões publicadas na
tir de uma coluna do Jor nal do Brasil que
imprensa, que procuravam mobilizar su-
busca dar voz a seu público, Eduardo
porte do Estado e de seus agentes repres-
constata que preocupações com a vio-
sivos. As manifestações na imprensa in-
lência na cidade estavam entre as mais
dicam que setores não diretamente en-
freqüentemente apresentadas no jor nal,
volvidos na gestão do Estado tinham al-
mas que incidiam principalmente sobre
guma preocupação com o ajuste de um
o comportamento das forças públicas de
código coletivo de ordem urbana. O que
segurança. Quando Eduardo menciona
parece um pouco mais difícil de ser veri-
que “viver no Rio era muito perigoso na-
ficado é até que ponto esta percepção
queles dias”, 20
o problema principal era
da desordem influía sobre o comporta-
a arbitrariedade de policiais e outros
mento cotidiano.
agentes. Mesmo assim, Eduardo sugere
– parafraseando Georges Lefebvre – que a Para avançar um pouco nesta questão
tivo, a idade ou o sexo dos agentes. Ain- Quanto aos primeiros notam-se:
da assim, podemos apontar para uma sig-
1º - Os que furtam objetos de bolso.
nificativa tranqüilidade na vida carioca
2º - Os que se aproveitam dos descui-
do 1900. O perfil dos crimes contra a
dos, do desmazelo de qualquer
propriedade parece indicar a prevalência
pessoa.
de batedores de carteiras ou de furtos
de quintais e residências através de por- 3º - Os que furtam amostras expostas
nal, ou então, mais uma vez, recorrendo A lista se inicia com criminosos perigo-
sos, mas uma leitura mais cuidadosa público a desistir de seus prazeres, sen-
destes grupos permite que percebamos do o combate ao consumo de bebidas
que sua classificação é feita por crimes restrito a alguns poucos doutrinadores,
isolados. Os nove nomes listados entre tanto no campo progressista como no
os que matam para roubar são indivídu- conservador. 25
os presos por crimes que tiveram algu-
Ainda não existem pesquisas sobre bri-
ma repercussão na cidade, incluindo o
gas ou pequenas agressões. Se for pos-
célebre Ferreira das Degoladas, acusa-
sível nos basear nos trabalhos dedicados
do de matar a prostituta Clara Mery, a
a crimes de morte, feitos por Sidnei
Madame Holofote, num processo que
Chalhoub e Carlos Antônio Costa Ribei-
Evaristo de Morais considerou bastante
ro, podemos perceber como os eventos
irregular, e em que seu cúmplice Antô-
violentos estão diretamente ligados à his-
nio Riachuelo, foi absolvido. 24 A maio-
tória dos envolvidos e sua teia de rela-
ria de nomes citados se dedica aos pe-
ções.26 Neste contexto, os acontecimen-
quenos crimes, batendo carteiras ou en-
tos violentos eram, em certas circunstân-
trando em casa alheia, até chegar nos
cias, compreendidos e até legitimados,
que furtam em galinheiros – tipos como
mesmo quando praticados pelos traba-
o Bico Doce, o Galo, o Manuel Peru ou o
lhadores policiais. A incompreensão e a
João Galinha. A própria descrição do de-
atribuição do “motivo fútil” vinha de
legado demonstra a prevalência dos pe-
cima, do discurso dos setores moraliza-
quenos crimes.
dores da elite.27 Tal violência, mais uma
vez, não parece ser ameaçadora, pois era
A violência física, por sua vez, ocorria
originária duma violação de regras que
em espaços e situações comuns, onde a
deveriam ser conhecidas. Podia, assim,
freqüência pública era diversificada e só
ser condenada, mas não afetava as con-
evitada por grupos da elite que preferi-
dições de existência.
am ler sobre ela, em João do Rio. Parte
desta violência era encarada como natu- O Rio de Janeiro do início do século XX
ral nestas situações e mesmo necessá- convivia, portanto, com uma violência
ria como reação a violações de códigos que poderia parecer pequena para nós,
infor mais de conduta. Testemunhas e cem anos depois, ou enorme para os de
policiais pareciam “compreender” as cinqüenta anos antes. Grande também
motivações de lutas e conflitos, ainda para um londrino, ou quem sabe normal
que promotores e delegados os atribuís- para um romano. Podia assustar o bur-
sem a motivos fúteis. No mundo da di- guês, que gritava pela ação policial, ou
versão, o álcool podia fazer crescer pe- ser admirada en passant por aqueles que
quenas disputas e os conflitos podiam brevemente pensavam: “Teve o que me-
ser exagerados. Mas isso não levava o receu...”. Poucos mudavam seu ritmo de
vida por causa dela. Continuariam a co- – e a chorar seus mortos, que mesmo
mer os dois camarões das empadinhas sem violência participavam da tragédia
do nosso confeiteiro – pelo menos aque- da condição humana. E sobre eles, o his-
les com entrada nas confeitarias chiques toriador faz seu ofício.
N O T A S
1. Arquivo Nacional. Processo T8.3238, 24 set. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
2. Arquivo Nacional. Processo T8.3260, 15 jun. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
3. Aqui fica bem clara a mistura do registro cotidiano com as categorias policiais. Onde mais
encontrar pardos? Fique claro que emprego o ter mo numa concessão à narrativa.
4. Arquivo Nacional. Processo T8.3250, 22 out. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
5. Arquivo Nacional. Processo T8.3263, 11 fev. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
6. Aqui já se percebe que o problema não pode ser abordado apenas pelo aspecto quantitativo.
Voltaremos à questão da reconstrução positiva do passado mais à frente.
7. Esta comparação é ainda muito precária e se baseia em dados apresentados por Thomas H.
Holloway, Policing Rio de Janeiro : repression and resistance in a 19th century city, Stanford,
Stanford University Press, 1993; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: trabalho,
luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987 e Maria
Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880, São Paulo, Hucitec, 1998.
8. Para um trabalho comparativo do gênero sugerido, na América Latina, ver L yman L. Johnson,
“Changing arrest patterns in three Argentine cities: Buenos Aires, Santa Fe, and Tucuman,
1900-1930”, em L yman L. Johnson, The problem of order in changing societies : essays on
crime and policing in Argentina and Uruguay, Albuquerque, University of New Mexico Press,
pp. 117-148.
9. A literatura antropológica sobre sociedades mediterrâneas e honra é bastante extensa. Qual-
quer estudo deve partir de Julian Pitt-Rivers e da coletânea de J. G. Peristiany, Honor and
shame : the values of Mediterranean society, Chicago, University of Chicago Press, 1966. Ver
também o trabalho de síntese de Frank Henderson Stewart, Honor , Chicago, University of
Chicago Press, 1994 e a utilização destes conceitos para o Rio de Janeiro feita por Sueann
Caulfield, Em defesa da honra : moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-
1940, Campinas, Editora da Unicamp, 2000.
10.Para São Paulo ver Boris Fausto, Crime e cotidiano : a criminalidade em São Paulo, 1880-
1924 , São Paulo, Brasiliense, 1984, e Maria Inez Machado Borges Pinto, Cotidiano e sobrevi-
vência : a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914, São Paulo, EDUSP,
1994. Sobre Belo Horizonte ver Luciana Teixeira de Andrade, Ordem pública e desviantes
sociais em Belo Horizonte, 1897-1930, dissertação de mestrado em sociologia, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1987.
11.Não deve ser por acaso que a violência nas relações de gênero tem ocupado lugar de desta-
que entre as preocupações historiográficas sobre crimes no início do século XX.
12.Mesmo assim, parece-me que as indicações do texto clássico de Maria Sílvia de Carvalho
Franco sobre a legitimidade da presença e do exercício da violência no mundo dos homens
pobres no Brasil têm sido muito pouco explorado. Este é o caso de um trabalho onde algumas
deficiências extremamente visíveis têm obscurecido seus méritos e insights ainda profunda-
mente atuais.
13.Este problema já foi bastante apontado na literatura de matriz foucauldiana. Ver as críticas de
A B S T R A C T
The aim of this article is to discuss if the criminal processes allow to think the city of Rio de
Janeiro as a violent city in the beginnings of the twentieth century. The author points out the
identity of the individuals involved in those varied circumstances of violence and exposes the
multiplicity of methods and themes that the criminal archives may offer to the researchers of the
recent history of Brazil.
As Rusgas da Identidade
Rio de Janeiro, 1831-1833
A
narquia, tumultos, desordens, tica do Estado imperial, representados no
tropelias e ameaças. Durante gover no regencial por homens como
longo tempo os anos de 1831, Evaristo da Veiga, Diogo Antônio Feijó,
1832 e 1833 ficaram restritos a essa Bernardo Pereira de Vasconcelos, Luís
avaliação e imagem, na cidade do Rio de Alves de Lima e Silva, Eusébio de Queirós
Janeiro. Momento de intensa experiên- – os nomes dos adversários são quase
cia política de grupos sociais urbanos, en- absolutamente desconhecidos, o que não
volvidos seminalmente na tarefa (e crença) é desprovido de importância. Esta situa-
de tornar a política algo público. Este ca- ção teve continuidade no momento em
ráter peculiar advinha de que, para es- que a classe senhorial garantiu, de for-
tas multidões (das quais categorias só- ma um pouco mais estável, seu mono-
cio-profissionais preconcebidas não po- pólio político a partir da maioridade de
dem dar conta com exatidão), sua iden- d. Pedro II em 1840. A memória que a
tidade, enquanto “brasileiros“ e “cida- historiografia do século XIX produziu so-
dãos“, dependia do direcionamento que bre o período manteve, portanto, o olhar
julgavam ser capazes de dar à ordem próprio dos grupos vitoriosos, que afinal
política do país. Tal imagem de anarquia de contas representava, vendo ali ape-
foi atribuída por seus próprios algozes, nas um momento de “exaltação“ do
aqueles que vão imprimir a direção polí- nativismo, que seria destrutivo, caso não
atributo físico; o sentido político do “ci- ruas não era pequeno neste momento.
dadão de cor“, do “brasileiro pardo“ é O próprio redator da Aurora Fluminense
muito mais rico e complexo do que a cor expressava sua preocupação com uma
da pele. Isto é o que tor na ainda mais vulgarização incontrolada das idéias li-
interessante este momento da história. berais: “o nosso patriota por excelência,
nos armarinhos, nas boticas e mesmo
A partir deste aspecto, privilegiarei o es- nos botequins, de manhã, de tarde, à
treito laço entre a ação política, onde ti- noite vive na ociosidade mais profunda
veram destaque os momentos de violên- discorrendo sobre política; e que políti-
cia política e a construção de identida- ca!”. 5 O mesmo estranhamento era ex-
des. Não é objetivo esgotar a enorme presso em outros periódicos, como se,
massa documental e as questões relati- fora de espaços delimitados e de certos
vas ao período, mas sim destacar um códigos compartilhados, falar de políti-
aspecto que parece fundamental e per- ca se tornasse uma pretensão descabida.
mite tornar complexa e ultrapassada uma
outra imagem tradicional da historiografia Para fins meramente analíticos, pode-se
e da época, que classifica o contexto como distinguir dois níveis de tensão e
disputas entre liberais moderados, libe- enfrentamento. O primeiro, mais geral,
rais exaltados e restauradores, termos colocava em confronto projetos políticos
que muitas vezes foram utilizados mais mais amplos: o grupo que assume o go-
pelos respectivos adversários, como for- verno regencial, analisado em sua base
ma de desqualificação e insulto, do que social por Alcir Lenharo em As tropas da
pelos supostos grupos que tais termos moderação , e Ilmar Rohloff de Mattos,
evocam, grupos estes que talvez nem se que em O tempo saquarema 6 pretendeu,
compreendessem e fossem organizados em um primeiro momento, afastar a ame-
enquanto tais. Os “moderados“ foram tal- aça absolutista identificada ao governo
vez mais violentos que os “exaltados“: do primeiro imperador (e daí algumas
veja-se o exemplo de Diogo Feijó, minis- refor mas de cunho liberal, como por
tro da Justiça em 1831, e primeiro res- exemplo o Código Criminal, a Guarda
ponsável pela manutenção da ordem Nacional, o Júri) e então consolidar as
pública na Corte – sua atuação foi prin- bases de uma monarquia representativa
cipalmente no sentido de reprimir a e centralizada, sob a direção da classe
“anarquia“, isto é, a dissidência política senhorial e a manutenção do monopólio
e a ameaça social por ela expressada. 4 da propriedade da terra e da mão-de-obra
A percepção da “anarquia“, da “horda de escrava. Outro projeto, que não era uni-
bárbaros“, da “gente de chinelo e cace- ficado (veja-se as diversas revoltas pro-
te“ e da “desordem“ vinha do fato de que vinciais, que assumiram formatos dife-
a política estava nas ruas. E o medo das renciados e que repercutiram, ora mais,
tros depoimentos que usaram ainda o e conflitos sociais latentes, de uma soci-
termo da época colonial, “Rocio“. Desig- edade há pouco liberta do jugo colonial,
nado como “pardo“ pela documentação, mas que manteve as estruturas básicas
presenciou, acuado em sua loja fecha- da colonização: a escravidão, a grande
da, uma confusão e ajuntamento de pes- propriedade, a economia agro-exportado-
soas. As janelas foram quebradas e ou- ra, a acentuada hierarquização. Escravos
viram-se os gritos de “mata, mata que é participaram das “garrafadas”, tendo sido
cabra”. preocupação da polícia investigar, den-
tre os “pretos e pardos” presos, aqueles
Gostaria de ressaltar que todas as expres-
que eram desta condição, para que fos-
sões que indicam os grupos e a identi-
sem encaminhados a seus proprietários.
dade racial foram citadas entre aspas,
Além disso, naquele momento, os gru-
mantendo-se a preocupação com os dis-
pos intermediários convencionalmente
cursos originais, porque nenhuma delas
designados como os homens livres e
deve ser entendida sem a aura política
pobres, os libertos, artesãos, boticários,
que as acompanhava, tratando-se seja do
barbeiros, alfaiates, soldados, trabalha-
relato policial (que evidentemente não é
dores das oficinas tipográficas e outras
imune aos valores e tensões da época),
categorias, vislumbraram a possibilida-
seja das testemunhas, ou seja no seu uso
de tanto de uma participação política
pela imprensa, da qual trataremos adi-
como de uma ascensão social, empolga-
ante. Neste contexto, muitos dos que se
dos com as palavras de ordem como “na-
auto-designaram “brasileiros” não nasce-
ção”, “constituição”, “liberdade”.
ram necessariamente no Brasil. Muitos
dos “cabras” ou “pardos” não eram for- Portanto, se a cor da pele foi um símbo-
çosamente de pele escura. Exaltados de lo, um tema das discussões políticas, ora
Salvador, na mesma época, defendiam a como insulto, ora como auto-elogio, isso
substituição do imperador por seu filho, não foi certamente casual. Antes, expli-
afirmando que Pedro II é “cabra como ca-se pela própria formação histórica da
n ó s ” . 1 3 João José Reis, referindo-se à sociedade, pela composição, tradição e
guerra da independência na Bahia, en- origem de seus habitantes.
tre 1822 e 1823, explora de for ma inte-
Vivenciada nas ruas da cidade em vários
ressante os insultos de “cabra” e “caia-
momentos de conflito aberto (como, para
do”, apontando uma “linguagem racial
dar um exemplo bastante rico, o episó-
como dispositivo de combate”. 14
dio dos “tiros no teatro” em 28 de se-
Além disso, estes confrontos não colo- tembro de 1831), 15 a linguagem racial
cavam em questão apenas a permanên- das disputas políticas perpassou também
cia ou não do monarca. Eles expressa- as páginas dos periódicos. Passemos a
vam, ainda que indiretamente, tensões abordá-los em seguida, focalizando es-
nisterial de 3 de agosto, mesmo que para pois os moderados não fazem caso de
isso fosse necessário ir o “povo às ar- vós por serdes mulatos, deixai de uma
mas” e onde um impresso, contendo a vez esse partido infame, e
proclamação, afixado na porta do correio antibrasileiro que vos julga menos que
zer guerra aos mulatos”, e mesmo tendo ções que em verdade são fatalíssimas,
É importante esclarecer que o ter mo es- cor, vermelhos, pardos, pretos e mo-
cravo não é um dos que irão compor o renos. Muito se cansa o Babosa , e to-
campo semântico de “mulato” ou “ho- dos os colegas da sua crença, para dar
mem de cor”. A escravidão não estava corpo a esta miserável intriga, e fazer
fletir sobre a mudança dos moderados, enquanto forem protetores dos malva-
que antes do 7 de abril convidavam su- dos chumbeiros; é um cabrito que ain-
jeitos para participarem de suas fileiras, da conserva em memória as expres-
cionais”, mas que, depois da abdicação, março de 1831, e que vai transcrever
N O T A S
1. Os seguintes artigos são de autoria de Moreira de Azevedo: “Os tiros no teatro: motim popular
no Rio de Janeiro”, RIHGB , t. 36; “Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de Janeiro”,
RIHGB , t. 37; “Sedição militar de julho de 1831”, RIHGB , t. 37; “Motim político de 17 de abril
de 1832 no Rio de Janeiro”, RIHGB , t. 38; “Motim político de dezembro de 1833 no Rio de
Janeiro”, RIHGB , t. 39. No que concerne ao horizonte teórico onde esses movimentos foram
enquadrados, bem como a posterior ordem política consolidada, teve papel fundamental o
autor Justiniano José da Rocha em seu célebre panfleto Ação, reação, transação . Escreve
ele: “A anarquia foi comprimida!”, em: Magalhães Jr., Raimundo, T rês panfletários do segun-
do reinado , São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 178-180.
2. Levantamento feito pela autora a partir da coleção de periódicos raros da Biblioteca Nacional
e do Arquivo Nacional.
3. Sobre outros aspectos da imprensa do período, ver Ivana Stolze Lima, “Com a palavra, a
cidade mestiça: imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro, 1831-1833”, em: Ilmar
Rohloff de Mattos (org.), Ler e escrever para contar : documentação, historiografia e formação
do historiador , Rio de Janeiro, Access, 1998. Informações gerais podem ser obtidas na obra
de Laurence Hallewell, O livro no Brasil : sua história, São Paulo, T. A. Queiroz/EDUSP, 1985.
4. Sobre a articulação entre os motins políticos e a ameaça social ver especialmente as análises
de Thomas Holloway, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do sécu-
lo XIX , Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1997, cap. 3. Ver também José Luís Werneck
da Silva e outros, A polícia na Corte e no Distrito Federal , Rio de Janeiro, Série Estudos-PUC-
Rio, nº 3, 1981, p. 51.
5. Aurora Fluminense , nº ilegível, 22 de agosto de 1831, Biblioteca Nacional.
6. Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo Saquarema: a formação do estado imperial, 2 a ed., São
Paulo, HUCITEC, 1987 e Alcir Lenharo, As tropas da moderação , 2 a ed., Rio de Janeiro, Secre-
taria Municipal de Cultura, 1993. (Coleção Biblioteca Carioca, v. 25).
7. Margarida de Souza Neves e outros, A Guarda Nacional no Rio de Janeiro, 1831-1918 , nº 5,
Rio de Janeiro, Série Estudos PUC-Rio, nº 5, 1981 e Thomas Holloway, op. cit.
8. Ver por exemplo O Martelo , nº 3, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1832, Biblioteca Nacio-
nal.
9. Traslado do processo que motivou os T umultos das Garrafadas dos dias 13, 14 e 15 de março
de 1831, Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional.
10.Gladys S. Ribeiro, A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos
no Primeiro Reinado, tese de doutorado, São Paulo, Unicamp, 1997.
11.John Armitage, História do Brasil , São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/Itatiaia, 1981, p. 249.
12.John Ar mitage, op. cit., p. 217.
13.A expressão é citada por Stuart Schwartz, “The for mation of a colonial identity in Brazil”, em
Nicholas Canny e Anthony Pagden, Colonial identity in the Atlantic world, 1500-1800 , Princeton,
Princeton University Press, 1987.
14.João José Reis, “O jogo duro do dois de julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia”,
em João José Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 84-85.
15.Segundo Carl Seidler (um militar alemão, próximo da família real, e dispensado do serviço
pelas reformas no exército) as transformações atravessadas pelo Teatro de São Pedro (atual
João Caetano) eram lamentáveis. Ele via ali não mais as apresentações das companhias euro-
péias, e sim o que designava como um “drama nacional”, “drama popular” ou mais especifica-
mente “drama popular mulato”, cuja característica que mais parece desgostar-lhe era o fato
de todos terem se tornado atores, todos participavam dele, no palco ou nos bastidores. Aliás,
o teatro passara, sugestivamente, a chamar-se Teatro Constitucional Fluminense e muitas
peças de cunho político foram ali encenadas. Nesse clima é que ocorreu um confronto de
ofensas entre um oficial militar “brasileiro” e outro “português”, que logo degringolou para
uma série de ataques contra a guarda municipal, a quem o juiz de paz encarregou de contro-
lar a situação, e que era tida como prioritariamente “portuguesa”. Com os ânimos acirrados,
e ouvindo as injúrias, a guarda acabou por atirar sobre a multidão no recinto do teatro. O
episódio foi freqüentemente rememorado pela imprensa de oposição ao governo regencial
como um dos momentos de traição da nacionalidade. Ver Moreira de Azevedo, “Os tiros no
teatro: motim popular no Rio de Janeiro”, op. cit., e Carl Seidler, Dez anos no Brasil , 1 a ed.,
São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 51-53.
16. O Homem de Cor , nº 1, 14 de setembro de 1833, Biblioteca Nacional. A partir do nº 3, o título
muda: O Mulato ou o Homem de Cor .
17. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 3, 16 de outubro de 1833, Biblioteca Nacional.
18. O Evaristo , nº 3, 12 de outubro de 1833, Biblioteca Nacional.
A B S T R A C T
To distinguish the printing press this article exposes an animated and singular violent dispute
perfor med by the inumerous races existent in the city of Rio de Janeiro, in the year of 1831,
1832 e 1833. Thus, the attributions imposed or assumed of adjectives as ‘colored man’, ‘mulatto’,
‘brown’ and ‘creole’ acquire a signification essentially political, throughout which urban groups
claim the recognition of citizens.
Entre o Crime
e a Conciliação
A violência contra a mulher
na justiça do Rio de Janeiro
E
gular de mediação de conflitos e de arbi-
ste artigo pretende contribuir tragem extra-oficial, onde, graças à autori-
para a discussão das situações dade de delegadas e detetives, as correla-
de violência denunciadas por ções de força e os valores já cristalizados
mulheres através das Delegacias Especi- no seio da família podem ser alterados.
ais de Atendimento à Mulher (DEAMs) do Além disso, os dados etnográficos
Rio de Janeiro e sobre o modo como tais coletados por estes pesquisadores revela-
situações são percebidas – vale dizer ram que, em muitos casos, as DEAMs
construídas –, em seus desdobramentos produzem uma espécie de pedagogia prá-
judiciários. 1 A observação sistemática do tica, através da qual altera-se o próprio
trabalho realizado pelas DEAMs tem per- padrão de percepção da violência exercida
mitido aos pesquisadores percebê-las sobre mulheres, que, às vezes, submeti-
enquanto instâncias privilegiadas para das há muitos anos a abusos sexuais e
negociação de conflitos. 2 O número re- agressões, incorporam e naturalizam tais
duzido de queixas que se transfor mam atos, não os identificando como violentos
em inquéritos enviados à justiça expres- e, muito menos, como criminosos.
saria, portanto, não apenas a morosida- Uma primeira preocupação de nossa pes-
de ou a ineficiência da polícia, mas tam- quisa foi verificar se essa dupla dimen-
A
relho judiciário. Isso ficou evidente des-
de o nosso primeiro contato com uma escolha dos processos a se
das promotoras que, durante o período rem analisados partiu de in-
da pesquisa, era responsável pelos ca- vestigação realizada sobre os
sos vindos de DEAMs. Tais casos foram dados globais de duas centrais de inqu-
caracterizados por ela como sendo, de érito, das três existentes à época, no
um modo geral, mais “sociais” do que estado do Rio de Janeiro. 5 As centrais
“criminais”. Essa afir mação aponta para de inquérito começaram a ser criadas em
a identificação de uma “clientela” espe- 1991, obedecendo a uma preocupação
cífica da DEAM que deter minaria, em de “aproximar” as delegacias do apare-
grande medida, o tipo de queixas ali lho judiciário, colocando-as sob super-
registradas. O acusado é caracterizado visão e fiscalização mais estritas. Procu-
de acordo com um modelo genérico, rava-se, de um lado, tornar mais eficien-
VÍTIMAS E ACUSADOS
D
O universo total de inquéritos encami-
nhados pelas DEAMs à justiça revela uma e modo geral, podemos dizer
concentração expressiva em dois tipos que, em relação ao modo como
de acusação, lesões corporais e ameaça as vítimas aparecem retratadas
(respectivamente artigos 129 e 147 do nos processos, trata-se em sua maioria
Código Penal). No caso da 1ª Central de de mulheres na faixa dos 35 anos, casa-
Inquéritos, por exemplo, entre fevereiro das, com filhos, de cor branca, alfabeti-
de 1991 e julho de 1995, dos 847 inqué- zadas e inseridas ativamente no merca-
ritos que os seus promotores enviaram do de trabalho. Quanto aos acusados,
para as varas criminais, 64,5% seriam predominantemente do sexo mas-
correspondiam a casos de lesão corpo- culino, com idade média de 39 anos,
ral, e 32,5% a casos de ameaça. Os 4% casados e com filhos, de cor branca, com
restantes distribuíam-se majoritariamen- padrão de escolaridade de 1º e 2º graus,
te entre os crimes sexuais (estupro, aten- sem antecedentes criminais e inseridos
tado violento ao pudor e sedução). ativamente no mercado de trabalho,
exercendo, principalmente, profissões de
Para definir o universo de processos a
nível médio.
ser abordado qualitativamente, concen-
tramos a análise nos dados da 1ª Cen- Quando comparados, inquéritos e pro-
tral de Inquéritos. Dos 847 inquéritos cessos oriundos das DEAMs retratam con-
avaliados nessa instância, de fevereiro flitos que guardam certas regularidades
de 1991 a julho de 1995, 122 foram se- entre si, tanto no que diz respeito aos
lecionados, seguindo uma amostragem artigos penais nos quais são enquadra-
que acompanhava as proporções encon- dos, e sobretudo quanto às relações exis-
tentes entre vítimas e acusados. Tais re- reram entre pessoas que compartilhavam
lações definem não só as características a mesma residência, 29,6% aconteceram
específicas através das quais os confli- entre pessoas com residências distintas
tos são percebidos por aqueles que es- e 8% entre pessoas cujas residências
tão diretamente envolvidos neles – víti- eram vizinhas. O universo das relações
mas e acusados –, mas também, pelos amorosas apontado acima como prepon-
incumbidos de avaliá-los – promotores, derante na amostragem encontra corres-
defensores e juízes. Dos 122 processos
7
pondência, por isso, também na relação
analisados, 87,7% dizem respeito ao que de residência, uma vez que mais da me-
qualificamos como conflitos relativos a tade dos casos ocorreu entre pessoas
relações amorosas , 9,8% a relações
8
que partilhavam a mesma moradia.
próximas, mas não-amorosas (oito casos
Dos 107 casos definidos como relações
envolvendo vizinhos, um envolvendo co-
amorosas, oitenta dizem respeito a rela-
nhecidos em que o acusado era amigo
cionamentos em curso no momento do
do pai da vítima, e três entre parentes,
conflito, sendo que em 78 deles, ou seja,
sendo os acusados irmão, avô e cunha-
na quase totalidade, os acusados eram
do das respectivas vítimas), 1,6% a rela-
maridos ou companheiros das vítimas e
ções de trabalho e apenas 0,8% a des-
em apenas dois eram apresentados como
conhecidos. Há, logo, uma preponderân-
seus namorados. Por outro lado, 24 ca-
cia significativa dos conflitos envolven-
sos referem-se a relações já desfeitas no
do relações em que algum tipo de víncu-
momento do conflito, sendo novamente
lo amoroso está presente, mesmo que a
a maioria (21 casos) relativa a ex-mari-
relação em si já estivesse desfeita no
dos ou ex-companheiros. Por fim, em três
momento da queixa. Os depoimentos
casos o conflito se deu entre comborças,
prestados sobre tais conflitos implicam
motivado por problemas em relação a
em relato sobre tais relações e sobre as
uma terceira pessoa: marido, companhei-
expectativas nelas envolvidas. Ou seja,
ro ou amante das envolvidas. Essas vari-
ao levar o conflito para as delegacias e,
ações tornam-se significativas no mo-
posterior mente, para o judiciário, os en-
mento em que se analisa a distribuição
volvidos evocam padrões de comporta-
das acusações, podendo-se perceber cer-
mento, de obrigações e uma trajetória
ta correspondência entre o tipo de cri-
de convivência que não se limita apenas
me registrado e as relações existentes
ao episódio denunciado.
entre vítimas e acusados.
faz desligado das transfor mações sofri- o registro inicial, até a decisão final do
das pelas próprias relações. Nos casos
9
juiz, que permite que efetivamente ope-
em que há rompimento da relação, tal rem-se mudanças, senão no comporta-
rompimento não implica necessariamen- mento e padrões da relação, ao menos
te o desejo de ver recair sobre o acusa- na avaliação que os envolvidos fazem do
do deter minadas punições legais. Ao próprio conflito e de seus desdobramen-
mesmo tempo em que ganha corpo a rup- tos e, finalmente, o efeito simbólico da
tura das relações de caráter amoroso, o transformação de um conflito que inici-
andamento do processo pode ser perce- almente pode ser percebido pelos envol-
bido como contraditório com outros ti- vidos como “conjugal” ou “doméstico”,
pos de acordo desenhados entre acusa- em uma questão judicial. É importante
do e vítima. Perceptível nos casos em perceber, nesses termos, que a relação
que há pedidos para que as acusações entre acusados, vítimas e os agentes da
sejam suspensas (a “retirada da queixa”), justiça chamados a intervir (delegados,
essa contradição baseia-se nor malmen- promotores, juízes etc), não pode ser
te na multiplicidade de papéis que os in- concebida como um modelo estático de
divíduos assumem em suas relações (não mediação. Ou seja, esses “especialistas”
apenas o agressor, mas o “bom pai de não devem ser vistos apenas como aque-
família”; não apenas aquele que agride les que regulam, a partir de suas avalia-
ou ameaça “por qualquer motivo”, mas ções e do exercício do poder de que es-
o que o faz num contexto de crise conju- tão investidos, os termos em que a liga-
gal, em que o processo de separação era ção entre vítimas e acusados está
iminente, ou que o faz sob influência do estabelecida, nem muito menos devem
álcool, entre outros fatores). Ao mesmo ser considerados como aplicadores ime-
tempo em que a polícia e, depois dela, o diatos de um código geral de prescrições
judiciário, são chamados a intervir so- e punições. Antes disso, são eles própri-
bre relações que não mais podem ser os objetos de outros tipos de negocia-
controladas apenas pelos que estão di- ção, cujos termos não estão completa-
retamente envolvidos nelas, eles podem mente definidos a priori para os que soli-
ser tomados como ameaçadores para os citaram sua intervenção. Dessa for ma,
acordos a que, de um modo ou outro, podemos dizer que não só há múltiplas
acusados e vítimas eventualmente che- instâncias de negociação estabelecidas
gam extra-judicialmente. ao longo do processo (entre acusado e
vítima, de ambos com as autoridades
Dois elementos singulares das queixas policiais, destas com os agentes da jus-
que seguem para a justiça devem então tiça, dos agentes entre si e com acusa-
ser destacados: o tempo transcorrido dos e vítimas etc), como também aquilo
desde a procura às DEAMs, onde ocorre que motiva e representa os diferentes
agentes, que mudam nesse percurso de e a avaliação a respeito do poder que tal
acordo com as avaliações que são feitas ato pode encerrar. Por outro lado, como
do andamento do próprio processo legal, dissemos antes, à medida em que a
e também de suas relações. “queixa” evolui, ou seja, em que o inqu-
érito tem andamento e eventualmente
Para apreender um pouco dessas trans-
transforma-se em processo judicial, essa
formações e das imagens produzidas so-
fala sofre transformações. Recebe mais
bre o conflito e as relações em que ele
detalhes, torna-se mais tolerante com o
se deu, é fundamental procurar perce-
acusado, contradiz-se. O discurso das
ber como se organizam as falas de cada
vítimas que analisamos aqui é, portan-
um dos envolvidos, conforme registradas
to, o registro das mudanças sofridas pela
nos autos, de modo a recuperar parte da
relação e pela for ma de representá-la
pluralidade de discursos e representa-
frente a autoridades específicas, regis-
ções construídos ao longo do processo.
trada sob a forma e o crivo da burocra-
É importante lembrar que trabalhamos
cia jurídico-policial.
aqui com discursos híbridos, produtos a
um só tempo da versão dada pelos en-
Um agrupamento inicial dos temas pre-
volvidos e do modo como foram ouvidas
sentes nesses discursos pode ser feito
e registradas pelos diferentes agentes da
separando aqueles que dizem respeito
justiça. Vamos discutir aqui alguns dos
mais diretamente ao motivo do conflito
temas mais recorrentes nas falas das ví-
e aqueles que tratam de características
timas e acusados em diferentes momen-
da própria relação, ou seja, que compre-
tos do processo.
endem o conflito a partir de um diagnós-
As versões das vítimas
tico da relação entre acusado e vítima.
Ao analisar a forma como se estrutura o Entre os temas mais constantemente in-
discurso das vítimas, ou seja, seus te- vocados pelas vítimas em seus depoi-
mas mais recorrentes e a seqüência de mentos têm destaque a existência de
depoimentos que o confor ma, é preciso agressões anteriores ao fato denunciado,
ter em mente que se trata de uma fala que aparece em 54 dos 107 inquéritos.
produzida em contextos específicos. Para Como foi colocado antes, a denúncia pa-
que ela exista, é necessário que tenha rece resultado não apenas do conflito em
havido uma série anterior de aconteci- si, mas de uma determinada história de
mentos e de representações desses acon- conflitos, fazendo-se necessária, para a
tecimentos, capaz de produzir a decisão vítima, a interferência de um elemento
de recorrer à polícia. “Dar queixa” é, exter no e de maior autoridade (a polícia
nesse sentido, um ato complexo que en- ou a justiça). Esse é um tema, porém,
volve a história de uma relação, a inten- que dificilmente aparece de forma isola-
ção de modificá-la a partir da denúncia da. Conjugando-se a outros, fornece um
mo na relação, uma vez que outras agres- posições sociais a serem ocupadas por
sões não teriam sido denunciadas, o con- cada um na relação, do que em um sen-
flito pode ser compreendido como exces- tido mais individualista de direitos e de-
sivo, como ocorre em um inquérito, no veres. Não à toa, a questão da capacida-
qual a vítima declara, no processo de ou não de manter economicamente a
92001023942-8, que “houve agressões casa, aparece nas falas das vítimas como
anteriores, mas que essa foi a mais vio- um indicativo da sua insatisfação com
lenta”, anunciando ao mesmo tempo que os termos em que a relação está
“não pretende se separar”. Em depoimen- estruturada, compondo um retrato depre-
to prestado na audiência de julgamento, ciativo do parceiro. 10 As vítimas fazem
no citado processo, a vítima ratifica essa mais que retratar um conflito específico
posição, declarando ao indicar como motivos da agressão ter
questionado “o fato de não ter comida
que continuam vivendo juntos; que já
em casa para dar à mãe do marido”, se-
o perdoou pelo fato. Desde o início do
gundo o processo 92001077538-0.
casamento ele começou a bater nela,
que nas vezes anteriores não registrou
e à delegacia não deve ser visto, desse de proteger os filhos – tão decisivo, que
modo, apenas como uma estratégia para em dado momento a vítima relata que
conseguir melhores condições de sepa- ao pensar em retirar a queixa – “provo-
ração. Ao contrário, o apelo à interven- cou a ira da filha mais velha, que não
ção policial pode ser percebido como a suporta mais a relação do casal”; a exis-
for ma legítima de sustar atitudes clara- tência de agressões anteriores; o cons-
mente violentas ou ameaçadoras que trangimento sexual (sobre as filhas, nes-
estariam na base das justificativas para se caso), e o contexto de separação ju-
a separação. Isto se revela nas declara- dicial. Esta não é apresentada, porém,
ções abaixo, em que a vítima conta que, como a fonte dos conflitos, mas como
após um período prolongado de ausên- uma solução a ser tomada frente a um
cia, o marido retornou à casa, criando quadro ameaçador para todos os com-
novas tensões confor me relata o proces- ponentes da família. Como nem mesmo
so 94001094053-6. esse desfecho parece possível sem a in-
terferência de alguma instância de po-
Disse que (...) a filha mais velha, já es-
der exterior às relações, a procura às de-
tava mocinha e [o acusado] começou
legacias (não apenas à especializada,
a olhá-la com olhares lascivos e dizer-
mas também a uma delegacia local) sur-
lhe besteiras de origem sexual; que
ge tanto como possibilidade de obter
certa feita pegou uma chave de fenda
uma intervenção mais imediata, quanto
e disse: ‘vou te furar com isso’; outras
de exercer uma forma de controle sobre
vezes ele fazia gestos juntando os dois
o comportamento do acusado durante o
dedos da mão e dizia à [filha], mostran-
percurso do processo de separação na
do os dedos: ‘vou te perfurar’. Ou di-
vara de família.
zia que lera no jor nal que pai cria a
Uma vez desfeita ou reorganizada a uni- contrário, pode ser identificado a outros
dade familiar, o conflito estaria esgota- motivos específicos, o que não diminui
do, não sendo necessária ou cabível uma o peso do álcool no retrato da relação
avaliação de outro tipo. Ou seja, por mais como um todo. Em certo processo, a ví-
que o acusado possa ter perpetrado tima declara no registro de ocorrências
agressões ou atos violentos junto a cada que o motivo da agressão foi o ciúme que
um dos filhos e à mulher, esses atos pa- o ex-companheiro sentia, tendo este afir-
recem só fazer sentido em seu conjun- mado que “se ela tiver algum namorado,
to, como indicativos da impossibilidade irá matá-lo”. Ao depor no inquérito, po-
de manter uma dada organização familiar. rém, ela traça um quadro da relação,
marcada por outras agressões moti-
Um outro elemento citado pela vítima
vadas, segundo ela, pelo uso de álcool.
ganha também peso de explicação geral
Constatamos, assim, pelo processo
tanto para os conflitos com o acusado,
93001021411-2 que, em 1990, quando
quanto para as motivações que orienta-
ainda convivia com o companheiro, ele
riam o comportamento desse último: o
chegou em casa embriagado e espancou
uso recorrente de álcool ou tóxicos. 11
a declarante, que ficou com o rosto de-
Percebido como um componente da per-
formado (...); que quando o filho de sete
sonalidade e das atitudes do acusado, ele
anos tinha um ano, ela foi violentamen-
tem o poder de for necer uma explicação
te espancada e deixada caída na rua; que
totalizante dos conflitos, ao mesmo tem-
dessa vez ela não registrou o caso e a
po em que permite a manutenção das
vida do casal continuou com as
posições sociais definidas na relação
atribulações causadas pela bebida, ou
sem maiores contradições. Ao alegar que
seja, toda vez que ele se embriagava, a
os maridos ou companheiros só as agri-
vida dela tornava-se um inferno.
dem sob efeito do álcool ou de tóxicos,
Por atuar como uma explicação da rela-
as vítimas conseguem ao mesmo tempo
denunciar uma atitude legalmente con- ção como um todo, e não apenas de con-
E
curso dos acusados tem outras caracte-
sse tipo de lógica parece ser
rísticas peculiares. É nele que se perce-
partilhada também por acusa-
be mais claramente o peso que tem o
dos e mesmo por alguns agen-
tipo específico de discurso com o qual
tes da polícia e da justiça. Enquanto o
estamos lidando: o depoimento. Ou seja,
uso de tóxicos é sempre negado pelos
não são falas como outras quaisquer,
acusados, por motivos óbvios, o álcool
mas relatos construídos frente a uma si-
freqüentemente é citado como explica-
tuação em que há diferenças claras de
ção ou como elemento presente nos con-
autoridade. No caso dos acusados, es-
flitos, indicando uma dimensão de
sas diferenças podem ser percebidas
excepcionalidade para as agressões
como adversidade. Em princípio, é pre-
registradas. Nesses termos, tanto vítimas
ciso não apenas declarar, relatar, mas
quanto acusados podem fazer uso de um
d e f e n d e r - s e , c o n t r a p o r. É u m a f a l a
mesmo modelo explicativo da relação,
construída, portanto, a partir de diver-
privilegiando um fator exógeno aos con-
sas referências: o discurso-acusação da
flitos em si. O partilhamento dessas re-
vítima; a imagem construída a seu res-
ferências e desse modelo de explicação
peito nesse discurso e o questionamento
é fundamental para se pensar a
feito nas diferentes instâncias de poder
especificidade dos inquéritos e proces-
– polícia, promotores, juízes. Isto é fun-
sos realizados através das DEAMs. Por
damental para determinar os temas mais
mais que estejam em posições antagôni-
recorrentemente abordados.
cas, vítimas e acusados percebem as si-
tuações vividas na delegacia ou no judi-
Nesse sentido, dois argumentos princi-
ciário a partir de referências comuns, co-
pais podem ser destacados, tanto por sua
mungando a noção de que não são atos
maior incidência, quanto pelas caracte-
isolados que estão em jogo, mas uma
rísticas defensivas que guardam: a nega-
história de comportamentos e expectati-
ção da acusação e a justificativa do con-
vas conflitantes. Perceber os pontos em
flito como tendo sido uma agressão mú-
que essas versões se aproximam e se
tua. Tanto a negação quanto o argumen-
antagonizam é fundamental para compre-
to da agressão mútua surgem em cerca
ender como se estrutura a avaliação ju-
de 40% dos casos, sendo que em alguns
dicial dos inquéritos.
deles, pelas próprias transformações so-
As versões dos acusados
fridas nos relatos ao longo do processo,
Se o discurso das vítimas deve ser com- podem aparecer combinados (como em
preendido, como dissemos, a partir de casos em que o acusado começa negan-
do que tenha cometido uma agressão sado pela companheira de tê-la agredi-
p a r a a s s u m i r, e m o u t r o m o m e n t o , do com:
que a cometeu, mas que também foi socos, tapas, puxões de cabelo e chu-
a g r e d i d o ) . 13 tes. Nega veementemente ter agredi-
do sua companheira. Que estava dor-
Desse modo, a negação tanto pode con-
mindo, acordou com uma pancada que
sistir em indicar que tudo não passa de
levou no estômago por sua companhei-
invenção da vítima, mesmo em casos de
ra, que estava com as pernas para cima
agressões comprovadas através de exa-
para vestir uma meia-calça, quando
me de corpo de delito, quanto pode tor-
deixou o pé bater no estômago dele;
nar necessária uma explicação suple-
que acordou sobressaltado e reclamou,
mentar, que indique que há outros inte-
chegando a alterar a voz; que ela não
resses da vítima na denúncia,
gostou e passou a unhá-lo e deu uma
notadamente relacionados à posse de
cotovelada nele; que ele com dor
bens ou da casa em contextos de sepa-
revidou a cotovelada dando um empur-
ração conjugal. Nesses casos o que é
rão nela; que ela levantou-se da cama,
contextualizado não é o conflito em si,
ocasião em que ele a empurrou; que
mas a própria queixa, compreendida
ela rolou na cama propositalmente,
como parte de disputas com interesses
caiu no chão onde ficou se debaten-
explícitos. Uma outra forma de negação
do; que ele ao ver que a companheira
da acusação pode estar baseada na su-
estava emocionalmente descontrolada
posta irracionalidade do comportamen-
a levantou do chão; que ela o unhou
to da vítima. Nesses casos, de forma se-
novamente e deu um chute violento
melhante ao que acontece em alguns re-
nos órgãos genitais dele; que ela pas-
latos das vítimas, o conflito e sua denún-
sou então a bater com a cabeça na pa-
cia não são percebidos como fruto da
rede e gritava que estava ficando lou-
relação, mas como uma conseqüência do
ca; (...) que não é verdade que ele a
descontrole do outro. Aquele que depõe,
agrediu com socos, pontapés e puxões
portanto, esteja ele for malmente na po-
de cabelo; que era ela quem puxava
sição de vítima ou de acusado, percebe
os próprios cabelos e fazia expressões
a si mesmo como vítima da ação de seu
faciais de quem estava fora da razão ;
companheiro, cujas razões lhe escapam,
que ele acredita que as lesões que ela
estando situadas em alguma zona não
apresentou foram devidas ao momen-
controlada pela relação.
to em que ela se debatia; que não é a
Essa estratégia pode ser claramente per- primeira vez que ela perde o controle ,
cebida em um processo envolvendo um e em outras situações ela já bateu com
caso de agressão. Confor me o processo a cabeça na parede; que convivem há
94001067257-8, o companheiro é acu- cinco anos e já tiveram outras discus-
conflito, tratando-o por “discussões” ou monia com ela, até que familiares dela
“desentendimentos familiares”. Ou seja, passaram a freqüentar a residência do
sivamente à mulher e ao seu estado emo- dois, fazendo intrigas; que ele então
cionalmente perturbado a responsabili- não teve mais paz e ela mudou de com-
ele e a vítima vivem juntos há dez anos Segundo outro processo, de número
e que não possuem filhos, e que de um 93001032365-0, o acusado disse que
ano para cá as coisas mudaram; que
ao chegar ao quintal encontrou o irmão
ela passava o dia inteiro na rua, não
dela segurando-a fortemente pelos bra-
dando qualquer atenção ao declarante
ços. Seu cunhado disse que ela estava
e ao lar, que então começaram a se
bebendo na casa da vizinha desde a
desentender.
tarde (...); que, como ela estava bas-
A leitura dos conflitos como “desenten- tante embriagada, ele sugeriu ao cu-
nhado que a pegassem pela cabeça e como uma trajetória essencialmente con-
per nas para conduzi-la à casa; que, ao jugal. Aparentemente, o acusado estaria
ouvir tal sugestão, ela partiu para cima trazendo para si toda a responsabilida-
dele a unhadas e ele se defendeu em- de pelo conflito, isentando a relação.
purrando-a. Entretanto, o que podemos perceber
mais uma vez é que essa responsabili-
Por relato do processo 95001019018-5,
dade é colocada em um ponto externo
o denunciado
ao casal e, em certa medida, ao próprio
disse que fez e falou tudo que a
acusado: o “alcoolismo”, a “doença”, o
comunicante relatou e que é verdade;
“descontrole”. As agressões situam-se,
que ele gosta muito dela e do filho; que
desse modo, em um terreno de
sente muitos ciúmes dela; que ele des-
irracionalidade.
cobriu agora que é uma pessoa doen-
te e alcoólatra e que agora passou a Isso nos leva mais uma vez aos depoi-
bebida, que as coisas acontecem mais quão complementar a eles é essa lógica.
quando ele bebe, mas que não deseja Em seus termos, o agressor torna-se pro-
perder a família, pois é o que ele mais duto de algo que lhe é externo e
ama na vida; e que fez tudo isso, mas incontrolável, tornando relativa a possi-
ele empurrou a mulher, que caiu; que família como um todo. Nesse sentido, em
tal fato não chegou a abalar a estrutu- muitos casos, a denúncia ou a “queixa”,
ra solidificada do matrimônio ; que vol- longe de representar a ruptura do laço
taram às boas dias depois; que atual- familiar ou conjugal, pode ser percebi-
mente o relacionamento entre ambos da como estratégia de preservação des-
é perfeito [grifos nossos]. se mesmo laço, o que torna bastante co-
mum a solicitação, por parte das vítimas,
Ao descontrole momentâneo contrapôs-
da “retirada da queixa”, em etapas pos-
se a “estrutura solidificada do matrimô-
teriores do processo. Cabe, porém, cha-
nio”, que deve ser capaz de absorver e
mar a atenção para o fato de que tal di-
comportar conflitos episódicos ou mes-
nâmica, embora bastante usual, não se
mo constantes (se tomarmos por base
apresenta em todos os casos, sendo pos-
as falas das vítimas relatando agressões
sível que ocorram situações nas quais,
anteriores). A noção de que o relaciona-
apesar do desejo manifesto das vítimas
mento de um casal é algo potencialmen-
em dar prosseguimento à avaliação le-
te violento está presente, de modo ge-
gal de suas denúncias, o imperativo da
ral, nas falas tanto de acusados quanto
negociação se impõe como mais forte
de vítimas, seja pela banalização na for-
para promotores e juízes.
ma das “brigas conjugais”, seja pelos di-
ferentes relatos dando conta de toda uma
história de agressões. No caso das versões dos acusados, por
seu lado, as estratégias de defesa envol-
C ONCLUSÃO vem igualmente a construção de repre-
C
sentações sobre a relação e, em especi-
omo se vê, o recurso às DEAMs
al, sobre o papel desestabilizador repre-
deve ser compreendido como
sentado pela mulher. A irracionalidade
parte de um processo de nego-
atribuída às ações desta ou a sua supos-
ciação de limites que de alguma forma
ta responsabilidade como agressora – a
foram rompidos, ou de expectativas que
que provoca as brigas, a que é violenta
foram frustradas. As representações que
ou descontrolada –, busca invocar a par-
emergem dos depoimentos dizem respei-
tilha de responsabilidades sobre o que
to não apenas a um “ato criminoso” co-
deve ser tomado como um conflito in-
metido por determinado “indivíduo”, mas
terno à relação, e não como crime. As-
à instauração da desordem dentro da
sim, como foi destacado, mesmo nos
família ou da relação conjugal.
casos em que o acusado chama a si a
Da perspectiva das vítimas espera-se que responsabilidade da agressão, esta apa-
a denúncia venha oferecer um freio a rece matizada por elementos externos,
comportamentos vistos como ameaçado- como o álcool, que criariam uma situa-
res não apenas para elas, mas para a ção de excepcionalidade frente ao qua-
para o fato de que, de modo semelhante dos, da fronteira entre a ação pública –
ao que ocorre com a idéia presente nas que compreenderia tais conflitos como
N O T A S
1. Os dados aqui apresentados são resultado da pesquisa empreendida no Núcleo de Pesquisas
do ISER com apoio financeiro da Fundação Banco do Brasil, entre março de 1995 e julho de
1996, dando continuidade aos esforços realizados desde 1993 por pesquisadores da institui-
ção para estabelecer um diagnóstico da violência contra a mulher no Rio de Janeiro. Resulta-
dos de pesquisas anteriores realizadas pelo Núcleo podem ser encontrados em Luís Eduardo
Soares et al., Violência contra a mulher : levantamento e análise de dados sobre o Rio de
Janeiro em contraste com infor mações nacionais, Rio de Janeiro, Núcleo de Pesquisas do
ISER Editora, 1993; em alguns textos publicados em Luís Eduardo Soares et al., Violência e
política no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Relume Dumará/ISER, 1996. A pesquisa que deu
origem a esse artigo foi possível graças à participação de inúmeras pessoas. Agradecemos a
Bárbara Musumeci Soares, que idealizou o projeto original e acompanhou o trabalho da equi-
pe; a Phillippe George P. G. Leite que se ocupou das estatísticas, à promotora Maria Ignez
12.Confor me aponta Maria Filomena Gregori, Cenas e Queixas : um estudo sobre mulheres, rela-
ções violentas e a prática feminista, São Paulo, ANPOCS/Paz e Terra, 1993, ao tratar o álcool
como o motivo que deter minaria o comportamento violento dos companheiros, as mulheres
o perceberiam como parte de um quadro de fraqueza deles. Desse modo, segundo a autora,
a manutenção da relação seria um sinal da força dessas mulheres, capazes de suportar uma
situação adversa na suposição de que essa seja passageira e na crença de que as agressões
são fruto de um estado alterado do companheiro, que não corresponde à sua personalidade
nor mal.
13.A acusação é negada em 46 dos 107 casos relativos a “relações amorosas” (43%) ou é relata-
da como “agressão mútua” em quarenta desses mesmos 107 casos (37,4%).
14.Os parentes são citados em 24 dos 107 casos, enquanto, sintomaticamente, não são nunca
apontados como fator direto de conflito nas falas das vítimas.
15.Embora apareça em um número relativamente pequeno de casos (apenas 6 dos 107 casos), a
“negligência doméstica” é um fator importante na fala dos acusados já que conjuga-se a um
quadro geral de ataque à vítima enquanto esposa ou companheira modelar.
16.O álcool é citado em 17 casos e o descontrole emocional em 18 casos.
A B S T R A C T
This text focuses on the situations of violence denounced by women through the Special Police
Departments for Women in the city of Rio de Janeiro during the middles of the decade of 1990.
Those situations of outrage are perceived in their judiciary aspects, showing the victims’ versions
of the conflicts (generally women) and at the same time the accuseds’ versions (their partners)
and their reciprocal relations.
Violência contra
Crianças e Adolescentes
M
uitos acreditam que a violên- com as visões culturais e históricas so-
cia seja uma manifestação bre a criança e seus cuidados, com os
social recente, típica dos direitos e o cumprimento de regras soci-
tempos moder nos e característica de ais relacionados a ela e com os modelos
sociedades individualistas e com sérias explicativos usados para a violência.2
dificuldades sócio-econômicas. Quando a
Historicamente, o conceito de violência
violência doméstica é abordada, referin-
vem sendo ampliado, em decorrência da
do-se a abusos cometidos contra velhos,
maior conscientização a respeito do bem-
mulheres e crianças, cresce a tendência
estar da criança e do adolescente, de
em restringir-se o tema a famílias socialmen-
seus direitos e dos efeitos que a violên-
te excluídas e de baixo nível cultural.
cia exerce sobre o seu desenvolvimen-
Entende-se como “violência“ a ação to. Segundo Mause, “a história da infân-
impetrada através da força, ímpeto ou in- cia tem sido um longo pesadelo do qual,
tensidade e contrários ao direito, à justiça, apenas recentemente, nós começamos a
à razão, que causem danos físicos, morais, despertar”.3
emocionais e/ou espirituais a alguém.1
Dentre diversos autores, Deslandes defi-
As definições para violência contra a cri- ne o abuso ou maus-tratos como a exis-
ança e o adolescente variam de acordo tência de um sujeito em condições su-
lescente podem ser praticados pela omis- pre que se iniciava um novo empreendi-
são dos seus direitos, definidos por con- sacrificadas para afastar os maus agou-
cular mente, a violência contra crianças te desde a pré-história, quando eram ati-
entre 400 e 200 a.C. As urnas continham era masturbado com violência por sua
ossos de crianças atiradas vivas no fogo, mãe, sempre que ela se sentia depri-
por seus próprios pais, em troca de vo- mida ou irritada: Mamãe torce o pinto,
tos aos deuses para que suas mercado- machuca por dentro... Mamãe zangada,
rias chegassem aos portos de destino em machuca meu pinto. Mamãe triste ma-
segurança. Algumas urnas tinham chuca meu pinto... Mamãe não gosta do
atos de violência impetrados contra crian- Crianças na Índia são regular mente
ças por seus pais, inclusive os abusos se- masturbadas por suas mães: as meninas
xuais, eram inofensivos e não trariam “para fazê-las dormir” e os meninos “para
quaisquer tipos de conseqüências às suas torná-los homens”. A criança dorme na
formações, uma vez que brincar com os cama dos pais e a maioria participa dos
órgãos genitais das crianças era um hábi- intercursos sexuais entre eles. O casamen-
to tradicional. Em diversas culturas e du- to de crianças é uma prática antiga na Ín-
rante toda a existência da humanidade, dia. Quando surgiram leis que impediam
atos sexuais com crianças sempre existi- essa prática, em 1929, o governo foi for-
ram e sempre foram admitidos. Muitas temente pressionado por homens que in-
mães têm o hábito de masturbar seus fi- sistiam que o casamento precoce era uma
lhos ainda pequenos, para acalmá-los. Em necessidade absoluta, uma vez que as
muitos casos, percebe-se, claramente, a meninas jovens eram naturalmente muito
satisfação que esse tipo de ato desperta sexualizadas e deveriam casar cedo para
nelas, como expressões de prazer e que fossem protegidas contra as seduções
enrijecimento dos mamilos. A crença no dos adultos. Um provérbio indiano diz: Para
caráter inócuo de atos abusivos contra cri- que uma menina seja virgem aos dez anos
anças pode ser questionada por depoimen- de idade, ela não pode ter irmãos, nem
tos das próprias vítimas: primos e nem pai.10
ma, se evitava que o choro das crianças enquanto há esperança, mas não até
Nesse período, já se entendia que a cri- Provérbios 29:17 – Corrige teu filho e
ança não nascia completamente má ou ele te dará paz e fará as delícias de
impura, mas continuava a ser vista como tua alma. 27
suscetível a projeções danosas, tanto
Provérbios 01:08 – Ouve, filho, o ensi-
que os pais, responsáveis por sua edu-
no de teu pai, não desdenhes a doutri-
cação, ainda usavam o espancamento
na de tua mãe. 28 (6)
como método educativo.
Em outras passagens bíblicas a criança
A Bíblia traz diversas passagens onde a
é tratada como propriedade de seus pais,
utilização da violência física contra a cri-
dando a estes o poder de vida ou morte
ança seria um instrumento para a sua
sobre seus descendentes, como o relato
purificação, já que a criança seria fruto
a seguir:
do pecado original e, portanto, impura.
Abraão, filho de Tera, escolhido por
Diversas citações referem-se ao uso da
Deus para, a partir dele, criar uma gran-
força física como correção a ser utiliza-
de nação (Gênesis II:12). Casado com
da contra as crianças:
Sara, mulher estéril, Abraão não tinha
Provérbios 13:24 – Quem poupa a chi-
filhos. Para satisfazer seus desejos,
bata odeia o filho, mas quem o ama, o
Sara oferece sua criada Agar a Abraão
castiga generosamente. 20
para que com ela gerasse um filho. Aos
Provérbios 19:18 – Castigue seu filho 86 anos Abraão teve, então, seu pri-
trevistas, revelam que 30% dos homens na com 9 anos de idade foi apresenta-
e 40% das mulheres lembram-se de te- da na corte de Nova York com marcas
rem sido molestados sexualmente, du- da violência diária que sofria por par-
tar como o ato de ter contato genital real, Mary Ellen era órfã da Guerra Civil,
não apenas a exposição. Cerca da meta- quando foi adotada com 18 meses de
de deles foram vítimas de incesto com idade. Desde então, diariamente, pas-
Abuso sexual – é todo ato ou jogo sexu- considerado uma forma de extrema ne-
al, relação heterossexual ou homossexu- gligência. A negligência pode significar
al cujo agressor está em estágio de de- omissão em termos de cuidados básicos
senvolvimento psicossexual mais adian- como a privação de medicamentos, cui-
tado que a criança ou o adolescente. Tem dados necessários à saúde, higiene, au-
por intenção estimulá-la sexualmente ou sência de proteção contra as inclemên-
utilizá-la para obter satisfação sexual. cias do meio (frio, calor), não prover es-
Estas práticas eróticas e sexuais são im- tímulo e condições para a freqüência à
postas a criança ou ao adolescente pela escola. A identificação da negligência no
violência física, por ameaças ou pela nosso meio é complexa devido às difi-
indução de sua vontade. Podem variar culdades sócio-econômicas da popula-
desde atos em que não existam conta- ção, o que leva ao questionamento da
tos sexuais (voyeurismo, exibicionismo) existência de intencionalidade. No entan-
aos diferentes tipos de atos com conta- to, independente da culpabilidade do res-
tos sexuais sem ou com penetração. En- ponsável pelos cuidados da vítima, é ne-
globa ainda a situação de exploração se- cessário uma atitude de proteção em re-
xual visando lucros como prostituição e lação a esta. 39
por nografia.36
Os dados reais sobre os maus-tratos con-
Maus-tratos psicológicos – são todas as tra crianças e adolescentes são muito
for mas de rejeição, depreciação, discri- imprecisos, uma vez que a grande maio-
minação, desrespeito, cobrança ou pu- ria dos casos não obriga a busca de aten-
nição exageradas e utilização da criança dimento médico para as vítimas. Como
ou do adolescente para atender às ne- quase sempre é indispensável que haja
cessidades psíquicas dos adultos. Todas uma denúncia sobre o tratamento violen-
estas formas de maus-tratos psicológicos to intrafamiliar, e isso raramente ocor-
podem causar danos ao desenvolvimen- re, as agressões se repetem cronicamen-
to biopsicossocial da criança. Pela suti- te sem que nada seja feito em defesa da
leza do ato e pela falta de evidências criança ou adolescente.
imediatas de maus-tratos, este tipo de
Não existe uma única fonte de dados ou
violência é dos mais difíceis de serem
um único índice capaz de representar por
identificados, apesar de estar, muitas
si, a magnitude das conseqüências da vi-
vezes, embutido nos demais tipos de vi-
olência sobre a saúde e a sociedade. Al-
olência. 37
guns estudos estatísticos oferecem nú-
Negligência – é o ato de omissão do res- meros e taxas proporcionais a um deter-
ponsável pela criança ou adolescente em minado número de habitantes, referen-
prover as necessidades básicas para o tes a homicídios, suicídios ou outras for-
seu desenvolvimento. 38 O abandono é mas de violência. Os hospitais e clínicas
que dispõem de salas de emer gência brancas e muito jovens, que não apre-
apresentam dados referentes a admis- sentavam dificuldade respiratória ou con-
sões por lesões traumáticas. A polícia re- vulsões e que pertenciam a famílias apa-
gistra os casos de violência e algumas rentemente estáveis. 43
entidades governamentais ou não-gover-
Um estudo para identificar causas, tipos
namentais podem manter cadastros de
e padrões das lesões resultantes da vio-
casos de violência doméstica, maus-tra-
lência familiar, observado em pacientes
tos contra crianças e adolescentes ou vi-
com idade entre duas semanas e 17
olência contra outros grupos vulnerá-
anos, atendidos em salas de emergên-
veis. 40
cia, registrou o seguinte: 48% eram me-
Dados obtidos em publicações interna- nores de dois anos, 57% dos agressores
cionais esclarecem a dimensão de algu- eram um ou ambos os pais, 36% das le-
mas características quanto à morbidade sões foram provocadas por trauma dire-
por violência. Kharash e outros pesqui- to. As lesões mais freqüentes foram na
sadores relatam que 3% dos pacientes cabeça (25%), face (19%) e olhos (18%),
com idades até 17 anos, atendidos em sendo que nas crianças maiores a gran-
salas de emer gência, apresentaram le- de maioria das lesões foi nas extremi-
masculino. Dos homicidas, 97% eram lação, que cresceu de 53,5 anos, em
conhecidos da vítima e 77% eram paren- 1970, para 67,6 anos, em 1996, fazen-
tes. A ação conjunta de ambos os pais do com que o número de idosos passas-
provocou a morte de 12% das crianças. 46
se a ter uma representatividade cada vez
maior na população em geral. 47
Fica evidente que existem preocupações
no sentido de que o processo de identi- Chamam-se ações básicas de saúde as
ficação e investigação dos casos suspei- medidas médico-sanitárias aplicadas de
tos ou confirmados de violência contra forma sistemática, através de recursos
criança e adolescentes seja sistematiza- técnicos de baixa complexidade e a cus-
do. Da mesma for ma, há a preocupação tos reduzidos, acessíveis à grande maio-
quanto à caracterização de sinais e sin- ria da população e que tenham como
tomas que possam conduzir os profissi- objetivos o controle, tratamento e pre-
onais de saúde não só para elucidação venção de um número reduzido de do-
diagnóstica e condutas terapêuticas, mas enças que acometem a um grande nú-
também para o desencadeamento de mero de pessoas, diminuindo significati-
ações que visem defender essas vítimas vamente a morbidade e a mortalidade de-
de novas agressões. correntes destas doenças ou agravos.
O
doenças previníveis por vacina, como a
Brasil, no decorrer das três úl- poliomielite e a varíola, que já foram
timas décadas, passa por um erradicadas, e a melhoria da qualidade
período de grandes transfor- da assistência mater no infantil, com o
mações em ter mos de saúde pública. aumento da oferta de consultas de pré-
Embora ainda muito distante dos padrões natal e a conseqüente redução da mor-
desejados, a implantação das chamadas talidade materna e neonatal. Os progra-
ações básicas de saúde causou impacto mas de controle de hipertensão arterial,
positivo em diversos indicadores da qua- diabetes mellitus, prevenção do câncer
lidade de vida da população brasileira. de mama e do colo uterino, entre outros,
também merecem destaque.
Entre as alterações significativas, desta-
camos a taxa de mortalidade infantil que Mesmo assim, a imagem do Brasil como
já foi reduzida de 65,02 óbitos para cada um país dividido e desigual, ora com a
hum mil nascidos vivos, em 1980, para cara da miséria, ora com o jeito de país
36,1 óbitos em 1998. O aumento da ex- de primeiro mundo, também é vista na
pectativa de vida ao nascer é outra refe- área da saúde. Enquanto todos nós te-
rência que demonstra claramente a mos convivido com problemas semelhan-
melhoria do controle da saúde da popu- tes aos de países desenvolvidos, como as
gar estão as mortes provocadas pelas mento infeliz, casual ou não, e de que
exter nas não é pertinente, uma vez que O perfil epidemiológico traçado pelos
transmite a falsa idéia de que mortes, números de mortes por causas externas
ferimentos e seqüelas são frutos de fa- na infância e adolescência demonstra
talidades e, portanto, inevitáveis. Mas, que os grandes centros urbanos detêm
na verdade, a quase totalidade destes uma freqüência maior do que a média
agravos à saúde é previsível e passível nacional. Merecem destaque as cidades
de ações preventivas e, em muitos ca- de Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São
sos, são frutos de atos de negligência e Paulo e Salvador que vêm se mantendo
violência não identificados. Segundo bem acima das demais.
Minayo:
As mortes por causas externas represen-
tam a dramática situação vivida pela so-
Considerando a dificuldade de estabe-
ciedade em geral e, em particular, a po-
lecer com precisão o caráter de
pulação de adolescentes e adultos jo-
intencionalidade desses eventos, en-
vens, entre 15 e 29 anos, que sofrem
tendemos que tanto os dados como as
37,7% desses óbitos. Cabe ressaltar,
interpretações sobre acidentes e vio-
também, a grande desigualdade existen-
lência comportam sempre certo grau
te quando essas mortes são relaciona-
de imprecisão... 50
das ao sexo das vítimas. Enquanto a re-
Os dados referentes à morbidade por lação entre o sexo feminino e masculino
causas exter nas, com relação à sua é de 1:1,4, para as mortes em geral, nos
intencionalidade, são ainda muito falhos, casos de mortes por causas externas a
e quando são registrados, em geral, re- relação é de 1:4,6.
fletem momentos pontuais em universos
Para que seja possível dimensionar a gra-
restritos a uma instituição de saúde ou a
vidade dessa situação, cabe a seguinte
uma determinada região.
comparação: durante os 13 anos de guer-
ra no Vietnã morreram 55.000 america-
Quando o objetivo maior é o estudo das
nos. No triênio 1996/1998, no Brasil,
causas e intenções destes agravos, os
ocorreram 356.306 mortes por causas
dados acessíveis mais completos são
exter nas, sendo 102.195 em acidentes
encontrados no Sistema de Infor mações
de trânsito e 121.317 homicídios, sen-
de Mortalidade (SIM), disponibilizado
do que 52,2% destas vítimas tinham en-
pelo DATASUS, órgão do Ministério da
tre 15 e 29 anos de idade.
Saúde. 51 As informações catalogadas são
extraídas dos atestados de óbitos, que Embora os acidentes de trânsito não pos-
são documentos de uso obrigatório e de sam ser classificados como atos intenci-
formato único em todo o país, o que per- onais, também não se pode admiti-los
mite a construção de um banco de da- como um fato natural, fortuito ou casu-
dos nacional. al. As vítimas do trânsito são frutos da-
quilo que se poderia chamar de violên- admite-se que para cada caso notificado
cia urbana, uma vez que 90% dos aci- às autoridades competentes existam ain-
dentes são causados por falha humana, da vinte outros que permanecem desco-
sendo 75% relacionados à ingestão de nhecidos, impedindo que se conheça a
bebida alcoólica e/ou à ingestão de dro- exata magnitude do problema. 54
gas ilícitas.
Dentre os sinais físicos podem ser des-
Dados relacionados a inter nações hospi- tacados a presença de marcas e lesões
talares revelam que 62% dos leitos des- (hematomas, queimaduras etc.), aparên-
tinados à traumatologia são ocupados cia suja e descuidada, doenças não tra-
por vítimas de acidentes de trânsito. 52
A tadas, atraso do calendário vacinal etc.
figura do pedestre representa a parte As alterações comportamentais podem
mais frágil em conflitos de trânsito. Por variar do isolamento completo da crian-
isso, em ter mos nacionais, 44% dos ça à tentativa de agradar sempre, da apa-
mortos em acidentes de trânsito são pe- tia à agressividade, da atitude
destres. 53
Quando apenas os grandes infantilizada a brincadeiras sexuais ex-
centros urbanos são analisados, as víti- plícitas, distúrbios do sono, apetite, so-
mas de atropelamento passam para 70% cialização, aprendizado etc.
dos óbitos.
A etiologia e os fatores determinantes do
Embora os dados de mortalidade decor- abuso sexual diferem dos outros tipos
rentes dos diversos agravos classificados de maus-tratos e envolvem questões cul-
como causas exter nas demonstrem uma turais (como alguns casos de incesto) e
tendência à estabilidade, as mortes por de relacionamento (dependência social,
agressão (homicídios) diferem das de- econômica e afetiva entre membros da
mais por apresentar um crescimento de família), o que dificulta a notificação e
434%, no período de 1979 a 1998. perpetua o silêncio.
A
confia e que, muitas vezes, ama: em 80%
lguns sinais físicos ou dos casos o abusador é um dos pais ou
comportamentais, que podem pessoa com algum laço afetivo com a fa-
ser observados por qualquer mília. Pode ocorrer o uso da força e da
pessoa, são indicativos de que a criança violência, mas na maioria dos casos, o
ou o adolescente pode estar sendo mal- agressor é quase sempre um membro da
tratado. Os maus-tratos geralmente são família ou responsável pela criança e o
aplicados de forma constante e com in- abuso se dá sob uma relação de depen-
tensidade crescente. Conseqüentemente, dência afetiva.
A
diz respeito à definição dos direitos fun-
Constituição da República Fe- damentais, da prevenção e das políticas
derativa do Brasil, de 5 de ou- de atendimento. Com relação aos trechos
tubro de 1988, no capítulo VII que determinam as normas e diretrizes
– Da família, da criança, do adolescente em relação à proteção de crianças e
e do idoso –, estabelece no artigo 227: adolescentes contra os maus-tratos,
ECA
E
- o artigo 13, deter mina que “os ca-
sos de suspeita ou confir mação de mbora já tendo completado dez
maus-tratos contra criança ou adoles- anos de existência, muito ain-
cente serão obrigatoriamente comu- da há que ser feito para que
nicados ao Conselho Tutelar da res- seja alcançada a efetiva implantação e
pectiva localidade, sem prejuízo de implementação do ECA, e o mesmo se
outras providências legais”, e deter- torne um verdadeiro instrumento de pro-
mina a obrigação de toda a socieda- teção a todas as crianças e adolescen-
de em comunicar à autoridade com- tes.
petente todos esses casos, indepen-
Um dos grandes obstáculos ao ECA, ain-
dente da certeza da existência ou não
da, é a pouca informação que se tem
dos maus-tratos. 56
sobre o seu teor e abrangência, apesar
- o artigo 245, é mais específico, e das diversas ações desenvolvidas e ou-
estabelece punições àqueles que se tras em desenvolvimento já terem pro-
omitirem: “deixar o médico, profes- movido algumas transformações
sor ou responsável por estabelecimen- marcantes na atenção à criança e ao
to de atenção à saúde e de ensino fun- adolescente, como por exemplo, os pro-
damental, pré-escola ou creche, de gramas de incentivo à educação escolar,
comunicar à autoridade competente à erradicação do trabalho infantil, à pre-
os casos de que tenha conhecimen- venção e atenção à violência doméstica,
to, envolvendo suspeita ou confirma- ao combate à exploração sexual com fins
ção de maus-tratos contra criança ou comerciais, entre outros.
adolescente. Pena – multa de três a
Quanto às medidas sócio-educativas pre-
vinte salários de referência, aplican-
vistas no estatuto e que seriam aplicá-
do-se o dobro em caso de reincidên-
veis a crianças e adolescentes autores
cia”. 57
de infrações, estas têm como finalidade
O terceiro instrumento legal a ser consi- maior a oferta de recursos técnicos ca-
derado é o texto da Convenção sobre os pazes de exercerem controle, vigilância
Direitos da Criança, adotado pela Assem- e instrumentos de correção. No entanto,
bléia Geral das Nações Unidas, em 20 a grande falha que hoje existe, sobretu-
de novembro de 1989. Este texto foi as- do nas grandes cidades, é a falta de ins-
sinado pelo governo brasileiro, em 26 de talações públicas adequadas, o que aca-
janeiro de 1990, e transfor mado no de- ba por transfor mar uma proposta de
creto legislativo n o 28, em 14 de setem- ressocialização em verdadeiras prisões
bro de 1990. 58 e escolas de marginais.
A
Direitos da Criança e do Adolescente,
s mortes por causas exter nas
órgãos normativos e que possuem
avançam sobre a população
representatividade nas esferas federal,
jovem, ano a ano, adquirindo
estadual e municipal, sendo compostos
um caráter endêmico e demonstrando
de for ma paritária entre governo e soci-
uma forte relação com a população de
edade, por meio de entidades represen-
baixo nível sócio-econômico.
tativas. O braço executivo do ECA são
os conselhos tutelares, que são consti- O abuso contra a criança e o adolescen-
tuídos por cidadãos eleitos pela socie- te é um problema universal e deve ser
dade, com um mandato de dois anos, e priorizado tanto em países desenvolvidos
que atuam em áreas previamente defini- quanto naqueles em desenvolvimento.
das, podendo ser todo o município, ou Diversos programas implementados em
partes dele. alguns países demonstraram ser possí-
vel reduzir-se a prevalência de maus-tra-
A Justiça da Infância e da Juventude é a
tos contra crianças e adolescentes, quan-
representação do Poder Judiciário com
do se disponibilizam treinamentos para
atuação específica, tendo competência
a capacitação de pais, antes e após o
para apurar atos infracionais, determinar
nascimento de seus filhos, baseados em
sobre posse e guarda, conhecer, julgar e
ações continuadas de apoio, utilizando-
aplicar penalidades, com base nos arti-
se profissionais de enfer magem e/ou
gos do ECA que se referem às suas atri-
agentes comunitários de saúde. Estes
buições.
programas funcionam melhor se forem
Os direitos básicos das crianças e ado- centrados na criança e no adolescente,
lescentes são muitas vezes violados, focalizados na família e tendo como base
como o acesso à escola, à saúde e ao de sustentação a comunidade. 60
desenvolvimento. As crianças e adoles-
centes são ainda exploradas sexualmen- As maiores iniciativas recomendadas por
N O T A S
1. Abrahão Koogan e Antonio Houaiss, Enciclopédia e dicionário ilustrado , Rio de Janeiro, Edito-
ra Delta, 1995, p. 85.
2. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), Guia de atenção frente aos maus-tratos na infância e adolescência , Rio de Janeiro,
Editora SBP, 2001, p. 11.
3. Lloyd de Mause, “The history of child abuse”, The Journal of Psychohistory , 1998, pp. 216-
236. Artigo em texto contínuo, obtido através da Internet, no site http://www.hugcares.org/
ph/ja/2dex253.htm, não havendo paginação.
4. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit.
5. Lloyd de Mause, “On writing childhood history”, The Journal of Psychohistory , 1980, pp. 135-
170. Artigo em texto contínuo, obtido através da Internet, no site http://www.hugcares.org/
ph/ja/2dex162.htm, não havendo paginação.
6. Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
7. Idem, ibidem.
8. Idem, ibidem.
9. Susan Maree Jeavons, The course of history . Texto contínuo, obtido através da Internet, no
site http://www.suite101.com/article.cfm/child_abuse_and_recovery/18439.
10.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
11.Idem, ibidem.
12.Idem, ibidem.
13.Idem, ibidem.
14.Lloyd de Mause, On writing childhood history , op. cit.
15.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
16.Idem, ibidem.
17.Lloyd de Mause, The history of childhood as the history of child abuse . Texto contínuo, obtido
através da Inter net, no site http://www.primalspirit.com/de Mause31_childabuse.htm, não
havendo paginação.
18.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
19.Susan Maree Jeavons, op. cit.
20.Bíblia: mensagem de Deus, São Paulo, Editora Loyola, 1989, p. 624.
21.Idem, ibidem, p. 627.
22.Idem, ibidem, p. 629.
23.Idem, ibidem, p. 629.
24.Idem, ibidem, p. 630.
25.Idem, ibidem, p. 630.
26.Idem, ibidem, p. 634.
27.Idem, ibidem, p. 634.
28.Idem, ibidem, p. 617.
29.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
30.Idem, ibidem.
31.Eric A. Shelman e Stephen Lazoritz, Out of darkness: the history of Mary Ellen Wilson, Editora
Dolphin Moon. Este texto é derivado da obra completa e foi elaborado com base em informa-
ções contidas no site http://www.dolphinmoon.com.
32.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p.11.
33.Idem, ibidem, p. 12.
34.Idem, ibidem, p. 12.
35.Idem, ibidem, p. 12.
36.Idem, ibidem, p. 12.
37.Idem, ibidem, p. 13.
38.Abrapia. Maus-tratos contra crianças e adolescentes: proteção e prevenção. Guia de orienta-
ção para profissionais de saúde , Petrópolis, 2a ed., Editora Autores & Agentes & Associados,
1997, p. 11.
39.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p. 13.
40.World Health Organization, Violence and injury prevention . Texto contínuo, obtido através da
Internet, no site http://www.who.int/eha/pvi/infokit/measure.htm.
41.S.J. Kharasch et all., “Violence-related injuries in a pediatric emergency department”, Pediatric
Emergence Care , abr. 1997, p. 95. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
42.B. Bennet e R. Gamelli, “Profile of an abuse burned child”, J. Burn Care Rehabilitation , jan.-
fev. 1998, p. 88. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
43.C. Jenny et all., Analysis of missed cases of abusive head trauma , Jama, fev. 1999, p. 621.
Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
44.Christian, C.W. et all., “Pediatric injury resulting from family violence”, Pediatrics , fev. 1997,
p. 99. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
45.R.M. Youssef, M.S Attia e M.I. Kamel, “Children experiencing violence ”, Prevalence and
determinants of corporal punishment in school : child abuse and neglect, out. 1998, p. 975.
Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
46.K.A. Collins e C.A. Nichols, “ A decade of pediatric homicide : a retrospective study at the
Medical University of South Carolina”, Am J. Foresinc Med. Pathology, jun. 1999, p. 169.
47.Aramis Antonio Lopes Neto, Acidentes ou violência? Quais as verdades sobre as mortes por
causas externas? Rio de Janeiro, mimeografado, 2000, p. 1.
48.Aurélio Buarque Holanda, Novo Aurélio, século XXI : o dicionário de língua portuguesa , Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999, p. 33.
49.Abrahão Koogan e Antonio Houaiss, op. cit., p. 881.
50.Maria Cecília de Souza Minayo, Termômetro social, São Paulo, Médicos-HC-FMUSP, ano II, v. 8,
mai.-jun., 1999, p. 68.
51.Datasus / Ministério da Saúde, Sistema de Informações de mortalidade . Texto obtido através
da Internet, no site http://www.datasus.gov.br/datasus.htm.
52.Ministério dos Transportes, Dados gerais sobre acidentes de trânsito no Brasil . Texto obtido
através da Internet, no site http://www.transportes.gov.br/pare/dgerais.htm.
53.Idem, ibidem.
54.Abrapia, op. cit., p. 5.
55.Nova Constituição do Brasil . Rio de Janeiro, Gráfica Auriverde Ltda, p. 130.
56.Estatuto da Criança e do Adolescente , lei federal n. 8069, de 13/7/1990, Série Legislação
Brasileira, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 3.
57.Idem, ibidem, p. 51.
58.Idem. Ibidem, p. 153.
59.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p. 7.
60.World Health Organization, Who recognizes child abuse as a major public health problem ,
Press Releases, abr. 1999, p. 1. Texto contínuo, obtido através da Inter net no site
http://www.who.int/inf.
A B S T R A C T
In his text the author shows the situations of violence and abuses against children and young
persons practiced mainly by their parents, giving emphasis also to the evolution of health and
the increase of violence in Brazil.
Márcia de Paiva
Doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio
Crime e Castigo
As civilizadas práticas jurídicas
de uma Idade Moderna
A
mais fatos. É tema que se presta a múlti-
passagem acima, apesar de ter plas interpretações e combinações, per-
sido escrita há uns trinta anos, mitindo sua localização – tempo e espa-
continua atual. Não vai faltar ço – em qualquer época ou lugar. T rata-
quem aponte uma série de trabalhos e se, portanto, de um tema incomensurá-
textos escritos sobre as inúmeras guer- vel. Apesar de todas as épocas partilha-
ras e revoluções e toda a vertente rem de algum tipo de violência, seja ela
falar sobre um outro mundo, um mundo modificou em maior ou menor grau, se-
que achava que a Terra era o centro do particular, seja qual for a sua denomi-
universo e que, sobretudo, pensava, agia nação, e representa, de fato, um perío-
Esse mundo, que se assustou com os nem seria possível conquistar tamanho
se as descrições de uma terra “sem fé, tos deles, e assim vai crescendo o ódio
sem lei e sem rei”, onde imperava a de- cada vez mais, e ficam inimigos verda-
sordem e grassava a selvageria. deiros perpetuamente”. 5
Gandavo, o autor do tratado acima cita- Para Gandavo, a guerra parece ser um
do, não fez concessão sobre o caráter estado constante entre os índios, inclu-
dos nativos: “... são estes índios muito sive, aparecendo como o fator que per-
desumanos e cruéis, não se movem por mitiu a conquista portuguesa. Essa opi-
nenhuma piedade. Vivem como brutos nião é compartilhada por outros autores.
animais sem ordem nem concerto de Jean de Léry, discípulo de Calvino, que
homens, são muito desonestos e dados veio ao Rio de Janeiro participar do pro-
a sensualidade e entregam-se a vícios jeto França Antártica, resume categori-
como não houvera razão de humanos”. 4 camente o cotidiano dos “selvagens”:
“ ... a ocupação ordinária de todos, gran-
Já se disse que houve uma mudança de des e pequenos, é a caça e a guerra, [...],
perspectiva em relação aos índios, que mas também se ocupam em matar e co-
de puros e ingênuos, tais como apare- mer gente”. 6
cem na carta de Caminha, passaram a
O jesuíta, padre Manuel da Nóbrega,
traidores no momento em que demons-
emitiu um juízo não menos severo quan-
traram resistência em relação à apropri-
to ao modo de vida e ao caráter dos ín-
ação das terras ou à escravização. Não é
dios: “são cães em comerem e matarem,
o caso de entrar nessa discussão agora.
e são porcos nos vícios e na maneira de
E, mesmo porque, essa questão é um
se tratarem [...] são tão cruéis e bestiais
pouco mais facetada. Vai ser criada uma
que assim que matam aos que nunca lhes
distinção entre índios mansos e bravos,
fizeram mal, clérigos, frades e mulheres
ou seja, os propensos a se sujeitarem
de tal parecer, que os brutos animais se
ou, pelo menos, a se adaptarem a uma
contentariam deles lhes não fariam
nova forma de vida e os indomesticáveis.
mal”. 7
O bárbaro/selvagem que começa a sur-
gir nessa época é, portanto, um ser sem No entanto, práticas de igual violência
polimento, rude, violento movido a vin- eram moeda corrente entre os civiliza-
gança, que promove guerras sem objeti- dos. Não é o caso de medir quem era o
vos ou por motivos fúteis, uma vez que mais violento, nem o de justificar uma
há terra para todos: “estes índios são violência pela outra. O que interessa é
muito belicosos e tem sempre grandes como ações de sinais semelhantes aca-
guerras uns contra os outros, nunca se bam por parecer completamente opos-
acha neles a paz, nem é possível haver tas, sendo que apenas uma é válida.
entre eles amizade porque umas nações O reconhecimento de uma postura tão
pelejam contra outras e matam-se mui- bárbara quanto a dos selvagens não é
povo , demonstrou que não é preciso ir gem. Pode-se procurar entender o que
tão longe para dar sentido aos conflitos era percebido como um ato de pura e
que envolvem religiões diferentes. No simples violência como os europeus viam
ensaio Ritos da violência , a historiadora os atos dos índios ou como Léry vê os
americana, após uma minuciosa análise levantes religiosos – mesmo que fizes-
dos levantes religiosos da França moder- sem parte de determinados costumes ou
na, traçando seus objetivos, as fontes fossem atos legitimados por uma cren-
que os legitimavam, as ocasiões em que ça. E deve-se compreender a aceitação
ocorriam, o tipo de pessoas que partici- da violência de certas práticas judiciais,
pavam e a organização existente que os a partir da sua inserção na lógica formal
estruturavam, descarta o seu caráter ex- das monarquias nacionais.
cepcional. 9
Para Davis, o conflito é uma
De certa forma, muito da violência que
per manente na vida social, embora as
circula naquele tempo se deve a práti-
for mas e o impacto da violência sejam
cas institucionalizadas, se pensarmos em
variáveis e a violência religiosa apresen-
todas as formas de punições exercidas
ta-se mais intensa por estar intimamen-
pela legislação eclesiástica e civil da
te relacionada com valores fundamentais
época. Além das cinematográficas foguei-
e a autodefinição de uma comunidade.
ras da Inquisição, certos métodos do sis-
uma conclusão apontada por esta auto- utilizando a tortura e os suplícios como
ra: a saber, aquela que situa a violência práticas legais. A tipologia das penas de-
dos levantes religiosos no seu tempo, lu- monstra por si a violência desse siste-
gar e for ma. Tanto a violência católica ma: a roda, o pelourinho, a forca, o ca-
vida do culto praticado por aquelas igre- essas práticas devem ser vistas dentro
jas, isto é, o ritual dos levantes estava de um conjunto de valores sociais e po-
que temos acesso são formas narradas sidade, o tempo dos sofrimentos com
por um outro tempo, numa outra lingua- a gravidade do crime, a pessoa do cri-
João I (1385-1433), foi iniciada uma re- feita em nome de Deus e do rei.
for ma legislativa que tinha por finalida- Cabia, portanto, ao rei manter a paz e a
de a sistematização das diversas leis justiça ou ainda, em outras palavras, o
existentes no reino. Era preciso harmo- direito de guerrear e de punir. Uma pas-
nizar os domínios entre os direitos sagem das Ordenações Filipinas
canônico, romano e nacional. Essa refor- exemplifica a posição do rei: “O rei é a
ma só foi concluída em 1446, ficando o lei animada sobre a terra e pode fazer a
corpo legislativo conhecido como Orde- lei e revogá-la quando vir que convém
nações Afonsinas, em homenagem à fazer assim”. A justiça, grosso modo , se
maioridade do rei Afonso V. restringia ao reconhecimento dos direi-
tos e aos castigos e punições; era um
Mais tarde, d. Manuel, empolgado com a
poder absoluto que podia dispor da vida
chegada da imprensa em Portugal e
e da morte, legado do direito romano.2 0
“exasperado” com a confusão de códi-
gos e coleção de leis posteriores às Or- As penas deveriam refletir o tamanho dos
denações Afonsinas , ordenou a elabora- delitos. Crime e castigo se ligavam pela
ção de uma nova legislação. Em 1514, forma e se aproximavam na atrocidade.
foi publicada a edição completa das Or- Essa idéia é partilhada pela Igreja, como
denações Manuelinas , mantendo a lógi- exemplifica essa frase de um manual da
c a d a a n t e r i o r, e m c i n c o v o l u m e s Inquisição: “aquele que violenta a lei
temáticos. No período da unificação dos será violentado por ela”. Para acompa-
reinos de Portugal e Espanha foi ela- nhar essa concepção foi criado um vas-
borado uma nova coleção, Ordena- to repertório de suplícios que ia dos açoi-
ções Filipinas , entrando em vigor no tes, passava pelo esquartejamento (an-
tes ou depois da morte) até as inúmeras suas punições é narrado por um solda-
for mas à morte, dando origem à expres- do holandês que esteve no Brasil, no pe-
são “mil-mortes”. Podia-se “morrer por ríodo da invasão, e que enumera os cas-
isso” ou “por elo” (uma espécie de mor- tigos que vigoravam a bordo do navio Es-
te civil, o réu tornava-se infame, perdia perança :
os bens e o status, no caso de nobre,
a) Quando alguém blasfema, ou usa de
podendo ser degredado); “morrer por
grosseria linguagem indecorosa, é
isso morte natural” (envenenado, por
batido várias vezes de encontro ao
instrumentos de ferro ou fogo); “morte
mastro grande, de sorte não poder
natural na forca ou pelourinho” etc. 2 1
se sentar sem dor.
tulo estão relacionadas profissões e no- nheiro saca, para outro, de punhal,
bres que não seriam penalizados com estilete ou faca, toma-se a dita arma
açoites, degredo, por razão de privilégio e com ela prega-se-lhe a mão no
ou linhagem: “os escudeiros dos prela- mastro grande, de modo que para
dos e dos fidalgos, os escudeiros a cava- livrá-la, tem de lascá-la.
lo, os moços da estribeira do rei ou da
d) O salto de verga consiste no seguin-
rainha, os príncipes e os infantes, os du-
te: ... ata-se o condenado com uma
ques, os marqueses, os prelados, os con-
roda em volta do corpo, pela qual é
des ou qualquer pessoa do Conselho
içado, mediante a roldana, à ponta
Real, e os pajens dos fidalgos”.
da grande verga; chegado àquela
das mantinham o mesmo rigor das utili- rias vezes, e, se o padecente não
tação real que condenava práticas como pode suceder-lhe grave dano corpo-
nome de Deus e do direito, e por gente. Fica, evidente a gradação dos cas-
fim em nome da suprema autorida- tigos que aumentam conforme a gravi-
de do país, todos os oficiais e tripu- dade do delito; o sofrimento físico é
lantes lhe batem com uma corda estendido até a “pena última”, até a morte.
grossa, de forma que, por algum
Para além do horror das punições que
tempo, não se pode sentar.
esse ou qualquer outro caso possa de-
e) O severíssimo castigo de ser passa- m o n s t r a r, i n t e r e s s a r e g i s t r a r q u e a
do por baixo da quilha do navio, é hierarquização e estruturação das penas
assim posto em prática: amarram ao exploravam a resistência física à tortura
condenado uma longa corda, sus- e a capacidade de suportar a dor. O es-
pendendo-lhe ao corpo pesos de al- petáculo neste caso não se restringia à
guns quintais; prendem-lhe os bra- exibição dos castigos impostos; convida-
ços, com o chapéu embebido em va-se “todos os oficiais e tripulantes”
azeite diante da boca, para que pos- (item d) para participar da punição em
sa respirar debaixo d’água; mergu- nome de Deus, do direito e da suprema
lham-no assim no mar até a profun- autoridade do país.
didade de várias braças, e fazem-no
Nem todos que viveram aquela época tra-
passar por diversas vezes, por bai-
tavam daqueles métodos com tanta na-
xo da quilha do navio, conforme a
turalidade. Michel de Montaigne espan-
gravidade do delito. Este castigo é
tava-se com a crueldade dos castigos e
o que mais aproxima da pena últi-
com a violência de seu tempo, narrando
ma; se o padecente consegue man-
em seus Ensaios , no final do século XVI,
ter a respiração, muito bem; do con-
uma profusão de cenas de horror. Em
trário, perece.
Da crueldade , questiona os suplícios e
f) Finalmente, colocam um poste fu- os tormentos dos “atos de justiça”:
rado junto ao mastro e ali é estran-
Mal podia eu conceber, antes de o ver,
gulado o condenado, sendo o seu
que existem pessoas capazes de ma-
corpo lançado ao mar para repasto
tar pelo simples prazer de matar; pes-
dos peixes. 2 2
soas que esquartejam o próximo, in-
Outro tipo de punição consistia em aban- ventam engenhosos e desconhecidos
donar o condenado em lugar desabitado suplícios e novos gêneros de assassí-
sem recursos. A crueldade dos castigos nios, sem ser movidos nem pelo ódio
não é novidade, tampouco a naturalida- nem pela cobiça, no intuito único de
de com que é enumerada. Os castigos assistir ao espetáculo dos gestos, das
se prestavam para manter a disciplina contorções lamentáveis, dos gemidos,
interna, transformando, portanto, os con- dos gritos angustiados de um homem
denados em exemplos da autoridade vi- que agoniza entre torturas. 2 3
Em seu conhecido ensaio “Dos canibais”, mecânica do poder que se queria abso-
mais que relativizar a idéia da selvage- luto, que precisava se afirmar através de
ria dos índios brasileiros, como os pin- manifestações de força física. Ou ainda,
tavam na Europa, Montaigne atacava a de acordo com Foucault: “um poder que
violência da sua sociedade e a perversi- se afirma como poder ar mado, e cujas
dade da estrutura social e política. A fi- funções de ordem não são inteiramente
gura dos canibais é recurso para o esta- desligadas das funções de guerra; de um
belecimento de uma reflexão sobre as poder que faz valer as regras e as obri-
práticas de uma sociedade que não en- gações como laços pessoais cuja ruptu-
xerga a sua própria crueldade, devida- ra constitui uma ofensa e exige uma vin-
mente institucionalizada: “não me pare- gança...” 2 5
ce excessivo julgar bárbaros tais atos de
Muito da idéia de vingança tem origem
crueldade, mas que o fato de condenar
na própria concepção judaico-cristã de
tais defeitos não nos leve à cegueira acer-
um deus vingador, de uma ira divina.
ca dos nossos”. 2 4
Blasfemar, por exemplo, significava um
Mas que poder era esse que precisava desvio contra o qual a Igreja e o Estado
lançar mão da tortura e do suplício? deviam, juntos, proteger a sociedade.
Foucault alertou para a função jurídico- Temia-se uma possível vingança de
política do suplício como pena justa, o Deus.2 6 Era preciso punir os
qual seria um cerimonial para reconstruir blasfemadores para que não atraíssem
a soberania lesada por um instante. Um sobre o mundo fome, pestes, tempesta-
crime não estava referido apenas à sua des (no caso dos navios) e tremores de
vítima imediata. Atacava diretamente o terra. O medo de uma punição divina
soberano ao desrespeitar a sua lei, tra- deveria ser equivalente ao medo provo-
zendo algum prejuízo ao reino, seja na cado pelo monarca através da aplicação
for ma de desordens, de mau exemplo: de suas penas.
“em toda a infração há um crimem
Na segunda metade do século XVIII, épo-
magestatis , e no menor dos criminosos
ca das Luzes, iniciou-se um processo de
um pequeno regicida”. O ritual das puni-
rejeição dos suplícios aplicados como
ções públicas teria como finalidade es-
pena justa. Filósofos e juristas manifes-
tabelecer a dissimetria entre o súdito que
taram repúdio contra aquelas formas de
ousou violar a lei e o soberano todo po-
punição. Denunciaram a barbárie e a
deroso em sua força. O castigo seria,
atrocidade de tais práticas, estabelecen-
portanto, um ritual político apresentado
do uma associação direta entre o uso
como uma “vingança pessoal e pública”.
daqueles métodos com uma “idade das
A proximidade entre o crime e o castigo, trevas”. Essa mudança pode ser sentida
na forma da atrocidade, fazia parte da no artigo Suplício, escrito por Louis de
Norbert Elias, em seu clássico O Proces- ça, uma vez que no momento anterior
so civilizador, apresentou uma socieda- não havia poder social punitivo. Na soci-
pria estrutura social. Elias percorre um lio da força física, criavam-se espaços
ca política e econômica. Nos espaços metidas a regras e leis cada vez mais ri-
civilizador . O ser civilizado ainda estava deram e tiveram consciência desse arti-
sendo construído, ainda estava em pro- fício. O conhecimento de si se verifica-
cesso. va na “forma refletida de sua relação com
os outros, com todos os outros”:
Enfim, essa sociedade que se depara
com o novo mundo não é uma for ma Esse mundo tão grande, que alguns am-
questiona e que ainda não se conhece. mos mirar para nos conhecer mos de
isto é, o que se escrevia se escrevia so- juízos, opiniões, leis ensina-nos a apre-
bre si, e não sobre o objeto observável. ciar sadiamente os nossos, a reconhe-
de um sistema penal ao passo que a vio- vez que não estamos tão melhores as-
lência selvagem não estava gravada em sim. Do ponto onde estamos, podemos
lei e nem autorizada em papel. apenas perguntar se aquele processo ini-
Tratar da violência de um passado já tão ciado em uma Idade Média já foi conclu-
distante, sentindo um certo horror por ído. Será que já somos, realmente, civi-
aquelas práticas não nos consola, uma lizados?
N O T A S
1. Hannah Arendt, Da violência , Brasília, UnB, 1970.
2. Francisco José Calazans Falcon, “Tempos Modernos: a cultura humanista”, Tempos moder-
nos, ensaios de história cultural , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 23.
3. Pero Magalhães Gandavo, Tratado da província do Brasil , s.l., Instituto Nacional do Livro/
MEC, 1965, pp.177-179.
4. Idem, ibdem, p. 207.
5. Idem, ibdem, pp. 188-189.
6. Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil , Belo Horizonte, Itatiaia/ São Paulo, Edusp, 1980, p.
227.
7. Serafim Leite, Novas cartas jesuítas , pp. 156-2328.
8. Jean de Léry, op.cit. (Grifo nosso).
9. Cf. Natalie Zemon Davis, “Ritos da violência”, Cultura dos povos, sociedade e cultura no
início da França moderna , (Coleção Oficina da História), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990,
pp. 129-156.
10.Idem, ibdem, p. 156.
11.Michel Foucault, Vigiar e punir , Petrópolis, Vozes, 1997, p. 31.
12.Aqui estou estabelecendo uma relação direta com o momento anterior da própria igreja cató-
lica. Não é o caso de historiar as formas de torturas e suplícios utilizadas como penas que
sempre existiram. Basta mencionar a lei de Talião e a própria maneira que Cristo foi punido
pelos romanos. Convém lembrar que a legislação civil do início da Época Moderna tem muito
do direito romano.
13.Durante os interrogatórios, no duelo da quaestio , para arrancar a “verdade” eram utilizados
um arsenal de suplícios, chamados de armaria: quaestio per tormenta. Tor mentum designava
o instrumento de tortura: a cruz, o flagellum, a furca, numellae, as ingullae, a venatio etc.
Corrado Bologna, “Tortura” em Ruggiero Romano (dir.), Enciclopédia–Política, Lisboa, Einaudi/
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, v. 22, p. 354.
14.Cf. “Tortura”, Enciclopédia Einaudi, op. cit., v. 22.
15.Francisco Bethencourt, História das inquisições : Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX),
A B S T R A C T
This article reviews the penal system’s methods in a transitioning society not as moder n as
subsequently was classified. The Modern Age – in spite of all its cultural transformations, new
for ms of political, economic and social relations – was characterised by the use of extremely
violent punitive methods. Crime and punishment were both sides of the same coin, united by
atrocity.
Os Sindicatos
na Idade da Pedra
I
ndependente das definições possí- “levante” foram utilizadas para se refe-
veis, o âmbito da violência não pode rir à greve, mesmo em jornais simpáti-
prescindir de incluir o confronto fí- cos ao movimento. O jornal governista
sico em situações não-lúdicas, como A Federação condenava a greve e clama-
ocorreu em março de 1917, durante a va por punição àqueles que ultrajaram
greve de trabalhadores das pedreiras e “a nossa sociedade até então virgem de
do calçamento (canteiros e calceteiros) semelhantes brutalidades”. 1
em Porto Alegre. Saturnino Sandoval ten-
tava convencer uma turma de calceteiros Porto Alegre não era “virgem” de violên-
a deixar o trabalho, quando decidiu ca- cias, pois padeiros eram famosos por
cetear Antonio Fabrete, xingando-o de ataques a fura-greves, espancamentos de
“carneiro sem-vergonha”. Sandoval fugiu homens e animais, tiroteios, incêndios
e, mais tarde, um grupo estimado em de carroças, explosões de for nos, enve-
mais de cem trabalhadores atacou a tur- nenamento de farinha etc., e, em janei-
ma de trinta calceteiros, com um saldo ro de 1917, tecelões grevistas cobriram
de vários feridos e quatro baleados, um de cacetadas o mestre-das-oficinas. Mas
dos quais morreu. O homicídio foi des- esta era a primeira vez, salvo engano,
taque na imprensa, e expressões como em que ocorria um homicídio em confli-
“movimento revolucionário”, “complô”, tos de trabalho. A greve dos calceteiros
Rio Grande do Sul: trabalhadores contra- dade algumas vezes invisíveis ao seu
tados na Argentina souberam que ocu- controle. Os três fenômenos ocorrem em
pariam as vagas de recentes demitidos Porto Alegre (1916 e 1917), Cotia e Ri-
por ocasião de uma greve, “e partiram beirão Pires (São Paulo), em Montevidéu
no mesmo vapor que os trouxera”. 6
As (1901) e na Argentina, em Tandil (1908-
migrações do Velho para o Novo Mundo, 1909), Los Pinos e Balcarce (1913). Al-
comuns na virada do século, assumiri- guns calceteiros habitavam em Porto Ale-
am um diferente sentido para os traba- gre, faziam refeições e sesteavam em um
lhadores em pedra: ao invés de simples- acampamento na zona urbana. Também
mente optarem pela inserção no mer- em Pelotas havia “pequena[s] casa[s] de
cado de trabalho brasileiro ou portu- madeira” para os trabalhadores das pe-
guês, por exemplo, o deslocamento dreiras de Capão do Leão. Na Colônia
transoceânico resultaria no alargamento Africana, em Porto Alegre, diversos tra-
de uma rede de obtenção de mão-de-obra balhadores em pedra foram detidos em
em nível global. Dizendo-se de outra for- batidas nos restaurantes durante a gre-
ma, a percepção do mercado de traba- ve de março de 1917, tendo 26 deles,
lho por canteiros e calceteiros não era entre grevistas e não-grevistas, declara-
local ou nacional, mas constituída por do morar no bairro. Em uma única casa
um espaço amplo e descontínuo, envol- foram presas 17 pessoas, e outras 15 o
vendo diversas cidades da América do seriam em um restaurante do bairro. O
Sul e mesmo da Península Ibérica. As- depoimento de José Antas confirma a
sim, ao contrário de observações gené- convivência em “restaurantes” (possivel-
ricas sobre a mobilidade geográfica ser mente não eram mais do que bodegas
um fator de retardamento no desenvol- com comida), pois, embora trabalhasse
vimento da consciência de classe, o sú- “por conta própria” em uma pedreira da
bito aumento na demanda de mão-de- Colônia Africana, conhecia “apenas de
obra em determinada região gerava uma vista” os líderes da greve. Além dos res-
situação propícia para a rápida organi- taurantes, era na Colônia Africana que
zação dos trabalhadores recém-chega- os trabalhadores mantinham o clube de
dos: de um lado, chegavam “sem dinhei- futebol e, segundo corria, escondiam
ro, sem relações” e, de outro, comparti- “ar mas Winchester de 15 tiros e três
lhavam rapidamente da convivência não bombas de dinamite” durante a greve. 7
restrita apenas ao local de trabalho. Ao A estreita convivência era acentuada pela
for necer habitações individuais ou cole- tentativa de manter incólumes certos la-
tivas, prover alimentação também cole- ços frente à constante migração, levan-
tiva ou remunerando em vales só do parentes a tomarem os mesmos ofíci-
descontáveis em deter minados lugares, os e rumos. Ao longo do processo (ver
o patronato criava espaços de sociabili- notas) são citados os irmãos que traba-
lhavam e moravam juntos, Félix e vemente dos primeiros dois fatores para
Dorothéu Rivera; Feliciano, José e Fran- nos determos mais detalhadamente no
cisco Sales; Luís e Fer nandes Peralvo; terceiro.
Jaime e Daniel Quintas. Anos antes, a
reunião para tor nar uma seção sindical É claro que muitos dos conflitos de tra-
entre canteiros do subúrbio contou com balho envolviam a imposição ao
a presença de Gustavo e Guilher me patronato do closed shop . A greve de
Crüne, Sílvio, Emenegildo e Júlio Soligo, março de 1917 em Porto Alegre também
além de Luís e João Maestero. O sobre- o foi, quando a primeira reivindicação
nome de quatro fura-greves de Ribeirão era a demissão do capataz Rivera e seu
Pires, em 1913, era Muselli, e de dois irmão. Já em setembro do ano anterior,
grevistas em Capão do Leão, em 1925, as categorias venceram greve quando
eram Fracassi. Por não comparecerem ao reivindicavam, entre outras coisas, a
trabalho no 1 de maio de 1908, no Rio
o
readmissão de demitidos e “não poder a
de Janeiro, o canteiro M. Barbosa e seu empresa despedir operário sem motivos
irmão foram demitidos. Também no Uru- justificado”. Chega a ser cansativo
guai se verifica esse fenômeno: em La inventariar os conflitos de trabalho rela-
Paz trabalhava o capataz Domingo cionados à imposição do closed shop : a
Galichi junto com dois filhos, o mesmo Sociedade Regeneradora de Canteiros de
ocorrendo em Piriápolis, com respeito a Mútuo Melhoramento de Montevidéu o
Batista Padiñoli e seu filho. 8 exigia do patronato, já em 1895. O
descumprimento da medida pelo propri-
De um lado, a concentração rápida de etário das “canteiras El Minuano” (Uru-
trabalhadores especializados e, de outro, guai) deflagrou uma greve (derrotada) de
a migração constante dissolvendo laços oito meses. Na Argentina, a greve de
solidários: como constituir um sindica- 1908-1909 em Tandil obteve a reivindi-
to? Por padrão, os sindicatos das cate- cação, que foi violada pelo patronato em
gorias se empenhavam no controle da 1913. 9 Mais interessantes que as reivin-
oferta de mão-de-obra nos locais ( closed dicações são as eventuais atitudes do
shop ), possível na confluência de três patronato, que cria associações sob seu
fatores: anuência patronal, rede de in- controle. Um dos temas que os militan-
for mações semelhante à dos “agentes” tes argentinos enfrentaram no congres-
e disciplina. A estratégia racional de ad- so de unificação de centrais sindicais em
ministração da violência em meio a con- 1914 era o estreito contato que a Socie-
flitos de trabalho se relaciona à discipli- dade de Canteiros de Montevidéu manti-
na sindical que, entre canteiros e nha com a Sociedade de Canteiros de
calceteiros, era mais provável se bem Tandil, organização acusada de patronal
manejada a migração. T rataremos bre- e rival da União Operária das Pedreiras
de Tandil. Anos mais tarde, em Tandil, o O patronato se interessa por criar asso-
patronato criaria, com o mesmo objeti- ciações e os sindicatos são capazes de
vo, uma certa Sociedade de Trabalho Li- impor suas condições quando ambos são
vre. 10
Mesmo que o sindicato não tives- afetados – e pretendem interferir – na
se orientação patronal, havia um motivo oferta de mão-de-obra nos locais. Ambas
para os patrões reconhecerem o closed associações concorrem, na verdade, com
shop : o “agente” é pago para obter o os “agentes” recrutadores, mas só o po-
maior número de migrantes, mas não se dem fazer se mantêm redes de relações
responsabiliza pela qualidade do traba- com o conjunto de associados (ou “agen-
lho efetuado. Ignora-se a existência de tes”) em outros locais. No que tange aos
rituais instaurando a condição de “ofici- sindicatos, o trabalhador migrante deve-
al” e que, portanto, poderiam dar algu- ria levar consigo um certificado de asso-
ma segurança ao patronato sobre a qua- ciação ao sindicato da cidade de origem.
lidade do trabalho efetuado, mas, apa- A prática transcendia os limites continen-
rentemente, só os oficiais eram sindica- tais da América do Sul, como se vê pe-
lizados em Porto Alegre, o que José los contatos entre os canteiros do Porto,
Fer nandes considerava natural: “sendo Matozinhos e Leça (em Portugal) e os
servente, não é sócio de sociedade algu- colegas do Rio: “aqueles que compare-
ma”. No caso da Empresa do Calçamen- çam sem o competente certificado, pe-
to em Porto Alegre, que responderia pe- dimos não reconhecê-los como operári-
rante o poder público pela qualidade dos os, criando-lhes embaraços para que sin-
paralelepípedos e do calçamento, era tam a necessidade de agremiar-se.” O
importante confiar ao sindicato parte do “passe” ou “passo” deve ser bastante se-
controle sobre a qualidade do trabalho. melhante nos vários lugares, a julgar pela
Foi o que ocorreu no caso dos 11 quase coincidência dos textos e das re-
calceteiros inicialmente demitidos em ferências: “Os saudamos como de cos-
setembro de 1916, quando foi acorda- tume, e recomendamos os portadores
do, depois da greve, que, se o sindicato [dos certificados] pelo comportamento a
avaliasse que de fato produziam pouco respeito do movimento. Pedimos que
(como dizia a empresa), concordaria com lhes seja dada a proteção que merecem,
a redução salarial. Também na Argenti- assim como faria este comitê com os que
na, uma greve em La Plata durante o ano se apresentarem da mesma forma.” 12
de 1919 reivindicava a co-participação
do sindicato em avaliar a qualidade do Ao apresentar brevemente os dois fato-
trabalho executado, assegurando ainda res (anuência patronal e rede de infor-
que este sindicato reconheceria como mações semelhante a dos “agentes”) já
empregador apenas o patrão contra o indiquei alguns elementos do terceiro, a
qual, naquele momento, se opunha. 11 disciplina sindical. No caso do closed
ba pela manhã, fugira após o ataque sem mos cumprir a tabela [de salários] em-
voltar à sede do sindicato, e pela tarde bora para isso seja preciso empregar a
soubera da morte do calceteiro Luís da violência.” No decorrer dessa mesma gre-
Silva, quando encontrou um dos Sales. ve houve alguns “traidores” (expressão
Este, ao contrário de uma previsível vin- bastante freqüente) que logo ficaram
gança, teria compreendido a “sem vontade de trabalhar, tal o susto
impessoalidade do ataque violento pela que levaram”. 18
manhã, advertindo o agressor: “é melhor
você não trabalhar porque você pode to- Mas nem sempre o confronto físico é uti-
mar uma camaçada de pau (...) [do se- lizado como punição aos fura-greves,
cretário do sindicato, que estava] escon- porque os próprios sindicatos criam mei-
dido e armado de pau com o fim de dar os de escar mentar os reticentes. Mais
no depoente”. 17 vergonhoso do que não entrar em greve
parecia ser fazê-lo após tê-la aprovado
Após o decreto de uma greve ou boicote em assembléia. Uma extensa nota pro-
a uma pedreira, os refratários à determi- veniente de La Paz (Uruguai),
nação do sindicato podem sofrer conse- pretensamente destinada a “justificar” a
qüências, que, se chegam ao confronto atitude tomada por três fura-greves, pro-
físico, são melhor documentadas. Em cura antes puni-los pela ridicularização
agosto de 1901, ocorreu uma “batalha e difamação. O primeiro, Francisco
campal” entre os operários da “canteira Bataglioti, era acusado de ser um can-
de Teja” (que produzia pedras para a teiro incompetente, pois era “incapaz de
construção do porto de Montevidéu) e a ganhar a vida”, a não ser se fazendo de
polícia, que protegia fura-greves. Quan- “rufião dos patrões”. Já a noiva de
do da greve generalizada de 1913 em Henrique Trapolini, além de surrá-lo com
Puerto Sauce (Colônia, Uruguai), um po- freqüência, tomava-lhe todo o dinheiro
licial a cavalo quis prender um canteiro que ganhava. Continua a nota: “... quan-
grevista. O filho de um dos envolvidos do começou a greve, voltou para casa, e
contou que “um paralelepípedo se encon- a mulher, ignorando o que se passava, e
trava perto, e quando o outro [policial] sem per guntar-lhe, lhe deu uma sova
pegou o revólver, meu pai arremessou a soberana, prometendo-lhe outra no dia
pedra e afundou-lhe o osso parietal”. seguinte se não fosse trabalhar. Isto é o
Nesses ataques a fura-greves, diversas que dizem as más línguas”. Se Trapolini
vezes são invocadas expressões envol- já se submetia (suprema infâmia!) à sua
vendo a honra do ofício. Em abril de noiva, o que dizer de Amadeu Macchi,
1909, os canteiros do Rio de Janeiro rei- “que em tempo normal se vê condenado
vindicaram aumento salarial, permanentemente a cozinhar talharim”,
conclamando: “chega de covardia! Faça- prato preferido de sua esposa que, du-
rante a greve, fê-lo ainda lavar os pra- recusa ao consumo, o uso do boicote di-
tos. Cansado da tarefa, Amadeu preferiu zia normalmente respeito à proibição de
voltar ao trabalho. 19
Os dois últimos se empregarem trabalhadores nas pedrei-
exemplos deixam explícito o teor da ras acometidas pela campanha. A primei-
ridicularização corrente entre os traba- ra forma também existiu, como quando
lhadores em pedra, que é o da falta de empresas de calçamento de Buenos Aires
hombridade, mais freqüentemente refe- foram avisadas pelo sindicato local que
rida pelo termo “carneiro”. Sabe-se que deveriam recusar as pedras do Capão do
o termo era usado no Rio de Janeiro e Leão, no Rio Grande do Sul, onde havia
em Porto Alegre, mas o Uruguai é fértil greve. Os boicotes a empregadores tam-
em expressões derivadas, desde o ver- bém poderiam se revestir de confronto
bo carnerear , até outros substantivos e físico, quanto mais porque os trabalha-
verbos que ampliam a ridicularização: dores admitidos certamente não foram
pastorear , borrego , lanudo , guanpudo , orientados a fazê-lo pela associação sin-
aos quais se fazem ameaças de “romper- dical. Assim, os canteiros de Maldonado
lhes os cor nos” e pô-los em “remate pú- (Uruguai), boicotando Pedro Antônio
blico”. 20
Mas os sindicatos também apli- Schiavoni, partiram quase todos para
cam penas maiores que o escárnio. Em Montevidéu: os que ficaram na cidade
1909, no Rio de Janeiro, “alguns [car- vigiariam a pedreira para impedir a pre-
neiros] foram condenados a ficar para- sença de “car neiros”. Não apareceram
dos um tempo deter minado e vir à sede “carneiros” em Maldonado, mas o que
todas as noites para assinar os seus no- aconteceria se para lá migrassem? A pos-
mes, isto durante um lapso de tempo que sível resposta pode ser encontrada no
varia entre trinta e noventa dias”. No relato, em tom de epopéia, sobre o ocor-
Uruguai, o “car neiro” Donato Sangiovani rido em Santos, em 1913:22
teve de pagar ao sindicato uma multa
Foi então que os operários todos se re-
equivalente à sua remuneração durante
voltaram e resolveram fazer valer a sua
o período de greve, além de se subme-
dignidade de homens conscientes e
ter a uma suspensão de um mês, isto é,
respeitadores de sua causa, e em uma
não poderia trabalhar. E em São Paulo,
massa, compacta desfilaram em dire-
a União dos Canteiros também julgava
ção à pedreira, onde estavam os
sócios e impunha multas, em 1917. 21
crumiros, e fizeram uso da ação dire-
ta, fizeram evacuar a pedreira.
Pelo fato dos trabalhadores e das pedras
circularem, tão ou mais importante que Como os traidores resistissem à
as greves são os boicotes, que nor mal- intimação dos camaradas, estes avan-
mente resultam de algum insucesso ocor- çaram e foram cumprindo o seu dever,
rido nelas. Longe de pacíficas for mas de do que resultou sair alguns crumiros
Nenhuma conduta violenta parece ter Mas não é apenas protesto contra maus-
resultado do boicote a pedreira de tratos, mas o uso de um meio freqüente
Rodolpho River, em Porto Alegre, mas o entre os membros das categorias para a
dano físico a esses trabalhadores não era resolução de seus problemas. O papel
restrito aos acidentes de trabalho. A gre- do sindicato é claramente o de discipli-
ve de março de 1917, da qual resultaria nar a administração do confronto físico,
o processo, originou-se de uma briga en- e utilizar esse meio quando julgado efi-
tre dois calceteiros de uma turma e da ciente. Uma pequena greve em uma úni-
intervenção do capataz, ir mão de um ca turma onde um capataz ameaçou de
deles, ameaçando o terceiro com uma faca um calceteiro por questões pesso-
faca. Manuel Domingues residia no Ho- ais: esse pequeno conflito de trabalho
tel dos Viajantes, onde também morava se torna um problema geral das catego-
Isidro Vicente, líder operário em Porto rias quando a comissão que tentava
Alegre. Não tendo o primeiro entrado em readmitir o ameaçado teve como respos-
greve em março de 1917, o segundo tor- ta do engenheiro-chefe da obra em Por-
nou-se “seu desafeto”. Pelo menos dois to Alegre o locaute nas pedreiras. A par-
casos de ferimentos (um voluntário e tir daí, o sindicato assume a negociação
outro acidental) com armas de fogo por- e exige que se entreguem vários impli-
tadas por trabalhadores durante o servi- cados à decisão da assembléia geral da
ço ocorreram em Pelotas. 23
A epopéia categoria, o que era o ponto central do
acima narrada em Santos se deu porque desacordo. As crescentes reivindicações
o empreiteiro recebeu a comissão de contrastam com a decrescente polidez
negociação dizendo “que havia chumbo dos ofícios enviados pelo sindicato à
e bala” para a garantia dos fura-greves, empresa ao longo dos primeiros dias de
e o boicote a River fora deflagrado por março de 1917. Na manhã de 19 de
ter ele “a pretensão de falar com desafo- março, grupos de grevistas abordavam
ros e despotismo a seus operários, de- os “carneiros” do calçamento com dife-
safiando-os belicosamente com armas na rentes argumentos: cortar o pescoço, re-
mão”. São tantos os registros de confron- ceber insultos, arrepender-se caso traba-
to físico entre trabalhadores em pedra – lhassem e mesmo – talvez o mais sortudo
mesmo os que não dizem exatamente – receber 1$500 por dia não-trabalhado.
respeito às reivindicações do mundo do O medo dos “car neiros” tendeu a ser
trabalho – que já não estranhamos quan- revertido pelo capataz da “turma nove”,
do o artigo dezoito do estatuto do sindi- que os estimulava a reagirem, como ho-
cato de Porto Alegre alinha, entre seus mens que eram, e como assim fizeram
objetivos, protestar contra os maus-tra- quando puseram a correr o segundo se-
N O T A S
1. Para confronto físico como atividade lúdica, ver Carolyn Conley, “The agreeable recreation of
fighting”, Journal of Social History , 33.1 (1999) 57-72. Capturado em 17 jun. 2000, online,
disponível na Inter net: http://muse.jhu.edu/jour nals/jour nal_of_social_history/v033/
33.1conley.html. Exceto indicação em contrário, todas as referências à greve em Porto Alegre
provém do processo crime n. 856, Porto Alegre, Tribunal do Júri (réus: Ângelo Cavanellas e
outros, maço 53, estante 29 e/c., 1917), Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Os
jornais agora mencionados, todos de Porto Alegre, foram anexados a este processo ou se
encontram no Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa ( O Diário , 5-6 jan. e 22 e
20 mar. 1917; Última Hora e A Noite , 19 mar. 1917; A Federação , Porto Alegre, 24 mar.
1917).
2. Para a conduta de padeiros e tecelões em Porto Alegre, ver Adhemar Lourenço da Silva Júnior,
Povo! Trabalhadores! : tumultos e movimento operário, Porto Alegre, dissertação de mestrado
em história-UFRGS, 1994, pp. 271-276 e 283; processos crimes n. 526 (réu: Paulino Rodrigues
da Rosa, maço 29, estante 29 e/c., 1914) e n. 1029 (réu: Leopoldo Silva, maço 67, estante
29 e/c., 1919); relatório das investigações policiais procedidas acerca das agressões de João
Fantinel, ocorrida em 4 do corrente, enviado ao doutor juiz distrital do crime em 8 de janeiro
de 1917, Polícia, Documentação avulsa, Porto Alegre. Transcrição de relatórios do 3 o Distrito,
1914-1917, cód. 48 (Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul). O texto sobre a
greve é o de Sérgio da Costa Franco, “A greve dos calceteiros”, ZH Cultura , Porto Alegre, 10
nov. 1990, p. 6. Para anarquistas expropriadores no Uruguai e Argentina, ver Salvador Neves
e Alejandro Pérez Couture, Pólvora y tinta : andanzas de bandoleros anarquistas, Montevidéu,
1993 e Osvaldo Bayer, Los anarquistas expropiadores , Montevidéu, Recortes, 2001. A pesqui-
sa sobre essas categorias já foi feita em minha dissertação de mestrado (op. cit., pp. 29-124),
financiada pela CAPES e desenvolvida ulteriormente com bolsa FAPERGS. Outras dimensões
da conduta dos canteiros podem ser vistas em Adhemar Lourenço da Silva Júnior, “Contribui-
ção a uma história dos de baixo do sindicalismo”, Estudos Ibero-americanos , Porto Alegre, v.
21, n. 1, pp. 61-83, 1995; e idem Quem construiu o calçamento da Rua da Praia? (E de outras
tantas ruas do Cone Sul) , em Ana Lúcia Velinho D’Angelo (org.), Histórias de Trabalho , 5ª
versão, 1995, Porto Alegre, 1996, pp. 135-154.
3. Para a falta de calceteiros em 1823, ver Antônio José Gonçalves Chaves, Memórias ecônomico-
políticas sobre a administração pública do Brasil , Porto Alegre, Companhia União de Seguros
Gerais, 1978, pp. 106-107. Para os demais anos ver os relatórios da Diretoria de Obras da
Intendência Municipal de Porto Alegre,Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre, 1896 (pp.
12-15) e 1897 (pp. 17-19). As pedras extraídas de pedreiras rio-grandenses para a construção
do Palácio Piratini, por falta de tecnologia, custariam o triplo do calcáreo proveniente da
França; cf., Doris Maria Machado de Bittencourt, Os espaços do poder na arquitetura do perí-
odo positivista do Rio Grande do Sul : o Palácio do Governo, Porto Alegre, dissertação de
mestrado em história do Brasil-PUCRS, 1990, pp. 133-134 e 139. Segundo o jornal A Federa-
ção (Porto Alegre, 23 out. 1926, p. 5), o lento ritmo de pavimentação em Porto Alegre na
época devia-se à “falta de calceteiros e socadores, serviço que exige habilitação do operá-
rio”.
4. O memorialista referido para cantaria é Gregório Bezerra, Memórias : primeira parte (1900-
1945), 3ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 192. Outra imagem do trabalho
em pedreiras (também no Rio de Janeiro) é a de João do Rio, A fome negra: a alma encanta-
dora das ruas , Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Docu-
mentação e Informação Cultural, 1991, pp. 113-117. Detalhes técnicos, inclusive os decor-
rentes da concorrência pública, ver em: relatório da Diretoria de Obras da Intendência Muni-
cipal de Porto Alegre, Porto Alegre, 1917-1918; ver também Relatório e projeto de orçamento
para o exercício de 1916 apresentado ao Conselho Municipal na sessão ordinária de 1915,
Porto Alegre, Oficinas Gráficas d’A Federação, 1915, pp. 46-48; relatório da Diretoria da Via-
ção Fluvial, Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, Rio Grande do Sul, 1916;
Lelis Espartel, estradas de rodagem, execução e movimento de terras, Egatea, Porto Alegre,
v. VII, jan.-fev. 1922, pp. 25-32; Benno Hofmann, A pedreira do Capão do Leão, Egatea, Porto
Alegre, v. 12, n. 2, mar-abr. 1926, pp. 91-105 (continua no v. 21, n. 3, maio-jun. 1926, pp.
164-172); Secretaria de Estado da Indústria e do Comércio, Minerais do Paraná S.A. Gerência
de Fomento e Economia Mineral; ver também Paralelepípedos e alvenaria poliédrica : manual
de utilização. s/l : s/ed., 1983, pp. 11-13. Sobre o trabalho dos ferreiros, ver depoimento
constante em Processo , fl. 90.
5. Para a migração interna de trabalhadores no Brasil da época, ver Josué Modesto dos Passos
Sobrinho, Migrações internas : resistências e conflitos (1872-1920), Cadernos de Estudos
Sociais, Recife, v. 8, n. 2, jul.-dez. 1992 pp. 235-260, e Silvia Regina Ferraz Petersen, Cruzan-
do fronteiras : as pesquisas regionais e a história operária brasileira (anos 90), Porto Alegre,
n. 3, jun. 1995, pp. 137-142. Para a subvenção da viagem do Rio a Porto Alegre pelo Ministé-
rio da Agricultura, ver A Luta , Pelotas, 31 maio 1916. Os dados e depoimentos foram extraí-
dos do processo, ff. 17-19 e 87-90. Sobre Felipe Prieto fora de Porto Alegre, ver os periódicos
La Batalla , Montevidéu, 30 jun. e 10 out. 1918 e El Picapedrero , Montevidéu, ago. 1919. Para
as demais referências sobre o Uruguai, ver Ger man d’Elia e Armando Miraldi, História del
movimiento obrero en el Uruguay : desde sus orígenes hasta 1930, Montevidéu, Banda Orien-
tal, 1986, p. 127; La Batalla , Montevidéu, nov.1916; El Picapedrero, Montevidéu, abr. 1919.
Para marmoristas em Porto Alegre, ver A Luta , Porto Alegre, 29 set. e 10 out. 1906. (Os
jornais uruguaios foram consultados na Biblioteca Nacional desse país).
8. Respectivamente: O Diário , Porto Alegre, 25 jan. 1912; A Voz do Trabalhador , Rio de Janeiro,
1º dez. 1913 e 6 dez. 1908; El Picapedrero , Montevidéu, jul. 1925, mar. 1919 e nov. 1918.
9. Respectivamente ver Carlos Zubillaga e Jorge Balbis, op. cit . , p. 87; Correio do Povo , Porto
Alegre, 8-12 set. 1916; Universindo Rodríguez Díaz, Los sectores populares en el Uruguay del
novecientos : primera parte (1907-1911), Montevidéu, Compañero, 1989, pp. 81 e 88-89;
Marotta, op. cit., pp. 446 e 501.
11.Processo, f. 85. Para o caso de La Plata: “8 o - Todo empresário que tiver operário incompeten-
te e (...) quiser suspendê-lo, deverá participar à comissão administrativa para que esta averigüe
se é ou não correto”, ver El Picapedrero , Montevidéu, 31 dez. 1919.
12.Para contatos entre os canteiros do Rio de Janeiro e os de Portugal, ver A Voz do Trabalhador,
1º set. e 1º jun. 1913; 20 jun. 1914. Para textos de passes, ver El Picapedrero, Montevidéu,
nov. 1918; fev., nov. e dez. 1919; nov. 1920. Para comparações com textos no Brasil, ver o
passe tipografado do Sindicato dos Canteiros em Pedra-Granito, (Congresso Operário de 1913),
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, cód. 41-2-22-A, doc. 36.
14.Sindicato dos Canteiros e Classes Anexas, Boicote à pedreira de Rodolpho River , Porto Ale-
gre, 12 fev. 1917. [Anexo ao processo, f. 56].
16.Respectivamente: processo, ff. 83 e 85-86; 69-70 e 78; 84, 87-88, 90-92, 96, 97.
18.Respectivamente: Carlos Zubillaga e Jorge Balbis, “Historia del movimiento sindical uruguayo”,
tomo I; em Cronologia y fuentes (hasta 1905) , Montevidéu, Banda Oriental, 1985, pp. 129-
131; o depoimento consta em Graciela Sapriza, Los caminos de una ilusión . 1913: huelga de
mujeres en Juan Lacaze, Montevideo, Fin de Siglo, 1993, p. 103; A Voz do Trabalhador , Rio
de Janeiro, 1º maio e 22 jun. 1909.
20.Para o Rio de Janeiro, ver A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 15 ago. 1908. Em Porto
Alegre, o termo ocorre quando relatado no começo deste texto. O ter mo estaria também
implícito na ameaça feita a Carlos Bento de Lima, na mesma data, quando se dirigia às obras
do calçamento: “que não trabalhasse, senão lhe cortariam o pescoço.” (processo, f. 13). A
ocorrência do termo é abundante no Uruguai e a própria lista de expressões seria interminá-
vel. Os exemplos citados provém de El Picapedrero , Montevidéu, fev., abr. e out. 1919. Ou-
tras expressões também ocorrem nesse jornal: “elementos corrompidos” (nov. 20) e “potrilho
gordo com cara de idiota” (abr. 1919).
21. A Voz do Trabalhador , Rio de Janeiro, 30 out. e 9 dez. 1909; El Picapedero , Montevidéu, jun.
1919; Yara Aun Khoury, As greves de 1917 em São Paulo , São Paulo, Cortez/ Autores Associ-
ados, 1981, p. 135 (reproduzindo A Plebe , São Paulo, 16 jun. 1917).
23. O Diário , Porto Alegre, 20 mar. 1917; Rebelião , Porto Alegre, 14 mar. 1917; processo, ff. 208-
209; Correio Mercantil , Pelotas, 24 jan. 1914; Diário Popular , Pelotas, 4 mar. 1914.
24.A narração básica provém do processo e da imprensa de Porto Alegre. A demissão dos impli-
cados está em El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1918. Para a contribuição de outros sindica-
tos, Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jul. 1917.
26.Para a distinção entre anarquismo e sindicalismo, ver Adhemar Lourenço da Silva Junior,
Anarquismo e movimentos sociais : uma tipologia de suas relações, Cadernos do CPG História
UFRGS , Porto Alegre, v. 8, pp. 3-23, 1993 e, Cláudio H. M. Batalha, O movimento operário na
Primeira República , Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 24-25, ver também O Ideal
Libertário , Rio de Janeiro, Centro Libertário, s/d, anexo ao processo ... ff. 38-41. Para diver-
gências políticas no Uruguai e Argentina, ver Fernando López d’Alessandro, Historia de la
izquierda uruguaya : la fundación del partido comunista y la división del anarquismo (1919-
1923), Montevidéu, Vintén, 1992, p. 248; Marotta, op. cit., pp. 470-471, 487-489, 524-535;
El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1919. Para relações do sindicato em Porto Alegre com a
Federação [Operária] , ver El Picapedrero, Montevidéu, fev. 1919. Para as relações dos sindi-
catos das demais cidades com a Federación, ver El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1918; jul.,
nov. e 31 dez. 1919, nov. 1920.
27.Quanto à relação do trabalhador comum com a orientação política das lideranças, Eric J.
Hobsbawm afir ma: “Afinal, ao nível do militante (...), as diferenças doutrinárias ou
programáticas (...) são geralmente muito irreais e podem ter pouca importância (...). Assim se
compreende que a transferência da liderança do sindicato dos trabalhadores do tabaco de
Cuba das mãos dos anarco-sindicalistas para as dos comunistas não tenha introduzido qual-
quer modificação substancial nem em suas atividades sindicais, nem na atitude de seus mem-
bros e militantes.”, Revolucionários , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, pp. 72 e 75. Quanto à
ignorância dos canteiros do Rio de Janeiro, ver A Voz do T rabalhador , Rio de Janeiro, 13 jan.
1909 (o que seria ratificado pelas incorreções ortográficas semelhantes às aqui citadas –
desde o processo, f. 136 – por: ofício do Sindicato dos Operários das Pedreiras ao Congresso
Operário de 1913, op. cit., doc. 8). Embora Marques (op. cit., p. 42) diga o contrário para os
canteiros de Ribeirão Pires, a reprodução de uma carta no El Picapedrero (Montevidéu, out.
1920) indica a mesma pouca familiaridade com a expressão escrita. Sobre analfabetos e
conceitos abstratos, ver Mercedes Vilanova, “Anarchism, political participation and illiteracy
in Barcelona between 1934 and 1936”, The American Historical Review , v. 97, n. 1, fev.
1992, pp. 96-120.
28.Os depoimentos transcritos de analfabetos constam no processo, ff. 71 e 86; para analfabe-
tos falando em “ordens”, “chefes”, ff. 69 e 78; sobre militantes analfabetos nas pedreiras,
ver f. 65; os depoimentos sobre o “presidente” do sindicato estão nas ff. 84 e 95-96.
29.Para o recurso ao caixeiro, ver processo, f. 75. Para analfabetos como “tropa de choque”,
Vilanova, op. cit., p. 116. Para masculinidade e sindicalismo, ver Francis Shor, “Virile
syndicalism”, Comparative Perspective capturado em 6 nov. 2000, online, disponível na
Internet: http://bari.iww.org/history/Shor1.html.
A B S T R A C T
From a single case – when stonecutters and pavers attacked strikebreakers in Porto Alegre – and
comparing the workers in several cities (with several kinds of sources, from several archives,
from several places), The author argues that similar life conditions and permanent migration
created a labor market and a labor network, whose central point was the closed shop. But the
workers’ illiteracy was a problem on managing the labor network, and even political concepts.
The illiterates’ feelings of being participants in trade unions were clear, if they manfully beat
those who tried to defeat the closed shop.
Paulo de Assunção
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo
e professor do Centro Universitário Assunção, Centro Universitário
Capital e da Universidade São Judas em São Paulo
A Escravidão nas
Propriedades Jesuíticas
Entre a caridade cristã
e a violência
O
Estado absolutista conseguiu econômico do produto, fazendo de Por-
resolver os problemas tugal um grande exportador e intermedi-
advindos da centralização do ário desta matéria-prima para a Europa.
poder,quanto ao acúmulo de riquezas.
A Coroa favoreceu o desenvolvimento da
Procurando manter o Estado, as monar-
produção açucareira na Colônia a partir
quias utilizaram-se da doutrina
do novo direcionamento político-econô-
mercantilista como base de sustentação
mico dos governos gerais. Os incentivos
da nação. As colônias eram parte inte-
começavam pela doação de terras e
grante deste conjunto que garantia os
sesmarias, isenções dos tributos, impos-
recursos necessários para a manutenção
tos sobre o açúcar, facilidades para o
da via mercantil e, por decorrência, da
comércio do produto e uma política fa-
metrópole.
vorável à escravidão da mão-de-obra in-
dígena e negra. 1
O açúcar, mercadoria exótica e de valor
elevado, passou a entrar em Portugal em O favorecimento aos jesuítas nas terras
quantidades cada vez maiores durante o brasileiras começou logo após a instala-
século XVI. A ampliação do comércio do ção do gover no geral, em 1549, por
açúcar como produto relevante para o Tomé de Souza. A carência de alimentos
mercado português aumentou o valor fez com que os religiosos reivindicassem
do, outra realidade se apresentava jun- A propriedade de terra não era o bastan-
to a esta: o desenvolvimento de uma te para o desenvolvimento de atividade
política de interesses próprios da or- econômica. A mão-de-obra escrava, lar-
dem que, imperceptivelmente, distan- gamente utilizada desde a Idade Média,
ciava os interesses nacionais, metro- foi o meio utilizado para atender ao sis-
politanos, dos particulares, universais tema econômico, garantindo o abasteci-
e jesuíticos. 7 mento do mercado consumidor euro-
Tal como a Coroa portuguesa, os inte- decorrência, para as atividades dos reli-
Este comportamento benevolente ou cris- ando pelo castigo que é o pau, contu-
tão, para com a escravaria, não excluía do, prouvera a Deus que tão abundan-
a aplicação de penas de acordo com o te fosse o comer e o vestir como mui-
crime cometido, que deveriam ficar res- tas vezes é o castigo, dado por qual-
tritas a açoites moderados e prisões, sem quer causa pouco provada ou levanta-
maiores opressões para os sujeitados. da; e com instrumentos de muito rigor,
castigos corporais a que os senhores de que se não usa nem com os brutos
engenho submetiam os negros, tais como animais, fazendo algum senhor mais
do ainda cometer suicídio ou matar aque- orgânica da sociedade, havia uma ra-
les que os oprimiam. Desta for ma, en- zão muito pragmática para se defender
Cushner, os jesuítas da Argentina, Méxi- são senhores dela se dos índios que
co, Peru e Brasil participaram ativamen- com [...] ferros os servem e são mais
enfatiza que em nenhum momento os assim não há hoje quem possa ver por
escravidão; na realidade, eles a aceita- Este mesmo engenho, anos mais tarde,
ram como um fato dentro dos seus ne- pertenceria à Companhia de Jesus que,
gócios: a partir daí, enfrentaria o problema da
administração da propriedade.
As visões contemporâneas sobre a na-
cordando, dizendo ser erro manifesto: parte das práticas necessárias para a
“por que os índios não são para aturar o produção, bem como o trato com os es-
trabalho, como os negros, por serem de cravos, tarefa árdua e difícil de ser exe-
natureza mais débil que eles, o que tem cutada. No ano de 1731, o padre Pedro
de 1733, o padre Luís Veloso escrevia tônio Jorge, ao padre Simão Esteves, por
ao padre Simão Esteves pedindo suces- causa do descuido daquele com os ne-
sor, alertando ser conveniente que o gócios. Dizia que enviara um negro pre-
novo religioso fosse muito virtuoso e di- so para ser vendido e o mesmo não ti-
ligente, pois estava o engenho arruina- nha dado a mínima atenção, pois, circu-
do. A casa de negros necessitava de re- lava com o escravo solto pela Bahia, com
paros, “que por serem muito limitadas e grande perigo dele fugir e perdê-lo. 22
as carências das propriedades. Isto re- Teixeira, em todo o tempo que aqui es-
seu pesar quando os navios não segui- premência deles, uma vez que das pou-
am com o produto desejado: cas peças
crioulas ir mãs enviadas pelo padre Pedro uma só palavra em sua defesa. Vossa
...uma por nome Cristina, mãe de uma mento e experiência tem desta gente
rapariga que fica presa no tronco, por- e assim fará o que julgar mais [...] para
que brigando com seu marido [...] pe- o serviço de Deus e bem destas fazen-
gou em num cutelo e deu lhe uma tão das fica se preparando o engenho, para
desastrada facada pelo peito esquer- cortar e moer dia de santo Inácio, não
do que dentro de meia hora morreu, serve mais. Peço a santa benção de
coa, o Natal, a Epifania e a festa em lou- em seu poder, os mesmos vinham expe-
vor a São Francisco Xavier 34
eram cele- rimentando os excessos e os rigores que
bradas nor malmente no engenho de “os senhores no Brasil tratam seus es-
Sergipe do Conde e com variações nas cravos, e disto tenho já ouvido algumas
outras propriedades. A possível incom- queixas, mas não está em minhas mãos
patibilidade entre o calendário religioso emendá-las”. 36
e o fluxo de produção, uma crítica co-
Durante a administração do padre Manu-
mum dos eclesiásticos aos senhores de
el de Figueiredo, no engenho de Santana
engenho, foi alvo de preocupação dos
dos Ilhéus, na primeira metade do sécu-
padres superiores que orientaram os ad-
lo XVIII, não houve estímulo ao casamen-
ministradores das unidades produtivas
to de escravos, contando com grande
na observância dos dias religiosos, bem
número de escravos solteiros, o que per-
como no guardar o domingo, já no final
mitia a mancebia, diminuindo desta for-
do século XVII. 35
ma os nascimentos e, portanto, a possi-
Em resposta a uma carta do superior, em bilidade de aumento da mão-de-obra da
4 de janeiro de 1648, o padre Francisco propriedade. Esta situação foi observa-
Carneiro evidenciava que recebera deter- da pelos administradores seguintes,
minação para ter com os criados e es- como os padres Pedro Teixeira, João
cravos do engenho e das fazendas, cui- Cortes e Jerônimo da Gama, que elabo-
dado para que fossem tratados no comer raram relatórios defendendo a conveni-
e modo de trabalhar “com piedade e pru- ência de for mar famílias com base no
dência”. Dizia o padre Francisco matrimônio. O padre Pedro Teixeira, em
que estes meses atrasados houve al- 1731, registrara um cenário inadmissí-
gum aperto em matéria de comer para vel para uma propriedade da companhia.
coisa, por causa do inimigo que nos te as mulheres)”, não tinham nenhum
este aperto, mas não foi tal, que hou- priedade não se trancavam as casas dos
da estrutura familiar dos escravos. Es- Miguel da Costa reconhecia ser o padre
pantava-se com o fato de a maioria dos Rocha “zeloso da fazenda e tem muito
cativos não ser casada, as uniões serem propósito e capacidade para a governar;
instáveis e prevalecer a mancebia, o que pelo tempo adiante será um grande fa-
causava uma baixa taxa de natalidade, e zendeiro e senhor de engenho”. O padre
por decorrência, a falta de braços para Costa lembrava ao padre Gaspar
o trabalho. 38
Alguns padres não se preo- Fernandes que o padre Luís da Rocha,
cuparam em emendar o comportamento “como moço, tem muito fogo para gover-
lascivo dos negros, preferindo tolerar nar escravos, e tem feito alguns exces-
essa situação, a fim de evitar as fugas. sos com eles, já o adverti neste ponto,
Esta falta de atenção foi observada pelo indo visitar o engenho, e me prometeu
olhar atento de outros padres, para os que havia de moderar”. O motivo desta
quais a não realização de casamento era conduta, conforme confessara o próprio
um grave problema, pois com isto os Luís da Rocha, era para que os “negros
engenhos sofriam a falta de mão-de-obra, lhe cobrassem medo e respeito, e não
implicando na inflação do preço do ne- procedessem com ele na mesma forma
gro. Era preciso incentivar os casamen- em que os achou com o padre Veloso”. 39
tos e a sua decorrente procriação. Com Conforme a narrativa de um jesuíta do
certeza, estas práticas poderiam engenho de Santana, para dirigir uma
minimizar os problemas, mas os padres propriedade escravista, as palavras não
esqueciam-se de que muitos filhos de bastavam, os pés eram necessários, e ele
escravos não conseguiam vingar, por cau- andava “de contínuo com o diabo na
sa das doenças e da alimentação débil boca e o pau nas costas dos pobres”. 40
e, em muitos casos, as escravas optavam
pelo aborto como uma for ma de protes- Governando o engenho com pulso fir me,
tar contra as condições em que viviam. o padre Rocha reestruturou a proprieda-
de adequando-a à nova realidade, não
O padre Miguel da Costa, ao escrever do alterando os seus métodos de adminis-
Colégio da Bahia, em 10 de agosto de tração. No mesmo ano, escrevia dizen-
1736, infor mava que o padre Luís Veloso do que despedira os feitores para dimi-
já estava velho e faltavam-lhe forças para nuir os gastos com pagamentos de sol-
o trato do engenho, sendo conveniente dos. E em seus lugares tinha colocado
que o padre Luís Rocha fosse indicado alguns “negros de mais capacidade, por-
para o cargo, ficando o padre Veloso, no que os feitores brancos, quando são fi-
engenho, pois “com o seu conselho e éis só servem quando lá se não pode ir”,
direção [...] poder a tudo advertir ao pa- e isto era necessário na época do padre
dre Rocha”. Apesar deste comportamen- Veloso. Como ele gozava de boa saúde e
to rígido para com os escravos, o padre visitava de três em três dias as fazendas,
o controle era maior, facultando-lhe pu- ção, empregando, por vezes, mecanis-
nir aqueles que tinham faltado com a mos de convencimento pouco brandos.44
obrigação, “o que não posso fazer aos
A rebeldia e fuga dos escravos não ocor-
brancos”. 41
riam só por causa das condições de tra-
balho, mas também devido ao rompimen-
As condições de trabalho a que eram to de relações maritais dos escravos. O
submetidos e o tratamento que recebi- padre Luís da Rocha, na sua conturbada
am per mitiram que fugas e levantes de gestão do engenho da Petinga, vendera,
negros também ocorressem nas proprie- nos idos de 1745, uma escrava para um
dades jesuíticas. O caixeiro Manuel João lavrador de canas, vizinho da proprieda-
Viana, em carta datada de 25 de abril de de. O companheiro da escrava, revolta-
1742, dava conta ao padre superior, do com a negociação, fugiu para se en-
Francisco da Guerra, sobre o levante de contrar com a mulher, recusando-se a
cinqüenta negros ocorrido no engenho retornar ao engenho. 45
do Conde, que felizmente fora controla-
Em 1750, o padre Tomás da Costa nar-
do. O ato de contenção do levante resul-
rava o triste episódio que acontecera
tou na prisão de alguns escravos no en-
com o irmão Francisco Silva. Este religi-
genho e outros na cidade da Bahia, com
oso chegara muito ferido, ao colégio, no
“correntes e grilhões, e se açoitaram to-
dia anterior, primeiro de junho, vindo do
dos muito bem”. 42 A violência que mar-
engenho de Santana de Ilhéus, por ter
cou o episódio deve ter gerado polêmi-
sido golpeado por um negro com duas
cas e críticas quanto aos excessos de
facadas. A primeira foi por detrás a cor-
Manuel João Viana, pois ele, em 26 de
tar-lhe o pescoço, mas Deus agira desvi-
abril, escrevia temeroso ao padre Fran-
ando o golpe. A segunda facada fora mais
cisco da Guerra, advertindo-o que se
cruel e provocara ferimento grave – “ca-
caso chegassem cartas acusando-o de
indo o ir mão por terra, o negro lançou-
alguma coisa, não desse atenção: “peço
se sobre ele para acabá-lo, teve ânimo e
a respeito dos negros não se fie no que
fortuna o irmão, de lhe pegar nas mãos,
dizerem várias cartas, só sim no que es-
e subster (sic) os mais golpes até chegar
crever o reverendo padre Rafael Macha-
um negro velho, com cuja vista fugiu o
do, que eu e ele é que temos acomoda-
excomungado negro”. Tudo isto ocorre-
do tudo a bem dela”. 43 Ao que tudo indi-
ra na cozinha e na sala sem a presença
ca, nem todos os religiosos concordaram
de testemunhas.
com os discursos eloqüentes sobre o tra-
tamento dos escravos. A prática demons- No mesmo ano, o padre Jerônimo da
trou que muitos assumiram de fato o G a ma , a dministr a ndo o e nge nho de
papel de senhores de engenho, tendo em Santana dos Ilhéus, reclamava aos seus
vista a resultados positivos e boa produ- superiores que com o passar do tempo
ia ficando mais contrariado, pois a insu- sionário dizia sofrer por necessidade,
bordinação dos escravos era tamanha “não procedendo ao castigo para evitar
que não tinha como atalhar o comporta- a fuga dos escravos”, pois quando repre-
mento rebelde de muitos deles. A des- endidos, a resposta deles era apontar
peito do engenho possuir muitos negros, para o ventre, dizendo: “da barriga puxa
eles negavam-se a trabalhar por mais de o boi; dando a entender, que eu lhes não
cinco horas no dia, mesmo após o padre dou sustento”, motivo que também utili-
argüir que as condições e o trabalho dos zavam para saírem do serviço. Impoten-
escravos de outras fazendas eram muito te, fechava sua missiva, afir mando “já
piores, elementos esses que justificavam não me atrevo com tais escravos! Que-
as punições, marcadas por violência. rem regular-se pelo passado e não aten-
dem ao presente, o mais lastimoso. Meus
Em 1753, o padre Jerônimo da Gama pecados são a causa de eu vir para tal
registrava que os mesmos vícios e parte engenho”. 47 Ficava evidente a má admi-
deles derivava do fato das habitações dos nistração e gestão de seus antecessores,
escravos estarem fora do controle dos com liberdades demasiadas e desvios
superiores; além disso, algumas práticas inconvenientes, difíceis de serem
como as das escravas não trabalharem retificados por meio da violência dos cas-
quando estavam menstruadas, e a de tigos. 48
desejarem mantimentos de forma
abusiva, eram hábitos enraizados numa O tratamento que alguns padres dispen-
terra contaminada por vícios. 46 Em uma saram aos escravos, sem dúvida não era
carta escrita em 13 de junho de 1753, o comum na vida colonial. Nos registros de
jesuíta traçava a sua atuação no enge- débito, dos relatórios de prestação de
nho e os problemas que enfrentava na contas, várias vezes são feitas menções
administração. Dizia que visitava a sen- aos gastos com a alimentação ou com o
zala duas ou três vezes por dia, para os tratamento de doenças que se abatiam
lançar fora da casa e ver os que estavam sobre a senzala. Dentre outros gastos
ou se faziam doentes. O descuido dos destacavam-se a grande quantidade de
negros não era só para com as tarefas tecidos de algodão e outras variedades
produtivas. Segundo ele, os negros eram mais rústicas que eram compradas para
negligentes com o serviço de Deus, ar- a vestimenta dos negros. Nos livros de
gumentando que o terço aos sábados e contas e nas cartas são várias as refe-
missa às segundas-feiras não eram de rências do envio e pagamento de
obrigação, e somente “à força de gritari- verônicas as quais eram utilizadas como
as minhas, de persuasões e alegações mimos para “contentar os escravos, para
com as ordens dos superiores, os mais os animar a mais puxarem pelo serviço, que
deles assistem a tudo”. Desolado, o mis- agora com os novos canaviais não falta”.49
N O T A S
1. Vera L. Amaral Ferlini, “Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordes-
te colonial”, Tamás Szmrecsányi (org.), História econômica do período colonial , São Paulo,
1996, pp. 21-34.
2. Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil , v. 1, São Paulo, Comissão do IV Cente-
3. Ver a carta régia ao governador Mem de Sá mandando confir mar todas as terras doadas aos
colégios da Companhia de Jesus no Brasil, de 11 de novembro de 1567; Serafim Leite, op.
cit., v. 4, p. 420.
6. Serafim Leite, op. cit., v. 1, p. 297. Sobre as terras que pertenceram ao irmão Pero Correia e
posteriormente foram incorporadas ao Colégio de São Vicente, ver Serafim Leite, “Confirma-
ção das terras que Pero Correia deu à Casa da Companhia da Ilha de São Vicente: 1542-
1553”, História da Companhia de Jesus , v. 1, pp. 541-542.
8. Manuel da Nóbrega refere-se aos sete meninos órfãos de Lisboa, que chegaram em janeiro de
1550, com os padres da Companhia de Jesus.
9. Manuel da Nóbrega se refere aqui a Tomé de Sousa. Ver Serafim Leite, Cartas dos primeiros
jesuítas do Brasil , São Paulo, Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, v. 1, 1954,
p. 280.
10.Vera Lúcia A. Ferlini, Terra, trabalho e poder : o mundo dos engenhos no nordeste colonial,
tese de doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo, 1986, pp. 1-9.
11.A casa de purgar, segundo a descrição de Antonil, era separada do edifício do engenho, sendo
a do engenho de Sergipe do Conde a melhor do recôncavo, “fabricada de pedra e cal e
emadeirada com paus de maçaranduba e coberta com todo o asseio de telhas, de compri-
mento de quatrocentos e quarenta e seis palmos e oitenta e seis de largura, dividida em três
carreiras de andainas, com vinte e seis pilares de tijolo no meio, altos quinze palmos e meio,
e largos quatro, para sustentarem o teto, que assenta ao redor sobre paredes largas e fortes”.
Ver André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil , Belo Horizonte, Itatiaia, 1982, p. 128.
12.Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos , Porto, s. e., 1954, p.
139.
15.Na América espanhola, os jesuítas da região de Córdoba e Assunção, no início do século XVII,
se posicionaram contra a utilização de mão-de-obra ameríndia nos ranchos e fazendas dos
espanhóis, os quais se defenderam alegando que sem esta força de trabalho não era possível
o cultivo das terras e acusavam os religiosos de agir “hypocritically because the fathers retained
all the labor they needed in the reductions while denying the same to the lay farmer or rancher”.
Ver Nicholas Cushner, Jesuit ranches and the agrarian development of colonial Argentina :
1650-1767, Albany, University of New York Press, 1983, p. 20.
16.Ibidem, p. 100.
17.Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT). Cartório jesuítico, maço 8, doc.
n. 28.
24.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 141 (cópia); ver também n. 142.
25.A compra de escravos normalmente foi justificada em Portugal como necessária para manter
as atividades temporais das propriedades jesuíticas e não tinha intento comercial. Ver sobre
o assunto Dauril Alden, The making an enterprise : the society of Jesus in Portugal, its empire,
and beyond 1540-1750, California, Stanford University Press, 1966, p. 545.
32.Serafim Leite, Fazendas e engenhos dos jesuítas , Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 188.
35.Confor me instrução Instructio abius qui officinam sacchaream administrant servanda, do ano
de 1699, ver Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 101.
36.Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (ARSI), 3 I Epp. Bras. (1550-1660), pp. 259-260.
40.Apud Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 130. Ver também Nicholas Cusnher, op. cit., p. 111.
43.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 161, carta (2a. via).
44.O tratamento inadequado dos escravos ocupou a atenção dos padres gerais que receberam
informação sobre os excessos que alguns religiosos praticavam na América espanhola. Os
padres Vicente Carrafa e Miguel Angel Taburini escreveram aos padres responsáveis pelas
unidades produtivas, condenando os procedimentos que muitas adotavam na punição de es-
cravos, bem como as práticas de missionários que eram acusados de colocarem os índios das
reduções em espaços pequenos e com pouca alimentação, acarretando a morte de alguns.
Ver Nicholas Cushner, op. cit., p. 87.
45.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, n. 124, carta de 22 de maio de 1745 do padre Luís da
Rocha para o padre Francisco Guerra.
48.No contexto espanhol, os jesuítas eram proibidos de aplicar castigos aos ameríndios, como
podemos observar nas ordens fornecidas ao padre visitador Andrés de Rada, em 1663. Ver
Nicholas Cushner, op. cit., p. 42.
49.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 104. Ver Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 140.
A B S T R A C T
In his article the author exposes how the jesuits in the various properties of the Jesus Company
regarded the slaves. The discourse of some religious tended toward the defense of the humanitary
treatment, following the christian precepts of charaty, not denying or questioning, however, the
established system of slavery, assuming it as natural and necessary to the development of society.
The practice proved that many of them did not pursue those precepts, making use of mecanisms
of punishment and violence in their treatment of slaves.
Gutember
Gutembergg Alexandrino Rodrigues
Doutorando em História Social pela USP
O Discurso da Ordem
A composição da imagem
do menor
O
s nomes absorvem para sem- Maria Luiza Tucci Carneiro ao discutir
pre a imagem que formamos metodologicamente a questão da
das coisas. Este poder de de- polissemia dos discursos lembra-nos que
calque dos nomes, como demonstrou
a força das imagens não se encontra
Marcel Proust, 1 advém da pintura obtu-
na veracidade dos fatos que elas ten-
sa que muitas vezes os nomes apresen-
tam representar e sim na capacidade
tam das coisas.
que têm de interferir no comportamen-
to humano, gerando sentimentos e ati-
Como resultado da singularidade
tudes de medo, repulsa, ódio, inveja,
discursiva, as imagens se transfor mam
submissão, adoração, entre outros.2
em máscaras, não mais ocultando
pseudo-identidades, antes revelando, por Partimos dos discursos enquanto moda-
meio de reflexos distorcidos, os traços lidades que buscam representar a reali-
inexoráveis de pessoas concretas, que dade social, pois, ordenam, classificam
vivendo no cotidiano, dissimulam apenas e representam o universo de inserção de
o quanto é conveniente. Tal alusão tor- um determinado grupo, legitimando em
na-se latente quando lembramos a ori- alguns casos, a ação de entidades
gem da palavra máscara, que em grego institucionalizadoras, como, por exem-
significa “persona” ou “personagem”. plo, os presídios, os manicômios e enti-
Na mesma linha que O’Donnell, Paulo muito mais que o corpo, e sim a alma
Sérgio Pinheiro atesta que o dos internos.
autoritarismo, no Brasil, é socialmente
A história da criança no Brasil, como lem-
existente, caracterizando-se por diversas
bra Mary Lucy Del Priori, 10 se fez à som-
polaridades, delimitando fronteiras, ex-
bra dos adultos, tornando-se objeto pri-
cluindo grande parcela da população por
vilegiado dos pais, clérigos, mestres, se-
meio da suspeição e mecanismo de con-
nhores, juristas, médicos e toda uma
troles correcionais dos quais a prisão, os
categoria de profissionais que, aos pou-
manicômios e os reformatórios se encar-
cos, reservaram para as crianças o mun-
regam de classificar os indivíduos em ci-
do do silêncio. Seus gestos, jogos, brin-
dadãos e não cidadãos. 8
cadeiras, atitudes, pulsações e compor-
A questão da cidadania também se en- tamentos foram, paulatinamente, tornan-
contra presente nas discussões de do-se análises de diversos saberes: o
Marilena Chauí, apontando-a como privi- olhar do adulto sempre conferiu legiti-
légio de poucos. O autoritarismo é con- midade às inúmeras ações para que a so-
cebido pela autora como um grande ciedade, ao longo da história, deter mi-
referencial para pensar mos as relações nasse o local a ser ocupado pelas crian-
entre o Estado e a sociedade civil. 9
ças. Se a história das crianças é
que o autoritarismo, como dado históri- sociedade brasileira, torna-se muito mais
acentuando com o golpe de 1964, para- das crianças e dos jovens oriundos das
doxalmente batizado com o nome de re- camadas mais pobres da sociedade que,
vidas, assim como assegurando a circu- tem suas possibilidades e suas funções
não é o lugar de uma tábula rasa onde sibilidade de uma crítica real. 20
se depositam passivamente certos obje-
Para o autor, o discurso é um evento,
tos previamente constituídos, definindo-
sendo, antes de tudo, realizado tempo-
se pela capacidade de articulação de ob-
ralmente e no presente. 21 O discurso,
jetos heterogêneos”. 18
como produtor de eventos, vincula-se à
Analisar for mações discursivas, pessoa que fala e, por isso, congrega em
dar conta, em sua aparição, sua per- guém se exprimir tomando a palavra”.22
manência, sua transfor mação, e che- O discurso, como lembra o autor, é sem-
ra, apontaria o grupo do qual participa- aqui no nordeste o caso está tomando
sorte nada conseguiram, mas, nem por monstros. Enquanto isso, não dispo-
isso regressaram ao campo; preferiram mos de estabelecimentos de reeduca-
Mais uma vez o jurista focaliza o proble- verticalização da prática discursiva exi-
ma, vinculando-o dentro do contexto só- gindo uma postura dos órgãos competen-
ende essas verdades e por isso culpa Necessitamos de uma justiça criminal
transfor mando-se numa verdadeira re- dos trabalhos das Nações Unidas sobre
voltando ao tema dos delinqüentes, por meio de uma adequada política cri-
dade lhes dá, tor nam-se indiferentes e dificuldades com que lidam os inspe-
tores para apanhar os “fora da lei“ por-
por isso mais perigosos.
que todos os assaltos verificados em
Todas as medidas que a polícia vem
São Paulo nos últimos anos têm sido
tomando para conter essas gangues
praticados ainda na adolescência, e
que se tornam cada vez mais sinistras,
com menos de vinte anos de idade. 36
esbarram com óbices intransponíveis,
feitamente instruídos sobre a proteção lhes permite mais livre trânsito no ‘mun-
que a menoridade lhes dá perante a lei, do do crime’, por outro lado o estigma
tornam-se indiferentes e cínicos e, por social os vincula tão fortemente à ilega-
isso mesmo, ainda mais perigosos. 35 lidade que muitas dessas crianças são
marcadas como criminosas, antes de te-
Os menores são apresentados pelo ju-
rem a oportunidade de delinqüir”. 37
rista como delinqüentes, viciosos, inici-
ados no crime, usuários de tóxicos. Da problemática exposta surgiu uma dis-
cussão importante durante o período, sos durante os séculos XVIII e XIX, de-
isto é, a necessidade de intervenção do terminando o racismo, a intolerância e a
Estado no sentido de investir em pesqui- exclusão de certo segmento social.
sas científicas, tal como a criminologia,
A criminologia nasceu em 1885, medi-
defendida por Vir gílio Donnici, como
ante estudos de Rafael Garófalo, da Es-
“uma ciência jovem, procurando unifica-
cola Italiana, fortemente marcada pelo
ção metodológica, tendo em vista o con-
positivismo e pela antropologia criminal,
junto de ciências, desde a biologia, a an-
da qual também faziam parte Césare
tropologia e outras, até a estatística. É
Lombroso e Enrique Ferri, os quais viam
uma ciência viva, eminentemente soci-
o crime como fenômeno natural, deter-
al, com a finalidade de melhorar os mé-
minado por fatores biológicos que agiri-
todos para o tratamento dos criminosos
am ao nível do organismo individual.
e a prevenção da mar ginalidade”.38
A influência das idéias de Ferri, profes-
É impressionante a quantidade de vezes
sor da Escola Italiana de Direito Penal,
que os colaboradores recorrem às teori-
no Brasil, foi demonstrada por Lilia
as de Césare Lombroso. Embora alguns
Moritz Schwarcz, quando este, em 1908,
apresentem críticas ao método
visitou a Faculdade de Direito de São
lombrosiano, extremamente determinista,
Paulo, sendo recebido “com entusiasmo
concordam, em parte, com as investiga-
de alunos que com euforia atiravam-lhe
ções operacionalizadas pelo teórico ita-
flores e trepidosos aplausos”. 39
liano. O que parecia sepultado renasce
Com Lombroso (1835-1909), seria defi-
neste período, desta vez com grande ve-
nido o perfil do delinqüente, a partir das
emência, quando se pensa a questão dos
técnicas de antropometria e da
menores infratores, pois somente uma
craniologia, ao examinar os corpos dos
criminologia, cujas heranças remonta-
criminosos, bem como no tratamento
vam o século XIX, poderia deslindar a
estatístico dos resultados obtidos. Por
alma perversa dos pequenos corpos cri-
meio de seus estudos, Lombroso, classi-
minosos.
ficaria os seres humanos em dois grupos:
No Brasil existe uma pluralidade de tem- os delinqüentes e não-delinqüentes. Os
pos históricos coabitando o mesmo es- primeiros seriam objeto de estudo bio-
paço, destinando parte do contingente lógico, postulando inúmeros caracteres
social à exclusão. Esta não foi a primei- a eles peculiares. Nascia a figura do cri-
ra vez na história que métodos calcados minoso nato. 40
no pensamento, em vigor no século XIX,
Lombroso, sustenta Carrara, formulou
foram retomados, como demonstraram
uma série de estigmas que
Lilia Moritz Schwarcz e Sérgio Carrara,
ao discutirem a convergência de discur- na superfície do corpo do criminoso
te, o gosto pela tatuagem, pela gíria e mas da suspeita, da culpa e das
onomatopéia, a imprevidência, a pro- incriminações permanentes. Situação
dade pelas suas façanhas, pela ostenta- Nesta manhã, vejo todo o milagre. Vejo
ção, pelo exibicionismo e pelo crime. 45 o milagre da transmutação da “sucur-
sal do inferno“, da escola do crime, da
Penso nas crianças de tudo precisadas; bate feito pelos ideólogos sobre a ques-
penso nos menores que, lá fora, so- tão das crianças e dos adolescentes, di-
nha terra me vem como símbolo mes- delinqüência como atributos das pesso-
dos, que em cada qual vejo um ciedade injusta, cujos bens econômicos
liar. O elo que se for mou na esteira de Os prontuários são excelentes documen-
todos estes pensamentos deter minou a tos históricos, como lembra Maria
institucionalização do menor. Clementina Pereira da Cunha, pois reve-
lam os limites da ação institucional e,
A riqueza dos prontuários permite visualizar
apesar da monotonia na qual se reveste
várias etapas da institucionalização do inter-
a história de vida de cada interno, per-
no, por exemplo, quem são os chamados
mitem-nos compreender que “esta só
“menores” abandonados e infratores, e
pode ser compreendida quando
como é realizado seu processo de
referenciada à experiência individual e
institucionalização a partir de diversas
também dessa maneira incorporada à
categorias discursivas e extradiscursivas.
problemática histórica. Resta considerar
Os prontuários possibilitam, ainda, o res-
que os processos da institucionalização
gate de uma memória social esquecida,
configuram evidentes for mas de relação
como sustenta Maria Odila Leite da Silva
ao ambiente social e, nesta medida, fa-
Dias ao estudar a vida cotidiana das mu-
lam sem cessar deste mundo que os con-
lheres pobres ao longo do século XIX:
denou ao silêncio”.51
Histórias de vida que foram se perden-
No interior dos prontuários, verificamos
do antes por um esquecimento ideoló-
como ocorreu a solidificação da imagem
gico do que por ausência de documen-
do menor abandonado e infrator. Os
tação. É verdade que as infor mações
muros da FEBEM-SP se tornaram labora-
se escondem, ralas e fragmentadas,
tórios a partir dos quais os técnicos –
nas entrelinhas dos documentos, onde
médicos, psiquiatras, psicólogos e assis-
pairam fora do corpus central do con-
tentes sociais – decodificaram cada ges-
teúdo explícito. Trata-se de reunir da-
to, cada ato do interno. Este se tor na
dos muito dispersos e de esmiuçar o
objeto a ser analisado e classificado. A
implícito. 49
FEBEM tor na-se o locus da vigilância e
Os prontuários constituem espécies de
do asilo.
dossiês nos quais observamos toda a tra-
O mundo da disciplina, da vigilância e
jetória da institucionalização da criança
do asilo encontrou em Foucault um de
ou do adolescente, levando-nos à impres-
seus estudiosos. O autor investiga a
são de que nada escapa aos olhos aten-
coisificação do homem frente às diver-
tos da instituição encarregada de acom-
sas práticas discursivas visualizadas em
panhar todo o seu percurso, cujo ponto
manicômios e em presídios.
de partida se faz ainda no ambiente fa-
miliar, passando a acompanhar, paula- Segundo Foucault, as relações de força
tinamente, todos os atos, gestos agem em múltiplos sentidos, de tal modo
identificadores de uma patologia a ser que se irradiam do centro para a perife-
sanada. 50 ria, de baixo para cima, apresentando,
por problemas de conduta, obteve o se- ele nunca teve. Gosta de conseguir di-
guinte parecer: “menor apresenta um di- nheiro fácil, mas com prostitutas e tra-
até mesmo, reclamações por parte dos Não se contam idéias místicas ou pre-
genitores. ocupação de ordem religiosa. Pensa-
GE, de apenas 9 anos, ao ser internada fas, mostra-se bem adaptado, tendo
obtido resultado médio, situando-se morais. São eles que diagnosticam a per-
dentro da faixa da nor malidade. Mos- versidade, a ociosidade, a apatia, a falta
tra pobre desenvolvimento psicomotor, de valores éticos, tudo dentro de uma
sugerindo dificuldade em sua coorde- padronização imposta por valores domi-
nação manual motora e uma organiza- nante.
ção e estruturação grafo-perceptiva
Foucault, ao estudar instituições asilares,
inadequada para sua idade. Sua ima-
esteve atento a todos os mecanismos
gem corporal é rudimentar. Possui
produzidos e reproduzidos espacialmen-
lateralidade dominante direita. 57
te, lembrando que, no interior de cada
No caso das adolescentes, a imagem uma das unidades asilares ocorrem prá-
seu universo ao mundo do alienado, dos todo, isto é, cria-se a idéia segundo a
interior das diversas unidades, aplicari- ça dos discursos que se materializam nos
N O T A S
1. Marcel. Proust, Em busca do tempo perdido: no caminho de Swan, São Paulo, Globo, 1998, p.
373.
2. Maria Luiza Tucci Carneiro, “O discurso da intolerância: fontes para o estudo do racismo”,
F ontes históricas : abordagens e métodos, São Paulo, Ed. UNESP, 1996, p. 28.
3. Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos , São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 27.
4. Michel Foucault, Vigiar e punir , Petrópolis, Vozes, 1977, p. 31.
5. Gutemberg Alexandrino Rodrigues, Os filhos do mundo : a face oculta da menoridade, São
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6. Martine Xiberras, As teorias da exclusão : para a construção do imaginário do desvio, Lisboa,
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7. Guillermo O´Donnell, Contrapontos, autoritarismo e democratização, São Paulo, Vértice, 1986.
8. Paulo Sérgio Pinheiro, “Autoritarismo e transição”, Revista da USP , São Paulo, n. 9, mar.-mai.,
1991, p. 55.
9. Marilena Chauí, Conformismo e resistência : aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1993, p. 48.
10.Mary Del Priori, História da criança no Brasil , São Paulo, Contexto, 1998, pp.7-8.
11.Loreley é o nome de uma personagem do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por
Heine, como observa Clarice Lispector. “A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com
seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar”. Clarice Lispector, Uma aprendi-
zagem ou o livro dos prazeres , Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1993, p. 144.
12.Jacques Le Goff, História e memória , São Paulo, Ed. UNICAMP, 1994, p. 30.
13.Michel Foucault, El discurso del poder , México, Folios Ediciónes, 1983, p.74.
14.Idem, p. 71.
15.Idem, p.39.
16.Idem, p. 33.
17.Idem, p. 16.
18.Idem, p. 28.
19.Idem, p. 117.
20.Paul Ricouer, Interpretação e ideologias , Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990, p. 138.
21.Idem, p. 46.
22.Paul Ricouer, op. cit., p. 46.
23.Michel Foucault, Microfísica do poder , Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 13.
24.Idem, ibidem.
25.Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas , São Paulo, Perspectiva, 1992.
26.José Cavalieri, “O bem-estar do menor em comentário”, Brasil Jovem , ano II, dezembro de
1967, p. 65.
27.Lauro Barreira, O menor desamparado, Brasil Jovem, Rio de Janeiro, 2º trimestre de 1971, p.
70.
28.George Balandier, A desordem : o elogio do movimento, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997,
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29.Susan Sontag, A doença como metáfora e a SIDA e as suas metáforas , Lisboa, Quetzal Edito-
res, 1998, p. 88.
30.Leonara Farias Neves da Costa, “O problema do menor abandonado”, Brasil Jovem , Rio de
Janeiro, ano 11, n. 37, 1º quadrimestre de 1977, p.77.
31.Mário Moura Rezende, “A delinqüência juvenil e suas conseqüências”, Brasil Jovem , Rio de
Janeiro, ano IV, n. 13, março de 1970, p. 15.
32.Ibidem.
33.Artigo do professor Vírgílio Donnici (professor catedrático de direito penal do Instituto de
Ciências Penais da Faculdade Cãndido Mendes), Brasil Jovem , ano IV, 3º trimestre de 1970.
34.Idem, p. 64.
35.Gumercindo Fleury, Delinqüência juvenil, Brasil Jovem , Rio de Janeiro, ano II, n. 8, dezem-
bro de 1968, p. 72.
36.Idem.
37.Rosa Maria Fisher Ferreira, Meninos de rua : expectativas e valores de menores marginaliza-
dos em São Paulo, São Paulo, CEDEC, 1979, p. 44.
38.Virgílio Donnici, op. cit., p. 64.
39.Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 179.
40.Juan Manuel Mayorca e Nelson Pizzotti Mendes, Criminologia , São Paulo, Editora Resenha
Universitária, 1975, p. 106.
41.Sérgio Carrara, Crime e loucura : o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do
século, Rio de Janeiro, Ed. UERJ/EDUSP, 1988, p.105.
42.Erving Goffman, Estigma : notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Rio de Janei-
ro Zahar, p. 15.
43.Marilena Chauí, Conformismo e resistência : aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1983, p. 57.
44.Elso Arruda, “Uma análise do ponto de vista da psicologia”, Brasil Jovem , 3º quadrimestre de
1975, p. 35.
45.Idem, ibidem.
46.Maria Helena Capelato, Multidões em cena : a propaganda política no varguismo e no peronismo,
São Paulo, Papirus, 1999, p. 259.
47.Emílio Garrastazu Médici, Mensagem ao jovem do Brasil, Brasil Jovem , ano IV, n. 16, 4º tri-
mestre de 1970, p. 53.
48.Idem, ibidem.
49.Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX , São Paulo,
Brasiliense, 1995, p. 14.
50.Gutemberg Alexandrino Rodrigues, op cit., p. 174.
51.Maria Clementina Pereira da Cunha, O espelho do mundo : Juqueri a história de um hospício,
Rio de Janeiro, Vozes, 1988, p. 114.
52.Michel Foucault, Vigiar e punir , Rio de Janeiro, Vozes, 1977, p 150.
53.PT: 27. 706-A, MM ou SAM.
54.PT: 37.095-A, MPS.
55.PT: 31.919-A, CFF.
56.Roger Chartier, A história cultural : entre práticas e representações, Lisboa, Difel, 1990, p. 17.
57.PT: 28.047-A, GE.
58.PT: 28.234-A, MLB.
59. Michel Foucault, História da loucura , São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 501.
60.Marcel Proust, Em busca do tempo perdido : à sombra das raparigas em flor, São Paulo, Globo,
1998, p.86.
61.Michel Foucault apud Emir Sader, Maria Ignês Bierrenbach e Cyntia Petronício Figueiredo,
Fogo no pavilhão , São Paulo, Brasiliense, 1987, p.12.
62.Idem, ibidem.
A B S T R A C T
This essay intends to expose the discourses analyses that search to represent the social reality of
a determined group, that one composed by the abandoned and delinquent child, during the
decades of 1960 and 1970. It also emphasizes the history of children and young persons of the
poorest strata of the Brazilian society.
Regina Novaes
Secretária executiva
do Instituto de Estudos da Religião – ISER
Perfil Institucional
C
omo a religiosidade se articu- campo religioso dentro das ciências so-
la, pode contribuir ou impedir ciais, propondo novas abordagens e aná-
os processos de mudança na lises do tema. A revista também faz par-
sociedade brasileira? Foram estas inda- te de uma história da emergência de uma
gações que reuniram em 1970, em Cam- cultura acadêmica, em torno dos estu-
pinas, teólogos, leigos e estudiosos da dos da religião no Brasil, servindo como
religião interessados em promover a pes- um veículo para divulgação de idéias.
quisa e a reflexão no campo da cultura e Hoje, Religião e sociedade é, no Brasil,
da religião. Com o passar dos anos, o um dos mais importantes periódicos aca-
Instituto de Estudos da Religião se con- dêmicos especializados neste tema, e
solidou como uma rede de pesquisado- continua a agregar especialistas e a pro-
res e especialistas interessados no cam- vocar novos debates na área.
po religioso, sobretudo da perspectiva
das ciências sociais. Em sua primeira década de existência, o
ISER não tinha uma sede, funcionários
Em 1977, ainda em Campinas, foi fun- ou agenda institucional fixa. Os integran-
dada a revista Religião e sociedade . A tes do Instituto se reuniam periodicamen-
publicação provocou e acompanhou o te para apresentar e discutir textos e pes-
desenvolvimento da reflexão sobre o quisas. Anos mais tarde, com a transfe-
rência da sede para o Rio de Janeiro, o buiu para a criação de alguns dos princi-
Instituto se transfor mou, estabelecendo pais movimentos e projetos voltados
uma agenda que incluía projetos de pes- para a cidadania e direitos humanos no
quisa e intervenção social. Brasil, em particular no Rio de Janeiro.
Em 1979, o ISER se mudou para o Rio Durante a Eco 92, o ISER liderou uma
de Janeiro e passou por uma ampliação grande vigília inter-religiosa pela paz que
mocratização dos anos 1980, o ISER des locais de diferentes tradições religi-
abriu novas frentes de trabalho, envol- osas. Esta experiência de articular dife-
vendo-se com projetos que visavam for- renças e construir unidades em torno de
talecer a participação política de grupos uma questão comum foi muito importan-
marginalizados. Nessa época, o ISER de- te para a criação do movimento Viva Rio,
senvolveu projetos ligados à pobreza ur- que nasceu no espaço do ISER e, poste-
acervo do ISER nessa área inclui séries O ISER orienta políticas públicas compa-
históricas de dados policiais e de saúde tíveis com os princípios e objetivos do
pública; infor mações etnográficas sobre desenvolvimento sustentável. Nos últi-
o funcionamento de delegacias, bata- mos anos, o ISER tem executado proje-
lhões e organizações comunitárias; es- tos de monitoramento e pesquisas liga-
tudos sobre a justiça civil e militar e um dos à Agenda 21, promovendo sua
censo do sistema penitenciário. institucionalização e fortalecimento no
nível local. Iniciativas recentes incluem
Um dos objetivos dos projetos realiza-
a capacitação técnica de gestores e lide-
dos nessa área é qualificar os debates
ranças, projetos de educação ambiental
em torno dos problemas ligados à segu-
e assessoria na aplicação de surveys , na
rança pública, fornecendo subsídios para
elaboração de programas e na
a for mação, execução e avaliação de po-
implementação de projetos demonstra-
líticas públicas. Além de manter uma
tivos.
agenda de publicação de relatórios atra-
vés da revista Comunicações do ISER , o
O RGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL
Instituto mantém parcerias com diversas
agências gover namentais e não-governa- As organizações da sociedade civil com-
mentais. põem um setor cada vez mais importan-
te e complexo na cena pública brasileira
M EIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO – mobilizam recursos e criam novos vín-
SUSTENTÁVEL culos sociais, passando a desempenhar,
em muitos casos, importantes funções
Os projetos na área de meio ambiente e
políticas, sociais e econômicas.
desenvolvimento sustentável se
estruturam de acordo com as diretrizes Há mais de vinte anos o ISER trabalha
do programa de desenvolvimento susten- sobre esse tema, sendo uma das primei-
tável da Agenda 21 Global. Integrando ras instituições a propor uma análise
princípios de preservação ambiental empírica da emergência e crescimento
como aspectos fundamentais do desen- das organizações não-governamentais no
volvimento social, a Agenda 21 Global Brasil. Na última década, o ISER organi-
também orienta e agrega iniciativas nos zou diversos cadastros e bancos de da-
níveis nacional e local. Começando no dos sobre este setor, “sem fins lucrati-
início da década de 1990, o ISER desem- vos”, questionando o senso comum so-
penha um papel agregador, trabalhando bre a história, o papel e a natureza des-
em parceria com movimentos sociais, or- sas entidades. Mais recentemente, pro-
ganizações não-governamentais e órgãos jetos de pesquisa nessa área têm
públicos, para definir políticas e estraté- enfocado a participação, sem fins lucra-
gias de ação. tivos, de atores privados neste setor, com
Mais do que um serviço, o ISER propõe cos. Quando oportuno, os resultados dos
uma parceria estratégica com a equipe projetos desenvolvidos no ISER são di-
dos projetos e com as organizações ava- vulgados na mídia e em fóruns que reú-
A B S T R A C T
Perfil Institucional deals with how the religiosity may contribute or restrain the changes in the
Brazilian society. Having in view the reflection in the field of culture and religion, the Instituto de
Estudos e Religião (ISER) was founded in the seventies to unfold projects of research in four
thematic areas: religion and society; violence, human rights and public security; environment
and sustainable development and organization of civil society.
B I B L I O G R A F I A
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R V O