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ACERVO
E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L

VOLUME 15 • NÚMERO • 01 • JAN/JUN • 2002

E S T U D O S S O B R E A

V I O L Ê N C I A
Presidência da República
Arquivo Nacional

ACERVO
R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L

RIO DE JANEIRO, V.15, NÚMERO 1, JANEIRO/JUNHO 2002


© 2002 by Arquivo Nacional
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CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

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Edição de Texto, Revisão e Resumos
Flávia Roncarati Gomes
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Editoração Eletrônica, Capa e Ilustração
Giselle Teixeira e Maria Judith Azevedo Vieira
Secretária
Ana Teresa de Oliveira Scheer

Acervo: revista do Arquivo Nacional. —


v. 15, n. 1(jan./jun. 2002). — Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2002.
v.; 26 cm

Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X

1.Violência - Brasil - I. Arquivo Nacional

CDD 981
S U M Á R I O

Apresentação

03
Entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro

07
As Empadas do Confeiteiro Imaginário
A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a história
da violência no Rio de Janeiro
Marcos Luiz Bretas

23
As Rusgas da Identidade
Rio de Janeiro, 1831-1833
Ivana Stolze Lima

39
Entre o Crime e a Conciliação
A violência contra a mulher na justiça do Rio de Janeiro
Ana Lúcia Enne, Adriana R. B. Vianna e Sérgio Carrara

59
Violência contra Crianças e Adolescentes
Aramis Antonio Lopes Neto

79
Crime e Castigo
As civilizadas práticas jurídicas de uma Idade Moderna
Márcia de Paiva

95
Os Sindicatos na Idade da Pedra
Adhemar Lourenço da Silva Jr.
115
A Escravidão nas Propriedades Jesuíticas
Entre a caridade cristã e a violência
Paulo de Assunção

133
O Discurso da Ordem
A composição da imagem do menor
Gutemberg Alexandrino Rodrigues

155
Perfil Institucional
Regina Novaes

161
Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O

Há muito pensávamos em publicar um nas ruas, nos anos de 1831 a 1833, na


número da revista Acervo sobre violência cidade do Rio de Janeiro. Entre estes
– tema que está na ordem do dia dos eventos destaca-se a conhecida “noite
discursos políticos e das manchetes de das garrafadas”.
jornais, e que vem merecendo cada vez
Dois temas delicados – a violência contra
mais a atenção de trabalhos acadêmicos.
a mulher na justiça do Rio de Janeiro e a
Ao elaborar a pauta desta edição,
violência contra crianças e adolescentes –
tínhamos em mente que abordar o
são abordados respectivamente no artigo
assunto é tarefa delicada, sensível e que
de Ana Enne, Adriana Vianna e Sérgio
demanda atenção. Por isso escolhemos
Carrara, e no texto de Aramis Lopes Neto.
textos que se dedicassem a estudar a
O primeiro p a r t e d a l e i t u r a d e 1 2 2
violência em diferentes tempos e
processos encaminhados à 1ª Central de
espaços, para nos lembrarmos de que ela
Inquéritos na primeira metade dos anos
está presente em todas as épocas,
de 1990, com o objetivo de nos revelar
variando a forma como se manifesta, e
como se dá a mediação do poder público
sua aceitação, maior ou menor, por parte
nos conflitos domésticos, e o papel da
da sociedade.
justiça na renegociação das relações
Abre este número uma entrevista com
conjugais. O artigo de Aramis historia e
Paulo Sér gio Pinheiro, Secretário de
conceitua a violência contra crianças e,
Estado dos Direitos Humanos. A seguir,
no caso específico do Brasil, aborda o
dois artigos que potencializam fontes do
crescimento dos maus-tratos no âmbito
Arquivo Nacional. O primeiro, um curioso
doméstico, finalizando com propostas
texto de Marcos Bretas, enfoca os
concretas para a sua prevenção.
processos criminais do início do século
XX com o intuito de discutir se estes Em seguida, o texto de Márcia de Paiva
permitem pensar o Rio de Janeiro nos revela que as práticas jurídicas da
daquela época como uma cidade Europa do início da Idade Moderna ainda
violenta. O segundo, de Ivana Stolze são marcadas pela utilização de métodos
Lima, utiliza periódicos raros tendo em punitivos de extrema violência, refletindo
vista analisar as disputas políticas de sobre a forma como ela é assimilada por
inspiração liberal travadas nos jornais e essa sociedade em transição.
Adhemar Lourenço da Silva Júnior violentos contra a escravaria.
aborda em seu artigo a greve de O artigo de Gutember g Alexandrino
trabalhadores das pedreiras e do Rodrigues pretende analisar a imagem
calçamento, em Porto Alegre no ano de que foi sendo construída, nas décadas
1917, analisando os conflitos existentes de 1960 e 1970, de crianças e
entre as categorias de canteiros e adolescentes pobres. Para tanto, utiliza
calceteiros, a fim de estudar a violência artigos publicados na revista Brasil
sindical. Jovem – veículo de propaganda da

O tratamento dispensado pelos jesuítas Funabem – e prontuários da Febem de

aos escravos, nas diversas propriedades São Paulo.

da Companhia de Jesus, é o tema O Per fil Institucional é dedicado ao


escolhido por Paulo de Assunção. O autor Instituto de Estudos da Religião. Criado
nos mostra que, a despeito da defesa do na década de 1970, o ISER se caracteriza
tratamento humanitário, presente nos hoje como um importante centro de
discursos de alguns religiosos, na prática pesquisa, assessoria e capacitação,
era comum o uso de mecanismos de tendo por objetivo fortalecer as
punição e a utilização de métodos organizações da sociedade civil.

Maria do Car mo Teixeira Rainho

Editora
R V O

Entrevista com
Paulo Sérgio Pinheiro

P
aulo Sérgio Pinheiro, doutor em Arquivo Nacional. O senhor tem uma
ciência política, é o atual longa trajetória acadêmica. A partir de
secretário de Estado dos Direitos sua experiência como secretário de
Humanos, tendo sido nomeado em 2001. Estado dos Direitos Humanos, o senhor
Responsável, em 1978, com o historiador diria que suas reflexões sobre o tema da
Michael Hall, pela criação do Arquivo de violência passaram por transformações?
História Social Edgard Leueronth, da
Unicamp, e em 1987, com o professor Paulo Sérgio Pinheiro. Em verdade,
Sérgio Ador no, pelo Núcleo de Estudos minha experiência enquanto secretário
da Violência da USP, instituição do qual de Estado de Direitos Humanos, só tem
é diretor. Atualmente é presidente da confirmado aquilo que suspeitava
Subcomissão das Nações Unidas para a teoricamente, vale dizer, que tanto o
Promoção e Proteção dos Direitos Estado como a sociedade brasileira são
Humanos, além de exercer a função de profundamente autoritários e fazem,
relator especial das Nações Unidas para muitas vezes, um uso indiscriminado da
o Mianmar. Professor da Universidade de violência. A descoberta, para mim, é
São Paulo desde 1985 é autor de diversos constatar in loco a diferença de
livros, ensaios e artigos sobre direitos participação dos vários níveis da
humanos, violência e história social. federação: municípios, estados e União.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 3-5, jan/jun 2002 - pág.3


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Devo dizer que o papel da União é humanos no Brasil?


ingrato: ao mesmo tempo deve
Paulo Sér gio Pinheiro. Os relatórios
responder no plano internacional pela
realizados pelas organizações
violação dos direitos humanos e
internacionais são uma baliza importante
supervisionar os estados da federação
para o Brasil tanto no plano interno como
para que não violem direitos humanos
no plano internacional. Esclareço que na
e, se esses direitos forem violados, que
minha gestão frente à Secretaria de
os culpados sejam punidos.
Estado de Direitos Humanos adotamos
Arquivo Nacional. Como o senhor uma política de transparência, o que
caracterizaria o conceito de direitos significa dizer que mostramos as nossas
humanos? mazelas, mas também todo o esforço
institucional que está sendo realizado
Paulo Sér gio Pinheiro. Direitos humanos
Sérgio
para combatê-las. Acredito que a
é o direito dos sem poder, o direito
transparência permite um diálogo com
daqueles que têm dificuldades de
os órgãos de monitoramento da ONU e
articular sua voz no contexto político da
com a sociedade civil; tarefa essa
nação ou da comunidade inter nacional.
essencial para a consolidação da
A tarefa de promover e proteger os
democracia em nosso país.
direitos humanos é articular ações que
contribuam para transfor mar os “sem Arquivo Nacional. O tema da violência,
poder” em sujeitos políticos ativos. sobretudo urbana, domina hoje as
preocupações da sociedade brasileira,
Arquivo Nacional. Que balanço o senhor
que espera soluções rápidas e, às vezes,
faria da atuação da Secretaria de Estado
radicais para o problema. Na sua opinião,
dos Direitos Humanos? Que linhas se
é factível acenar com soluções de curto
mostraram mais eficazes?
prazo?
Paulo Sér gio Pinheiro. A Secretaria de
Sérgio
Paulo Sérgio Pinheiro. Gostaria de
Estado de Direitos Humanos conseguiu
lembrar que o tema da “violência urbana”
nesses sete anos de atuação, tendo tido
está presente não só no debate político
à frente José Gregori e o embaixador
brasileiro, mas na comunidade internacional
Gilberto Ver gne Sabóia, transformar a
com um todo. Na última eleição francesa
proteção dos direitos humanos em
o debate central foi sobre a política de
política pública. Essa é uma conquista
segurança pública a ser adotada. Com
irreversível não só do governo brasileiro,
relação a essa questão deve-se
mas da sociedade como um todo.
diferenciar os atos concretos de violência
Arquivo Nacional. Como o senhor vê as e o sentimento de insegurança. As
avaliações de organizações internacionais políticas “milagrosas” e imediatas de
a respeito da situação dos direitos segurança acabam baseando-se não no

pág.4, jan/jun 2002


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combate à violência urbana de for ma coordenação de Nancy Cárdia mostra que


efetiva, mas no controle do sentimento a maior parte dos brasileiros e brasileiras
de insegurança. Mais policiais, mais não vê a violência como forma de
viaturas, mais armas na rua e uma polícia resolução dos conflitos. É evidente que
mais violenta não atacam o cer ne do uma prática autoritária ainda teima em
problema. p e r s i s t i r, c o m o c o s t u m o a f i r m a r, “ o
passado não morreu, nem é passado
Arquivo Nacional. A sociedade brasileira
ainda”... Mas sou otimista. É
já consolidou uma vocação democrática?
imprescindível continuar a persistir, a
Preconceitos, valores e o descrédito das
luta árdua pelos direitos humanos nos
instituições também contribuem para a
ensina essa lição.
violência?

Paulo Sérgio Pinheiro. O último


latinobarômetro indica que o povo
brasileiro acredita na democracia. Entrevista concedida em setembro de
Pesquisa realizada pela Secretaria de 2002 a Claudia Heynemann e Maria do
Estado de Direitos Humanos com a Car mo T
Carmo T.. Rainho.

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Marcos Luiz Bretas


Professor do Departamento de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro

As Empadas do
Confeiteiro Imaginário
A pesquisa nos arquivos da justiça
criminal e a história da violência
no Rio de Janeiro

N
ão é de hoje que os arquivos quando passou a ser muito utilizada, sob
de processos criminais atraem o impacto da história social inglesa e de
a atenção dos pesquisadores Foucault. Estas análises tor nar-se-iam
da história do Brasil. A preocupação lati- mais e mais comuns, na medida em que
na com o registro dos autos motivou a chegavam ao Brasil trabalhos de Robert
produção de documentos preciosos para Dar nton, Carlo Ginzburg e Natalie Z.
buscar tanto a identidade dos indivídu- Davis, baseados em fontes semelhantes.
os envolvidos como suas falas, O grande volume de trabalhos então pro-
freqüentemente alcançando grupos soci- duzido tinha como ponto de partida
ais que deixaram pouquíssimos registros metodológico a discussão sobre as pos-
de outros tipos. Fazer a revisão sibilidades de conhecimento histórico a
historiográfica destes estudos tomaria um partir dos processos; se seria possível ali
espaço alentado, além do que me propo- encontrar “a voz” de grupos excluídos,
nho aqui. Importa apenas marcar que ou apenas mais um discurso do poder,
após o uso inovador deste tipo de acer- com o qual só seria possível fazer uma
vo por Maria Sílvia de Carvalho Franco, história do poder judiciário.
ainda nos anos 1960, a análise de pro-
cessos criminais per maneceu pouco ex- É possível que esta discussão tenha fi-
plorada até o final da década de 1970, cado para trás, mas a riqueza e a diver-

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sidade encontradas nestas fontes me leva de Maio. Dona Julieta, aos quarenta
a retomar estas questões, propondo a anos, era viúva, e foi recebida pressuro-
multiplicidade de métodos e temas que samente por seus filhos – Hercília, de 23
os arquivos criminais podem oferecer e anos, Alice, de vinte e Alberto de 18 –
– o que talvez seja o ponto crucial – o que providenciaram a vinda do doutor
número de questões ainda por resolver. Júlio César Suzano Brandão, morador
Neste sentido, uma proposição curiosa, nas vizinhanças. O médico diagnosticou
mas fundamental, é que a riqueza dos um envenenamento alimentar e inquiriu
documentos foi utilizada para questões dona Julieta, que informou ter se alimen-
as mais diversas, deixando de lado seu tado apenas com pão e café antes de ir
aspecto mais óbvio, que é a história do para a cidade, onde comeu empadas e
crime e da violência no Brasil, sem men- pastéis de camarão na confeitaria do lar-
cionar a história da justiça. Como teste go de São Francisco 32, canto da rua dos
desta proposição, tentarei discutir neste Andradas. A suspeita de envenenamen-
trabalho se os processos criminais per- to foi comunicada à 16ª Delegacia de Po-
mitem pensar o Rio de Janeiro do início lícia, que abriu inquérito. A situação era
do século XX como uma cidade violenta. tão grave que dois dias depois dona
Julieta veio a falecer.
Seguindo este enfoque, pretendo apre-
sentar – provavelmente com muita sim-
As investigações dirigiram-se para a con-
patia – algumas das regras do que se
feitaria, suspeita de ter vendido os ca-
constitui como a história social brasilei-
marões fatais. O delegado ouviu no dia
ra recente. Um bom exemplo destas re-
seguinte os responsáveis. Primeiro falou
gras, que infelizmente já quebrei e es-
o senhor José Joaquim Ferreira, um por-
pero não seja tarde para remediar, é que
tuguês de 68 anos, sócio e gerente da
um trabalho comme il faut começa com
confeitaria. Ele negou qualquer possibi-
uma boa história. Fosse um folhetim, a
lidade de problema com as empadas e
próxima parte desta introdução seria
pastéis; no dia anterior haviam servido
intitulada: “Onde se explica o título des-
mais de mil pessoas, tendo vendido an-
te trabalho”.
tes das 9 horas da noite todas as três
Dona Julieta Cordeiro Dias chegou em mil e duzentas empadinhas e pastéis de
casa passando muito mal. O trajeto de camarão produzidos. Os produtos eram
bonde entre o largo de São Francisco e frescos, os camarões adquiridos no mer-
sua casa, na rua Santa Luísa, foi muito cado e rejeitados quando de má aparên-
penoso, entre vômitos e mal-estar, pre- cia. A cozinha tinha bom equipamento e
cisando mesmo da ajuda generosa da o estabelecimento gozava de bom con-
professora Elisa Brandão, que ia também ceito, tendo entre seus fregueses o almi-
no mesmo carro para sua casa à rua 24 rante Pinheiro Guedes e o doutor Guilher-

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me do Vale, médico de higiene. Conhe- cer o funcionamento das confeitarias do


cia mesmo dona Julieta, freguesa cons- centro, numa época quando as empadas
tante, ainda que não se lembrasse de tê- tinham dois camarões! Isso se não for
la visto no dia anterior. Depois dele fa- lorota do Imaginário, afinal é costume
lou o confeiteiro José Imaginário, um mentir para a polícia... Uma afirmação
português de 27 anos, casado, morador básica dos estudos sobre polícia é que
na rua Paula Matos 174, chefe da cozi- boa parte da atividade policial cotidiana
nha. Este também negou a responsabili- não envolve qualquer tipo de ocorrência
dade do estabelecimento. A farinha vi- criminal. Investigações e esforços são di-
nha ensacada do Moinho Fluminense e rigidos para a apuração de fatos que
os patrões fiscalizavam os produtos, re- podem ter explicações triviais, mas que
jeitando os camarões que não achassem durante a investigação permitem ou exi-
bons. Ele fez questão de ressaltar que gem olhar para a vida das pessoas e suas
havia colocado pessoalmente dois cama- relações. Também os padrões de habita-
rões em cada empadinha. ção podem ser objeto de investigação
nos arquivos criminais. Assim como dona
Com o falecimento de dona Julieta foi
Julieta, morando ao lado de suas filhas,
pedida a autópsia, e passou-se algum
muitas portas – de diferentes grupos so-
tempo antes da família e o médico se-
ciais – se abrem aos inquéritos policiais,
rem ouvidos. Nada de novo surgiu; para
por circunstâncias mais ou menos fortui-
nós, talvez valha saber que dona Julieta
tas. Do ponto de vista das camadas mais
morava com o filho Alberto, funcionário
altas, podemos visitar a casa do despa-
público, habitando na casa ao lado sua
chante geral da alfândega, Bento Luís
filha Hercília, com o marido e sua ir mã,
Ribeiro Neto, brasileiro, casado, 38 anos,
sugerindo um tipo de estrutura
residente na vila Almeida, no Caminho
residencial familiar que pode ser carac-
do Açude. Eram seis horas da manhã
terístico desse período. Quando chegou
quando começava o dia de sua cozinhei-
o resultado da autópsia, vinte dias após
ra. A portuguesa Francisca Pereira da
a morte da vítima, ficou constatada uma
Silva, solteira de 39 anos e 1 metro e 48
hemorragia do cerebelo e nenhum sinal
centímetros – autópsias produzem infor-
de envenenamento. Desapontamento
mações próprias – tentava acender o fogo
para meus leitores mais sanguinolentos,
com álcool quando a garrafa explodiu
o delegado pediu e obteve o arquivamen-
ateando fogo às suas vestes. A criadagem
to do inquérito, pois não havia crime.
depõe em peso. Contam a mesma histó-
A tragédia de dona Julieta, direto dos ria – aparentemente pouco havia para
arquivos da oitava pretoria, não tem a contar – o jardineiro Leonardo, casado,
menor utilidade para a história do crime português, trinta anos, sabendo ler; a
no Rio de Janeiro. Mas onde mais conhe- copeira e arrumadeira Maria Eugênia

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Silveira, carioca de 28 anos, solteira e da em 115 anos. Talvez cansada da vida


analfabeta; a lavadeira e engomadeira e de dar conta sozinha do serviço domés-
Maria Cândida de Morais, portuguesa de tico, ateou fogo às vestes. Quanto não
25 anos, solteira e analfabeta e a ama- teria visto esta possível remanescente do
seca Maria Leopoldina das Virgens, viú- século XVIII! 2
va sergipana de 26 anos, analfabeta. Cin-
co pessoas constituíam a equipagem do Nas moradias populares as mulheres não
despachante Bento, inclusive uma ama, escapavam da ação policial. Vejamos
o que indica a existência de crianças, duas casas de cômodos: na da rua do
mas a família neste caso fica afastada Bispo 126 a polícia teve de arrombar o
do caso. Mulheres e crianças da elite não cômodo onde foi encontrada morta
deviam ser envolvidas em matéria poli- Praxedes da Conceição. Segundo a arren-
cial. 1 São quatro mulheres, todas sem datária da casa, a portuguesa Delfina
companheiro no registro civil, e um ho- Cunha, viúva de quarenta anos, fazia
mem casado. Esta diferença parece fa- quatro meses que Praxedes vivia de fa-
zer parte das exigências garantidoras da vor no porão – este personagem clássi-
respeitabilidade do lar, que poderia ser co da exploração, o locador de cômodos,
perturbada por homens solteiros ou mu- podia se dar ao luxo de alguma carida-
lheres casadas. Mais que isso, o jardi- de. Com mais ou menos setenta anos e
neiro é alfabetizado enquanto as mulhe- doente, a velha parda 3 era estimada por
res são todas analfabetas, ilustrando todos, como confirmam os depoimentos
mais um padrão de desigualdade de gê- dos moradores Marcos Guimarães, cari-
nero. Por fim, o mapa das origens cons- oca, quarenta anos, casado, cozinheiro,
titui o Rio da época: três portugueses – analfabeto; Canuta da Silva, fluminense,
bons trabalhadores, respeitáveis; uma 29 anos, casada, doméstica, sabendo ler,
carioca e a viúva ser gipana – como viú- e Adolfo Ferreira da Silva, carioca de 59
va mais experimentada no trato com as anos, casado, sabendo ler, sargento re-
crianças (teria filhos?). formado dos bombeiros.4 Situação seme-
lhante à da morte do químico industrial
Mais humilde era a residência de Manuel alemão Júlio Heimann, solteiro de qua-
Gomes da Silva, um português de 28 renta anos presumíveis. Havia apenas
anos, solteiro, que morava e tinha ar ma- poucos dias que ele tinha alugado a sala
zém na rua Leopoldo. Chamado do ar- da frente e um cômodo de José Ribeiro,
mazém à sua casa, de onde saía fuma- português, 36 anos, casado, mestre-de-
ça, levou consigo outro negociante – pro- obras e encarregado da casa de cômo-
vavelmente um sócio – e o caixeiro, e dos da rua Leopoldo 54. Seu vizinho na
encontrou morta a cozinheira Anacleta casa, o caixeiro Augusto José Fernandes,
de Jesus, preta, viúva, de idade estima- português de 33 anos, casado, sentiu o

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mau cheiro no quarto e chamou a polí- cutível vantagem de permitir a constru-


cia, que arrombou e encontrou o cadá- ção de indicadores mais objetivos para
v e r. D e p õ e m t a m b é m a s m o r a d o r a s sua quantificação. Ainda assim alguns
Rosália Carneiro, de 35 anos, e Adelaide problemas subsistem, especialmente no
Vaz Pereira de trinta, duas portuguesas que diz respeito à legitimidade social-
casadas e domésticas que moravam na mente conferida a certos usos da violên-
casa. 5
Residências coletivas de pessoas cia física. Algum uso da força em práti-
mais pobres ainda guardavam presente cas esportivas, na educação infantil ou
a figura da esposa que per manecia no na ação estatal é aceito e não deixa re-
lar, fora do mercado de trabalho. Aqui gistros. É absolutamente legítimo consi-
são os maridos que pouco aparecem. derar violenta uma sociedade pela for-
ma de educação de suas crianças pelos
Pelas mãos dos delegados de polícia é
pais, mas os indicadores desta violência
possível penetrar em residências, bares,
são, em geral, impressionistas. Ficamos,
locais de trabalho e inventariar a popu-
portanto, restritos à violência
lação que por ali passava – ou parte dela.
interpessoal passível de criminalização,
São ocorrências de caráter não criminal,
ainda que esta também, freqüentemente,
onde as dúvidas do historiador sobre a
escape das malhas da lei.
manipulação de infor mações podem ser
significativamente menores. Este mate-
Estabelecendo um conceito limitado de
rial parece indicar a existência ainda de
violência, torna-se possível começar a
inúmeros elementos a serem explorados
construir comparações. Definir a violên-
nos acervos da justiça criminal; mas ain-
cia de uma época e lugar significa
da continua de pé a questão sobre o uso
classificá-la em relação a outras épocas
das fontes para a história do crime, que
ou regiões. Dizer que o Rio de Janeiro
tentaremos discutir a partir da possibili-
era uma cidade violenta quer dizer, em
dade de se pensar a sociedade carioca
primeiro lugar, que os níveis de violên-
como violenta no início do século XX.
cia eram maiores que os anteriores ou
A primeira questão que precisa ser en- posteriores, ou que era uma cidade mais
frentada é definir o que vamos compre- violenta que outras da mesma época, es-
ender como “violência” neste trabalho. colhidas para a comparação. Aqui os cri-
Esta questão não é simples, permitindo térios de escolha podem ser diversos,
diferentes respostas que encaminhariam mas sempre difíceis de justificar: cida-
a pesquisa em direções as mais diver- des brasileiras, cidades latino-america-
sas. A solução mais simples é conside- nas, cidades mediterrâneas, capitais...
rar como “violência“ a ação física volun- Via de regra o que se vê é a comparação
tária de indivíduos sobre outros causan- com os dados disponíveis (nos dias de
do dor. Esta definição apresenta a indis- hoje, por exemplo, só se fala em Nova

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Iorque), ainda que as diferentes formas deria ser um bom indicador da penetra-
de coleta tornem arriscada qualquer con- ção de relações sociais de tipo moderno
clusão. ou capitalista no Brasil. Por outro lado,
como os dados apresentados por
A variação temporal parece ser um ele-
Holloway para o Rio de Janeiro do sécu-
mento importante a ser levado em con-
lo XIX, quando confrontados com as es-
ta. A criminologia contemporânea tem
tatísticas do início do século XX, pare-
aceitado algumas variações como carac-
cem indicar um movimento inverso ao
terísticas da construção das sociedades
europeu, com os crimes contra a pessoa
ocidentais modernas: em primeiro lugar
passando a suplantar os crimes contra a
haveria um declínio marcado da “violên-
propriedade, torna-se necessário apre-
cia” desde o fim da Idade Média até a
sentar hipóteses explicativas desta dife-
primeira metade do século XX – acentu-
rença. Uma primeira possibilidade é acei-
ado no século XIX – para depois come-
tar a análise clássica de Maria Sílvia de
çar um movimento ascendente nos últi-
Carvalho Franco, que considera o
mos cinqüenta anos. Em segundo lugar,
escravismo brasileiro do século XIX
parece haver um correspondente aumen-
como já dotado do espírito do capitalis-
to de crimes contra a propriedade, que
mo, voltado para o lucro, possível de ser
vão suplantando os crimes contra a pes-
obtido tanto no mercado como no furto.
soa, na medida em que se consolida a
Mas dados de outras regiões do Brasil,
sociedade capitalista.
apresentados por Maria Helena Machado
Esta variação na longa duração, ainda e Maria Cristina Wissenbach, por exem-
que aceita, não parece fazer muito sen-
plo, não correspondem ao que Holloway
tido diante da experiência colonial e encontrou no Rio de Janeiro. Desta for-
escravista brasileira, sem falar do cará- ma, a situação do Rio de Janeiro parece
ter meramente indicativo dessa tendên-
ser específica, mesmo no quadro do Bra-
cia, diante da inexistência de dados mi- sil do século XIX – nesse sentido se po-
nimamente confiáveis para análises de deria imaginar que só esta cidade já pe-
longo prazo. Olhando para frente, ao con-
netrara no mundo capitalista.7
trário, o movimento parece apresentar
alguma lógica, que per mite a construção
Com isso já chamamos a atenção para a
imaginária de um passado melhor: com-
importância da comparação com outras
parado com o que viria depois, o Rio de
cidades do mesmo período, ainda que a
Janeiro belle époque não pode ser con-
realidade urbana brasileira da virada do
siderado violento. 6
século fosse extremamente limitada, e o
Dentro desse contexto a correlação en- papel do Rio de Janeiro muito distinto
tre crimes contra a pessoa ou contra a do de outros núcleos urbanos menores. 8
propriedade tem maior significado. Po- As comparações mais facilmente realizá-

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veis são com cidades européias ou dos sária de resolução de conflitos. Deste
Estados Unidos, onde as estatísticas são tipo de cultura fariam parte os italianos,
abundantes, mas o poder explicativo das portugueses e espanhóis que compu-
comparações mais limitado. Além de pro- nham o grosso da imigração que viria a
cessos sociais bastante diversos, come- constituir a sociedade brasileira urbana
ça a se mostrar necessária a qualifica- do início do século XX. Aceitando-se este
ção dos graus de violência de que se está componente de identificação cultural de
falando. Mesmo definindo “violência“ sociedades mais afeitas ao uso da vio-
como um fenômeno relacionado com o lência, torna-se necessário buscar for-
uso da força física, esta ainda pode ser mas de avaliar a violência cotidiana, não
utilizada em graus bastante diversos, necessariamente de conseqüências fa-
desde as brigas de rua sem o uso de ar- tais. 9 Certamente, a sociedade carioca
mas, até o homicídio. O grau mais alto é do início do século XX apresenta um ele-
certamente o que atrai maior atenção e vado nível estatístico de pequenos con-
produz mais – e quiçá melhores – com- flitos, configurado no imenso registro de
parações. Além disso, como é comum ofensas físicas leves (artigo 303 do Có-
apontar-se para o número de ocorrênci- digo Penal de 1890). Por dá cá aquela
as criminais que escapam aos registros palha iniciava-se uma briga, que poderia
oficiais, o número de homicídios é um se travar a tapa, com objetos atirados –
dos que mais se aproxima das cifras re- o que houvesse disponível de imediato,
ais – provavelmente muito poucos homi- vassoura ou açucareiro –, ou quem sabe
cídios passam desapercebidos, exceto, mesmo na faca ou tiro, quando algum
talvez, em tempo de guerra. Assim, atra- dano mais grave poderia resultar. Outras
vés da taxa de homicídios, seria possí- cidades brasileiras do mesmo período
vel afirmar que o Rio de Janeiro do iní- não hesitavam em diagnosticar sua vio-
cio do século era uma cidade muito me- lência pela presença destes imigrantes
nos violenta que o Rio de Janeiro de desordeiros, como São Paulo ou Belo
hoje, e que, entre as cidades da época, Horizonte. 1 0 O caso do Rio de Janeiro
mantinha taxas já bem mais elevadas do era um pouco mais complicado; nosso
que as grandes capitais do mundo, ain- imigrante era principalmente o português,
da que se mantivesse num padrão com- menos identificado pela violência, mais
patível com a cultura mediterrânea, misturado no cenário social da cidade, e
encontrável em Roma ou Buenos Aires. avaliado talvez de forma positiva diante
da massa de homens pobres de cor oriun-
As chamadas sociedades mediterrâneas, dos da escravidão, de onde viriam os
onde a honra teria um papel fundamen- mais perigosos desordeiros e capoeiras.
tal na or ganização social, teriam a vio- Mesmo assim, para os dirigentes polici-
lência como uma forma legítima e neces- ais do período, a presença de imigran-

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A C E

tes era considerada como um dos prin- quente, latino, que faria de uma certa
cipais fatores explicativos para as ocor- forma de violência parte integrante da
rências criminais com que se defronta- cultura ou forma legítima de resolução
vam. de conflitos. Pelo primeiro a violência se
torna invisível, pelo segundo normal. Es-
Convém destacar que aqui começamos
tas explicações, quase que contraditóri-
a introduzir um novo tipo de problema
as, parecem fazer parte do senso comum
na discussão, peça importante na
para serem utilizadas quando se faz ne-
historiografia contemporânea. Quando
cessário explicar ou pedir comportamen-
pensamos se o Rio de Janeiro do início
tos em situações de conflito. Na ordem
do século seria uma sociedade violenta,
do discurso constrói-se a idéia de que
estamos nos referindo a um conceito
“o brasileiro” é coletivamente pacífico –
nosso de violência – ou a padrões pro-
povo ordeiro nas manifestações políticas
duzidos pelo historiador – ou estamos
– e individualmente violento na sua
discutindo dentro das categorias do pe-
domesticidade – resultado do sangue
ríodo, se os cariocas de então pensavam
quente e da latinidade.
viver numa cidade violenta? Mesmo sem
hierarquizá-los, é preciso reconhecer que Este enfoque geral torna improdutiva a
se tratam de dois problemas diferentes. discussão de conjunturas específicas,
A idéia de sociedade mediterrânea pode como a do início do século. A violência
ser proposta como modelo explicativo de seria um atributo constante no qual pe-
análise ou ser reconhecida nas explica- quenas variações ocorreriam pela entra-
ções produzidas pelos contemporâneos, da dos grupos estranhos produzindo ti-
como faziam os dirigentes policiais. En- pos de desordem pouco características.
quanto boa parte da historiografia cor- Se este tipo de abordagem pode satisfa-
rente se preocupa com a criminalização zer a certos grupos nas ciências sociais,
e o controle dos negros, o discurso utili- ele certamente não responde a questões
zado no período parece apontar para colocadas pela história. Ao contrário, a
uma preocupação muito maior com o produção e o vigor destas grandes teori-
mau imigrante, que estaria contaminan- as é que deve ser objeto de estudo. A
do a pacífica e ordeira sociedade brasi- honra como motivo de violência pode ser
leira. bastante importante, especialmente no
quadro das relações familiares em mu-
Dois grandes quadros explicativos pro-
dança no final do século XIX,11 mas não
venientes da área da cultura parecem se
deve ser tomada como variável
defrontar: de um lado a tradição ordeira
explicativa para todo a presença da vio-
do povo brasileiro, tor nando irrelevantes
lência na cultura carioca ou brasileira.12
ou exógenas as manifestações de violên-
cia. De outro a presença de um sangue Talvez o elemento central a ser guarda-

pág.14, jan/jun 2002


R V O

do deste debate é que os contemporâ- balhos sobre a polícia têm tentado mos-
neos tinham explicações articuladas so- trar que o estado era mais complexo do
bre a violência em sua sociedade. Isso que isso, e que a transformação em ação
pode parecer óbvio à primeira vista e política dos discursos oficiais enfrenta-
objeto de uma extensa bibliografia so- va dificuldades de monta. Dentro dos di-
bre o discurso jurídico ou médico do iní- ferentes escalões do estado coexistiam
cio do século. Mas existe sempre o pro- diagnósticos diversos dos motivos e for-
blema, freqüentemente ignorado pela mas da violência carioca motivados por
historiografia brasileira, de tomar a dis- expectativas diversas e que acarretavam
cussão inter na de um grupo profissional contradições nas ações contra a desor-
– como médicos ou advogados – como dem; os problemas percebidos nos gabi-
expressão de questões sociais significa- netes não eram necessariamente os mes-
tivas. 13
Além disso, estas explicações mos que incomodavam os operadores na
nem sempre dão conta dos efeitos práti- ponta do sistema. Da mesma for ma,
cos destes discursos, isto é, de até que ações produzidas no policiamento coti-
ponto as preocupações e explicações da diano – como as inúmeras prisões por
violência presente na sociedade serviam vadiagem – podiam resultar num núme-
de orientação para ações individuais de ro mínimo de condenações pela justiça,
autoproteção ou para a definição de po- insensível à mecânica policial. 14
líticas públicas.
As ações públicas indicam uma percep-
A for mulação de políticas públicas de ção da existência de um grau significati-
contenção da violência no início do sé- vo de violência na sociedade. Em algu-
culo XX tem sido extensamente estuda- ma medida isto deve ser encarado com
da, sendo considerada uma das princi- desconfiança; aparelhos públicos de se-
pais matrizes de orientação do novo es- gurança precisam sempre apontar para
tado republicano. Para conter a pobreza a violência da sociedade até mesmo
urbana este estado teria optado por uma como forma de justificar sua existência
política de repressão constante – utilizan- e as verbas destinadas à sua manuten-
do por sua vez de violência, desta vez ç ã o . 1 5 Ainda assim, a inquietação das
oficial, ainda que nem sempre legal – que elites no final do século XIX era real,
atingia desde os sem-trabalho até os tra- mesmo que seus motivos talvez não fos-
balhadores que tentavam se organizar. sem. As transformações sociais do sécu-
Relatórios de ministros da justiça e che- lo haviam produzido uma massa de po-
fes de polícia oferecem abundante evi- bres urbanos que participou ativamente
dência destas preocupações e do esfor- de distúrbios e revoluções, ampliando
ço dos gestores do estado em produzir em muito o medo à multidão urbana e
ordem na capital da república. Meus tra- incentivando o desenvolvimento de um

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pág.15


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conhecimento “científico” dos comporta- Além disso, eram importantes ocasiões


mentos individuais ou coletivos que con- onde estes pequenos funcionários públi-
fir mava plenamente os temores. O Rio cos podiam demonstrar o seu poder, dis-
de Janeiro não escapava das agitações tribuindo justiça, protegendo amigos, e
populares – ao menos desde a revolta do criando teias de relações sociais nas
vintém em 1880 – e as elites governantes quais teriam alguma influência, ainda
e intelectuais estavam bem aparelhadas que bastante limitada – era o lugar da
com as teorias de Lombroso ou Le Bon construção e afirmação das pequenas au-
para interpretá-las. O aparato teórico eu- toridades locais. A situação não era mui-
ropeu, em sua aplicação brasileira, en- to diferente nos pequenos crimes contra
contrava nos elementos estranhos do que a propriedade: investigar ou não, colo-
seria a sociedade brasileira – estrangei- car pressão sobre suspeitos ou não, eram
ros ou negros – as razões da desordem. decisões que envolviam os padrões de
Ao mesmo tempo deslocava suas preo- relacionamento estabelecidos entre os
cupações dos eventos criminais mais fre- policiais e queixosos, o trânsito de auto-
qüentes para aqueles que de alguma for- ridade pública e poder. 16 Mas este pa-
ma poderiam afetar os membros da boa drão de ação não era definido por uma
sociedade: não havia grande preocupa- percepção clara da gravidade do proble-
ção com a pequena violência, mas com ma social; os policiais normalmente de-
as chamadas contravenções da vadiagem senvolvem uma visão bastante pessimis-
e do jogo ou com a prostituição, onde o ta da realidade, por conviver permanen-
sistema produtivo ou as boas famílias temente com as misérias humanas, que
poderiam ser atingidos. pode até aparecer sob a forma de um
discurso de agravamento dos problemas,
Os elementos da ponta do sistema, os mas que parece ser um componente de-
policiais que conviviam com o dia-a-dia rivado de sua posição na sociedade.
da população, buscavam estabelecer um
sistema de convivência possível com os Não são muitos os casos de policiais que
dirigentes que os empregavam e com os deixaram registrada – fora dos livros de
grupos sociais onde trabalhavam e, mais ocorrência das delegacias – sua percep-
que isso, viviam. De seu ponto de vista, ção sobre o problema do crime e da vio-
questões como prostituição ou jogo não lência na cidade. Por isso, parece extre-
deviam ser levadas tão a sério, sendo mamente valioso o livro Os ladrões no
parte de um cotidiano classificado pelo Rio , do delegado Vicente Reis. Seu sub-
menos como um mal necessário. Os pe- título já é delicioso: Sua crônica, suas
quenos conflitos, por outro lado, leva- operações, sua gíria, sua polinomia, seus
vam sempre reclamantes às delegacias, vulgos, seus retratos, gravuras descriti-
perturbando o sossego dos policiais. vas, episódios e tudo o mais concernente

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à vida e obra dos rapinantes que infes- está ao alcance de todas as bolsas,

tam a cidade do Rio de Janeiro, com ra- deixa de comer quem não quer, por-
mificações por São Paulo e Minas: estu- quanto o infeliz nunca bate em vão à

dos e observações minuciosas, 1898- porta do semelhante. O brasileiro é,

1903. 17
O jovem Vicente Reis iniciou em geral, generoso.
uma carreira como delegado de polícia
Demais, entre nós, o trabalho não es-
e escritor no Rio de Janeiro, antes de
casseia. Toda a gente encontra ocupa-
transferir-se para o Amazonas, onde par-
ção e o serviço tem sempre paga
ticipou por longo tempo da vida pública.
compensadora. 18
Neste livro ele utiliza sua experiência e
o depoimento de um escroque, o doutor Mesmo neste cenário paradisíaco, o po-

Cornélio, para descrever as práticas dos licial alerta para os perigos. Como as leis

criminosos cariocas. Seu diagnóstico ini- são frágeis e a polícia mal preparada, a

cial é típico do pensamento policial: o “gatunagem desterrada da Europa” está

Rio, ao contrário da Europa, seria uma se estabelecendo por aqui, o crime vem

cidade muito pacífica, pois os ricos não aumentando, e “atinge a mil o número

ostentam sua riqueza e os pobres não dos rapinantes conhecidos” na cidade.

passam necessidade, pois há fartura de Se a violência como problema era per-


trabalho: cebida ou apontada com freqüência por

A opulência, companheira inseparável


aqueles que deveriam enfrentá-la como

dos milionários e das pompas que as ri-


função pública, a questão se torna mui-

quezas lhes dão, raramente se desco-


to mais complexa quando tentamos ava-

bre na capital federal.


liar a percepção dos habitantes da cida-
de. Assim como tentamos indicar a difi-
Em geral a gente apatacada, entre nós,
culdade de tratar o Estado como uma to-
economiza para gozar no exterior, onde
talidade, o mesmo ocorre com o conjun-
se desforra dos tristes dias de um pas-
to da população. Recortes de classe, o
sado cheio de amarguras provenientes
povo, camadas populares, a opinião pú-
de um labor incessante, compensando-
blica, diversas categorias ou recortes
os com a delícia que despertam os
podem ser propostos, sem satisfazer ple-
novos climas, os ares estranhos, cos-
namente como configuração de diferen-
tumes e usos diversos.
tes grupos que compartilhavam o espa-
Acresce que no Rio de Janeiro ninguém ço urbano. Problema metodológico
sofre as torturas da fome, o que não crucial e que só pode ser resolvido por
se dá na Itália, em Londres, em Paris. opções artificiais. Uma das formas mais
Nesta abençoada terra onde, graças a comuns é utilizar a imprensa, repositório
Deus, o que diz respeito a gênero de melhor estruturado de uma improvável
consumo, no tocante à alimentação, – em todos os sentidos – opinião públi-

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ca. Através dos diversos jor nais, revis- cidade vivia sob um “grande medo”, que
tas, ou utilizando alguns cronistas recor-
não deve ser tomado como mera ma-
rentes no início do século – Machado de
nifestação histérica de setores médi-
Assis, João do Rio, Lima Barreto e Olavo
os cercados por uma realidade de ex-
Bilac entre os mais citados, mas há uma
trema iniqüidade social. As classes po-
infinidade de outros – é possível cons-
pulares também se vêem ameaçadas
truir diferentes visões do problema da
pelas hordas de desocupados e desva-
violência carioca. Seria extenso demais
lidos que perambulam pelas ruas da
tentar analisar cada cronista e seu dis-
capital...21
curso sobre a violência – ou qualquer
Neste ponto, a evidência da imprensa
outro tema. Para nossos objetivos basta
parece ser bastante limitada. As recla-
deixar claro que se tratam de posições
mações de fato existiam, mas é difícil
bastante distintas, assim como podem
precisar quem reclamava e, principal-
ter os jor nais. A expansão da imprensa
mente, quem não reclamava e qual era
diária no início do século XX motivou
o objeto das reclamações. Fica sempre
uma diversificação de estratégias para
para a imaginação do leitor o que acon-
conquistar o público, entre as quais o
tecia quando alguém estava se queixan-
apelo a narrativas e crimes foi das mais
do que “maltas de menores desocupados
empregadas. Discutir a violência tendo
cometiam toda a sorte de desatinos, [...],
como fonte o Jornal do Comércio, o Cor-
no bulevar 28 de Setembro”. 22 O desati-
reio da Manhã , ou A Noite pode levar a
no de uns podia ser a alegria de outros...
resultados bastante diversos. A tentati-
O espaço urbano carioca vivia em rápi-
va mais consistente de analisar o trata-
da transformação, onde visões
mento jor nalístico dos problemas urba-
conflitivas sobre a ordem urbana eram
nos foi feita por Eduardo Silva. 19 A par-
expressas nessas opiniões publicadas na
tir de uma coluna do Jor nal do Brasil que
imprensa, que procuravam mobilizar su-
busca dar voz a seu público, Eduardo
porte do Estado e de seus agentes repres-
constata que preocupações com a vio-
sivos. As manifestações na imprensa in-
lência na cidade estavam entre as mais
dicam que setores não diretamente en-
freqüentemente apresentadas no jor nal,
volvidos na gestão do Estado tinham al-
mas que incidiam principalmente sobre
guma preocupação com o ajuste de um
o comportamento das forças públicas de
código coletivo de ordem urbana. O que
segurança. Quando Eduardo menciona
parece um pouco mais difícil de ser veri-
que “viver no Rio era muito perigoso na-
ficado é até que ponto esta percepção
queles dias”, 20
o problema principal era
da desordem influía sobre o comporta-
a arbitrariedade de policiais e outros
mento cotidiano.
agentes. Mesmo assim, Eduardo sugere
– parafraseando Georges Lefebvre – que a Para avançar um pouco nesta questão

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R V O

será conveniente introduzir a questão ao trabalho do delegado Vicente Reis.


das vítimas e dos crimes que sofrem. Não Sua tipologia dos criminosos é extensa
é recente a demonstração pelos estudos e variada:
de crime que o cidadão comum é a víti- Entre os ladrões destacam-se:
ma da maior parte dos crimes. No Rio de
1º - Os que matam para roubar.
Janeiro não parece ter sido diferente, e
2º - Os que agarram a vítima pela gar-
os habitantes da cidade eram expostos
ganta.
– de vez em quando – a atentados con-
tra sua integridade física ou proprieda- 3º - Os que assaltam no mar.

de. Mas o perfil que parece emergir do 4º - Os que narcotizam.

estudo destes casos sugere exatamente 5º - Os que fazem banhos de mar.


que não havia uma grande preocupação
6º - Os saltadores de janela.
com a própria segurança. Do ponto de
7º - Os que destroem os obstáculos à
vista do público, podemos considerar
sua passagem, por meio de instru-
que um par efetivo da violência é o
mentos para tais fins criminosos
medo, e a adoção de medidas para evi-
apropriados...
tar ser alcançado pelos problemas. É cla-
ro que tais medidas devem variar pela 8º - O s que visitam galinheiros,

capacidade dos grupos em se proteger coradouros e casas vazias.

ou por sua disposição em correr riscos Entre os gatunos há os que trabalham

em troca do usufruto da vida na cidade, com dois dedos e os que se valem da

variando, portanto, com o poder aquisi- boa fé alheia.

tivo, a idade ou o sexo dos agentes. Ain- Quanto aos primeiros notam-se:
da assim, podemos apontar para uma sig-
1º - Os que furtam objetos de bolso.
nificativa tranqüilidade na vida carioca
2º - Os que se aproveitam dos descui-
do 1900. O perfil dos crimes contra a
dos, do desmazelo de qualquer
propriedade parece indicar a prevalência
pessoa.
de batedores de carteiras ou de furtos
de quintais e residências através de por- 3º - Os que furtam amostras expostas

tas deixadas abertas – uma grande cida- à porta de casas comerciais e, na

de que ainda podia se dar ao luxo de se impossibilidade de se entregarem

preocupar com ladrões de galinhas. a esse meio de rapinagem, saquei-

am os pobres infelizes que, por


Não existe qualquer levantamento mais
qualquer causa, bebedeira ou ata-
detalhado dos crimes contra a proprie-
que, são encontrados caídos nas
dade no período. O que podemos des-
ruas e praças públicas.
crever vem da leitura de registros de
ocorrência policial, das notícias de jor- 4º - Os que furtam animais.23

nal, ou então, mais uma vez, recorrendo A lista se inicia com criminosos perigo-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pág.19


A C E

sos, mas uma leitura mais cuidadosa público a desistir de seus prazeres, sen-
destes grupos permite que percebamos do o combate ao consumo de bebidas
que sua classificação é feita por crimes restrito a alguns poucos doutrinadores,
isolados. Os nove nomes listados entre tanto no campo progressista como no
os que matam para roubar são indivídu- conservador. 25
os presos por crimes que tiveram algu-
Ainda não existem pesquisas sobre bri-
ma repercussão na cidade, incluindo o
gas ou pequenas agressões. Se for pos-
célebre Ferreira das Degoladas, acusa-
sível nos basear nos trabalhos dedicados
do de matar a prostituta Clara Mery, a
a crimes de morte, feitos por Sidnei
Madame Holofote, num processo que
Chalhoub e Carlos Antônio Costa Ribei-
Evaristo de Morais considerou bastante
ro, podemos perceber como os eventos
irregular, e em que seu cúmplice Antô-
violentos estão diretamente ligados à his-
nio Riachuelo, foi absolvido. 24 A maio-
tória dos envolvidos e sua teia de rela-
ria de nomes citados se dedica aos pe-
ções.26 Neste contexto, os acontecimen-
quenos crimes, batendo carteiras ou en-
tos violentos eram, em certas circunstân-
trando em casa alheia, até chegar nos
cias, compreendidos e até legitimados,
que furtam em galinheiros – tipos como
mesmo quando praticados pelos traba-
o Bico Doce, o Galo, o Manuel Peru ou o
lhadores policiais. A incompreensão e a
João Galinha. A própria descrição do de-
atribuição do “motivo fútil” vinha de
legado demonstra a prevalência dos pe-
cima, do discurso dos setores moraliza-
quenos crimes.
dores da elite.27 Tal violência, mais uma
vez, não parece ser ameaçadora, pois era
A violência física, por sua vez, ocorria
originária duma violação de regras que
em espaços e situações comuns, onde a
deveriam ser conhecidas. Podia, assim,
freqüência pública era diversificada e só
ser condenada, mas não afetava as con-
evitada por grupos da elite que preferi-
dições de existência.
am ler sobre ela, em João do Rio. Parte
desta violência era encarada como natu- O Rio de Janeiro do início do século XX
ral nestas situações e mesmo necessá- convivia, portanto, com uma violência
ria como reação a violações de códigos que poderia parecer pequena para nós,
infor mais de conduta. Testemunhas e cem anos depois, ou enorme para os de
policiais pareciam “compreender” as cinqüenta anos antes. Grande também
motivações de lutas e conflitos, ainda para um londrino, ou quem sabe normal
que promotores e delegados os atribuís- para um romano. Podia assustar o bur-
sem a motivos fúteis. No mundo da di- guês, que gritava pela ação policial, ou
versão, o álcool podia fazer crescer pe- ser admirada en passant por aqueles que
quenas disputas e os conflitos podiam brevemente pensavam: “Teve o que me-
ser exagerados. Mas isso não levava o receu...”. Poucos mudavam seu ritmo de

pág.20, jan/jun 2002


R V O

vida por causa dela. Continuariam a co- – e a chorar seus mortos, que mesmo
mer os dois camarões das empadinhas sem violência participavam da tragédia
do nosso confeiteiro – pelo menos aque- da condição humana. E sobre eles, o his-
les com entrada nas confeitarias chiques toriador faz seu ofício.

N O T A S

1. Arquivo Nacional. Processo T8.3238, 24 set. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
2. Arquivo Nacional. Processo T8.3260, 15 jun. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
3. Aqui fica bem clara a mistura do registro cotidiano com as categorias policiais. Onde mais
encontrar pardos? Fique claro que emprego o ter mo numa concessão à narrativa.
4. Arquivo Nacional. Processo T8.3250, 22 out. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
5. Arquivo Nacional. Processo T8.3263, 11 fev. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
6. Aqui já se percebe que o problema não pode ser abordado apenas pelo aspecto quantitativo.
Voltaremos à questão da reconstrução positiva do passado mais à frente.
7. Esta comparação é ainda muito precária e se baseia em dados apresentados por Thomas H.
Holloway, Policing Rio de Janeiro : repression and resistance in a 19th century city, Stanford,
Stanford University Press, 1993; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: trabalho,
luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987 e Maria
Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880, São Paulo, Hucitec, 1998.
8. Para um trabalho comparativo do gênero sugerido, na América Latina, ver L yman L. Johnson,
“Changing arrest patterns in three Argentine cities: Buenos Aires, Santa Fe, and Tucuman,
1900-1930”, em L yman L. Johnson, The problem of order in changing societies : essays on
crime and policing in Argentina and Uruguay, Albuquerque, University of New Mexico Press,
pp. 117-148.
9. A literatura antropológica sobre sociedades mediterrâneas e honra é bastante extensa. Qual-
quer estudo deve partir de Julian Pitt-Rivers e da coletânea de J. G. Peristiany, Honor and
shame : the values of Mediterranean society, Chicago, University of Chicago Press, 1966. Ver
também o trabalho de síntese de Frank Henderson Stewart, Honor , Chicago, University of
Chicago Press, 1994 e a utilização destes conceitos para o Rio de Janeiro feita por Sueann
Caulfield, Em defesa da honra : moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-
1940, Campinas, Editora da Unicamp, 2000.
10.Para São Paulo ver Boris Fausto, Crime e cotidiano : a criminalidade em São Paulo, 1880-
1924 , São Paulo, Brasiliense, 1984, e Maria Inez Machado Borges Pinto, Cotidiano e sobrevi-
vência : a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914, São Paulo, EDUSP,
1994. Sobre Belo Horizonte ver Luciana Teixeira de Andrade, Ordem pública e desviantes
sociais em Belo Horizonte, 1897-1930, dissertação de mestrado em sociologia, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1987.
11.Não deve ser por acaso que a violência nas relações de gênero tem ocupado lugar de desta-
que entre as preocupações historiográficas sobre crimes no início do século XX.
12.Mesmo assim, parece-me que as indicações do texto clássico de Maria Sílvia de Carvalho
Franco sobre a legitimidade da presença e do exercício da violência no mundo dos homens
pobres no Brasil têm sido muito pouco explorado. Este é o caso de um trabalho onde algumas
deficiências extremamente visíveis têm obscurecido seus méritos e insights ainda profunda-
mente atuais.
13.Este problema já foi bastante apontado na literatura de matriz foucauldiana. Ver as críticas de

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pág.21


A C E

Edmundo Campos Coelho, As profissões imperiais : medicina, engenharia e advocacia no Rio


de Janeiro, 1822-1930, Rio de Janeiro, Record, 1999 e José Leopoldo Ferreira Antunes, Me-
dicina, leis e moral : pensamento médico e comportamento no Brasil, 1870-1930, São Paulo,
UNESP, 1999.
14.Muito se fala na repressão a vadiagem no Rio de Janeiro, mas ainda é preciso levantar muitos
dados. Um bom ponto de partida é Marcelo Badaró Mattos, Vadios, jogadores, mendigos e
bêbados na cidade do Rio de Janeiro do início do século , dissertação de mestrado, Universi-
dade Federal Fluminense, 1991. Para se ter uma idéia da importância e do volume dos pro-
cessos de vadiagem, um breve levantamento das sentenças do juiz da 3a Pretoria Criminal
entre 8 de outubro e 12 de novembro de 1916 contabiliza 101 processos, sendo que setenta
contra vadiagem, que resultaram em 37 absolvições e 33 condenações. Neste caso, o núme-
ro de condenações é mais significativo do que o encontrado por Badaró, mas é difícil avançar
qualquer interpretação.
15.Da mesma forma, precisam apresentar bons resultados sob pena de perder poder. É uma
contradição característica dos sistemas policiais e que pode ser muito importante na produ-
ção e análise de estatísticas criminais. Ver o interessante trabalho de Howard Taylor, “The
politics of the rising crime statistics of England and Wales, 1914-1960” em Crime, histoire &
societés , v.2, n. 1, 1998, pp. 5-28.
16.O tema é mais bem desenvolvido em meu livro Ordem na cidade : o exercício cotidiano da
autoridade policial no Rio de Janeiro , 1907-1930 , Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
17.Vicente Reis, Os ladrões no Rio, Rio de Janeiro, Laemmert, 1903.
18.Idem, pp. 2-3.
19.Eduardo Silva, As queixas do povo , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
20.Op. cit ., p. 106.
21.Idem, p. 119.
22.Idem , p. 122.
23.Vicente Reis, op. cit., pp. 24-25.
24.Evaristo de Morais, Memórias de um rábula criminalista, Rio de Janeiro, Briguiet, 1989, pp.
115-121.
25.A propaganda anti-alcoólica, por oposição, adotava um tom dramático. Ver Hermeto Lima, O
alcoolismo no Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914 e Evaristo de Morais,
Ensaios de patologia social: vagabundagem, alcoolismo, prostituição, lenocínio, Rio de Janei-
ro, Leite Ribeiro, 1921.
26.Sidnei Chalhoub, Trabalho, lar e botequim : o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle époque, Rio de Janeiro, Brasiliense, 1986 e Carlos Antônio Costa Ribeiro, Cor e
criminalidade : estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Editora UFRJ,
1995.
27.Uma discussão que não vou travar aqui diz respeito a como outros setores da elite considera-
vam normais certas manifestações de violência na pobreza, carregando na descrição dos
tipos brutos que vivem neste universo, dos quais não se poderia esperar outro tipo de atitude.

A B S T R A C T
The aim of this article is to discuss if the criminal processes allow to think the city of Rio de
Janeiro as a violent city in the beginnings of the twentieth century. The author points out the
identity of the individuals involved in those varied circumstances of violence and exposes the
multiplicity of methods and themes that the criminal archives may offer to the researchers of the
recent history of Brazil.

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R V O

Ivana Stolze Lima


Doutora em História pela UFF

As Rusgas da Identidade
Rio de Janeiro, 1831-1833

A
narquia, tumultos, desordens, tica do Estado imperial, representados no
tropelias e ameaças. Durante gover no regencial por homens como
longo tempo os anos de 1831, Evaristo da Veiga, Diogo Antônio Feijó,
1832 e 1833 ficaram restritos a essa Bernardo Pereira de Vasconcelos, Luís
avaliação e imagem, na cidade do Rio de Alves de Lima e Silva, Eusébio de Queirós
Janeiro. Momento de intensa experiên- – os nomes dos adversários são quase
cia política de grupos sociais urbanos, en- absolutamente desconhecidos, o que não
volvidos seminalmente na tarefa (e crença) é desprovido de importância. Esta situa-
de tornar a política algo público. Este ca- ção teve continuidade no momento em
ráter peculiar advinha de que, para es- que a classe senhorial garantiu, de for-
tas multidões (das quais categorias só- ma um pouco mais estável, seu mono-
cio-profissionais preconcebidas não po- pólio político a partir da maioridade de
dem dar conta com exatidão), sua iden- d. Pedro II em 1840. A memória que a
tidade, enquanto “brasileiros“ e “cida- historiografia do século XIX produziu so-
dãos“, dependia do direcionamento que bre o período manteve, portanto, o olhar
julgavam ser capazes de dar à ordem próprio dos grupos vitoriosos, que afinal
política do país. Tal imagem de anarquia de contas representava, vendo ali ape-
foi atribuída por seus próprios algozes, nas um momento de “exaltação“ do
aqueles que vão imprimir a direção polí- nativismo, que seria destrutivo, caso não

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A C E

houvesse sido controlado. É o caso de identidade e da política. Em face da Au-


Moreira de Azevedo, que aos “motins rora Fluminense , de Evaristo da Veiga,
políticos e militares“ dedicou artigos pu- ou do Sete de Abril , de Bernardo Pereira
blicados nas décadas de 1860 e 1870, de Vasconcelos, expoentes do gover no
na Revista do Instituto Histórico e Geo- regencial, posicionavam-se O Brasileiro
gráfico Brasileiro . Pode-se, porém, sub-
1
Pardo, O Brasil Aflito, O Jurujuba dos
verter esta memória: se há tantas falas Farroupilhas, A Babosa, O Burro Magro,
negativas e desqualificadoras, que na O Rusguentinho, O Homem de Cor, O
melhor das hipóteses tomam aqueles Crioulinho, O Indígena do Brasil, O Exal-
movimentos como “iludidos“, quem sabe tado, O Filho da Terra, O Veterano ou o
isto não se deve exatamente à sua im- Pai do Filho da Terra, O Esbarra, O Ca-
portância, pelo desconcerto que causou? brito, O Macaco ou O Palhaço da Oposi-
ção, A Nova Luz Brasileira e muitos ou-
O historiador que hoje pretende conhe-
tros, todos anônimos, e sobre a maioria
cer melhor aquele momento, encontra
dos quais pairam muito mais especula-
não simplesmente uma documentação
ções e atribuições do que certeza a res-
com suas marcas e vestígios, mas tam-
peito da autoria.3
bém um de seus instrumentos de ação,
que foi a imprensa (igualmente conside-
Seria genérico demais falar destas dis-
rada desordenada e confusa). A impren-
putas políticas de inspiração liberal – a
sa foi um palco acirradíssimo de dispu-
luta que grupos urbanos travaram pelo
tas políticas, o que pode ser medido pelo
reconhecimento como “cidadãos“ –, sem
número de títulos publicados na cidade
considerar um aspecto da cultura políti-
do Rio de Janeiro entre 1830 e 1833 (em
ca específica daquele momento, isto é,
outras localidades a proliferação foi re-
de seus valores, comportamentos e ex-
lativamente semelhante): 12 títulos em
periências singulares: ou seja, o fato de
1830; 45 em 1831; 36 em 1832; 51 em
que eram disputas em torno da identida-
1833. 2 Após o ápice do último ano, a
de. Em primeiro lugar a identidade de
proliferação cedeu lugar a um silêncio.
“brasileiro“ (que era por seu turno pau-
Acompanhando e pontuando tais dispu-
tada por uma posição política e pela de-
tas, evidenciava-se um outro palco, o da
fesa da independência, num momento
“rua“, onde se sucederam motins, assas-
em que esta ainda se encontrava em pro-
sinatos, agressões, prisões, “tumultos e
cesso de consolidação, e não só pelo nas-
assuadas”, e, definidos pelo recente Có-
cimento no território) e, em segundo lu-
digo Criminal, os “ajuntamentos ilícitos”,
gar, uma identidade “racial“, tendo como
“sedições”, “conspirações”.
referência as cores dos cidadãos. O
Os títulos sugerem a disputa entre agres- tema, tão presente, das “cores dos cida-
siva, moderada ou cômica, em tor no da dãos“ deve ser entendido não só como

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R V O

atributo físico; o sentido político do “ci- ruas não era pequeno neste momento.
dadão de cor“, do “brasileiro pardo“ é O próprio redator da Aurora Fluminense
muito mais rico e complexo do que a cor expressava sua preocupação com uma
da pele. Isto é o que tor na ainda mais vulgarização incontrolada das idéias li-
interessante este momento da história. berais: “o nosso patriota por excelência,
nos armarinhos, nas boticas e mesmo
A partir deste aspecto, privilegiarei o es- nos botequins, de manhã, de tarde, à
treito laço entre a ação política, onde ti- noite vive na ociosidade mais profunda
veram destaque os momentos de violên- discorrendo sobre política; e que políti-
cia política e a construção de identida- ca!”. 5 O mesmo estranhamento era ex-
des. Não é objetivo esgotar a enorme presso em outros periódicos, como se,
massa documental e as questões relati- fora de espaços delimitados e de certos
vas ao período, mas sim destacar um códigos compartilhados, falar de políti-
aspecto que parece fundamental e per- ca se tornasse uma pretensão descabida.
mite tornar complexa e ultrapassada uma
outra imagem tradicional da historiografia Para fins meramente analíticos, pode-se
e da época, que classifica o contexto como distinguir dois níveis de tensão e
disputas entre liberais moderados, libe- enfrentamento. O primeiro, mais geral,
rais exaltados e restauradores, termos colocava em confronto projetos políticos
que muitas vezes foram utilizados mais mais amplos: o grupo que assume o go-
pelos respectivos adversários, como for- verno regencial, analisado em sua base
ma de desqualificação e insulto, do que social por Alcir Lenharo em As tropas da
pelos supostos grupos que tais termos moderação , e Ilmar Rohloff de Mattos,
evocam, grupos estes que talvez nem se que em O tempo saquarema 6 pretendeu,
compreendessem e fossem organizados em um primeiro momento, afastar a ame-
enquanto tais. Os “moderados“ foram tal- aça absolutista identificada ao governo
vez mais violentos que os “exaltados“: do primeiro imperador (e daí algumas
veja-se o exemplo de Diogo Feijó, minis- refor mas de cunho liberal, como por
tro da Justiça em 1831, e primeiro res- exemplo o Código Criminal, a Guarda
ponsável pela manutenção da ordem Nacional, o Júri) e então consolidar as
pública na Corte – sua atuação foi prin- bases de uma monarquia representativa
cipalmente no sentido de reprimir a e centralizada, sob a direção da classe
“anarquia“, isto é, a dissidência política senhorial e a manutenção do monopólio
e a ameaça social por ela expressada. 4 da propriedade da terra e da mão-de-obra
A percepção da “anarquia“, da “horda de escrava. Outro projeto, que não era uni-
bárbaros“, da “gente de chinelo e cace- ficado (veja-se as diversas revoltas pro-
te“ e da “desordem“ vinha do fato de que vinciais, que assumiram formatos dife-
a política estava nas ruas. E o medo das renciados e que repercutiram, ora mais,

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ora menos, os conflitos sociais de cada assegurava seu reconhecimento como


região), defendia de uma forma geral a “cidadão“ , 7 o que poderia abrir para ele
manutenção da monarquia – que não se novas oportunidades sociais. Essas ex-
entendia como oposta da idéia de “repú- pectativas estão na base da mobilização
blica“ –, mas sem a centralização e pre- em torno do projeto de lei de naturaliza-
domínio da Corte, ou seja, apresentava ção de estrangeiros 8 e algumas tentati-
ar gumentos em prol da federação. E um vas de limitar a imigração portuguesa
terceiro projeto seria a restauração do para o país.
gover no de d. Pedro I, que se dissolve
Muitos e diferenciados foram os momen-
com sua morte em 1834, mas que, en-
tos de conflito no Rio de Janeiro naque-
tretanto, envolvia também interesses
les anos de 1831, 1832 e 1833. Ainda
corporativos, sobretudo entre os milita-
antes da abdicação, as “garrafadas“ em
res e burocratas. Abaixo deste nível mais
março de 1831; a sedição militar de ju-
geral, as tensões, especialmente aque-
lho do mesmo ano; os “tiros no teatro“;
las relativas aos grupos urbanos aqui fo-
a rebelião da Ilha das Cobras; os motins
calizados, envolviam disputas mais ime-
políticos em abril de 1832; a destruição
diatas, como a ocupação do mercado de
de tipografias e a invasão da Sociedade
trabalho privado, as nomeações para os
Militar em dezembro de 1833 são alguns
corpos militares, a participação na Guar-
dos acontecimentos mais conhecidos.
da Nacional, e o acesso aos empregos
Acrescente-se, ainda, vários outros epi-
públicos, entre outras. Assim, por exem-
sódios, “assuadas“ e “tumultos“, atenta-
plo, o periódico Homem de Cor , lamen-
dos contra redatores como o que Evaristo
tava que portugueses ou “brasileiros ado-
da Veiga sofreu em novembro de 1832,
tivos“ fossem nomeados oficiais milita-
quando foi atingido por um tiro de pisto-
res ou tivessem acesso aos “empregos“
la, e mesmo assassinatos, como o do
(entenda-se, públicos), em detrimento
redator do Brasil Aflito, em 1833. Inú-
daqueles que seriam os verdadeiros “bra-
meras vezes jornalistas foram chamados
sileiros“, incluindo os “mulatos“, que lu-
ao júri e responderam a processos de
taram na Independência e na “gloriosa
abuso de liberdade de imprensa. De fato,
revolução do 7 de abril“. O antilusitanismo
a política havia tomado conta das ruas.
tinha, portanto, não só como alvo a
ame aça (nem sempre efetiva) de res- Os conflitos que tiveram como cenário
tauração do trono de d. Pedro I, mas uma algumas áreas do centro da cidade do
série de questões mais imediatas. O aces- Rio, entre 11 e 15 de março de 1831,
so à Guarda Nacional, para um homem conhecidos como “noite das garrafadas“,
livre e pobre, ainda que não trouxesse compõem um momento privilegiado para
um soldo, significava evitar o fantasma se perceber a relação travada entre vio-
sempre real do recrutamento, bem como lência política e os mecanismos de cons-

pág.26, jan/jun 2002


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trução e atribuição de identidades. Mui- assassinato do jornalista Líbero Badaró


tas pessoas foram feridas, mas o episó- no ano anterior. No Rio, alguns grupos
dio não se reduziu a meras agressões fí- de “portugueses“ e “brasileiros adotivos“
sicas, demonstrações de força, tumultos decidiram homenageá-lo, usando a tra-
e desordens como mostra a documenta- dicional fogueira, fogos de artifício,
ção policial. Até porque alguns momen-
9
cantoria e iluminação das casas. Era cos-
tos mais lembravam uma festa com ban- tume antigo da cultura portuguesa gru-
das de música, empolgação, fogueiras e pos se reunirem em tor no da viola e da
movimentação pelas ruas da cidade. Fo- fogueira; competidores que conseguis-
ram utilizadas ou brandidas ar mas mais sem destruir tanto um como outro en-
ou menos perigosas como chuços, peda- chiam-se de or gulho. 11 Pois bem, aqui
ços de pau, ar mas de fogo, fundos de uns procuravam destruir fogueiras alhei-
garrafa; mas talvez o que decidia de fato as, enquanto tentavam gritar mais alto
a briga eram os gritos de viva dados pe- seu próprio viva.
los portugueses ao imperador Pedro I, à
República, à Federação, e os aplausos Segundo narra John Armitage, em 11 de
dados pelos “brasileiros“ ao “imperador“, março, “uma porção de mancebos per-
enquanto constitucional. Mesclava-se a tencentes ao partido exaltado, reunidos
legalidade à inversão, a ponto de mes- a outra de oficiais militares (pois que a
mo a polícia confundir-se sobre os que desafeição geral se havia comunicado até
mereciam ser capturados e de oficiais mi- ao próprio exército) percorreram as ruas
litares serem os mais predispostos aos dando vivas à Constituição, à Assembléia
ataques. Antecedendo em algumas sema- Geral e ao imperador, enquanto consti-
nas a abdicação do imperador, em 7 de tucional etc.” 1 2 Assim o faziam, exata-
abril, as “garrafadas“ foram um êxtase mente para provocar aqueles que se reu-
de identidades, onde a nacionalidade de niam em torno das fogueiras. Nessa mes-
portugueses e brasileiros envolvia fato- ma noite, um sapateiro chamado José
res mais complexos que o lugar de nas- Antônio, e que portava o laço nacional,
cimento, e ali apareceram contingentes distintivo da independência, de cor ver-
sociais excluídos da participação políti- de e amarela, o qual já vinha sendo usa-
ca no sentido estrito. 10 do orgulhosamente por muitos na cida-
de, passava acompanhado de “duas par-
Tudo aconteceu por ocasião do retorno, das“ pela rua da Quitanda – local de con-
à cidade, de d. Pedro I, que vinha da pro- centração dos portugueses e de “gente
víncia de Minas Gerais onde, infrutifera- empregada no comércio“ quando foi in-
mente, fora buscar apoio político para terpelado, sendo-lhe, ordenado que reti-
seu já combalido gover no. Aliás, lá en- rasse o laço. Ao mesmo tempo, foram
contrara antes a memória revoltada do dirigidos ao grupo vários insultos e ofensas.

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Os acontecimentos mais graves aconte- povo”, a quem ordenou que se recolhes-


ceram no dia 13. Acompanhando o rela- sem “já que não eram horas próprias de
to da autoridade policial pode-se perce- andarem à rua”. No entanto, de novo co-
ber como em diferentes pontos da cida- meçaram os vivas à “Sua Majestade, o
de os conflitos ocorreram, havendo dois imperador”, acrescentados de um deci-
“campos“ distintos, um na área próxima sivo “constitucional” e “vivas à Assem-
à rua da Quitanda e outro no Rocio, bléia Legislativa” e aos “deputados libe-
rebatizado de praça da Constituição, atu- rais”. Este grupo protestou ainda que “os
al praça Tiradentes, onde os “brasileiros“ portugueses tinham derramado sangue
se concentraram, e que o relato apresen- dos brasileiros e que devia ser vingado
ta como “bando for mado no Rocio de [sic]”. Uma das testemunhas descreveu
gente de diferentes cores”. A autoridade um dos grupos que gritava pela Federa-
policial afirmou que encontrou grande ção como “uma porção de homens qua-
tumulto na citada rua, para lá enviando se todos pardos de jaquetas armados de
o comandante das ar mas, que seguiu pau” e com “muito poucos homens bran-
pela rua do Lavradio, onde encontrou um cos”. Novamente um “grande bando com
homem que dizia ter ido com companhei- músicos”, que vinha pela rua do Ouvidor,
ros à igreja da Lampadoza, vizinha ao dizia que ia “acabar com os republica-
Rocio, para tocar o rebate (isto é, tocar nos e federalistas”, a quem a autoridade
o sino apressadamente para avisar so- fez retornar, desta vez com uma escolta
bre um perigo). Para lá também se diri- de cavalaria e infantaria. Voltando ao
giu um oficial que rondava a Casa da Rocio, a autoridade foi atingida por uma
Suplicação. Ele ouviu, sem distinguir pedra, e a confusão permaneceu ainda
muito bem, “uns vivas“, para o lado da durante algum tempo, enquanto os gru-
rua do Piolho. Tendo notícia de que mes- pos se enfrentavam com fundos de gar-
mo policiais estavam sendo maltratados rafas e outros objetos. Muitos foram pre-
pelo “bando“ do Rocio, a autoridade po- sos (como por exemplo “os pretos José
licial decidiu para lá enviar o juiz de paz Honório, José Bernardes e Antônio José
da freguesia do Sacramento. Andando em Lopes, Egídio Manuel, Manuel Francisco,
direção contrária pela rua do Ouvidor, e os pardos Elias de Sousa, Bonifácio
encontrou um outro grupo, que tencio- José, Alexandrino Antônio, Albino Joa-
nava exatamente ir ao campo inimigo, quim da Costa, e o francês Pedro Liorde”,
gritando: “vivas à Sua Majestade” e “mor- e um escravo que mentiu dizendo ser
ram os federalistas e republicanos”. O forro), a polícia atirou sobre a multidão,
comandante das armas fez com que esse mas provavelmente o que de fato disper-
grupo retor nasse e fosse vigiado por al- sou os rivais foi o temporal que se aba-
guma tropa, voltando em seguida ao teu sobre a cidade. Dentre os muitos fe-
Rocio, onde achou “dois grupos de ridos, um cadete de primeira linha, Luís

pág.28, jan/jun 2002


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Carlos Cardoso Cajueiro, natural do batalhão de caçadores, um tenente do


Maranhão, a quem o coronel Frias pren- batalhão do imperador, e dois alferes,
deu para evitar que morresse das paula- um do batalhão de granadeiros e outro
das que recebeu, pois ao observar as lu- do batalhão de caçadores. Presos, estes
minárias, um grupo de homens se apro- oficiais, desacatando as autoridades, ten-
ximou dando vivas ao imperador, e ele taram aliciar a guarnição, “ofendendo a
respondeu o fatídico “constitucional”. sagrada pessoa do imperador” (lembre-
Por isso, o cadete Luís Carlos Cardoso se de passagem que a abdicação ainda
Cajueiro teve a cabeça quebrada. não tinha acontecido). Junto a eles, o
“redator do tribuno“ ia também preso e
Consta ainda entre os episódios desses
participava da mesma atitude. Diziam à
dias, a queixa dada por um homem de
guarnição do escaler onde se encontra-
que havia sido ferido por um sujeito, que
vam e que era “composta de pretos e
além de gritar “federação”, portava no
pardos” que “só eles é que eram sua
chapéu “um laço chamado federação”,
gente e que todos quanto eram brasilei-
objeto este levado em presença da polí-
ros adotivos sem exceção de um só de-
cia e acrescentado ao processo.
viam ser passados à espada”. Tais pala-
Na noite de 14 de março a polícia en-
vras eram prova, para a polícia, da “má
controu uma “multidão de perto de mil
índole de tais indivíduos e seus péssimos
homens ar mados de paus, e outras ar-
sentimentos”.
mas (...) que deram muitos vivas à Sua
Majestade constitucional e à Constituição
Segundo uma testemunha, vivas também
do Império”. Desta vez não se limitavam
foram clamados à “liberdade de impren-
ao Rocio, estavam também no Paço. Um
sa”. Outro grito de guerra, este sem dú-
homem, que acabou preso e remetido ao
vida bastante repetido, era o insultuoso
juiz criminal, gritava ao desembainhar
“mata, mata que é cabra”, algumas ve-
sua espada: “brasileiros, vamos a eles”.
zes acompanhado de golpes de chuços
Outro preso, no dia 15, foi Rodrigo Paz
ou garrafas sobre algum “brasileiro“ in-
de Amaral, que era comissário da Esqua-
feliz, a quem em geral tirava-se também
dra Nacional, à rua Direita, atual Primei-
o chapéu que portasse o laço nacional.
ro de Março, e próxima ao campo “por-
Contra os “adotivos” replicavam com um
tuguês”; ele dava vivas à federação,
“mata chumbo”. O insulto de “mata que
direcionados à tropa que ali se encon-
é cabra” foi dirigido também a um livrei-
trava, isto é, aliciava os próprios
ro (atividade que não podia ser neutra
mantenedores da ordem.
naquele contexto) chamado Silvino José
Um episódio bastante revelador do sen- de Almeida, com loja na “Praça da Cons-
timento que orientava estes confrontos tituição“, segundo o próprio fez questão
envolveu vários oficiais: um capitão do de nomear, à diferença de todos os ou-

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tros depoimentos que usaram ainda o e conflitos sociais latentes, de uma soci-
termo da época colonial, “Rocio“. Desig- edade há pouco liberta do jugo colonial,
nado como “pardo“ pela documentação, mas que manteve as estruturas básicas
presenciou, acuado em sua loja fecha- da colonização: a escravidão, a grande
da, uma confusão e ajuntamento de pes- propriedade, a economia agro-exportado-
soas. As janelas foram quebradas e ou- ra, a acentuada hierarquização. Escravos
viram-se os gritos de “mata, mata que é participaram das “garrafadas”, tendo sido
cabra”. preocupação da polícia investigar, den-
tre os “pretos e pardos” presos, aqueles
Gostaria de ressaltar que todas as expres-
que eram desta condição, para que fos-
sões que indicam os grupos e a identi-
sem encaminhados a seus proprietários.
dade racial foram citadas entre aspas,
Além disso, naquele momento, os gru-
mantendo-se a preocupação com os dis-
pos intermediários convencionalmente
cursos originais, porque nenhuma delas
designados como os homens livres e
deve ser entendida sem a aura política
pobres, os libertos, artesãos, boticários,
que as acompanhava, tratando-se seja do
barbeiros, alfaiates, soldados, trabalha-
relato policial (que evidentemente não é
dores das oficinas tipográficas e outras
imune aos valores e tensões da época),
categorias, vislumbraram a possibilida-
seja das testemunhas, ou seja no seu uso
de tanto de uma participação política
pela imprensa, da qual trataremos adi-
como de uma ascensão social, empolga-
ante. Neste contexto, muitos dos que se
dos com as palavras de ordem como “na-
auto-designaram “brasileiros” não nasce-
ção”, “constituição”, “liberdade”.
ram necessariamente no Brasil. Muitos
dos “cabras” ou “pardos” não eram for- Portanto, se a cor da pele foi um símbo-
çosamente de pele escura. Exaltados de lo, um tema das discussões políticas, ora
Salvador, na mesma época, defendiam a como insulto, ora como auto-elogio, isso
substituição do imperador por seu filho, não foi certamente casual. Antes, expli-
afirmando que Pedro II é “cabra como ca-se pela própria formação histórica da
n ó s ” . 1 3 João José Reis, referindo-se à sociedade, pela composição, tradição e
guerra da independência na Bahia, en- origem de seus habitantes.
tre 1822 e 1823, explora de for ma inte-
Vivenciada nas ruas da cidade em vários
ressante os insultos de “cabra” e “caia-
momentos de conflito aberto (como, para
do”, apontando uma “linguagem racial
dar um exemplo bastante rico, o episó-
como dispositivo de combate”. 14
dio dos “tiros no teatro” em 28 de se-
Além disso, estes confrontos não colo- tembro de 1831), 15 a linguagem racial
cavam em questão apenas a permanên- das disputas políticas perpassou também
cia ou não do monarca. Eles expressa- as páginas dos periódicos. Passemos a
vam, ainda que indiretamente, tensões abordá-los em seguida, focalizando es-

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R V O

pecialmente o que foi definido como os O jornal duvidava da possibilidade de se


atributos do cidadão mulato, sabendo já dividir a Guarda Nacional em “intitulados
que os termos que designam identidades brancos”, “mulatos” e “pretos”, e procu-
raciais carregam muito mais que supor- rava lamentar a falsa aliança dos “mode-
tes naturais. Não interessa desvendar no rados”: “Quando se há mister dos ho-
signatário do periódico intitulado O Ho- mens, todos somos patrícios, a terra é
mem de Cor os sinais naturais de uma nossa, fingem-se ‘cartas de liberdades’,
determinada ascendência. Antes, interes- forças no arsenal; quando servidos: mu-
sa investigar como o ter mo é dotado de latos e pretos tomai vosso lugar, sois
certa significação, como é preenchido de maioria atrevida, gente de chinelo e ca-
atributos e se torna o caminho para uma cete. ” O Homem de Cor declarava ainda
certa posição política. A epígrafe do jor- a harmonia em que têm vivido os “exal-
nal era a citação de um artigo constituci- tados” e os “brancos não moderados”.
onal: “Todo cidadão pode ser admitido Em termos mais específicos (ou
aos cargos públicos civis e militares, sem corporativos), a preocupação do Mulato ,
outra diferença que não seja a de seus título que o periódico assume em seu ter-
talentos e virtudes.” ceiro número, é o desprezo a que estari-
am submetidos alguns oficiais, verdadei-
O redator procurava combater uma afir-
ros patriotas em seu entender, citados
mação de Manuel Zeferino dos Santos,
textualmente: o brigadeiro Paula, o alfe-
então presidente da província de
res Bacelar, o capitão Solidônio, Rangel,
Pernambuco, que continha críticas à qua-
Pimenta e outros.17 Um outro periódico
lificação dos oficiais da Guarda Nacional,
intitulado O Evaristo também citava es-
e propunha a separação entre os bata-
tes nomes, que deveriam ser resguarda-
lhões “segundo os quilates da cor”. Ora,
dos em função de sua “honra militar”.18
um dos principais interesses defendidos
pelo Homem de Cor era exatamente a
É curioso que o argumento que garanti-
participação nesta instituição. O artigo
ria a inexistência da divisão dos cidadãos
constitucional é assim interpretado pelo
pelas suas cores não incide sobre o cam-
redator:
po racial ou natural, mas surge do pro-
(...) o título segundo da Constituição, cesso liberal, legal. O descarte do argu-
marcando os cidadãos brasileiros, não mento racial em benefício do argumen-
distinguiu o roxo do amarelo, o ver me- to político está no cer ne dos fundamen-
lho do preto, mas o ditador Zeferino, tos teóricos do discurso do jornal, tor-
na Pátria dos agostinhos, e Camões, nando este uso bastante especial em
ousou em menoscabo da grande lei comparação com a visão presente da hi-
cravar agudo punhal em os peitos bra- erarquia da sociedade, como naturalmen-
sileiros. 16 te instituída. Nesse mesmo espírito, O

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 23-37, jan/jun 2002 - pág.31


A C E

Martelo criticava a constituição norte- cia destes documentos, e procurava de-


americana, que havia excluído os nunciar a impunidade de crime injusto.
“mulatinhos” dos direitos políticos. 19
Mais uma vez afir mava sua identidade:
“Criminoso seria o homem de cor, se na
Já no primeiro número, o jornal advertia:
crise mais arriscada, na ocasião em que
O Homem de Cor, como é livre, sairá
os agentes do poder desembainham as
quando quiser sem licença do branco
espadas dando profundos golpes na
presidente de Pernambuco; salvo se al-
Constituição, na liberdade, e em tudo
gum roldão acutilar o redator!... 20
que há de mais sagrado no enjeitado
O ‘roldão’ era uma referência ao assas- Brasil guardasse mudo silêncio, filho da
sinato do redator do Brasil Aflito , Cle- coação, ou do terror.” 22
mente José de Oliveira, pelo filho do
Foram freqüentes tais momentos de vio-
regente Francisco de Lima e Silva, Carlos
lência, sempre envolvendo dimensões
Miguel de Lima (e irmão do futuro du-
políticas, hierárquicas, identitárias, mos-
que de Caxias, Luís Alves de Lima e Sil-
trando que o discurso liberal não era
va, que desde 1831 ocupava um posto
seguido à risca, como a Aurora
de comando na or ganização policial).
involuntariamente nos faz perceber. O
Este episódio ganhou as páginas de vári-
Homem de Cor contrapunha à violência
os jor nais, dividindo os partidos de opi-
a “espada justiceira da opinião públi-
nião. A Aurora Fluminense procurou re-
ca”.23 O Evaristo fazia afirmação seme-
tirar o conteúdo político do assassinato,
lhante: “Pensará o senhor Lima que com
afirmando-o ser do campo da honra fa-
a sua faminta espada, imporá silêncio à
miliar, ferida pelo redator, que teria dado
liberdade de imprensa?” 24
tempos antes um depoimento a uma au-
Também foi tema de grande agitação na
toridade judicial no qual as ir mãs do re-
Corte e na cena periódica a prisão de
gente teriam sido caluniadas. A Aurora
Maurício José de Lafuente, outro “escri-
procurava equilibrar a lei pública e a lei
tor público”. Além de detido no navio
familiar: “Nós não podemos aprovar uma
Presiganga, foi ainda recrutado para a
ação que as leis condenam, mas pergun-
Marinha: “teve o infeliz homem de cor a
tamos a qualquer pai, esposo ou ir mão
sorte de ser marinheiro, depois de ter
o que fazia, se acerca do que lhe é mais
sido cadete, e depois de ter exposto sua
caro, de pessoas de um sexo que não
vida em defesa da liberdade”. 25
tem defesa, um bandido, um insolente
usasse da linguagem que usou em públi- No ano anterior, o mesmo já havia sido
co, perante um juiz, o indivíduo que foi detido e submetido a processo judicial
acutilado pelo senhor Carlos Miguel de pela acusação de ter se envolvido em um
Lima?!” 21 Ao contrário, o Homem de Cor “motim e assuada” no largo do Paço em
refutava o conteúdo e a própria existên- que se defendia a volta do gabinete mi-

pág.32, jan/jun 2002


R V O

nisterial de 3 de agosto, mesmo que para pois os moderados não fazem caso de

isso fosse necessário ir o “povo às ar- vós por serdes mulatos, deixai de uma
mas” e onde um impresso, contendo a vez esse partido infame, e

proclamação, afixado na porta do correio antibrasileiro que vos julga menos que

foi o ponto de referência do movimento. 26


seus escravos, e vinde de novo alistar-
vos nas nossas exaltadas fileiras. 27
Segundo o Homem de Cor, Lafuente te-
ria a “pecha de ser mulato” — algumas Este outro trecho levanta novamente a
testemunhas do processo de 1832 o clas- questão da diferença de cor e dos prin-
sificaram como pardo — e este seria, cípios jurídicos afirmados na Constitui-
complementando a perseguição que te- ção do Império, agora tratando da ativi-
ria sofrido por ter comparecido ao fune- dade do recenseamento:
ral do redator do Brasil Aflito , sendo mes-
Não sabemos o motivo porque os bran-
mo demitido de seu cargo no Arsenal da
cos moderados nos hão declarado guer-
Marinha, o “único motivo que deu origem
ra, há pouco lemos uma circular em
a sua prisão, pois foi feita no dia em que
que se declara que as listas dos cida-
a Restauração apareceu tratando-o de
dãos brasileiros devem conter a dife-
bode, farroupilha etc.” Note-se que
rença de cor e isto entre os homens
Lafuente não só desfrutava do título no-
livres! A Constituição, tantas vezes
bre de cadete, como era um bem suce-
desflorada pelos moderados, é hoje
dido negociante na cidade. Estes atribu-
apenas letras de que apreço nenhum
tos devem ser vistos em conjunto, pois
fazem os liberais por excelência. Se-
assim é que aparecem no texto do jor-
ria melhor que tomassem o conselho
nal. Em outras palavras, não se tratava
do Homem de Cor que não exasperas-
de qualquer mulato.
sem os mulatos sempre amigos da lei
O governo mantinha-se obstinado em “fa- e da ordem, e se deixassem de distin-

zer guerra aos mulatos”, e mesmo tendo ções que em verdade são fatalíssimas,

“raça misturada” não desistia de “exter- mormente quando a nação brasileira


minar a gente de cor”. Resta de alguma se acha dilacerada pelos partidos

for ma dar o devido peso a esse extermí- (...). 28

nio: a exclusão política, corporificada nas


Expressa-se aí a reação ao projeto de
eleições e nos “empregos públicos”.
designar, nos censos, a cor dos cidadãos
Nas eleições tivemos o exemplo, não livres. Duas décadas depois, projeto se-
há um representante das nossas cores, melhante gerou revoltas, no Nordeste,
nos empregos públicos, e de toda a que adiaram por outras duas décadas o
parte nos excluiram, e vós ó escravos, primeiro censo geral do Império, e difi-
que mamando na teta de tais feras lhes cultaram o registro civil. 29 O Homem de
estais dando força, desenganai-vos, cor, o mulato, são acima de tudo livres.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 23-37, jan/jun 2002 - pág.33


A C E

É importante esclarecer que o ter mo es- cor, vermelhos, pardos, pretos e mo-

cravo não é um dos que irão compor o renos. Muito se cansa o Babosa , e to-
campo semântico de “mulato” ou “ho- dos os colegas da sua crença, para dar

mem de cor”. A escravidão não estava corpo a esta miserável intriga, e fazer

em questão. Esperava-se, porém, que no sublevar contra o governo e contra a


grupo dos livres, não houvesse distin- ordem atual de coisas a gente de cor (...).

ções. O homem de cor definia-se a par-


(...) felizmente, no Brasil, sempre a tal
tir de oposições. Contrário aos “brancos
respeito os prejuízos foram muito
moderados”, mas aliado dos “brancos
mais apagados do que no resto da
não-moderados”. Não se confundia com
América (...). 31
“escravos”.
Apesar dessa tentativa da Aurora
A Aurora Fluminense mantinha-se rela-
Fluminense de silenciar o tema das co-
tivamente afastada dos significantes de cor,
res dos cidadãos, havia uma espécie de
seja como termos de autodenominação,
jogo entre xingamentos e atribuições de
seja como qualificação de aliados ou ad-
identidades. Os exemplos poderiam ser
versários. Talvez procurasse, com esse
aqui multiplicados, com nuances quan-
relativo silêncio, escapar àquela lingua-
to ao preenchimento do ter mo “mulato”
gem racial, embora isso fosse inevitável,
(ver O Brasileiro Pardo, O Sentinela da
como por exemplo quando usava a ex-
Liberdade, O Crioulinho, entre outros).
pressão “periódico do Haiti” 30 para de-
Esse jogo porém não se deu apenas sob
signar o Nova Luz Brasileira (algo que
a forma do discurso sério ou dos
este jornal, tido como dos mais impor-
enfrentamentos nas ruas. Ao contrário,
tantes na difusão do vocabulário liberal,
o cômico, próprio aos pasquins, consti-
recusa veementemente: ele não queria
tuiu das mais interessantes característi-
se confundir com a “revolução do
cas deste contexto de construção das
Haiti!”). De toda forma há um contraste
identidades. E é também, para a análi-
entre uma fala e um silêncio, atravessan-
se, o mais fecundo caminho para não
do as maneiras diferentes de entender a
perceber a identidade como uma essên-
nacionalidade. O silêncio nem por isso
cia, e sim em sua historicidade. O cômi-
deixava de ser estratégico.
co subverte as regras e o mundo. Muito
O Babosa prossegue no seu afã de que comum foi o questionamento sobre su-
o espera colher bom resultado (...) postos brancos, que ocupavam postos
Quer ele provar no seu segundo núme- importantes no gover no, ridicularizados
ro que as razões das saudades por d. sobre sua ascendência, com acusações
Pedro são os erros e crimes do atual de bastardia (ver por exemplo O Marte-
governo. E qual são estes erros e cri- lo). Também O Crioulinho optou por uma
mes? (...) a guerra feita aos homens de linguagem de escárnio e zombaria ao re-

pág.34, jan/jun 2002


R V O

fletir sobre a mudança dos moderados, enquanto forem protetores dos malva-

que antes do 7 de abril convidavam su- dos chumbeiros; é um cabrito que ain-
jeitos para participarem de suas fileiras, da conserva em memória as expres-

designando-os como “ir mãos” e “cida- sões de que se serviram os insolentes

dãos”, e prometendo “franquear-lhes a garrafistas de março, na sua exposição


entrada para os primeiros empregos na- dos acontecimentos de 11 a 15 de

cionais”, mas que, depois da abdicação, março de 1831, e que vai transcrever

passaram a designá-los “patriotas de faca nesta folha alguns pedaços da mesma


e cacete”. exposição, para lembrá-las a alguns

que já se tiverem esquecido. 33


(...) por último, em ajuste de contas
babau... nunca mais apareceu um em-
Rememorar as “garrafadas” era a tarefa
prego para um crioulo, e nem um cri-
a que se propunha O Cabrito , em 1833.
oulo para um emprego. 32
Falava àqueles que designava como “bra-
A mesma dupla questão da obtenção dos
sileiros mulatos”. Um dos aspectos que
cargos ou funções públicas e da autênti-
torna tão singular este momento da his-
ca identidade foi tematizada pelo O Ca-
tória é exatamente esta profusão de ad-
brito . Este periódico dedicou-se ciosa-
jetivos da palavra “brasileiro”, da pala-
mente a outra das datas que devem ser
vra “cidadão” e da linguagem racial. Pro-
memoradas: as noites de meados de
gressivamente estes temas e experiênci-
março de 1831.
as desapareceram da cena política. A
Brasileiros mulatos, um cabrito vosso polifonia, a pluralidade de vozes falan-
patrício é quem vos vai falar; não é um do dos rumos políticos e do que enten-
filho de cacheu , que se finge pardo diam como tor nar-se brasileiro cedeu
para vos iludir; é um cabrito que hoje lugar a uma série de restrições para que
ainda tem manchas no corpo recebi- alguém fosse, efetivamente, cidadão. Da
das nas ruas da Quitanda, Pescadores, mesma forma, passou a ser privilégio de
Rosário etc, etc; é um cabrito que não poucos definir o conteúdo do que con-
é moderado, e que não se unirá a eles sistia ser brasileiro.

N O T A S
1. Os seguintes artigos são de autoria de Moreira de Azevedo: “Os tiros no teatro: motim popular
no Rio de Janeiro”, RIHGB , t. 36; “Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de Janeiro”,
RIHGB , t. 37; “Sedição militar de julho de 1831”, RIHGB , t. 37; “Motim político de 17 de abril
de 1832 no Rio de Janeiro”, RIHGB , t. 38; “Motim político de dezembro de 1833 no Rio de

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 23-37, jan/jun 2002 - pág.35


A C E

Janeiro”, RIHGB , t. 39. No que concerne ao horizonte teórico onde esses movimentos foram
enquadrados, bem como a posterior ordem política consolidada, teve papel fundamental o
autor Justiniano José da Rocha em seu célebre panfleto Ação, reação, transação . Escreve
ele: “A anarquia foi comprimida!”, em: Magalhães Jr., Raimundo, T rês panfletários do segun-
do reinado , São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 178-180.
2. Levantamento feito pela autora a partir da coleção de periódicos raros da Biblioteca Nacional
e do Arquivo Nacional.
3. Sobre outros aspectos da imprensa do período, ver Ivana Stolze Lima, “Com a palavra, a
cidade mestiça: imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro, 1831-1833”, em: Ilmar
Rohloff de Mattos (org.), Ler e escrever para contar : documentação, historiografia e formação
do historiador , Rio de Janeiro, Access, 1998. Informações gerais podem ser obtidas na obra
de Laurence Hallewell, O livro no Brasil : sua história, São Paulo, T. A. Queiroz/EDUSP, 1985.
4. Sobre a articulação entre os motins políticos e a ameaça social ver especialmente as análises
de Thomas Holloway, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do sécu-
lo XIX , Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1997, cap. 3. Ver também José Luís Werneck
da Silva e outros, A polícia na Corte e no Distrito Federal , Rio de Janeiro, Série Estudos-PUC-
Rio, nº 3, 1981, p. 51.
5. Aurora Fluminense , nº ilegível, 22 de agosto de 1831, Biblioteca Nacional.
6. Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo Saquarema: a formação do estado imperial, 2 a ed., São
Paulo, HUCITEC, 1987 e Alcir Lenharo, As tropas da moderação , 2 a ed., Rio de Janeiro, Secre-
taria Municipal de Cultura, 1993. (Coleção Biblioteca Carioca, v. 25).
7. Margarida de Souza Neves e outros, A Guarda Nacional no Rio de Janeiro, 1831-1918 , nº 5,
Rio de Janeiro, Série Estudos PUC-Rio, nº 5, 1981 e Thomas Holloway, op. cit.
8. Ver por exemplo O Martelo , nº 3, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1832, Biblioteca Nacio-
nal.
9. Traslado do processo que motivou os T umultos das Garrafadas dos dias 13, 14 e 15 de março
de 1831, Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional.
10.Gladys S. Ribeiro, A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos
no Primeiro Reinado, tese de doutorado, São Paulo, Unicamp, 1997.
11.John Armitage, História do Brasil , São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/Itatiaia, 1981, p. 249.
12.John Ar mitage, op. cit., p. 217.
13.A expressão é citada por Stuart Schwartz, “The for mation of a colonial identity in Brazil”, em
Nicholas Canny e Anthony Pagden, Colonial identity in the Atlantic world, 1500-1800 , Princeton,
Princeton University Press, 1987.
14.João José Reis, “O jogo duro do dois de julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia”,
em João José Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 84-85.
15.Segundo Carl Seidler (um militar alemão, próximo da família real, e dispensado do serviço
pelas reformas no exército) as transformações atravessadas pelo Teatro de São Pedro (atual
João Caetano) eram lamentáveis. Ele via ali não mais as apresentações das companhias euro-
péias, e sim o que designava como um “drama nacional”, “drama popular” ou mais especifica-
mente “drama popular mulato”, cuja característica que mais parece desgostar-lhe era o fato
de todos terem se tornado atores, todos participavam dele, no palco ou nos bastidores. Aliás,
o teatro passara, sugestivamente, a chamar-se Teatro Constitucional Fluminense e muitas
peças de cunho político foram ali encenadas. Nesse clima é que ocorreu um confronto de
ofensas entre um oficial militar “brasileiro” e outro “português”, que logo degringolou para
uma série de ataques contra a guarda municipal, a quem o juiz de paz encarregou de contro-
lar a situação, e que era tida como prioritariamente “portuguesa”. Com os ânimos acirrados,
e ouvindo as injúrias, a guarda acabou por atirar sobre a multidão no recinto do teatro. O
episódio foi freqüentemente rememorado pela imprensa de oposição ao governo regencial
como um dos momentos de traição da nacionalidade. Ver Moreira de Azevedo, “Os tiros no
teatro: motim popular no Rio de Janeiro”, op. cit., e Carl Seidler, Dez anos no Brasil , 1 a ed.,
São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 51-53.
16. O Homem de Cor , nº 1, 14 de setembro de 1833, Biblioteca Nacional. A partir do nº 3, o título
muda: O Mulato ou o Homem de Cor .
17. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 3, 16 de outubro de 1833, Biblioteca Nacional.
18. O Evaristo , nº 3, 12 de outubro de 1833, Biblioteca Nacional.

pág.36, jan/jun 2002


R V O

19. O Martelo , nº 3, 14 de setembro de 1832, Biblioteca Nacional.


20. O Homem de Cor , nº 1, 14 de setembro de 1833.
21. Aurora Fluminense , nº ilegível, 13 de setembro de 1833, Biblioteca Nacional.
22. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 4, 23 de outubro de 1833.
23. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 3, 16 de outubro de1833.
24. O Evaristo , nº 1, 26 de setembro de 1833.
25. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 4, 23 de outubro de 1833.
26.Processo Lafuente (Autos de sumário... pelo motim e assuada, ajuntamento ilícito no largo do
Passo e lugar do correio no dia doze de setembro, da parte que faz culpa ao réu Maurício José
Lafuente, 1832), Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional.
27. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 4, 23 de outubro de 1833.
28. O Mulato ou o Homem de Cor , nº 5, 4 de novembro de 1833.
29.Joaquim Norberto de Souza e Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população
geral do Império , edição fac-similar, São Paulo, IPE/USP, 1986, p. 14-15.
30. Aurora Fluminense , nº 538, 24 de agosto de 1831. A nova luz brasileira, utilizava a mesma
injúria: “os membros grandes criminosos d’o gabinete secreto, os homens que estão senho-
res dessa manobra haitiana”, nº 145, 8 de junho de 1831, Biblioteca Nacional.
31. Aurora Fluminense , nº 818, 20 de setembro de 1833.
32. O Crioulinho , nº 1. 30 de novembro 1833, Arquivo Nacional.
33. O Cabrito , nº 1, 7 de novembro de 1833, Arquivo Nacional.

A B S T R A C T
To distinguish the printing press this article exposes an animated and singular violent dispute
perfor med by the inumerous races existent in the city of Rio de Janeiro, in the year of 1831,
1832 e 1833. Thus, the attributions imposed or assumed of adjectives as ‘colored man’, ‘mulatto’,
‘brown’ and ‘creole’ acquire a signification essentially political, throughout which urban groups
claim the recognition of citizens.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 23-37, jan/jun 2002 - pág.37


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Ana Lúcia Enne


Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
Adriana R. B. V ianna
Vianna
Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
Sér gio Carrara
Sérgio
Doutor em Antropologia Social e professor adjunto do Instituto
de Medicina Social/UERJ

Entre o Crime
e a Conciliação
A violência contra a mulher
na justiça do Rio de Janeiro

I NTRODUÇÃO bém a ocorrência de uma experiência sin-

E
gular de mediação de conflitos e de arbi-
ste artigo pretende contribuir tragem extra-oficial, onde, graças à autori-
para a discussão das situações dade de delegadas e detetives, as correla-
de violência denunciadas por ções de força e os valores já cristalizados
mulheres através das Delegacias Especi- no seio da família podem ser alterados.
ais de Atendimento à Mulher (DEAMs) do Além disso, os dados etnográficos
Rio de Janeiro e sobre o modo como tais coletados por estes pesquisadores revela-
situações são percebidas – vale dizer ram que, em muitos casos, as DEAMs
construídas –, em seus desdobramentos produzem uma espécie de pedagogia prá-
judiciários. 1 A observação sistemática do tica, através da qual altera-se o próprio
trabalho realizado pelas DEAMs tem per- padrão de percepção da violência exercida
mitido aos pesquisadores percebê-las sobre mulheres, que, às vezes, submeti-
enquanto instâncias privilegiadas para das há muitos anos a abusos sexuais e
negociação de conflitos. 2 O número re- agressões, incorporam e naturalizam tais
duzido de queixas que se transfor mam atos, não os identificando como violentos
em inquéritos enviados à justiça expres- e, muito menos, como criminosos.
saria, portanto, não apenas a morosida- Uma primeira preocupação de nossa pes-
de ou a ineficiência da polícia, mas tam- quisa foi verificar se essa dupla dimen-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 39-58, jan/jun 2002 - pág.39


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são – de negociação e pedagogia – apre- onde se destacam, como elementos


sentada pelas DEAMs se mantém nos explicativos para seu comportamento
outros níveis do aparelho judiciário e agressivo, a sua extração social e o ca-
com que contor nos. Assim, a nossa pri- ráter “familiar” e/ou “amoroso” do con-
meira tarefa consistiu na localização de flito denunciado. Nas palavras da promo-
tais casos nos labirintos da justiça do tora: “...quando o cara está desempre-
estado do Rio de Janeiro. Ao executá-la, gado, bebendo” ou “depois de um dia de
penetramos em um outro cenário total- trabalho, o trem lotado...”, ele “chega em
mente distinto daquele das delegacias, casa e a mulher reclamando, acaba per-
embora a ele articulado. T rata-se das dendo a cabeça...”. Nesse sentido, os
centrais de inquérito, 3
das varas crimi- acusados não seriam propriamente cri-
nais e dos tribunais. minosos, do mesmo modo que as denún-
cias levadas às DEAMs não seriam crimes
De acordo com o que pudemos obser- como outros quaisquer, mesmo que for-
var, do ponto de vista da justiça, os cri- malmente envolvam os mesmos atos
térios de avaliação dos inquéritos estão (agressões, ameaças etc.). Parece ser
organizados ao longo de dois eixos dis- possível afirmar, portanto, que os casos
tintos. No primeiro deles, os critérios re- oriundos das DEAMs são avaliados e
lacionam-se com a percepção do caráter valorados não apenas pelas diferenças
especial da violência contra a mulher que mantêm entre si (agressões consi-
frente a outros tipos de violência e com deradas graves ou não, por exemplo),
a interpretação dos “verdadeiros” inte- mas pela posição que ocupam (ou que
resses das vítimas; e, no segundo, rela- lhes é atribuída) no quadro mais amplo
cionam-se à manutenção de um determi- da criminalidade da cidade. 4
nado padrão de funcionamento do apa-
A ESCOLHA DOS PROCESSOS

A
relho judiciário. Isso ficou evidente des-
de o nosso primeiro contato com uma escolha dos processos a se
das promotoras que, durante o período rem analisados partiu de in-
da pesquisa, era responsável pelos ca- vestigação realizada sobre os
sos vindos de DEAMs. Tais casos foram dados globais de duas centrais de inqu-
caracterizados por ela como sendo, de érito, das três existentes à época, no
um modo geral, mais “sociais” do que estado do Rio de Janeiro. 5 As centrais
“criminais”. Essa afir mação aponta para de inquérito começaram a ser criadas em
a identificação de uma “clientela” espe- 1991, obedecendo a uma preocupação
cífica da DEAM que deter minaria, em de “aproximar” as delegacias do apare-
grande medida, o tipo de queixas ali lho judiciário, colocando-as sob super-
registradas. O acusado é caracterizado visão e fiscalização mais estritas. Procu-
de acordo com um modelo genérico, rava-se, de um lado, tornar mais eficien-

pág.40, jan/jun 2002


R V O

te o aparelho judiciário, através da tradas nos dados globais, no que dizia


agilização da formação dos processos, e respeito ao ano do processo, à sua situ-
de outro, aliviar o acúmulo de proces- ação (se ele havia sido arquivado ou de-
sos nas varas criminais, através da insti- nunciado) e, finalmente, o tipo de crime
tuição de uma instância inter mediária de sob apuração. 6 O presente artigo tem,
avaliação e triagem. Desse modo, os pro- assim, como referência esse universo de
motores das centrais faziam uma primei- 122 casos, representativos do conjunto
ra avaliação dos casos e os encaminha- global dos casos enviados à justiça do
vam às varas, com pedido de arquiva- estado do Rio de Janeiro pela 1ª Central
mento ou de denúncia. Entre os anos de de Inquéritos, na primeira metade da
1992 e 1994, as duas centrais avaliaram década de 1990.
1153 inquéritos, dos quais 64% foram
encaminhados com pedido de arquiva- OS CONFLITOS E SUAS VERSÕES : OS

mento e 36% com pedido de denúncia. CONFLITOS E AS RELAÇÕES ENTRE

VÍTIMAS E ACUSADOS

D
O universo total de inquéritos encami-
nhados pelas DEAMs à justiça revela uma e modo geral, podemos dizer
concentração expressiva em dois tipos que, em relação ao modo como
de acusação, lesões corporais e ameaça as vítimas aparecem retratadas
(respectivamente artigos 129 e 147 do nos processos, trata-se em sua maioria
Código Penal). No caso da 1ª Central de de mulheres na faixa dos 35 anos, casa-
Inquéritos, por exemplo, entre fevereiro das, com filhos, de cor branca, alfabeti-
de 1991 e julho de 1995, dos 847 inqué- zadas e inseridas ativamente no merca-
ritos que os seus promotores enviaram do de trabalho. Quanto aos acusados,
para as varas criminais, 64,5% seriam predominantemente do sexo mas-
correspondiam a casos de lesão corpo- culino, com idade média de 39 anos,
ral, e 32,5% a casos de ameaça. Os 4% casados e com filhos, de cor branca, com
restantes distribuíam-se majoritariamen- padrão de escolaridade de 1º e 2º graus,
te entre os crimes sexuais (estupro, aten- sem antecedentes criminais e inseridos
tado violento ao pudor e sedução). ativamente no mercado de trabalho,
exercendo, principalmente, profissões de
Para definir o universo de processos a
nível médio.
ser abordado qualitativamente, concen-
tramos a análise nos dados da 1ª Cen- Quando comparados, inquéritos e pro-
tral de Inquéritos. Dos 847 inquéritos cessos oriundos das DEAMs retratam con-
avaliados nessa instância, de fevereiro flitos que guardam certas regularidades
de 1991 a julho de 1995, 122 foram se- entre si, tanto no que diz respeito aos
lecionados, seguindo uma amostragem artigos penais nos quais são enquadra-
que acompanhava as proporções encon- dos, e sobretudo quanto às relações exis-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 39-58, jan/jun 2002 - pág.41


A C E

tentes entre vítimas e acusados. Tais re- reram entre pessoas que compartilhavam
lações definem não só as características a mesma residência, 29,6% aconteceram
específicas através das quais os confli- entre pessoas com residências distintas
tos são percebidos por aqueles que es- e 8% entre pessoas cujas residências
tão diretamente envolvidos neles – víti- eram vizinhas. O universo das relações
mas e acusados –, mas também, pelos amorosas apontado acima como prepon-
incumbidos de avaliá-los – promotores, derante na amostragem encontra corres-
defensores e juízes. Dos 122 processos
7
pondência, por isso, também na relação
analisados, 87,7% dizem respeito ao que de residência, uma vez que mais da me-
qualificamos como conflitos relativos a tade dos casos ocorreu entre pessoas
relações amorosas , 9,8% a relações
8
que partilhavam a mesma moradia.
próximas, mas não-amorosas (oito casos
Dos 107 casos definidos como relações
envolvendo vizinhos, um envolvendo co-
amorosas, oitenta dizem respeito a rela-
nhecidos em que o acusado era amigo
cionamentos em curso no momento do
do pai da vítima, e três entre parentes,
conflito, sendo que em 78 deles, ou seja,
sendo os acusados irmão, avô e cunha-
na quase totalidade, os acusados eram
do das respectivas vítimas), 1,6% a rela-
maridos ou companheiros das vítimas e
ções de trabalho e apenas 0,8% a des-
em apenas dois eram apresentados como
conhecidos. Há, logo, uma preponderân-
seus namorados. Por outro lado, 24 ca-
cia significativa dos conflitos envolven-
sos referem-se a relações já desfeitas no
do relações em que algum tipo de víncu-
momento do conflito, sendo novamente
lo amoroso está presente, mesmo que a
a maioria (21 casos) relativa a ex-mari-
relação em si já estivesse desfeita no
dos ou ex-companheiros. Por fim, em três
momento da queixa. Os depoimentos
casos o conflito se deu entre comborças,
prestados sobre tais conflitos implicam
motivado por problemas em relação a
em relato sobre tais relações e sobre as
uma terceira pessoa: marido, companhei-
expectativas nelas envolvidas. Ou seja,
ro ou amante das envolvidas. Essas vari-
ao levar o conflito para as delegacias e,
ações tornam-se significativas no mo-
posterior mente, para o judiciário, os en-
mento em que se analisa a distribuição
volvidos evocam padrões de comporta-
das acusações, podendo-se perceber cer-
mento, de obrigações e uma trajetória
ta correspondência entre o tipo de cri-
de convivência que não se limita apenas
me registrado e as relações existentes
ao episódio denunciado.
entre vítimas e acusados.

Outro aspecto importante na caracteri- Enquanto no conjunto das relações amo-


zação de tais conflitos diz respeito ao rosas basicamente não há variação nos
padrão de residência de vítimas e acu- tipos de crime registrados, distribuídos
sados. Enquanto 57,6% dos casos ocor- entre casos de lesão corporal e de ame-

pág.42, jan/jun 2002


R V O

aça (à exceção de um caso de sedução), multiplicidade de expectativas e obriga-


nas relações próximas não-amorosas, a ções que cerca tais redes. Ao contrário
variedade é muito maior, compreenden- do que se possa supor, o apelo a tais ins-
do também casos de constrangimento ile- tâncias não significa necessariamente um
gal, estupro, atentado violento ao pudor rompimento das relações entre vítimas
e sedução. Dividindo-se o universo das e acusados, mas pode marcar um
relações amorosas em relações atuais ou reordenamento das bases em que tais
desfeitas, porém, observa-se que a dis- relações se estabelecem. Nesse sentido,
tribuição de crimes sofre novas varia- é importante atentar para duas questões.
ções. Enquanto predominam os casos de
Em primeiro lugar, na maioria dos casos
lesão corporal nas relações atuais (73%
os conflitos denunciados ocorreram em
dos casos), nas relações desfeitas há um
relações cuja duração excedia cinco anos
equilíbrio entre casos de lesão e de ame-
(59%), sendo que em 38% dos casos,
aça. A maior incidência de casos de ame-
excedia o limite de dez anos. Ou seja, o
aça pode ser entendida, nessas situa-
que é denunciado dificilmente pode ser
ções, como parte de processos mais
caracterizado como um episódio inédi-
amplos de separação conjugal. Ou seja,
to, fruto de um contato recente e sobre
muitas vezes, como se verifica analisan-
o qual não tenham sido estabelecidos
do a continuidade dos processos, o re-
quaisquer tipos de regras ou padrões.
curso às DEAMs envolve conflitos mais
Uma questão que pode ser colocada, por-
prolongados e com desdobramentos em
tanto, é em que medida o fato narrado
outras instâncias (como no caso de se-
excede ou contradiz tais padrões, ou
parações legalmente acordadas nas va-
seja, em que medida ele pode ser perce-
ras de família). Por outro lado, tanto a
bido como disruptivo, implicando o re-
concentração de casos de lesão entre
curso a instâncias exteriores à relação.
cônjuges ou companheiros, quanto a in-
Em outros termos: considerando que tais
cidência de casos de ameaça entre ex-
conflitos ocorrem num contexto de rela-
cônjuges e ex-companheiros é um fator
ções longamente estabelecidas, o que faz
considerado por promotores e juízes em
com que sejam percebidos como passí-
suas avaliações, per mitindo uma carac-
veis de interferência policial e/ou judici-
terização singular desses conflitos.
al? O que se está demandando ao recor-
rer a essas instâncias e que tipo de legi-
Podemos afir mar, desse modo, que o re-
timidade está sendo socialmente
curso às delegacias ou ao judiciário deve
construída para elas?
ser compreendido em meio às redes de
relações em que tanto as vítimas quanto Em segundo lugar, é preciso perceber
os acusados estão inseridos, estando, que o andamento que tais denúncias têm
conseqüentemente, marcado pela nos canais da polícia e da justiça não se

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faz desligado das transfor mações sofri- o registro inicial, até a decisão final do
das pelas próprias relações. Nos casos
9
juiz, que permite que efetivamente ope-
em que há rompimento da relação, tal rem-se mudanças, senão no comporta-
rompimento não implica necessariamen- mento e padrões da relação, ao menos
te o desejo de ver recair sobre o acusa- na avaliação que os envolvidos fazem do
do deter minadas punições legais. Ao próprio conflito e de seus desdobramen-
mesmo tempo em que ganha corpo a rup- tos e, finalmente, o efeito simbólico da
tura das relações de caráter amoroso, o transformação de um conflito que inici-
andamento do processo pode ser perce- almente pode ser percebido pelos envol-
bido como contraditório com outros ti- vidos como “conjugal” ou “doméstico”,
pos de acordo desenhados entre acusa- em uma questão judicial. É importante
do e vítima. Perceptível nos casos em perceber, nesses termos, que a relação
que há pedidos para que as acusações entre acusados, vítimas e os agentes da
sejam suspensas (a “retirada da queixa”), justiça chamados a intervir (delegados,
essa contradição baseia-se nor malmen- promotores, juízes etc), não pode ser
te na multiplicidade de papéis que os in- concebida como um modelo estático de
divíduos assumem em suas relações (não mediação. Ou seja, esses “especialistas”
apenas o agressor, mas o “bom pai de não devem ser vistos apenas como aque-
família”; não apenas aquele que agride les que regulam, a partir de suas avalia-
ou ameaça “por qualquer motivo”, mas ções e do exercício do poder de que es-
o que o faz num contexto de crise conju- tão investidos, os termos em que a liga-
gal, em que o processo de separação era ção entre vítimas e acusados está
iminente, ou que o faz sob influência do estabelecida, nem muito menos devem
álcool, entre outros fatores). Ao mesmo ser considerados como aplicadores ime-
tempo em que a polícia e, depois dela, o diatos de um código geral de prescrições
judiciário, são chamados a intervir so- e punições. Antes disso, são eles própri-
bre relações que não mais podem ser os objetos de outros tipos de negocia-
controladas apenas pelos que estão di- ção, cujos termos não estão completa-
retamente envolvidos nelas, eles podem mente definidos a priori para os que soli-
ser tomados como ameaçadores para os citaram sua intervenção. Dessa for ma,
acordos a que, de um modo ou outro, podemos dizer que não só há múltiplas
acusados e vítimas eventualmente che- instâncias de negociação estabelecidas
gam extra-judicialmente. ao longo do processo (entre acusado e
vítima, de ambos com as autoridades
Dois elementos singulares das queixas policiais, destas com os agentes da jus-
que seguem para a justiça devem então tiça, dos agentes entre si e com acusa-
ser destacados: o tempo transcorrido dos e vítimas etc), como também aquilo
desde a procura às DEAMs, onde ocorre que motiva e representa os diferentes

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agentes, que mudam nesse percurso de e a avaliação a respeito do poder que tal
acordo com as avaliações que são feitas ato pode encerrar. Por outro lado, como
do andamento do próprio processo legal, dissemos antes, à medida em que a
e também de suas relações. “queixa” evolui, ou seja, em que o inqu-
érito tem andamento e eventualmente
Para apreender um pouco dessas trans-
transforma-se em processo judicial, essa
formações e das imagens produzidas so-
fala sofre transformações. Recebe mais
bre o conflito e as relações em que ele
detalhes, torna-se mais tolerante com o
se deu, é fundamental procurar perce-
acusado, contradiz-se. O discurso das
ber como se organizam as falas de cada
vítimas que analisamos aqui é, portan-
um dos envolvidos, conforme registradas
to, o registro das mudanças sofridas pela
nos autos, de modo a recuperar parte da
relação e pela for ma de representá-la
pluralidade de discursos e representa-
frente a autoridades específicas, regis-
ções construídos ao longo do processo.
trada sob a forma e o crivo da burocra-
É importante lembrar que trabalhamos
cia jurídico-policial.
aqui com discursos híbridos, produtos a
um só tempo da versão dada pelos en-
Um agrupamento inicial dos temas pre-
volvidos e do modo como foram ouvidas
sentes nesses discursos pode ser feito
e registradas pelos diferentes agentes da
separando aqueles que dizem respeito
justiça. Vamos discutir aqui alguns dos
mais diretamente ao motivo do conflito
temas mais recorrentes nas falas das ví-
e aqueles que tratam de características
timas e acusados em diferentes momen-
da própria relação, ou seja, que compre-
tos do processo.
endem o conflito a partir de um diagnós-
As versões das vítimas
tico da relação entre acusado e vítima.
Ao analisar a forma como se estrutura o Entre os temas mais constantemente in-
discurso das vítimas, ou seja, seus te- vocados pelas vítimas em seus depoi-
mas mais recorrentes e a seqüência de mentos têm destaque a existência de
depoimentos que o confor ma, é preciso agressões anteriores ao fato denunciado,
ter em mente que se trata de uma fala que aparece em 54 dos 107 inquéritos.
produzida em contextos específicos. Para Como foi colocado antes, a denúncia pa-
que ela exista, é necessário que tenha rece resultado não apenas do conflito em
havido uma série anterior de aconteci- si, mas de uma determinada história de
mentos e de representações desses acon- conflitos, fazendo-se necessária, para a
tecimentos, capaz de produzir a decisão vítima, a interferência de um elemento
de recorrer à polícia. “Dar queixa” é, exter no e de maior autoridade (a polícia
nesse sentido, um ato complexo que en- ou a justiça). Esse é um tema, porém,
volve a história de uma relação, a inten- que dificilmente aparece de forma isola-
ção de modificá-la a partir da denúncia da. Conjugando-se a outros, fornece um

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amplo perfil da relação e do acusado, le- ao denunciá-lo, ela estaria fortalecendo


gitimando também denúncias de “amea- seu lugar de mãe. Desse modo, se a quei-
ç a”, como podemos perceber no re- xa feita a respeito da atitude do marido
lato abaixo, citado no processo pode colocar em xeque as atribuições da
92001126511-3, em que a vítima decla- vítima enquanto esposa e o equilíbrio das
ra que relações estabelecidas, o fato delas se-
rem feitas em nome de uma referência
o marido a agrediu, a desmoraliza na
mais ampla de obrigações sociais de
rua, bate no filho por este querer
cada um, legitima e fortalece tais atri-
defendê-la. Disse que já teve que ficar
buições. Essas mesmas obrigações são
na rua esperando-o dor mir, porque ele
invocadas, nesse caso, para a continui-
ameaçava bater nela e no filho e quan-
dade da denúncia, mesmo após a sepa-
do sai do serviço ele fica bebendo ‘até
ração do casal. Assim, no mesmo pro-
os bares fecharem’, e que briga com
cesso a vítima afirma que
ela por qualquer motivo, como, por
exemplo, alguma coisa estragar. tem um filho doente, o que não permi-

te que ela trabalhe, e que o ex-compa-


A queixa por “ameaça” respalda-se, por-
nheiro não aceita mantê-lo integral-
tanto, para a vítima, num retrato mais
mente, alegando ‘que o filho não está
complexo da relação, em que os confli-
doente nada e que a declarante é quem
tos em si não têm força explicativa (“por
o quer explorar’, declara querer dar
qualquer motivo”), mas são fruto de um
continuidade ao inquérito, em função
comportamento mais global do acusado.
do ex-companheiro se mostrar tão in-
O álcool desempenha também um ele-
sensível até com os filhos.
mento fundamental de entendimento dos
conflitos, colaborando para a idéia de A polícia é acionada, portanto, como um
que o problema da relação centra-se no elemento de pressão no sentido de res-
“comportamento” ou na “personalidade” tabelecer obrigações que foram rompi-
do acusado, e não em atos por ele co- das, devendo atuar como figura de auto-
metidos. Por outro lado, a legitimidade ridade e mediação no rearranjo das re-
da denúncia estaria ancorada não ape- lações. Nem sempre a denúncia de uma
nas no delito cometido contra a vítima, agressão ou ameaça em um quadro de
enquanto indivíduo singular, por outro agressões anteriores indica, porém, o
indivíduo, e sim no fato de que as atitu- desejo de romper a própria relação. Ao
des do acusado estariam inviabilizando contrário, o recurso à polícia e à justiça
todo um conjunto de relações familiares. pode ser tomado como um fator da bus-
Ao agredir o filho por este querer defen- ca pela restauração de uma determina-
der a mãe, ele estaria falhando em seu da ordem. Mesmo que um dado padrão
papel de pai, ao mesmo tempo em que, de violência seja assimilado como legíti-

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mo na relação, uma vez que outras agres- posições sociais a serem ocupadas por
sões não teriam sido denunciadas, o con- cada um na relação, do que em um sen-
flito pode ser compreendido como exces- tido mais individualista de direitos e de-
sivo, como ocorre em um inquérito, no veres. Não à toa, a questão da capacida-
qual a vítima declara, no processo de ou não de manter economicamente a
92001023942-8, que “houve agressões casa, aparece nas falas das vítimas como
anteriores, mas que essa foi a mais vio- um indicativo da sua insatisfação com
lenta”, anunciando ao mesmo tempo que os termos em que a relação está
“não pretende se separar”. Em depoimen- estruturada, compondo um retrato depre-
to prestado na audiência de julgamento, ciativo do parceiro. 10 As vítimas fazem
no citado processo, a vítima ratifica essa mais que retratar um conflito específico
posição, declarando ao indicar como motivos da agressão ter
questionado “o fato de não ter comida
que continuam vivendo juntos; que já
em casa para dar à mãe do marido”, se-
o perdoou pelo fato. Desde o início do
gundo o processo 92001077538-0.
casamento ele começou a bater nela,
que nas vezes anteriores não registrou

queixa; que desta vez registrou porque


Nesse sentido, a defesa da família e, em

achou que ele tinha sido muito violen-


especial, dos filhos, é constantemente

to, que perdeu um dente da frente.


sublinhada como motivação para a de-
núncia. A “queixa” não diz respeito, na
A rotina de agressões a que faz referên-
fala das vítimas, a uma agressão ou ame-
cia não é, portanto, o motivo explícito
aça sofridas individualmente, mas a um
da queixa feita, mas sim o fato de que
conjunto de relações que entra em co-
mesmo os limites colocados nessa roti-
lapso. É como se fosse necessário invo-
na foram excedidos. O dente perdido
car os danos causados a outras pesso-
torna-se símbolo, na sua fala, de um grau
as, de alguma forma sob responsabilida-
de violência intolerável. Ao mesmo tem-
de da vítima e/ou do acusado (como os
po em que a interferência exter na é soli-
filhos, mães, sogras etc) para justificar
citada pela vítima, ela reivindica o con-
a decisão de denunciar o companheiro.
trole das negociações novamente para si
Através da referência a essa rede de re-
ao dizer que já o perdoou, como se efe-
lações e ao alcance que os conflitos teri-
tivamente a dimensão privada de tais
am, por prejudicarem não só vítima e
conflitos devesse prevalecer sobre seu
acusado, mas também os que estariam
julgamento público.
a eles ligados, percebe-se claramente a
As imagens traçadas pelas vítimas a res- dupla face de um problema que vincula-
peito dos acusados ao longo dos inqué- se a um só tempo à esfera do familiar e
ritos baseiam-se, assim, muito mais em do criminal. Acionado por algumas mu-
um conjunto de referências acerca das lheres, o duplo recurso à vara de família

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e à delegacia não deve ser visto, desse de proteger os filhos – tão decisivo, que
modo, apenas como uma estratégia para em dado momento a vítima relata que
conseguir melhores condições de sepa- ao pensar em retirar a queixa – “provo-
ração. Ao contrário, o apelo à interven- cou a ira da filha mais velha, que não
ção policial pode ser percebido como a suporta mais a relação do casal”; a exis-
for ma legítima de sustar atitudes clara- tência de agressões anteriores; o cons-
mente violentas ou ameaçadoras que trangimento sexual (sobre as filhas, nes-
estariam na base das justificativas para se caso), e o contexto de separação ju-
a separação. Isto se revela nas declara- dicial. Esta não é apresentada, porém,
ções abaixo, em que a vítima conta que, como a fonte dos conflitos, mas como
após um período prolongado de ausên- uma solução a ser tomada frente a um
cia, o marido retornou à casa, criando quadro ameaçador para todos os com-
novas tensões confor me relata o proces- ponentes da família. Como nem mesmo
so 94001094053-6. esse desfecho parece possível sem a in-
terferência de alguma instância de po-
Disse que (...) a filha mais velha, já es-
der exterior às relações, a procura às de-
tava mocinha e [o acusado] começou
legacias (não apenas à especializada,
a olhá-la com olhares lascivos e dizer-
mas também a uma delegacia local) sur-
lhe besteiras de origem sexual; que
ge tanto como possibilidade de obter
certa feita pegou uma chave de fenda
uma intervenção mais imediata, quanto
e disse: ‘vou te furar com isso’; outras
de exercer uma forma de controle sobre
vezes ele fazia gestos juntando os dois
o comportamento do acusado durante o
dedos da mão e dizia à [filha], mostran-
percurso do processo de separação na
do os dedos: ‘vou te perfurar’. Ou di-
vara de família.
zia que lera no jor nal que pai cria a

filha ‘para comer’. O marido molesta-


Note-se, porém, que não é formalizada
va também a outra filha. A vítima foi à
uma denúncia de agressão ao filho ou
DEAM e depois à vara de família para
de atentado ao pudor com relação às fi-
se separar. Isso deixou o marido furio-
lhas. Por mais dramáticos que sejam os
so, provocando novas agressões que a
fatos narrados, eles são compreendidos
motivaram a pedir ajuda na 38ª DP.
e relatados como parte de um conflito
Depois de um período de mudança, as
do “casal” ou mesmo da “família”, não
violências tor naram-se piores. O acu-
se destacando as agressões feitas a cada
sado chegou a jogar álcool no filho
um individualmente. Desse modo, facil-
mais novo, ameaçando queimá-lo.
mente a solução para o conflito é vista,
Diversos temas comumente presentes no tanto para os envolvidos como, em al-
discurso das vítimas aparecem no trecho guns casos, para os membros do próprio
acima: o papel decisivo da necessidade judiciário, como a separação por si só.

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Uma vez desfeita ou reorganizada a uni- contrário, pode ser identificado a outros
dade familiar, o conflito estaria esgota- motivos específicos, o que não diminui
do, não sendo necessária ou cabível uma o peso do álcool no retrato da relação
avaliação de outro tipo. Ou seja, por mais como um todo. Em certo processo, a ví-
que o acusado possa ter perpetrado tima declara no registro de ocorrências
agressões ou atos violentos junto a cada que o motivo da agressão foi o ciúme que
um dos filhos e à mulher, esses atos pa- o ex-companheiro sentia, tendo este afir-
recem só fazer sentido em seu conjun- mado que “se ela tiver algum namorado,
to, como indicativos da impossibilidade irá matá-lo”. Ao depor no inquérito, po-
de manter uma dada organização familiar. rém, ela traça um quadro da relação,
marcada por outras agressões moti-
Um outro elemento citado pela vítima
vadas, segundo ela, pelo uso de álcool.
ganha também peso de explicação geral
Constatamos, assim, pelo processo
tanto para os conflitos com o acusado,
93001021411-2 que, em 1990, quando
quanto para as motivações que orienta-
ainda convivia com o companheiro, ele
riam o comportamento desse último: o
chegou em casa embriagado e espancou
uso recorrente de álcool ou tóxicos. 11
a declarante, que ficou com o rosto de-
Percebido como um componente da per-
formado (...); que quando o filho de sete
sonalidade e das atitudes do acusado, ele
anos tinha um ano, ela foi violentamen-
tem o poder de for necer uma explicação
te espancada e deixada caída na rua; que
totalizante dos conflitos, ao mesmo tem-
dessa vez ela não registrou o caso e a
po em que permite a manutenção das
vida do casal continuou com as
posições sociais definidas na relação
atribulações causadas pela bebida, ou
sem maiores contradições. Ao alegar que
seja, toda vez que ele se embriagava, a
os maridos ou companheiros só as agri-
vida dela tornava-se um inferno.
dem sob efeito do álcool ou de tóxicos,
Por atuar como uma explicação da rela-
as vítimas conseguem ao mesmo tempo
denunciar uma atitude legalmente con- ção como um todo, e não apenas de con-

cebida como criminosa – a agressão – flitos definidos, o álcool – ou sua ausên-


cia – pode ser também o motivo alegado
sem que isso implique necessariamente
em classificar o acusado como crimino- para solicitar a suspensão dos inquéri-

so em si mesmo. 12 tos. Ao “retirar a queixa” sob alegação


que “o relacionamento do casal encontra-
Ao citar o álcool como elemento central se tranqüilo, uma vez que o indiciado pa-
ou periférico aos conflitos, as vítimas rou de beber” (processo 92001126502-2),
apontam para uma dimensão do relacio- a vítima retira do conflito sua
namento percebida como totalmente fora especificidade para situá-lo num outro
de seu controle e dificilmente circuns- quadro de causalidade. A questão deixa
crita ao conflito denunciado. Este, ao de ser a agressão em si, como no mo-

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A C E

mento do registro inicial, para um con- condições específicas – o desejo de de-


texto de relação marcado por um elemen- nunciar o acusado – e o desenrolar da
to exter no. relação ao longo dos depoimentos, o dis-

E
curso dos acusados tem outras caracte-
sse tipo de lógica parece ser
rísticas peculiares. É nele que se perce-
partilhada também por acusa-
be mais claramente o peso que tem o
dos e mesmo por alguns agen-
tipo específico de discurso com o qual
tes da polícia e da justiça. Enquanto o
estamos lidando: o depoimento. Ou seja,
uso de tóxicos é sempre negado pelos
não são falas como outras quaisquer,
acusados, por motivos óbvios, o álcool
mas relatos construídos frente a uma si-
freqüentemente é citado como explica-
tuação em que há diferenças claras de
ção ou como elemento presente nos con-
autoridade. No caso dos acusados, es-
flitos, indicando uma dimensão de
sas diferenças podem ser percebidas
excepcionalidade para as agressões
como adversidade. Em princípio, é pre-
registradas. Nesses termos, tanto vítimas
ciso não apenas declarar, relatar, mas
quanto acusados podem fazer uso de um
d e f e n d e r - s e , c o n t r a p o r. É u m a f a l a
mesmo modelo explicativo da relação,
construída, portanto, a partir de diver-
privilegiando um fator exógeno aos con-
sas referências: o discurso-acusação da
flitos em si. O partilhamento dessas re-
vítima; a imagem construída a seu res-
ferências e desse modelo de explicação
peito nesse discurso e o questionamento
é fundamental para se pensar a
feito nas diferentes instâncias de poder
especificidade dos inquéritos e proces-
– polícia, promotores, juízes. Isto é fun-
sos realizados através das DEAMs. Por
damental para determinar os temas mais
mais que estejam em posições antagôni-
recorrentemente abordados.
cas, vítimas e acusados percebem as si-
tuações vividas na delegacia ou no judi-
Nesse sentido, dois argumentos princi-
ciário a partir de referências comuns, co-
pais podem ser destacados, tanto por sua
mungando a noção de que não são atos
maior incidência, quanto pelas caracte-
isolados que estão em jogo, mas uma
rísticas defensivas que guardam: a nega-
história de comportamentos e expectati-
ção da acusação e a justificativa do con-
vas conflitantes. Perceber os pontos em
flito como tendo sido uma agressão mú-
que essas versões se aproximam e se
tua. Tanto a negação quanto o argumen-
antagonizam é fundamental para compre-
to da agressão mútua surgem em cerca
ender como se estrutura a avaliação ju-
de 40% dos casos, sendo que em alguns
dicial dos inquéritos.
deles, pelas próprias transformações so-
As versões dos acusados
fridas nos relatos ao longo do processo,
Se o discurso das vítimas deve ser com- podem aparecer combinados (como em
preendido, como dissemos, a partir de casos em que o acusado começa negan-

pág.50, jan/jun 2002


R V O

do que tenha cometido uma agressão sado pela companheira de tê-la agredi-
p a r a a s s u m i r, e m o u t r o m o m e n t o , do com:
que a cometeu, mas que também foi socos, tapas, puxões de cabelo e chu-
a g r e d i d o ) . 13 tes. Nega veementemente ter agredi-
do sua companheira. Que estava dor-
Desse modo, a negação tanto pode con-
mindo, acordou com uma pancada que
sistir em indicar que tudo não passa de
levou no estômago por sua companhei-
invenção da vítima, mesmo em casos de
ra, que estava com as pernas para cima
agressões comprovadas através de exa-
para vestir uma meia-calça, quando
me de corpo de delito, quanto pode tor-
deixou o pé bater no estômago dele;
nar necessária uma explicação suple-
que acordou sobressaltado e reclamou,
mentar, que indique que há outros inte-
chegando a alterar a voz; que ela não
resses da vítima na denúncia,
gostou e passou a unhá-lo e deu uma
notadamente relacionados à posse de
cotovelada nele; que ele com dor
bens ou da casa em contextos de sepa-
revidou a cotovelada dando um empur-
ração conjugal. Nesses casos o que é
rão nela; que ela levantou-se da cama,
contextualizado não é o conflito em si,
ocasião em que ele a empurrou; que
mas a própria queixa, compreendida
ela rolou na cama propositalmente,
como parte de disputas com interesses
caiu no chão onde ficou se debaten-
explícitos. Uma outra forma de negação
do; que ele ao ver que a companheira
da acusação pode estar baseada na su-
estava emocionalmente descontrolada
posta irracionalidade do comportamen-
a levantou do chão; que ela o unhou
to da vítima. Nesses casos, de forma se-
novamente e deu um chute violento
melhante ao que acontece em alguns re-
nos órgãos genitais dele; que ela pas-
latos das vítimas, o conflito e sua denún-
sou então a bater com a cabeça na pa-
cia não são percebidos como fruto da
rede e gritava que estava ficando lou-
relação, mas como uma conseqüência do
ca; (...) que não é verdade que ele a
descontrole do outro. Aquele que depõe,
agrediu com socos, pontapés e puxões
portanto, esteja ele for malmente na po-
de cabelo; que era ela quem puxava
sição de vítima ou de acusado, percebe
os próprios cabelos e fazia expressões
a si mesmo como vítima da ação de seu
faciais de quem estava fora da razão ;
companheiro, cujas razões lhe escapam,
que ele acredita que as lesões que ela
estando situadas em alguma zona não
apresentou foram devidas ao momen-
controlada pela relação.
to em que ela se debatia; que não é a
Essa estratégia pode ser claramente per- primeira vez que ela perde o controle ,
cebida em um processo envolvendo um e em outras situações ela já bateu com
caso de agressão. Confor me o processo a cabeça na parede; que convivem há
94001067257-8, o companheiro é acu- cinco anos e já tiveram outras discus-

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sões ; que ele já sofreu ameaça de tamento dos acusados como


morte por parte dela, agressões a unha- desequilibrador dessa ordem, no caso
das e já chegou a procurar auxílio po- dos acusados a interferência de paren-
licial, mas preferiu não proceder a tes aparece como desestabilizadora das
qualquer notícia, pois não quis relações do casal. Podemos pensar, nes-
prejudicá-la ; que depois desse fato ses ter mos, que a inserção de outras
nunca mais tiveram desentendimentos pessoas no cotidiano doméstico, por se-
familiares [grifos nossos]. rem ligadas diretamente à mulher e não
ao casal em si, pode subverter a dinâmi-
No relato feito, a descrição das agressões
ca de poderes e posições sociais em
que teriam sido cometidas pela compa-
jogo. Isso fica claro no processo abaixo,
nheira não autorizam uma interpretação
n. 93001021411-2, em que o acusado
do conflito como um caso de agressão
passa, ao longo de seu segundo depoi-
mútua, uma vez que são tomadas como
mento na DEAM, a contextualizar não
parte do quadro de “descontrole” por ela
apenas a agressão em si – tratada por
apresentado. Ao mesmo tempo, ao su-
ele como mútua –, mas o processo de
blinhar o caráter excepcional da situa-
desgaste da relação que teria levado à
ção, com a mulher dizendo que estaria
separação do casal. Diz ele:
“ficando louca” e se debatendo, “fora da
razão”, há um esforço em banalizar o que conviveu 13 anos em plena har-

conflito, tratando-o por “discussões” ou monia com ela, até que familiares dela
“desentendimentos familiares”. Ou seja, passaram a freqüentar a residência do

ao mesmo tempo em que atribui exclu- casal e a se intrometer na vida dos

sivamente à mulher e ao seu estado emo- dois, fazendo intrigas; que ele então
cionalmente perturbado a responsabili- não teve mais paz e ela mudou de com-

dade pelo conflito, o acusado insere as portamento, passando a destratá-lo;

agressões em um quadro mais rotineiro que as discussões entre o casal torna-


da relação. ram-se comuns, culminando às vezes

em agressões mútuas; que no dia do


No caso da fala dos acusados, um fator
fato discutiram, e ele insistia que os
chama atenção, já que não aparece no
dois morassem juntos sem influências
discurso das vítimas. Trata-se da presen-
de terceiros; que ela não gostou da
ça de parentes ligados à mulher como
sugestão, e exaltada jogou o jarro nele
elemento que tenciona a relação. 14 Ao
e ele, para defender-se, segurou-a pe-
contrário do que ocorre em relação às
los braços e, para acalmá-la, deu-lhe
vítimas, em que a menção a outros fami-
um tapa, mas não com a intenção de
liares pende sempre no sentido de de-
lesioná-la.
fender seu próprio papel como centro da
ordem doméstica, indicando o compor- A agressão é vista, portanto, como fruto

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R V O

de um conflito cujas origens remontam dimentos” ou similares colocam-nos no


ao momento em que se deu alguma in- plano do cotidiano da relação, procuran-
terferência externa na relação. A imagem do retirar sua excepcionalidade. Em ou-
construída pelos acusados, nesses casos, tros casos, porém, o que pode ser des-
é de um momento anterior de harmonia, tacado como atenuante dos conflitos in-
em que o próprio casal controlaria sua sere-se exatamente na idéia de sua
rotina, havendo uma ruptura dessa har- excepcionalidade, como em situações
monia a partir do momento em que ou- que evocam o uso de álcool ou nas quais
tros passam a se “intrometer”. Nessa as agressões são interpretadas como fru-
mesma linha, um fator apontado pelos to de um momento de descontrole do
acusados como motivo de desgaste e ten- próprio acusado. 16 De forma diferente do
são entre eles e as vítimas diz respeito que acontece nas versões das vítimas, o
aos cuidados a serem tomados com a álcool não é citado como prerrogativa do
casa e com os filhos. O quadro de negli- comportamento do outro apenas. Tanto
gência doméstica relatado por acusados pode ser citado como elemento circuns-
insere-se na mesma lógica das queixas tancial, afirmando que vítima ou acusa-
em relação aos parentes da vítima. 15
Tra- do, ou ambos, encontravam-se momen-
ta-se do indicativo de que as prioridades taneamente alcoolizados, como ser
da vítima estão invertidas, e que a ge- indicativo do comportamento regular de
rência cuidadosa da própria relação – um dos dois, como se vê nos seguintes
que caberia à mulher – se perdeu. O con- relatos. Conforme o processo número
flito em si fica relegado, então, ao plano 92001077538-0:
de uma consequência de atritos anterio-
no dia da agressão eles haviam saído
res, tomado como “discussão”, “briga”,
e bebido algumas cervejas; que che-
“confusão” etc, termos que esvaziam sua
garam em casa e a comunicante come-
conotação criminal. Assim, no processo
çou a provocar uma discussão, mas
de número 93001064908-6, explica o
não sabe dizer qual o motivo, acredi-
acusado de um processo por lesões cor-
tando que seria por algo que a
porais que
comunicante viu na rua e não gostou.

ele e a vítima vivem juntos há dez anos Segundo outro processo, de número
e que não possuem filhos, e que de um 93001032365-0, o acusado disse que
ano para cá as coisas mudaram; que
ao chegar ao quintal encontrou o irmão
ela passava o dia inteiro na rua, não
dela segurando-a fortemente pelos bra-
dando qualquer atenção ao declarante
ços. Seu cunhado disse que ela estava
e ao lar, que então começaram a se
bebendo na casa da vizinha desde a
desentender.
tarde (...); que, como ela estava bas-

A leitura dos conflitos como “desenten- tante embriagada, ele sugeriu ao cu-

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nhado que a pegassem pela cabeça e como uma trajetória essencialmente con-
per nas para conduzi-la à casa; que, ao jugal. Aparentemente, o acusado estaria
ouvir tal sugestão, ela partiu para cima trazendo para si toda a responsabilida-
dele a unhadas e ele se defendeu em- de pelo conflito, isentando a relação.
purrando-a. Entretanto, o que podemos perceber
mais uma vez é que essa responsabili-
Por relato do processo 95001019018-5,
dade é colocada em um ponto externo
o denunciado
ao casal e, em certa medida, ao próprio
disse que fez e falou tudo que a
acusado: o “alcoolismo”, a “doença”, o
comunicante relatou e que é verdade;
“descontrole”. As agressões situam-se,
que ele gosta muito dela e do filho; que
desse modo, em um terreno de
sente muitos ciúmes dela; que ele des-
irracionalidade.
cobriu agora que é uma pessoa doen-

te e alcoólatra e que agora passou a Isso nos leva mais uma vez aos depoi-

se tratar; que diminuiu muito com a mentos das vítimas, ao pensarmos em

bebida, que as coisas acontecem mais quão complementar a eles é essa lógica.

quando ele bebe, mas que não deseja Em seus termos, o agressor torna-se pro-

perder a família, pois é o que ele mais duto de algo que lhe é externo e

ama na vida; e que fez tudo isso, mas incontrolável, tornando relativa a possi-

que depois volta a si e vê que foi a bilidade de culpabilizá-lo. Isto só pode

maior besteira que fez na vida. ocorrer efetivamente, porém, porque de


um modo geral esta é uma visão parti-
Nos três casos citados a referência ao
lhada pelos envolvidos no processo. Des-
álcool têm significados diversos. Enquan-
se modo, a questão do descontrole, seja
to no primeiro caso aparece restrito ao
ele causado por álcool ou não, tem im-
conflito em si, e no segundo como ex-
portância no discurso dos acusados na
clusivo do comportamento da mulher, no
medida em que não representa uma ne-
último caso assume uma feição comple-
gação do fato narrado, mas uma forma
tamente diferente. Ao contrário das fa-
de caracterizá-lo e compreendê-lo. Como
las estruturadas sobre a negação ou
bem ilustra um acusado em seu depoi-
“relativização” dos depoimentos da víti-
mento, no processo 91001109290-3:
ma, nesse caso um outro tipo de atitude
por parte dos acusados tem lugar. Assu- o relacionamento entre ele e a mulher
mir como integralmente verídica a ver- sempre foi muito bom; que no dia do
são da vítima implica, em primeiro lu- fato iniciaram discussão por motivos

g a r, e m t r a n s f o r m a r a p o s t u r a d e fúteis; que quando chegou em casa e


partilhamento de responsabilidades que encontrou o portão fechado, descon-
está em jogo quando se narra a trajetó- trolou-se emocionalmente, porque nun-
ria na qual o conflito estaria inserido ca tinha recebido tal tratamento; que

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ele empurrou a mulher, que caiu; que família como um todo. Nesse sentido, em
tal fato não chegou a abalar a estrutu- muitos casos, a denúncia ou a “queixa”,
ra solidificada do matrimônio ; que vol- longe de representar a ruptura do laço
taram às boas dias depois; que atual- familiar ou conjugal, pode ser percebi-
mente o relacionamento entre ambos da como estratégia de preservação des-
é perfeito [grifos nossos]. se mesmo laço, o que torna bastante co-
mum a solicitação, por parte das vítimas,
Ao descontrole momentâneo contrapôs-
da “retirada da queixa”, em etapas pos-
se a “estrutura solidificada do matrimô-
teriores do processo. Cabe, porém, cha-
nio”, que deve ser capaz de absorver e
mar a atenção para o fato de que tal di-
comportar conflitos episódicos ou mes-
nâmica, embora bastante usual, não se
mo constantes (se tomarmos por base
apresenta em todos os casos, sendo pos-
as falas das vítimas relatando agressões
sível que ocorram situações nas quais,
anteriores). A noção de que o relaciona-
apesar do desejo manifesto das vítimas
mento de um casal é algo potencialmen-
em dar prosseguimento à avaliação le-
te violento está presente, de modo ge-
gal de suas denúncias, o imperativo da
ral, nas falas tanto de acusados quanto
negociação se impõe como mais forte
de vítimas, seja pela banalização na for-
para promotores e juízes.
ma das “brigas conjugais”, seja pelos di-
ferentes relatos dando conta de toda uma
história de agressões. No caso das versões dos acusados, por
seu lado, as estratégias de defesa envol-
C ONCLUSÃO vem igualmente a construção de repre-

C
sentações sobre a relação e, em especi-
omo se vê, o recurso às DEAMs
al, sobre o papel desestabilizador repre-
deve ser compreendido como
sentado pela mulher. A irracionalidade
parte de um processo de nego-
atribuída às ações desta ou a sua supos-
ciação de limites que de alguma forma
ta responsabilidade como agressora – a
foram rompidos, ou de expectativas que
que provoca as brigas, a que é violenta
foram frustradas. As representações que
ou descontrolada –, busca invocar a par-
emergem dos depoimentos dizem respei-
tilha de responsabilidades sobre o que
to não apenas a um “ato criminoso” co-
deve ser tomado como um conflito in-
metido por determinado “indivíduo”, mas
terno à relação, e não como crime. As-
à instauração da desordem dentro da
sim, como foi destacado, mesmo nos
família ou da relação conjugal.
casos em que o acusado chama a si a
Da perspectiva das vítimas espera-se que responsabilidade da agressão, esta apa-
a denúncia venha oferecer um freio a rece matizada por elementos externos,
comportamentos vistos como ameaçado- como o álcool, que criariam uma situa-
res não apenas para elas, mas para a ção de excepcionalidade frente ao qua-

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dro regular da relação. Nesse sentido, facilmente adotada por profissionais do


sua presença na delegacia para depor de- judiciário quando se trata de arquivar o
sempenharia, além da necessidade de processo ou mesmo de absolver os acu-
defender-se perante a “autoridade”, a sados. Desse modo, o desafio que per-
função de restaurar uma ordem apenas manece na análise dos conflitos envol-
momentaneamente perdida. vendo relações amorosas parece ser o

Por fim, é importante chamar a atenção da demarcação, para todos os envolvi-

para o fato de que, de modo semelhante dos, da fronteira entre a ação pública –

ao que ocorre com a idéia presente nas que compreenderia tais conflitos como

versões das vítimas, de que a relação crime – e as negociações semi-privadas,


conjugal foi renegociada a partir de um que os toma como rupturas temporárias
certo momento, a noção de co-respon- da ordem familiar, a serem restauradas
sabilidade invocada pelos acusados é através da mediação dos poderes públicos.

N O T A S
1. Os dados aqui apresentados são resultado da pesquisa empreendida no Núcleo de Pesquisas
do ISER com apoio financeiro da Fundação Banco do Brasil, entre março de 1995 e julho de
1996, dando continuidade aos esforços realizados desde 1993 por pesquisadores da institui-
ção para estabelecer um diagnóstico da violência contra a mulher no Rio de Janeiro. Resulta-
dos de pesquisas anteriores realizadas pelo Núcleo podem ser encontrados em Luís Eduardo
Soares et al., Violência contra a mulher : levantamento e análise de dados sobre o Rio de
Janeiro em contraste com infor mações nacionais, Rio de Janeiro, Núcleo de Pesquisas do
ISER Editora, 1993; em alguns textos publicados em Luís Eduardo Soares et al., Violência e
política no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Relume Dumará/ISER, 1996. A pesquisa que deu
origem a esse artigo foi possível graças à participação de inúmeras pessoas. Agradecemos a
Bárbara Musumeci Soares, que idealizou o projeto original e acompanhou o trabalho da equi-
pe; a Phillippe George P. G. Leite que se ocupou das estatísticas, à promotora Maria Ignez

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Pimentel, à delegada Maricyr Praça e à diretora do Arquivo Geral e Documentação Histórica


do Tribunal de Justiça Leila de Abreu Baptista. O apoio dos colegas do Núcleo de Pesquisa do
ISER foi especialmente importante no início do trabalho e foram fundamentais as contribui-
ções de Miriam Pillar Grossi, Elaine Reis Brandão, Rozângela Pezza Cintrão e Wagner S. Freitas,
que participaram ativamente, em fases distintas da investigação.
2. Ver, entre outros, Elaine Reis Brandão, Nos corredores da DEAM , dissertação de mestrado,
IMS/UERJ, 1997; Jacqueline Muniz, “Os direitos dos outros e outros direitos: um estudo so-
bre a negociação de conflitos nas DEAMs/RJ” em Luís Eduardo Soares et al., op. cit., 1996;
Bárbara Musumeci Soares, “Delegacia de atendimento à mulher: questão de gênero, número
e grau”, em Luís Eduardo Soares et al., op. cit., 1996.
3. As centrais de inquéritos foram fundamentais para nossa pesquisa. No início dos anos 1990,
essa instância do sistema judiciário passou a fazer parte do estreito gargalo através do qual
milhares de queixas apresentadas em DEAMs transformam-se em inquéritos policiais e poste-
riormente em denúncias for malizadas pelo Ministério Público. Assim, as centrais decidiam a
“validade” ou não desses inquéritos, não só quanto aos critérios técnicos de sua elaboração,
mas quanto à própria pertinência da acusação original e de sua tipificação como crime. Os
inquéritos considerados insuficientes para gerar uma denúncia são enviados às varas com um
pedido de arquivamento aos respectivos juízes. Essa dinâmica foi bastante alterada com a
aprovação da lei nº 9.099 de 1995 que transferiu muitos dos casos investigados pelas DEAMs
(os casos em que a lesão corporal é considerada leve e todos os casos de ameaça) para os
tribunais especiais civis e criminais. Ver Bárbara Musumeci Soares, As mulheres invisíveis ,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999. Ressaltamos que trabalharemos aqui com o con-
texto que precedeu a aprovação dessa lei.
4. É importante ressaltar o fato de que, em parte, tais avaliações pareciam ser também efeito da
organização das centrais de inquérito. Ao concentrar todos os inquéritos em uma mesma
instância (não os distribuindo pelas diferentes varas logo que saem das mãos da polícia), as
centrais de inquérito propiciam mais imediatamente a comparação entre os diversos tipos de
criminalidade. Além disso, a organização das centrais permitia que um único promotor se
“especializasse” em inquéritos provenientes de um determinado tipo de delegacia. Se esse
tipo de organização podia oferecer uma melhor articulação entre delegados e promotores,
também contribuía para que os critérios pessoais de um deter minado promotor sejam gene-
ralizados para todos os casos avaliados.
5. No período da pesquisa, o estado do Rio contava com as centrais de inquérito do Rio de
Janeiro, a de Niterói e a de Duque de Caxias.
6. Para não correr o risco de não trabalhar com nenhum caso envolvendo crimes sexuais, dado
seu pequeno número quando comparados com casos de lesão corporal e ameaça, optamos
por sobrerepresentá-los em nossa amostra. Assim, se para os dados globais referentes a to-
dos os inquéritos avaliados pela primeira central entre 1991 e julho de 1995, os crimes
sexuais (estupro, atentado violento ao pudor e sedução) representavam 2,9%, na nossa amostra
eles passaram a corresponder a 6,5% de todos os casos.
7. Não trataremos aqui do discurso dos agentes da justiça. Para isso ver Sérgio Carrara, Adriana
Vianna e Ana Lúcia Enne, “Crimes de bagatela: a violência contra a mulher na justiça do Rio
de Janeiro” em Mariza Corrêa (org.); Gênero e cidadania , Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero,
Campinas, Unicamp, 2002.
8. Consideramos como “relações amorosas” aquelas que envolvem cônjuges, companheiros e
namorados, atuais ou não, além de comborças, cuja ligação seria definida pelo vínculo amo-
roso de duas pessoas em relação a uma terceira. Optamos pelo ter mo “relações amorosas”
por permitir uma classificação bastante ampla para diversos tipos de relações, ao contrário
de ter mos mais restritivos, como “relações conjugais”, por exemplo.
9. As mudanças mais visíveis das relações, são as que dizem respeito a separações e reconcili-
ações, se somarmos os casos em que ocorre separação com os casos em que há separação e
posterior reconciliação, a incidência de transformações chega a 57%. Nos conflitos em que
os envolvidos já estavam separados, a situação tende a manter-se inalterada.

10.A incapacidade de prover satisfatoriamente a casa aparece em 18 casos, enquanto problemas


envolvendo os filhos aparecem em 29 dos 107 casos.

11.O uso de álcool ou tóxicos aparece em 35 dos 107 casos.

12.Confor me aponta Maria Filomena Gregori, Cenas e Queixas : um estudo sobre mulheres, rela-
ções violentas e a prática feminista, São Paulo, ANPOCS/Paz e Terra, 1993, ao tratar o álcool
como o motivo que deter minaria o comportamento violento dos companheiros, as mulheres
o perceberiam como parte de um quadro de fraqueza deles. Desse modo, segundo a autora,

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A C E

a manutenção da relação seria um sinal da força dessas mulheres, capazes de suportar uma
situação adversa na suposição de que essa seja passageira e na crença de que as agressões
são fruto de um estado alterado do companheiro, que não corresponde à sua personalidade
nor mal.
13.A acusação é negada em 46 dos 107 casos relativos a “relações amorosas” (43%) ou é relata-
da como “agressão mútua” em quarenta desses mesmos 107 casos (37,4%).
14.Os parentes são citados em 24 dos 107 casos, enquanto, sintomaticamente, não são nunca
apontados como fator direto de conflito nas falas das vítimas.
15.Embora apareça em um número relativamente pequeno de casos (apenas 6 dos 107 casos), a
“negligência doméstica” é um fator importante na fala dos acusados já que conjuga-se a um
quadro geral de ataque à vítima enquanto esposa ou companheira modelar.
16.O álcool é citado em 17 casos e o descontrole emocional em 18 casos.

A B S T R A C T
This text focuses on the situations of violence denounced by women through the Special Police
Departments for Women in the city of Rio de Janeiro during the middles of the decade of 1990.
Those situations of outrage are perceived in their judiciary aspects, showing the victims’ versions
of the conflicts (generally women) and at the same time the accuseds’ versions (their partners)
and their reciprocal relations.

pág.58, jan/jun 2002


R V O

Aramis Antonio Lopes Neto


Médico pediatra, diretor dos Direitos da Criança
da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ).

Violência contra
Crianças e Adolescentes

M
uitos acreditam que a violên- com as visões culturais e históricas so-
cia seja uma manifestação bre a criança e seus cuidados, com os
social recente, típica dos direitos e o cumprimento de regras soci-
tempos moder nos e característica de ais relacionados a ela e com os modelos
sociedades individualistas e com sérias explicativos usados para a violência.2
dificuldades sócio-econômicas. Quando a
Historicamente, o conceito de violência
violência doméstica é abordada, referin-
vem sendo ampliado, em decorrência da
do-se a abusos cometidos contra velhos,
maior conscientização a respeito do bem-
mulheres e crianças, cresce a tendência
estar da criança e do adolescente, de
em restringir-se o tema a famílias socialmen-
seus direitos e dos efeitos que a violên-
te excluídas e de baixo nível cultural.
cia exerce sobre o seu desenvolvimen-
Entende-se como “violência“ a ação to. Segundo Mause, “a história da infân-
impetrada através da força, ímpeto ou in- cia tem sido um longo pesadelo do qual,
tensidade e contrários ao direito, à justiça, apenas recentemente, nós começamos a
à razão, que causem danos físicos, morais, despertar”.3
emocionais e/ou espirituais a alguém.1
Dentre diversos autores, Deslandes defi-
As definições para violência contra a cri- ne o abuso ou maus-tratos como a exis-
ança e o adolescente variam de acordo tência de um sujeito em condições su-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.59


A C E

periores (idade, força, posição social ou para si próprios e protegendo-se da


econômica, inteligência, autoridade), que opressão determinada por suas ansieda-
comete um dano físico, psicológico ou des, como pode ser observado na reve-
sexual, contrariamente à vontade da ví- lação de uma mãe agressora: “Eu nunca
tima ou por consentimento obtido a par- me senti amada. Quando o bebê nasceu,
tir de indução ou sedução enganosa. Afir- eu pensei que ele me amaria. Quando
ma, ainda, que a definição do que possa ele chora, significa que não me ama, en-
ser uma prática abusiva passa sempre tão eu bato nele”. 5
por uma negociação entre a cultura, a
As crianças eram particularmente úteis
ciência e os movimentos sociais. 4
quando os adultos se encontravam dian-

Os maus-tratos contra a criança e o ado- te de possibilidades de insucessos. Sem-

lescente podem ser praticados pela omis- pre que se iniciava um novo empreendi-

são, pela supressão ou pela transgres- mento ou desafio, crianças eram

são dos seus direitos, definidos por con- sacrificadas para afastar os maus agou-

venções legais ou normas culturais. Na ros ou agradar aos deuses. O sacrifício

verdade, a violência doméstica e, parti- de bebês com propósitos religiosos exis-

cular mente, a violência contra crianças te desde a pré-história, quando eram ati-

é um hábito socialmente aceito, desde o rados em rios, em montes de fezes, ex-

início da humanidade. Quanto mais re- postos em colinas e deixados em beiras

troceder mos na história, piores serão os de estradas.

níveis de cuidados prestados às crianças O infanticídio está presente em pratica-


e maiores serão as probabilidades delas mente todas as culturas e as evidências
serem assassinadas, abandonadas, se mantêm disseminadas em todos os
agredidas, aterrorizadas ou abusadas registros históricos, inclusive nos dias de
sexualmente. hoje. Estima-se que cerca da metade das
crianças nascidas na antiguidade eram
As crianças já sofrem todo tipo de abu-
assassinadas por seus responsáveis, re-
so há séculos, sobretudo em razão da
duzindo-se este número em um terço, na
crença geral de serem elas propriedades
Idade Média, e caindo para valores mui-
de seus pais. O mecanismo psicossocial
to baixos, em torno do século XVII, no
mais importante que funciona em prati-
oeste europeu e América. As meninas
camente todos os casos de maus-tratos
sempre foram vitimizadas em maior nú-
é o entendimento de que as crianças são
mero por serem elas consideradas cul-
“depósitos para todos os males”, e é so-
turalmente um peso para seus pais, ao
bre elas que os adultos projetam as par-
invés de uma benção. 6
tes indesejáveis de seu psiquismo. Des-
ta forma, eles poderiam controlar seus Na região de Cartago foram descobertas
sentimentos em outro corpo, sem riscos cerca de vinte mil urnas, depositadas

pág.60, jan/jun 2002


R V O

entre 400 e 200 a.C. As urnas continham era masturbado com violência por sua

ossos de crianças atiradas vivas no fogo, mãe, sempre que ela se sentia depri-
por seus próprios pais, em troca de vo- mida ou irritada: Mamãe torce o pinto,

tos aos deuses para que suas mercado- machuca por dentro... Mamãe zangada,

rias chegassem aos portos de destino em machuca meu pinto. Mamãe triste ma-
segurança. Algumas urnas tinham chuca meu pinto... Mamãe não gosta do

ossadas de recém-nascidos com as de meu pinto. Eu queria cortar ele e jogar

crianças de dois anos de idade ou mais, fora.8


demonstrando que os filhos mais velhos
Na Roma antiga, muitos dos meninos jo-
eram sacrificados quando o prometido
vens, abusados pelos ricos romanos,
aos deuses nascia morto. No denomina-
eram castrados por acreditarem que,
do “sacrifício das fundações”, corpos de
dessa forma, poderiam dar maior prazer
crianças eram inseridos em paredes e
como parceiros. Crianças vendidas para
fundações de prédios, tendo sido o mes-
a comercialização sexual (prostituição)
mo realizado tanto na construção de
e sacrificadas em rituais religiosos já
Jericó quanto na Alemanha, em 1843. 7
eram observadas nas sociedades egípcia,

Havia um entendimento comum de que romana, grega e asteca.9

atos de violência impetrados contra crian- Crianças na Índia são regular mente
ças por seus pais, inclusive os abusos se- masturbadas por suas mães: as meninas
xuais, eram inofensivos e não trariam “para fazê-las dormir” e os meninos “para
quaisquer tipos de conseqüências às suas torná-los homens”. A criança dorme na
formações, uma vez que brincar com os cama dos pais e a maioria participa dos
órgãos genitais das crianças era um hábi- intercursos sexuais entre eles. O casamen-
to tradicional. Em diversas culturas e du- to de crianças é uma prática antiga na Ín-
rante toda a existência da humanidade, dia. Quando surgiram leis que impediam
atos sexuais com crianças sempre existi- essa prática, em 1929, o governo foi for-
ram e sempre foram admitidos. Muitas temente pressionado por homens que in-
mães têm o hábito de masturbar seus fi- sistiam que o casamento precoce era uma
lhos ainda pequenos, para acalmá-los. Em necessidade absoluta, uma vez que as
muitos casos, percebe-se, claramente, a meninas jovens eram naturalmente muito
satisfação que esse tipo de ato desperta sexualizadas e deveriam casar cedo para
nelas, como expressões de prazer e que fossem protegidas contra as seduções
enrijecimento dos mamilos. A crença no dos adultos. Um provérbio indiano diz: Para
caráter inócuo de atos abusivos contra cri- que uma menina seja virgem aos dez anos
anças pode ser questionada por depoimen- de idade, ela não pode ter irmãos, nem
tos das próprias vítimas: primos e nem pai.10

Relato de um menino de três anos que Na China, a infância sofreu historicamen-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.61


A C E

te os mesmos rituais de violação que na ria para “aumentar o tamanho do pênis”


Índia, incluindo pederastia, concubinato e os ir mãos mais velhos são induzidos a
e castração de meninos para serem utili- brincarem com os órgãos genitais dos
zados sexualmente como eunucos. A prá- bebês. Masturbações mútuas, felação e
tica de amarrar ataduras em torno dos intercurso anal, também são ditos como
pés das meninas tinha propósitos sexu- comuns entre as crianças, particularmen-
ais. O sofrimento decorrente da compres- te com garotos mais velhos utilizando-
são dos ossos de seus pés durante anos se de mais jovens. Os banhos públicos
tinha como objetivo impedir o crescimen- são particularmente erotizados em mui-
to do dedo maior para que, durante o tas regiões, sendo especialmente notóri-
ato de amor, esse não simbolizasse um os como locais de práticas homossexu-
pênis substituto. 11
ais, tanto masculinas como femininas. O
uso incestuoso de meninas é muito mais
A infância no Japão contemporâneo,
freqüente que de meninos, já que elas
embora um tanto mais ocidental que os
são socialmente muito pouco valoriza-
demais países orientais, continua man-
das. Uma pesquisa revelou que 80% das
tendo alguns hábitos típicos da cultura
mulheres do Oriente Médio foram sub-
asiática, como masturbação das crianças
metidas a felação com idade entre três e
pelas mães para fazê-las adormecerem.
seis anos por irmãos mais velhos, pri-
A prática de atos sexuais entre os pais
mos, tios e professores. As mulheres ára-
com seus filhos deitados na mesma cama
bes sabem que seus esposos são
é freqüente. O hábito dos pais dormirem
pedófilos e dão preferência a fazer sexo
fisicamente abraçados com seus filhos
com crianças do que com elas. Como
se mantém até a idade de dez a 15 anos.
retribuição, quando as meninas atingem
Cerca de um terço das denúncias de abu-
os seis anos, suas mães as agarram, afas-
so sexual registradas referem-se a inces-
tam suas per nas a força, cortam seu
tos ocorridos entre mãe e filho. Histori-
clitóris e os grandes lábios, impedindo
camente, o Japão é uma das sociedades
que venham a sentir, definitivamente,
mais endogâmicas do mundo. 12
algum tipo de prazer sexual. Em pesqui-
No Oriente Médio, a utilização sexual de sa recente no Egito, foi demonstrado que
crianças é tão disseminada quanto no em 97% das famílias de nível cultural
Extremo Oriente, destacando-se: casa- baixo e em 66% das famílias cultas, a
mento ou concubinato com crianças, prática de clitoridectomia continua a ser
prostituição de meninos e meninas em executada. Dados da Organização das
templos, casamentos entre pai e filha e Nações Unidas estimam que haja mais
entre irmãos (egípcios), sexo forçado, ri- de 74 milhões de mulheres mutiladas. 13
tuais de pederastia e prostituição. A Brincar com as partes mais íntimas da
masturbação na infância é dita necessá- criança era um hábito comum na Europa

pág.62, jan/jun 2002


R V O

Renascentista. Segundo o relato do pe- suas genitálias: circuncisão, clitoridectomia


diatra Jean Heroard, responsável pela e infibulação eram comuns. Tais métodos
saúde do pequeno Luís XIII (1601-1643), só começaram a desaparecer no final do
em 1603, o jovem nobre tinha seu pênis século XIX, após quase dois séculos de
e seios beijados por todos da corte e, agressões brutais e desnecessárias à in-
até os sete anos de idade, era posto na tegridade física e psíquica das crianças.16
cama com o rei e a rainha que brinca-
Os protestos públicos em defesa das cri-
vam com seu pênis e o faziam participar
anças eram praticamente inexistentes.
com regularidade dos intercursos sexu-
Mesmo os humanistas ou os professores,
ais no leito real. O doutor Heroard acre-
que tinham uma reputação baseada na
ditava que atos como os descritos não
gentileza, aprovavam a agressão física
traziam prejuízos ao desenvolvimento da
severa na criança. Aqueles que tentavam
criança, mas sabe-se que Luís XIII cres-
alguma mudança o faziam apenas defen-
ceu com graves problemas sexuais, re-
dendo a prevenção da morte. Uma lei
sultantes dos incestos sofridos, e que,
existente desde o século XIII dizia que:
em sua vida adulta, as suas relações
“se alguém bater em uma criança até
amorosas restringiram-se a contatos in-
sangrar isso será registrado, mas se al-
felizes com homens jovens. 14
guém bater até matar, então, a lei será
No século XVII, a Igreja passou a inter- aplicada”. 17
ferir na sociedade, tentando impor um
No decorrer do século XIX, grande parte
perfil mais humanitário à infância, onde
da sociedade européia passou a adotar
as relações erotizadas foram sendo gra-
o que, hoje, poderia ser denominado de
dualmente reduzidas e substituídas pela
abandono. As crianças, ainda pequenas,
disciplina apropriada à época, que se ba-
eram vendidas, entregues a amas-secas,
seava na quebra da vontade da criança,
enviadas para monastérios, conventos,
por meio do castigo físico, como
lares adotivos ou para outras casas, para
exemplificado nesse relato de uma mãe:
serem usadas como servos. O ato era
“quando ele completou um ano, ou um
justificado devido à recusa dos pais em
pouco antes, ele aprendeu a temer a vara
educar seus próprios filhos quando pe-
e a chorar suavemente”. 15
quenos. Essa postura era tão freqüente,
No século XVIII, um médico alemão des- naquela época, que há relato de que cer-
creveu que criadas e servos executavam ca de metade das crianças nascidas em
todo tipo de atos sexuais com as crian- Florença foram enviadas para lares pro-
ças, a título de divertimento. Ainda nes- visórios logo após o nascimento, e aque-
te século, como tentativa de controlar o les que sobrevivessem (a maioria mor-
abuso sexual explícito contra a criança, ria) eram pegos de volta quando tives-
passou-se a castigá-las com agressões às sem em torno de cinco anos. Dessa for-

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A C E

ma, se evitava que o choro das crianças enquanto há esperança, mas não até

perturbasse a paz. O mesmo tipo de fazê-lo morrer. 21


abandono era comum na França. 18
Provérbios 22:15 – A loucura está
Apesar do abandono ter reduzido signi- enraizada no coração do jovem; dele a

ficativamente o infanticídio, muitas prá- expulsará a vara da disciplina. 22

ticas da Antiguidade e da Idade Média se


Provérbios 22:6 – Inicia a criança se-
mantiveram, como os abusos sexuais e
gundo o caminho que ela deve tomar;
físicos.
ao envelhecer, dele não se apartará. 23
A cultura inglesa, no que diz respeito à
Provérbios 23:13 – Não poupes a cor-
criança, foi disseminada no período da
reção ao jovem, não morrerá se lhe ba-
colonização. Pais, professores e sacer-
teres de vara. 24
dotes se justificavam baseando-se em es-
Provérbios 23:14 – Puna-o com uma
critos bíblicos: “Poupe a vara e estrague
vara e o salvará do Xeol. 25
a criança”. O espancamento de crianças
era utilizado para fins religiosos (retirar Provérbios 29:15 – A vara e o castigo
os demônios que existiam dentro delas), dão sabedoria. O jovem largado a si
em escolas e no seio familiar. 19
mesmo envergonha a sua mãe. 26

Nesse período, já se entendia que a cri- Provérbios 29:17 – Corrige teu filho e
ança não nascia completamente má ou ele te dará paz e fará as delícias de
impura, mas continuava a ser vista como tua alma. 27
suscetível a projeções danosas, tanto
Provérbios 01:08 – Ouve, filho, o ensi-
que os pais, responsáveis por sua edu-
no de teu pai, não desdenhes a doutri-
cação, ainda usavam o espancamento
na de tua mãe. 28 (6)
como método educativo.
Em outras passagens bíblicas a criança
A Bíblia traz diversas passagens onde a
é tratada como propriedade de seus pais,
utilização da violência física contra a cri-
dando a estes o poder de vida ou morte
ança seria um instrumento para a sua
sobre seus descendentes, como o relato
purificação, já que a criança seria fruto
a seguir:
do pecado original e, portanto, impura.
Abraão, filho de Tera, escolhido por
Diversas citações referem-se ao uso da
Deus para, a partir dele, criar uma gran-
força física como correção a ser utiliza-
de nação (Gênesis II:12). Casado com
da contra as crianças:
Sara, mulher estéril, Abraão não tinha
Provérbios 13:24 – Quem poupa a chi-
filhos. Para satisfazer seus desejos,
bata odeia o filho, mas quem o ama, o
Sara oferece sua criada Agar a Abraão
castiga generosamente. 20
para que com ela gerasse um filho. Aos

Provérbios 19:18 – Castigue seu filho 86 anos Abraão teve, então, seu pri-

pág.64, jan/jun 2002


R V O

meiro filho e deu-lhe o nome de membros da família e a outra metade


Ismael. Quando completou cem anos, com não-parentes, mas com a cumplici-
sua mulher Sara deu a luz a um filho, dade dos seus responsáveis em, pelo
a quem chamou de Isaac. Mas Abraão menos, 80% dos casos. Todas as experi-
acabou sendo obrigado por Sara a ex- ências de sedução consideradas na pes-
pulsar a criada Agar e Ismael, para que quisa ocorreram por um longo período,
esse não dividisse a herança com seu sendo que 81% foram antes da puberda-
filho. Abraão os fez partir, mesmo sa- de e 42% antes dos 7 anos.
bendo que renegava seu primogênito.
Um estudo realizado no Canadá com dois
Para provar seu temor a Deus, Abraão mil adultos apresentou dados pratica-
foi chamado a tomar seu único filho mente idênticos aos dos Estados Unidos.
Isaac e oferecê-lo em sacrifício. Sem
Na Inglaterra, durante um programa de
nada explicar ao jovem e sem qualquer
rádio transmitido pela BBC, foi pergun-
hesitação diante da possibilidade de
tado às mulheres ouvintes se elas se lem-
vir a assassinar seu filho, Abraão le-
bravam de terem sido molestadas sexu-
vantou a adaga para desferir o golpe
almente. Cerca de 2.530 mulheres res-
sobre Isaac, quando um anjo o impe-
ponderam à pesquisa e as respostas fo-
diu, dizendo: Não estendas a tua mão
ram analisadas, chegando-se aos seguin-
sobre o menino e não lhe faça mal al-
tes resultados: 83% lembravam-se de
gum; agora conheci que temes a Deus
terem tido a sua genitália tocada e 62%
e não perdoaste teu filho único por
revelaram estarem sofrendo abuso atu-
amor de mim. 29
almente.
Em diversas religiões, as crianças são
Na Alemanha, o Institut für Kindheit rea-
doutrinadas com crenças e superstições,
lizou uma pesquisa com escolares de
mesmo antes que suas capacidades crí-
Berlim Oriental sobre suas experiências
ticas estejam desenvolvidas, o que im-
sexuais e 80% revelaram terem sido
pede um desenvolvimento emocional
molestados.30
normal, especialmente nas meninas.
A história de Mary Ellen Wilson
Nos Estados Unidos, estudos científicos
mais acurados, baseados em longas en- No dia 9 de abril de 1874, uma meni-

trevistas, revelam que 30% dos homens na com 9 anos de idade foi apresenta-

e 40% das mulheres lembram-se de te- da na corte de Nova York com marcas

rem sido molestados sexualmente, du- da violência diária que sofria por par-

rante a infância, entendendo-se moles- te de sua mãe adotiva, Mary Connoly.

tar como o ato de ter contato genital real, Mary Ellen era órfã da Guerra Civil,

não apenas a exposição. Cerca da meta- quando foi adotada com 18 meses de

de deles foram vítimas de incesto com idade. Desde então, diariamente, pas-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.65


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sou a ser vítima de espancamentos, Maus-tratos físicos – é o uso da força fí-


queimaduras, ferimentos com tesoura. sica de forma intencional, não aciden-
Enquanto Connoly estava fora, Mary tal, praticada por pais, responsáveis, fa-
Ellen era mantida trancada em um miliares ou pessoas próximas da crian-
quarto, nunca tendo sentido o calor do ça ou adolescente, com o objetivo de
sol em seus ombros magros e feridos. ferir, danificar ou destruir esta criança
Surpreendentemente, as agências de ou adolescente, deixando ou não mar-
proteção à infância nada fizeram quan- cas evidentes. 32
do sua tortura foi declarada. Naquela
Síndrome do bebê sacudido – é uma for-
época, acreditava-se que as crianças
ma especial desse tipo de mau-trato e
que tivessem uma casa eram conside-
consiste de lesões cerebrais que ocor-
radas afortunadas, não importando o
rem quando a criança, em geral menor
tipo de ambiente que havia entre as
de seis meses de idade, é sacudida por
paredes. Portanto, os gritos de dor e
um adulto. 33
terror de Mary Ellen ecoaram pelos

corredores sem que alguém prestasse


Síndrome da criança espancada – se re-
atenção, exceto duas pessoas extraor-
fere, usualmente, a crianças de baixa
dinárias: uma assistente social chama-
idade, que sofreram ferimentos inusita-
da Etta Wheeler, que atendia a vítimas
dos, fraturas ósseas, queimaduras etc,
de pobreza, e Henry Berg, um gentil
ocorridos em épocas diversas, mas sem-
fundador da Sociedade Americana para
pre justificados pelos pais de for ma ina-
a Prevenção da Crueldade Contra os
dequada e incompatível com o tipo e a
Animais (ASPCA). Graças às atitudes
gravidade das lesões apresentadas. O
dessas duas pessoas e ao fato da defe-
diagnóstico é baseado em evidências clí-
sa de Mary Ellen ter sido sustentada
nicas e radiológicas das lesões. 34
pelo princípio básico de ser ela um ani-
mal que deveria ser protegido contra Síndrome de Munchausen por procura-
o tratamento cruel, foi que essa meni- ção – é definida como a situação na qual
na teve reconhecido o seu direito à a criança é trazida para cuidados médi-
proteção. Esse fato é um marco histó- cos devido a sintomas e/ou sinais inven-
rico no desenvolvimento de uma polí- tados ou provocados pelos seus respon-
tica de defesa da integridade e dos di- sáveis. Em decorrência, há conseqüên-
reitos das crianças. 31 cias que podem ser caracterizadas como
violências físicas (exames complementa-
C ONCEITUAÇÃO
res desnecessários, uso de medicamen-
Atualmente, os maus-tratos contra crian- tos, ingestão forçada de líquidos etc) e
ças e adolescentes obedecem à seguin- psicológicas (inúmeras consultas e
te classificação: internações, por exemplo). 35

pág.66, jan/jun 2002


R V O

Abuso sexual – é todo ato ou jogo sexu- considerado uma forma de extrema ne-
al, relação heterossexual ou homossexu- gligência. A negligência pode significar
al cujo agressor está em estágio de de- omissão em termos de cuidados básicos
senvolvimento psicossexual mais adian- como a privação de medicamentos, cui-
tado que a criança ou o adolescente. Tem dados necessários à saúde, higiene, au-
por intenção estimulá-la sexualmente ou sência de proteção contra as inclemên-
utilizá-la para obter satisfação sexual. cias do meio (frio, calor), não prover es-
Estas práticas eróticas e sexuais são im- tímulo e condições para a freqüência à
postas a criança ou ao adolescente pela escola. A identificação da negligência no
violência física, por ameaças ou pela nosso meio é complexa devido às difi-
indução de sua vontade. Podem variar culdades sócio-econômicas da popula-
desde atos em que não existam conta- ção, o que leva ao questionamento da
tos sexuais (voyeurismo, exibicionismo) existência de intencionalidade. No entan-
aos diferentes tipos de atos com conta- to, independente da culpabilidade do res-
tos sexuais sem ou com penetração. En- ponsável pelos cuidados da vítima, é ne-
globa ainda a situação de exploração se- cessário uma atitude de proteção em re-
xual visando lucros como prostituição e lação a esta. 39
por nografia.36
Os dados reais sobre os maus-tratos con-
Maus-tratos psicológicos – são todas as tra crianças e adolescentes são muito
for mas de rejeição, depreciação, discri- imprecisos, uma vez que a grande maio-
minação, desrespeito, cobrança ou pu- ria dos casos não obriga a busca de aten-
nição exageradas e utilização da criança dimento médico para as vítimas. Como
ou do adolescente para atender às ne- quase sempre é indispensável que haja
cessidades psíquicas dos adultos. Todas uma denúncia sobre o tratamento violen-
estas formas de maus-tratos psicológicos to intrafamiliar, e isso raramente ocor-
podem causar danos ao desenvolvimen- re, as agressões se repetem cronicamen-
to biopsicossocial da criança. Pela suti- te sem que nada seja feito em defesa da
leza do ato e pela falta de evidências criança ou adolescente.
imediatas de maus-tratos, este tipo de
Não existe uma única fonte de dados ou
violência é dos mais difíceis de serem
um único índice capaz de representar por
identificados, apesar de estar, muitas
si, a magnitude das conseqüências da vi-
vezes, embutido nos demais tipos de vi-
olência sobre a saúde e a sociedade. Al-
olência. 37
guns estudos estatísticos oferecem nú-
Negligência – é o ato de omissão do res- meros e taxas proporcionais a um deter-
ponsável pela criança ou adolescente em minado número de habitantes, referen-
prover as necessidades básicas para o tes a homicídios, suicídios ou outras for-
seu desenvolvimento. 38 O abandono é mas de violência. Os hospitais e clínicas

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.67


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que dispõem de salas de emer gência brancas e muito jovens, que não apre-
apresentam dados referentes a admis- sentavam dificuldade respiratória ou con-
sões por lesões traumáticas. A polícia re- vulsões e que pertenciam a famílias apa-
gistra os casos de violência e algumas rentemente estáveis. 43
entidades governamentais ou não-gover-
Um estudo para identificar causas, tipos
namentais podem manter cadastros de
e padrões das lesões resultantes da vio-
casos de violência doméstica, maus-tra-
lência familiar, observado em pacientes
tos contra crianças e adolescentes ou vi-
com idade entre duas semanas e 17
olência contra outros grupos vulnerá-
anos, atendidos em salas de emergên-
veis. 40
cia, registrou o seguinte: 48% eram me-

Dados obtidos em publicações interna- nores de dois anos, 57% dos agressores

cionais esclarecem a dimensão de algu- eram um ou ambos os pais, 36% das le-

mas características quanto à morbidade sões foram provocadas por trauma dire-

por violência. Kharash e outros pesqui- to. As lesões mais freqüentes foram na

sadores relatam que 3% dos pacientes cabeça (25%), face (19%) e olhos (18%),

com idades até 17 anos, atendidos em sendo que nas crianças maiores a gran-

salas de emer gência, apresentaram le- de maioria das lesões foi nas extremi-

sões relacionadas à violência. 41 Benne e dades. 44

outros identificaram queimaduras inten- A deter minação da freqüência de puni-


cionais em 29% das crianças internadas ções corporais e suas conseqüências em
no centro de tratamento de queimados, escolas primárias e secundárias egípci-
encontrando variáveis significativas, sen- as, em Alexandria, por meio da aplica-
do o escaldamento e o contato direto as ção de questionários aos estudantes, re-
causas mais freqüentes. Nesses casos, velou que 79,96% dos garotos e 61,53%
em geral, as vítimas têm idade média de das garotas foram agredidos por tapas
três anos e vivem apenas com um dos dados pelo professores, que também uti-
pais e em domicílios miseráveis. 42 lizaram bastões, correias, sapatos e chu-
tes. As lesões mais comuns eram os
Quanto às crianças de até três anos
inchaços e contusões, seguidas pelos
de idade, vítimas de traumatismos
ferimentos e fraturas. 45
cranianos causados por maus-tratos, cer-
ca de 31,2% delas não tiveram as suas O estudo dos 498 corpos de menores de
lesões reconhecidas no momento em que cinco anos encaminhados ao Setor de
foram atendidas na sala de emer gência. Patologia Forense da Universidade Médi-
Cerca de 27,8% destas retor naram por ca de Carolina do Sul, entre 1986 e
sofrerem novas agressões. As maiores di- 1996, demonstrou que a taxa de homi-
ficuldades para o não reconhecimento cídio foi de 12%. Destes, 46% tinham até
foram os casos ocorridos em crianças um ano de idade e 67% eram do sexo

pág.68, jan/jun 2002


R V O

masculino. Dos homicidas, 97% eram lação, que cresceu de 53,5 anos, em
conhecidos da vítima e 77% eram paren- 1970, para 67,6 anos, em 1996, fazen-
tes. A ação conjunta de ambos os pais do com que o número de idosos passas-
provocou a morte de 12% das crianças. 46
se a ter uma representatividade cada vez
maior na população em geral. 47
Fica evidente que existem preocupações
no sentido de que o processo de identi- Chamam-se ações básicas de saúde as
ficação e investigação dos casos suspei- medidas médico-sanitárias aplicadas de
tos ou confirmados de violência contra forma sistemática, através de recursos
criança e adolescentes seja sistematiza- técnicos de baixa complexidade e a cus-
do. Da mesma for ma, há a preocupação tos reduzidos, acessíveis à grande maio-
quanto à caracterização de sinais e sin- ria da população e que tenham como
tomas que possam conduzir os profissi- objetivos o controle, tratamento e pre-
onais de saúde não só para elucidação venção de um número reduzido de do-
diagnóstica e condutas terapêuticas, mas enças que acometem a um grande nú-
também para o desencadeamento de mero de pessoas, diminuindo significati-
ações que visem defender essas vítimas vamente a morbidade e a mortalidade de-
de novas agressões. correntes destas doenças ou agravos.

Como pontos marcantes nestas ações


EVOLUÇÃO DA SAÚDE E CRESCIMENTO DA
básicas de saúde, podemos destacar as
VIOLÊNCIA NO B RASIL

O
doenças previníveis por vacina, como a
Brasil, no decorrer das três úl- poliomielite e a varíola, que já foram
timas décadas, passa por um erradicadas, e a melhoria da qualidade
período de grandes transfor- da assistência mater no infantil, com o
mações em ter mos de saúde pública. aumento da oferta de consultas de pré-
Embora ainda muito distante dos padrões natal e a conseqüente redução da mor-
desejados, a implantação das chamadas talidade materna e neonatal. Os progra-
ações básicas de saúde causou impacto mas de controle de hipertensão arterial,
positivo em diversos indicadores da qua- diabetes mellitus, prevenção do câncer
lidade de vida da população brasileira. de mama e do colo uterino, entre outros,
também merecem destaque.
Entre as alterações significativas, desta-
camos a taxa de mortalidade infantil que Mesmo assim, a imagem do Brasil como
já foi reduzida de 65,02 óbitos para cada um país dividido e desigual, ora com a
hum mil nascidos vivos, em 1980, para cara da miséria, ora com o jeito de país
36,1 óbitos em 1998. O aumento da ex- de primeiro mundo, também é vista na
pectativa de vida ao nascer é outra refe- área da saúde. Enquanto todos nós te-
rência que demonstra claramente a mos convivido com problemas semelhan-
melhoria do controle da saúde da popu- tes aos de países desenvolvidos, como as

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.69


A C E

taxas crescentes de morbimortalidade, das O Código Internacional de Doenças (CID),


chamadas causas externas, que englobam atualmente em sua décima versão, é a
as lesões e mortes causadas por aciden- referência mundial para a classificação
tes e violências, por outro lado, grande de doenças e agravos à saúde. As cau-
parte do povo não consegue ter acesso sas externas de morbidade e mortalida-
aos serviços de assistência à saúde e de estão identificadas no capítulo XX
acaba padecendo e morrendo de doen- como os acontecimentos formados pe-
ças típicas de ambientes pobres e mise- las ocorrências e circunstâncias
ráveis, como diarréias, tuberculose, do- ambientais, sendo elas, em particular, as
enças respiratórias, malária, cólera, lesões causadas por essas circunstânci-
hanseníase etc. as, envenenamentos e demais efeitos
adversos, além das mortes por violência
A maior causa de morte no Brasil são as
e acidentes.
doenças do aparelho circulatório, que
atingem principalmente a população com Define-se acidente como: “acontecimen-

idade acima de 45 anos. Em segundo lu- to casual, fortuito, imprevisto; aconteci-

gar estão as mortes provocadas pelas mento infeliz, casual ou não, e de que

chamadas causas exter nas. resulta ferimento, dano, estrago, prejuí-


zo, avaria, ruína etc; desastre“.48 Portan-
As causas externas são consideradas atu- to, todos os agravos à saúde que pos-
almente como um dos mais graves pro- sam ser evitados através da adoção de
blemas de saúde pública no Brasil, cons- medidas preventivas, não poderiam, a
tituindo-se hoje na principal causa de princípio, serem classificados como aci-
morte na população com idades entre dentais por não terem a imprevisibilidade
cinco e 49 anos, sendo que em alguns como uma de suas características.
dos grandes centros urbanos essa lide-
A violência é entendida como ações
rança já é percebida a partir da faixa
impetradas através da força, ímpeto ou
etária de um a quatro anos de idade, atin-
intensidade, contrárias ao direito, à jus-
gindo, portanto, uma camada mais jovem
tiça, à razão, que causem danos físicos
da população. Nos últimos anos, as cau-
morais, emocionais e/ou espirituais a al-
sas de mortes que, até então, eram mais
guém. 49 Os atos classificados como ne-
freqüentes entre os jovens, como as do-
gligentes seriam aqueles decorrentes de
enças decorrentes da gestação e parto,
uma falta não intencional daquele que
as doenças infecciosas e parasitárias e
se omitiu no cumprimento de um ato que
as doenças do aparelho respiratório, vêm
lhe incumbia, permitindo com isso o
apresentando reduções significativas em
agravo à saúde de outrem.
seus números. A única exceção obser-
vada é a tendência crescente na curva Classificar genericamente como aciden-
referente às causas exter nas. tais as mortes provocadas por causas

pág.70, jan/jun 2002


R V O

exter nas não é pertinente, uma vez que O perfil epidemiológico traçado pelos
transmite a falsa idéia de que mortes, números de mortes por causas externas
ferimentos e seqüelas são frutos de fa- na infância e adolescência demonstra
talidades e, portanto, inevitáveis. Mas, que os grandes centros urbanos detêm
na verdade, a quase totalidade destes uma freqüência maior do que a média
agravos à saúde é previsível e passível nacional. Merecem destaque as cidades
de ações preventivas e, em muitos ca- de Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São
sos, são frutos de atos de negligência e Paulo e Salvador que vêm se mantendo
violência não identificados. Segundo bem acima das demais.
Minayo:
As mortes por causas externas represen-
tam a dramática situação vivida pela so-
Considerando a dificuldade de estabe-
ciedade em geral e, em particular, a po-
lecer com precisão o caráter de
pulação de adolescentes e adultos jo-
intencionalidade desses eventos, en-
vens, entre 15 e 29 anos, que sofrem
tendemos que tanto os dados como as
37,7% desses óbitos. Cabe ressaltar,
interpretações sobre acidentes e vio-
também, a grande desigualdade existen-
lência comportam sempre certo grau
te quando essas mortes são relaciona-
de imprecisão... 50
das ao sexo das vítimas. Enquanto a re-
Os dados referentes à morbidade por lação entre o sexo feminino e masculino
causas exter nas, com relação à sua é de 1:1,4, para as mortes em geral, nos
intencionalidade, são ainda muito falhos, casos de mortes por causas externas a
e quando são registrados, em geral, re- relação é de 1:4,6.
fletem momentos pontuais em universos
Para que seja possível dimensionar a gra-
restritos a uma instituição de saúde ou a
vidade dessa situação, cabe a seguinte
uma determinada região.
comparação: durante os 13 anos de guer-
ra no Vietnã morreram 55.000 america-
Quando o objetivo maior é o estudo das
nos. No triênio 1996/1998, no Brasil,
causas e intenções destes agravos, os
ocorreram 356.306 mortes por causas
dados acessíveis mais completos são
exter nas, sendo 102.195 em acidentes
encontrados no Sistema de Infor mações
de trânsito e 121.317 homicídios, sen-
de Mortalidade (SIM), disponibilizado
do que 52,2% destas vítimas tinham en-
pelo DATASUS, órgão do Ministério da
tre 15 e 29 anos de idade.
Saúde. 51 As informações catalogadas são
extraídas dos atestados de óbitos, que Embora os acidentes de trânsito não pos-
são documentos de uso obrigatório e de sam ser classificados como atos intenci-
formato único em todo o país, o que per- onais, também não se pode admiti-los
mite a construção de um banco de da- como um fato natural, fortuito ou casu-
dos nacional. al. As vítimas do trânsito são frutos da-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.71


A C E

quilo que se poderia chamar de violên- admite-se que para cada caso notificado
cia urbana, uma vez que 90% dos aci- às autoridades competentes existam ain-
dentes são causados por falha humana, da vinte outros que permanecem desco-
sendo 75% relacionados à ingestão de nhecidos, impedindo que se conheça a
bebida alcoólica e/ou à ingestão de dro- exata magnitude do problema. 54
gas ilícitas.
Dentre os sinais físicos podem ser des-
Dados relacionados a inter nações hospi- tacados a presença de marcas e lesões
talares revelam que 62% dos leitos des- (hematomas, queimaduras etc.), aparên-
tinados à traumatologia são ocupados cia suja e descuidada, doenças não tra-
por vítimas de acidentes de trânsito. 52
A tadas, atraso do calendário vacinal etc.
figura do pedestre representa a parte As alterações comportamentais podem
mais frágil em conflitos de trânsito. Por variar do isolamento completo da crian-
isso, em ter mos nacionais, 44% dos ça à tentativa de agradar sempre, da apa-
mortos em acidentes de trânsito são pe- tia à agressividade, da atitude
destres. 53
Quando apenas os grandes infantilizada a brincadeiras sexuais ex-
centros urbanos são analisados, as víti- plícitas, distúrbios do sono, apetite, so-
mas de atropelamento passam para 70% cialização, aprendizado etc.
dos óbitos.
A etiologia e os fatores determinantes do
Embora os dados de mortalidade decor- abuso sexual diferem dos outros tipos
rentes dos diversos agravos classificados de maus-tratos e envolvem questões cul-
como causas exter nas demonstrem uma turais (como alguns casos de incesto) e
tendência à estabilidade, as mortes por de relacionamento (dependência social,
agressão (homicídios) diferem das de- econômica e afetiva entre membros da
mais por apresentar um crescimento de família), o que dificulta a notificação e
434%, no período de 1979 a 1998. perpetua o silêncio.

Na maioria dos casos, o abusador sexu-


FATORES PREDISPONENTES E SINAIS DE
al é uma pessoa que a criança conhece,
SUSPEIÇÃO DE MAUS - TRATOS

A
confia e que, muitas vezes, ama: em 80%
lguns sinais físicos ou dos casos o abusador é um dos pais ou
comportamentais, que podem pessoa com algum laço afetivo com a fa-
ser observados por qualquer mília. Pode ocorrer o uso da força e da
pessoa, são indicativos de que a criança violência, mas na maioria dos casos, o
ou o adolescente pode estar sendo mal- agressor é quase sempre um membro da
tratado. Os maus-tratos geralmente são família ou responsável pela criança e o
aplicados de forma constante e com in- abuso se dá sob uma relação de depen-
tensidade crescente. Conseqüentemente, dência afetiva.

pág.72, jan/jun 2002


R V O

Fatores freqüentemente associados ao “É dever da família, da sociedade e do


agressor Estado assegurar à criança e ao adoles-
cente, com absoluta prioridade, o direito
a) Pais abusadores, muitas vezes, foram
à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
abusados na infância.
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
b) A mãe é a agressora mais freqüente dignidade, ao respeito, à liberdade e à con-
nos casos de abuso físico e negligên- vivência familiar e comunitária, além de
cia, enquanto os pais, quando agri- colocá-los a salvo de toda forma de negli-
dem causam lesões mais graves. gência, discriminação, exploração, vio-
lência, crueldade e opressão”.55
c) Características como: imaturidade,
isolamento social, fanatismo religio- Neste artigo merecem destaque, em pri-
so, distúrbios psiquiátricos ou psico- meiro lugar, o fato da responsabilidade
lógicos. pela garantia dos direitos da criança e
do adolescente ser um dever da família,
d) Alcoolismo ou uso de drogas ilícitas.
da sociedade e do Estado, envolvendo,
e) T e m p e r a m e n t o violento ou dessa for ma, todos os atores sociais,
envolvimento criminal. sem exceção. Como segundo ponto de
importância está a expressão “com ab-
f) D i f i c u l d a d e s sócio-econômicas,
soluta prioridade”, que foi utilizada ape-
desassistência e exclusão social.
nas uma vez em todo o texto constituci-
Características de crianças com maiores onal. Finalmente, merece ser ressaltado
probabilidades de serem maltratadas o parágrafo 4o , também deste artigo, que
diz: “A lei punirá severamente o abuso,
a) Gravidez precoce ou indesejada.
a violência e a exploração sexual da cri-
b) Prematuros e deficientes físicos. ança e do adolescente”.

c) Vivendo apenas com um dos pais. O Estatuto da Criança e do Adolescente

d) Crianças adotadas. (ECA), lei n o. 8.069, de 13 de julho de


1990, é o texto legal complementar ao
e) Vivendo em famílias desassistidas e
artigo 227 da Constituição, e é ele que,
miseráveis.
atualmente, norteia todas as ações vol-
tadas à criança e ao adolescente, no que
L EGISLAÇÃO

A
diz respeito à definição dos direitos fun-
Constituição da República Fe- damentais, da prevenção e das políticas
derativa do Brasil, de 5 de ou- de atendimento. Com relação aos trechos
tubro de 1988, no capítulo VII que determinam as normas e diretrizes
– Da família, da criança, do adolescente em relação à proteção de crianças e
e do idoso –, estabelece no artigo 227: adolescentes contra os maus-tratos,

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.73


A C E

destacam-se: D IFICULDADES DE IMPLEMENTAÇÃO DO

ECA

E
- o artigo 13, deter mina que “os ca-
sos de suspeita ou confir mação de mbora já tendo completado dez
maus-tratos contra criança ou adoles- anos de existência, muito ain-
cente serão obrigatoriamente comu- da há que ser feito para que
nicados ao Conselho Tutelar da res- seja alcançada a efetiva implantação e
pectiva localidade, sem prejuízo de implementação do ECA, e o mesmo se
outras providências legais”, e deter- torne um verdadeiro instrumento de pro-
mina a obrigação de toda a socieda- teção a todas as crianças e adolescen-
de em comunicar à autoridade com- tes.
petente todos esses casos, indepen-
Um dos grandes obstáculos ao ECA, ain-
dente da certeza da existência ou não
da, é a pouca informação que se tem
dos maus-tratos. 56
sobre o seu teor e abrangência, apesar
- o artigo 245, é mais específico, e das diversas ações desenvolvidas e ou-
estabelece punições àqueles que se tras em desenvolvimento já terem pro-
omitirem: “deixar o médico, profes- movido algumas transformações
sor ou responsável por estabelecimen- marcantes na atenção à criança e ao
to de atenção à saúde e de ensino fun- adolescente, como por exemplo, os pro-
damental, pré-escola ou creche, de gramas de incentivo à educação escolar,
comunicar à autoridade competente à erradicação do trabalho infantil, à pre-
os casos de que tenha conhecimen- venção e atenção à violência doméstica,
to, envolvendo suspeita ou confirma- ao combate à exploração sexual com fins
ção de maus-tratos contra criança ou comerciais, entre outros.
adolescente. Pena – multa de três a
Quanto às medidas sócio-educativas pre-
vinte salários de referência, aplican-
vistas no estatuto e que seriam aplicá-
do-se o dobro em caso de reincidên-
veis a crianças e adolescentes autores
cia”. 57
de infrações, estas têm como finalidade
O terceiro instrumento legal a ser consi- maior a oferta de recursos técnicos ca-
derado é o texto da Convenção sobre os pazes de exercerem controle, vigilância
Direitos da Criança, adotado pela Assem- e instrumentos de correção. No entanto,
bléia Geral das Nações Unidas, em 20 a grande falha que hoje existe, sobretu-
de novembro de 1989. Este texto foi as- do nas grandes cidades, é a falta de ins-
sinado pelo governo brasileiro, em 26 de talações públicas adequadas, o que aca-
janeiro de 1990, e transfor mado no de- ba por transfor mar uma proposta de
creto legislativo n o 28, em 14 de setem- ressocialização em verdadeiras prisões
bro de 1990. 58 e escolas de marginais.

pág.74, jan/jun 2002


R V O

O ECA prevê a criação dos Conselhos de C ONCLUSÃO

A
Direitos da Criança e do Adolescente,
s mortes por causas exter nas
órgãos normativos e que possuem
avançam sobre a população
representatividade nas esferas federal,
jovem, ano a ano, adquirindo
estadual e municipal, sendo compostos
um caráter endêmico e demonstrando
de for ma paritária entre governo e soci-
uma forte relação com a população de
edade, por meio de entidades represen-
baixo nível sócio-econômico.
tativas. O braço executivo do ECA são
os conselhos tutelares, que são consti- O abuso contra a criança e o adolescen-
tuídos por cidadãos eleitos pela socie- te é um problema universal e deve ser
dade, com um mandato de dois anos, e priorizado tanto em países desenvolvidos
que atuam em áreas previamente defini- quanto naqueles em desenvolvimento.
das, podendo ser todo o município, ou Diversos programas implementados em
partes dele. alguns países demonstraram ser possí-
vel reduzir-se a prevalência de maus-tra-
A Justiça da Infância e da Juventude é a
tos contra crianças e adolescentes, quan-
representação do Poder Judiciário com
do se disponibilizam treinamentos para
atuação específica, tendo competência
a capacitação de pais, antes e após o
para apurar atos infracionais, determinar
nascimento de seus filhos, baseados em
sobre posse e guarda, conhecer, julgar e
ações continuadas de apoio, utilizando-
aplicar penalidades, com base nos arti-
se profissionais de enfer magem e/ou
gos do ECA que se referem às suas atri-
agentes comunitários de saúde. Estes
buições.
programas funcionam melhor se forem
Os direitos básicos das crianças e ado- centrados na criança e no adolescente,
lescentes são muitas vezes violados, focalizados na família e tendo como base
como o acesso à escola, à saúde e ao de sustentação a comunidade. 60
desenvolvimento. As crianças e adoles-
centes são ainda exploradas sexualmen- As maiores iniciativas recomendadas por

te e usadas como mão-de-obra comple- especialistas e que devem ser adotadas

mentar para o sustento familiar ou para pelas comunidades em geral incluem:

atender ao lucro fácil de terceiros, às


O desenvolvimento de um banco de da-
vezes em regime de escravidão. Há situ-
dos nacional para registro de casos de
ações em que são abandonadas à pró-
maus-tratos contra crianças e adolescen-
pria sorte, fazendo da rua seu espaço de
tes, avaliação dos custos relativos e de
sobrevivência. Neste contexto de exclu-
seu impacto na saúde pública.
são, costumam ser alvo de ações violen-
tas que comprometem física e mental- Intercâmbio das práticas e intervenções bem
mente a sua saúde. 59 sucedidas na prevenção dos abusos e negli-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.75


A C E

gências contra crianças e adolescentes. tratos contra crianças e adolescentes.

Desenvolvimento de pesquisas e avalia- Implantação de ações continuadas de in-


ções continuadas na prevenção dos maus- formação e sensibilização da sociedade
tratos contra crianças e adolescentes. em geral para as questões relacionadas
Desenvolvimento de programas nacio- à violência doméstica e aos maus-tratos
nais para a prevenção dos maus-tratos contra crianças e adolescentes.
contra crianças e adolescentes, assim Muito há que ser feito para que a violên-
como de programas de apoio às vítimas, cia contra crianças e adolescentes seja
agressores e famílias. efetivamente prevenida e que o Estado,
Desenvolvimento de programas de informa- a sociedade e a família entendam e as-
ção, sensibilização e capacitação de profis- sumam as suas parcelas de responsabi-
sionais das áreas de saúde, educação, so- lidade na defesa e no reconhecimento
cial, segurança e justiça para a identifica- destes jovens como sujeitos de direito,
ção, atendimento e acompanhamento dos que necessitam de segurança para o ple-
casos suspeitos ou confirmados de maus- no exercício de sua cidadania.

N O T A S
1. Abrahão Koogan e Antonio Houaiss, Enciclopédia e dicionário ilustrado , Rio de Janeiro, Edito-
ra Delta, 1995, p. 85.
2. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), Guia de atenção frente aos maus-tratos na infância e adolescência , Rio de Janeiro,
Editora SBP, 2001, p. 11.
3. Lloyd de Mause, “The history of child abuse”, The Journal of Psychohistory , 1998, pp. 216-
236. Artigo em texto contínuo, obtido através da Internet, no site http://www.hugcares.org/
ph/ja/2dex253.htm, não havendo paginação.
4. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit.
5. Lloyd de Mause, “On writing childhood history”, The Journal of Psychohistory , 1980, pp. 135-
170. Artigo em texto contínuo, obtido através da Internet, no site http://www.hugcares.org/
ph/ja/2dex162.htm, não havendo paginação.
6. Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
7. Idem, ibidem.
8. Idem, ibidem.
9. Susan Maree Jeavons, The course of history . Texto contínuo, obtido através da Internet, no

pág.76, jan/jun 2002


R V O

site http://www.suite101.com/article.cfm/child_abuse_and_recovery/18439.
10.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
11.Idem, ibidem.
12.Idem, ibidem.
13.Idem, ibidem.
14.Lloyd de Mause, On writing childhood history , op. cit.
15.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
16.Idem, ibidem.
17.Lloyd de Mause, The history of childhood as the history of child abuse . Texto contínuo, obtido
através da Inter net, no site http://www.primalspirit.com/de Mause31_childabuse.htm, não
havendo paginação.
18.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
19.Susan Maree Jeavons, op. cit.
20.Bíblia: mensagem de Deus, São Paulo, Editora Loyola, 1989, p. 624.
21.Idem, ibidem, p. 627.
22.Idem, ibidem, p. 629.
23.Idem, ibidem, p. 629.
24.Idem, ibidem, p. 630.
25.Idem, ibidem, p. 630.
26.Idem, ibidem, p. 634.
27.Idem, ibidem, p. 634.
28.Idem, ibidem, p. 617.
29.Lloyd de Mause, The history of child abuse , op. cit.
30.Idem, ibidem.
31.Eric A. Shelman e Stephen Lazoritz, Out of darkness: the history of Mary Ellen Wilson, Editora
Dolphin Moon. Este texto é derivado da obra completa e foi elaborado com base em informa-
ções contidas no site http://www.dolphinmoon.com.
32.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p.11.
33.Idem, ibidem, p. 12.
34.Idem, ibidem, p. 12.
35.Idem, ibidem, p. 12.
36.Idem, ibidem, p. 12.
37.Idem, ibidem, p. 13.
38.Abrapia. Maus-tratos contra crianças e adolescentes: proteção e prevenção. Guia de orienta-
ção para profissionais de saúde , Petrópolis, 2a ed., Editora Autores & Agentes & Associados,
1997, p. 11.
39.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p. 13.
40.World Health Organization, Violence and injury prevention . Texto contínuo, obtido através da
Internet, no site http://www.who.int/eha/pvi/infokit/measure.htm.
41.S.J. Kharasch et all., “Violence-related injuries in a pediatric emergency department”, Pediatric
Emergence Care , abr. 1997, p. 95. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 59-78, jan/jun 2002 - pág.77


A C E

42.B. Bennet e R. Gamelli, “Profile of an abuse burned child”, J. Burn Care Rehabilitation , jan.-
fev. 1998, p. 88. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
43.C. Jenny et all., Analysis of missed cases of abusive head trauma , Jama, fev. 1999, p. 621.
Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
44.Christian, C.W. et all., “Pediatric injury resulting from family violence”, Pediatrics , fev. 1997,
p. 99. Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
45.R.M. Youssef, M.S Attia e M.I. Kamel, “Children experiencing violence ”, Prevalence and
determinants of corporal punishment in school : child abuse and neglect, out. 1998, p. 975.
Texto obtido através da Internet; fonte: Medline.
46.K.A. Collins e C.A. Nichols, “ A decade of pediatric homicide : a retrospective study at the
Medical University of South Carolina”, Am J. Foresinc Med. Pathology, jun. 1999, p. 169.
47.Aramis Antonio Lopes Neto, Acidentes ou violência? Quais as verdades sobre as mortes por
causas externas? Rio de Janeiro, mimeografado, 2000, p. 1.
48.Aurélio Buarque Holanda, Novo Aurélio, século XXI : o dicionário de língua portuguesa , Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999, p. 33.
49.Abrahão Koogan e Antonio Houaiss, op. cit., p. 881.
50.Maria Cecília de Souza Minayo, Termômetro social, São Paulo, Médicos-HC-FMUSP, ano II, v. 8,
mai.-jun., 1999, p. 68.
51.Datasus / Ministério da Saúde, Sistema de Informações de mortalidade . Texto obtido através
da Internet, no site http://www.datasus.gov.br/datasus.htm.
52.Ministério dos Transportes, Dados gerais sobre acidentes de trânsito no Brasil . Texto obtido
através da Internet, no site http://www.transportes.gov.br/pare/dgerais.htm.
53.Idem, ibidem.
54.Abrapia, op. cit., p. 5.
55.Nova Constituição do Brasil . Rio de Janeiro, Gráfica Auriverde Ltda, p. 130.
56.Estatuto da Criança e do Adolescente , lei federal n. 8069, de 13/7/1990, Série Legislação
Brasileira, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 3.
57.Idem, ibidem, p. 51.
58.Idem. Ibidem, p. 153.
59.Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Centro Latino-americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Carelli e Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça
(MJ), op. cit., p. 7.
60.World Health Organization, Who recognizes child abuse as a major public health problem ,
Press Releases, abr. 1999, p. 1. Texto contínuo, obtido através da Inter net no site
http://www.who.int/inf.

A B S T R A C T
In his text the author shows the situations of violence and abuses against children and young
persons practiced mainly by their parents, giving emphasis also to the evolution of health and
the increase of violence in Brazil.

pág.78, jan/jun 2002


R V O

Márcia de Paiva
Doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio

Crime e Castigo
As civilizadas práticas jurídicas
de uma Idade Moderna

Ninguém que se dedique à historiográfica que se dedicou a rever


meditação sobre a história e pequenos conflitos e movimentos tidos
a política consegue se como irracionais e até mesmo patológi-
manter ignorante do enor me cos, dando-lhes um novo significado.
papel que a violência Contudo, ainda é muito pouco se pen-
desempenhou sempre nas sarmos em ter mos de história e de polí-
atividades humanas, e à tica, como queria Hannah Arendt.
primeira vista é bastante

surpreendente que a Por isso escrever um texto sobre violên-


violência tão raramente tenha cia não é tarefa das mais fáceis, uma vez
sido objeto de consideração. que não se trata de um conceito especí-
fico, datável, nem se resume a um ou
Hannah Arendt 1

A
mais fatos. É tema que se presta a múlti-
passagem acima, apesar de ter plas interpretações e combinações, per-
sido escrita há uns trinta anos, mitindo sua localização – tempo e espa-
continua atual. Não vai faltar ço – em qualquer época ou lugar. T rata-
quem aponte uma série de trabalhos e se, portanto, de um tema incomensurá-
textos escritos sobre as inúmeras guer- vel. Apesar de todas as épocas partilha-
ras e revoluções e toda a vertente rem de algum tipo de violência, seja ela

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 79-94, jan/jun 2002 - pág.79


A C E

regrada ou espontânea, entendemos que, As inúmeras transformações que ocor-


de certa maneira, existe um limite de rem a partir de então passam a confor-
aceitação para deter minadas formas que mar um mundo moder no próximo aos
acabam por caracterizar ou serem carac- códigos de hoje. As descobertas de no-
terísticas de específicos momentos. A vas terras, a revolução científica de
aceitação ou não dessas for mas de vio- Copérnico e Galileu, as reformas religio-
lência estaria ligada à cultura e às sensi- sas, a formação dos estados nacionais e
bilidades de cada época. a vivência dessas experiências alteram
as visões de mundo ou, para utilizar um
Escolhemos trabalhar com a Europa da
ter mo bem caro aos portugueses, as
Idade Moderna, principalmente o século
mundividências.
XVI, e observar como a violência é assi-
milada por essa sociedade em transição. A assimilação dessas mudanças não é
E ainda, verificar em que a violência eu- feita de modo tão simples, o que acaba
ropéia “civilizada” se contrapõe à violên- por emprestar a essa época um perfil de
cia dos selvagens, tão cantada em verso transição. Pensar aquele início da Idade
e prosa. Não se trata de comparar qual Moderna como uma for ma fixa, na qual
sociedade era a mais violenta, o que não o que conta é o somatório das novas for-
nos leva a lugar algum. Trata-se apenas mas e experiências, é limitar a sua com-
de mais um exercício para repensar essa preensão. Não que todas as mudanças
polarização que opõe o bárbaro e o civi- fossem insuficientes para complexificar
lizado, o bom e o mau selvagem. Tal po- a sua vivência e o seu próprio entendi-
larização, apesar de ser reconhecida mento. Porém, as permanências de um
como um estereótipo, continua a circu- modelo anterior ainda tão vivas, impon-
lar. Não é um tema novo, mas per mane- do padrões e marcas, merecem igual
ce irresistível e atual, principalmente atenção, como Francisco C. Falcon sou-
após os acontecimentos do dia 11 de be tão bem sintetizar:
setembro de 2001, onde a violência dos
Atividades econômicas, estruturas e re-
“bárbaros” aparece sempre pintada como
lações sociais, formas de organização
pior do que a dos “civilizados”.
política e respectivas práticas, ideolo-
Falar sobre o início da época moder na é gias, manifestações culturais – tudo se

falar sobre um outro mundo, um mundo modificou em maior ou menor grau, se-

extremamente distinto do nosso. Era um gundo os ritmos e proporções diferen-


mundo que desconhecia as Américas ou ciadas conforme o nível considerado.

que só conhecia um quarto do planeta, Tal conjunto se configura uma época

que achava que a Terra era o centro do particular, seja qual for a sua denomi-
universo e que, sobretudo, pensava, agia nação, e representa, de fato, um perío-

e sentia muito diferente do mundo atual. do de ruptura com a época medieval,

pág.80, jan/jun 2002


R V O

embora não se possa mais ignorar o ao termo barbárie, difundindo a imagem


grau de continuidade-per manência em dos habitantes do novo mundo como se-
relação à Idade Média. 2 res violentos, dados a ódios, vivendo em
discórdia permanente, como podemos
Em meio a tantas transfor mações, era
observar no Tratado da província do Bra-
preciso tentar manter não apenas a uni-
sil, um dos primeiros textos sobre o Bra-
dade como a identidade, nem que para
sil, escrito por volta de 1567 :
isso fosse necessário reforçar antigos
conceitos, como foi feito pela Não se pode enumerar nem compreen-
escolástica. O mundo havia se tor nado der a multidão de bárbaro gentio que
plural e incerto demais, partindo-se em semeou a natureza por toda esta terra
vários pedaços: mundo cristão dividido do Brasil porque ninguém pode ir pelo
entre católicos e protestantes, novos sertão adentro caminhar seguro nem
continentes com novas gentes e a pró- passar por terra onde não ache povoa-
pria Terra havia perdido sua posição de ções de índios armados contra todas
centro do universo. Talvez o verbo apro- as nações humanas, e assim como são
priado seja construir uma identidade face muitos, permitiu Deus que fossem con-
a essas mudanças e novas formações e trários uns aos outros, e que houvesse
reconstruir uma unidade cristã, perdida entre eles grandes ódios e discórdias
não só com a Refor ma mas com a inclu- porque se assim não fosse, os portu-
são das novas conquistas. gueses não poderiam viver na terra

Esse mundo, que se assustou com os nem seria possível conquistar tamanho

habitantes desse “novo mundo” , com os poder de gente. 3

rituais antropofágicos, vivia um momen-


Esse habitante do novo mundo vai se tor-
to de glória com toda a produção cultu-
nar mais do que bárbaro: ele é um sel-
ral do Renascimento. Esse mundo pode-
vagem cruel, ele é desumano. É certo
ria parecer mais calmo e menos violen-
que o contraponto não custou a surgir
to que o atual. Não o era. Basta lembrar-
como a expressão “bom selvagem” cu-
mos da existência da escravidão e toda
nhada por Rousseau, antecedida pela
a violência implícita nessa prática e suas de-
defesa de Montaigne, dentre outros. De
corrências – uma violência institucionalizada.
qualquer maneira, na maior parte das
Outro caso clássico de violência regula-
descrições de viajantes e escritos desta
mentada era a Inquisição, com suas prá-
época, incluindo as narrativas
ticas de tortura e suas fogueiras huma-
epistolares, salta aos olhos o espanto dos
nas. Podemos perguntar ainda o que foi
europeus ante a violência das cerimôni-
a conquista da América...
as em que os índios praticavam a antro-
Mesmo assim, a literatura da época dos pofagia. Vindas de portugueses, france-
descobrimentos emprestou novas tintas ses, holandeses, alemães, multiplicam-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 79-94, jan/jun 2002 - pág.81


A C E

se as descrições de uma terra “sem fé, tos deles, e assim vai crescendo o ódio
sem lei e sem rei”, onde imperava a de- cada vez mais, e ficam inimigos verda-
sordem e grassava a selvageria. deiros perpetuamente”. 5
Gandavo, o autor do tratado acima cita- Para Gandavo, a guerra parece ser um
do, não fez concessão sobre o caráter estado constante entre os índios, inclu-
dos nativos: “... são estes índios muito sive, aparecendo como o fator que per-
desumanos e cruéis, não se movem por mitiu a conquista portuguesa. Essa opi-
nenhuma piedade. Vivem como brutos nião é compartilhada por outros autores.
animais sem ordem nem concerto de Jean de Léry, discípulo de Calvino, que
homens, são muito desonestos e dados veio ao Rio de Janeiro participar do pro-
a sensualidade e entregam-se a vícios jeto França Antártica, resume categori-
como não houvera razão de humanos”. 4 camente o cotidiano dos “selvagens”:
“ ... a ocupação ordinária de todos, gran-
Já se disse que houve uma mudança de des e pequenos, é a caça e a guerra, [...],
perspectiva em relação aos índios, que mas também se ocupam em matar e co-
de puros e ingênuos, tais como apare- mer gente”. 6
cem na carta de Caminha, passaram a
O jesuíta, padre Manuel da Nóbrega,
traidores no momento em que demons-
emitiu um juízo não menos severo quan-
traram resistência em relação à apropri-
to ao modo de vida e ao caráter dos ín-
ação das terras ou à escravização. Não é
dios: “são cães em comerem e matarem,
o caso de entrar nessa discussão agora.
e são porcos nos vícios e na maneira de
E, mesmo porque, essa questão é um
se tratarem [...] são tão cruéis e bestiais
pouco mais facetada. Vai ser criada uma
que assim que matam aos que nunca lhes
distinção entre índios mansos e bravos,
fizeram mal, clérigos, frades e mulheres
ou seja, os propensos a se sujeitarem
de tal parecer, que os brutos animais se
ou, pelo menos, a se adaptarem a uma
contentariam deles lhes não fariam
nova forma de vida e os indomesticáveis.
mal”. 7
O bárbaro/selvagem que começa a sur-
gir nessa época é, portanto, um ser sem No entanto, práticas de igual violência

polimento, rude, violento movido a vin- eram moeda corrente entre os civiliza-

gança, que promove guerras sem objeti- dos. Não é o caso de medir quem era o

vos ou por motivos fúteis, uma vez que mais violento, nem o de justificar uma

há terra para todos: “estes índios são violência pela outra. O que interessa é

muito belicosos e tem sempre grandes como ações de sinais semelhantes aca-

guerras uns contra os outros, nunca se bam por parecer completamente opos-

acha neles a paz, nem é possível haver tas, sendo que apenas uma é válida.

entre eles amizade porque umas nações O reconhecimento de uma postura tão
pelejam contra outras e matam-se mui- bárbara quanto a dos selvagens não é

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R V O

fruto de um julgamento a posteriori , um e livros já impressos o atestam à pos-

julgamento anacrônico. Entre tantas nar- teridade . 8


rativas que se deleitam em contar os
Nessa passagem, Léry se refere a um
horrores da vida selvagem, algumas vo-
tema bem caro à Europa do século XVI,
zes se levantam reconhecendo a própria
ou seja, as guerras religiosas entre cató-
barbárie. O mesmo Jean de Léry, na sua
licos e protestantes que deram espaço
Viagem à terra do Brasil, após narrar os
às maiores atrocidades levadas em nome
cerimoniais antropofágicos e se horrori-
da fé, tal como o famoso massacre do
zar ante costumes selvagens, admite que
dia de São Bartolomeu, ocorrido na Fran-
o mérito da violência não é exclusivo dos
ça, referido no próprio texto supracitado.
cruéis índios brasileiros:
É interessante notar que Léry chama
atenção para o fato de que os milhares
Entretanto, mesmo falando por metá-
que testemunharam aqueles horrores
foras, não encontramos aqui, pessoas
ainda estavam vivos. Parece não acredi-
condecoradas com o título de cristãos,
tar na contemporaneidade daqueles fa-
que não satisfeitas com trucidar seu
tos e não aceitar que uma violência da-
inimigo ainda devoram o fígado e o
quele porte estivesse acontecendo na
coração? E que vimos em França du-
França, mas que só pudesse existir num
rante a tragédia iniciada a 24 de agos-
passado remoto ou num lugar distante.
to de 1572? Sou francês e pesa-me
Aquela violência que deveria ser assun-
dizê-lo. Entre outros atos de horrenda
to de livros de história estava sendo nar-
recordação não foi a gordura das víti-
rada no presente, no seu presente, para
mas trucidadas em L yon, muito mais
um outro tempo.
barbaramente do que pelos selvagens,
Acatar o espanto de Jean de Léry ante a
publicamente vendida em leilão e
violência entre católicos e protestantes
adjudicada ao maior lançador? O fíga-
é aceitar aquele conflito como algo ex-
do e o coração e outras partes do cor-
cepcional. Muito já se escreveu sobre a
po de alguns indivíduos não foram co-
onda de violência religiosa que marcou
midos por furiosos assassinos de que
especialmente a França do século XVI.
se horrorizam os infernos? Depois de
Chegou-se mesmo a buscar na aurora dos
miseravelmente morto não picaram o
tempos um tipo de violência primitiva,
coração a Coeur de roi , confessor da
dormente, parte do inconsciente coleti-
religião refor mada em Auxerre, não lhe
vo, que teria voltado à tona naquela oca-
puseram os pedaços a venda e não os
sião. Acreditou-se ainda que a violência,
comeram afinal, para saciar a raiva,
parte do comportamento humano, torna-
como mastins ? Milhares de testemu-
va-se algumas vezes uma patologia.
nhas desses horrores, nunca dantes

vistos em qualquer povo, ainda vivem, Natalie Zemon Davis, em Culturas do

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povo , demonstrou que não é preciso ir gem. Pode-se procurar entender o que
tão longe para dar sentido aos conflitos era percebido como um ato de pura e
que envolvem religiões diferentes. No simples violência como os europeus viam
ensaio Ritos da violência , a historiadora os atos dos índios ou como Léry vê os
americana, após uma minuciosa análise levantes religiosos – mesmo que fizes-
dos levantes religiosos da França moder- sem parte de determinados costumes ou
na, traçando seus objetivos, as fontes fossem atos legitimados por uma cren-
que os legitimavam, as ocasiões em que ça. E deve-se compreender a aceitação
ocorriam, o tipo de pessoas que partici- da violência de certas práticas judiciais,
pavam e a organização existente que os a partir da sua inserção na lógica formal
estruturavam, descarta o seu caráter ex- das monarquias nacionais.
cepcional. 9
Para Davis, o conflito é uma
De certa forma, muito da violência que
per manente na vida social, embora as
circula naquele tempo se deve a práti-
for mas e o impacto da violência sejam
cas institucionalizadas, se pensarmos em
variáveis e a violência religiosa apresen-
todas as formas de punições exercidas
ta-se mais intensa por estar intimamen-
pela legislação eclesiástica e civil da
te relacionada com valores fundamentais
época. Além das cinematográficas foguei-
e a autodefinição de uma comunidade.
ras da Inquisição, certos métodos do sis-

Em especial, gostaríamos de destacar tema penal eram extremamente brutais,

uma conclusão apontada por esta auto- utilizando a tortura e os suplícios como

ra: a saber, aquela que situa a violência práticas legais. A tipologia das penas de-

dos levantes religiosos no seu tempo, lu- monstra por si a violência desse siste-

gar e for ma. Tanto a violência católica ma: a roda, o pelourinho, a forca, o ca-

quanto a protestante estavam ligadas à dafalso, o esquartejamento. Contudo,

vida do culto praticado por aquelas igre- essas práticas devem ser vistas dentro

jas, isto é, o ritual dos levantes estava de um conjunto de valores sociais e po-

correlacionado com o ritual religioso. E, líticos daquele momento específico que

sobretudo, aqueles atos violentos eram foi o Antigo Regime.

“derivados de um estoque de tradições Em sua conhecida obra Vigiar e punir,


de punição ou de purificação correntes Michel Foucault, ao analisar a prática do
na França do século XVI”. 1 0 suplício na Idade Clássica, chamou aten-
ção para o fato de ser uma produção re-
Desse modo, falar em violência daquela
gulada em seus mínimos detalhes:
época requer um certo cuidado, é preci-
so perspectivar o termo e situá-lo no seu O suplício faz correlacionar o tipo de

devido contexto. Os tipos de violência a ferimento físico, a qualidade, a inten-

que temos acesso são formas narradas sidade, o tempo dos sofrimentos com

por um outro tempo, numa outra lingua- a gravidade do crime, a pessoa do cri-

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minoso, o nível social de suas vítimas. O verbete “tortura” da Enciclopédia


Há um código jurídico da dor; a pena, Einaudi ressalta a eficiência do esque-
quando é supliciante, não se abate ma organizado pelo Santo Ofício como
sobre o corpo ao acaso ou em bloco; uma importante referência em seu trato:
ela é calculada de acordo com regras “o sistema inquisitorial organizado pelo
detalhadas: números de golpes de açoi- Santo Ofício é a máquina de tortura mais
tes, localização do ferrete em brasa, complexa e mais precisa que a história
tempo de agonia na fogueira ou na roda recorda. A inquisição romana medieval
(o tribunal decide se é o caso de es- constituiu o modelo teórico e o banco
trangular o paciente imediatamente, operativo de ensaio da tortura no Oci-
em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de dente”.1 4
quanto tempo esse gesto de piedade
A tortura foi utilizada, portanto, como um
deve intervir), tipo de mutilação a im-
instrumento de ação judiciária, com pro-
por (mão decepada, lábios ou línguas
cedimentos previamente definidos e
furados). Todos esses diversos elemen-
regrados, que trabalhava com os limites
tos multiplicam as penas e se combi-
da dor e do sofrimento físico. Apesar de
nam de acordo com os tribunais e os
ser em si uma inquirição punitiva, não
crimes... 1 1
se bastava como pena, uma vez que esse
É verdade que muitos daqueles métodos
inquérito era conduzido em segredo
não eram criações novas. Eram heran-
(esse procedimento valia tanto para o
ças da cultura medieval, 1 2 em particular
tribunal eclesiástico quanto para o secu-
da Igreja, que tinha montado um siste-
lar). A pena deveria ser exibida em ritu-
ma inquisitorial em que, para concluir as
al aberto ao público como demonstração
suas investigações, recorria à tortura, pu-
de poder, como manifestação da força e
nindo os supostos hereges com suplíci-
como um alerta. Para essa pedagogia
os. Os manuais da Inquisição do século
jurídica, a pena deveria ser punitiva e
XIV já haviam fixado boa parte dos mé-
exemplar. Assim, a punição física tor na-
todos e da estrutura dos tribunais da fé,
se espetáculo. O corpo supliciado do in-
dos quais podemos destacar o elabora-
frator deve ser exibido como modelo.
do por Ber nard Gui, por volta de 1324-
1328, e o de Nicolau Eymerich, de 1376, A comparação com o espetáculo ou com
que é considerado o mais importante por o teatro não é gratuita. Os processos
suas inúmeras reedições. A tortura tor- promovidos pela Igreja, chamados “au-
na-se inquisitio, a forma pela qual se tos da fé”, envolviam um complexo ritu-
chega ou se busca a verdade. O al de apresentação pública dos conde-
inquiridor coloca a quaestio ao réu in- nados ou penitentes. A encenação em
terrogado, conduzindo uma inquisição- sua totalidade podia durar dias; ia da
pena. 1 3 publicação do édito (anunciando a reali-

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zação do auto), passando pela procissão tauração da Inquisição, 1 7 o seu objetivo


da cruz verde (noite anterior ao ato), até principal continuava a ser o controle das
chegar a celebração do ato, que englo- heresias, que teve seu espectro amplia-
bava missas, a leitura da sentença, a do com as reformas protestantes. Mas
abjuração etc. De acordo com Francisco outros fatores concorrem para a perma-
Bethencourt, 15
auto da fé significa literal- nência dos tribunais. A função social da
mente “ato da fé”, o que quer dizer nes- Igreja é um fator essencial para a com-
sa época efeito moral e representação preensão daquele contexto de uma soci-
(teatral) da fé. Para Bethencourt, essa edade rigidamente hierarquizada, na qual
representação estaria situada no conjun- o clero é um dos estamentos ou ordens
to de manifestações do teatro religioso privilegiados. As relações Igreja-Estado
da península Ibérica, como os autos sa- são quase simbióticas.
cramentais, os autos da paixão , com a
A punição dos hereges não se restringia
particularidade de serem encenados não
à violência arbitrária dos inquisidores.
por atores, mas pelos próprios acusados
Parte significativa da pena recaía no con-
pelo tribunal eclesiástico.
fisco dos bens e na inabilitação dos her-
A única parte desse espetáculo que a deiros (descendentes ou ascendentes)
Igreja não produzia era a execução. O dos condenados. Através do estatuto das
direito canônico proibia os clérigos de inquisições, 1 8 é possível observar a arti-
aplicar a pena de morte. Essa responsa- culação dos tribunais eclesiásticos com
bilidade ficava a cargo da justiça secu- o aparelho de Estado, no qual os
lar, que acatava as resoluções do T ribu- inquisidores também participavam do
nal do Santo Ofício, executando a sen- poder. O apoio ao rei tor na-se mais cla-
tença. 1 6 Apesar de não produzir, a Igre- ro, definido e formal.
ja dirigia o ato final ao fazer com que
A violência explícita do sistema penal da
agentes inquisitoriais acompanhassem o
época, portanto, relaciona-se diretamen-
desfecho do processo e ao recomendar
te com as formas de controle social de
a pena. É conhecida a sua preferência
uma sociedade altamente hierarquizada,
pela execução na fogueira. A Igreja bus-
estruturada em estamentos: clero, nobre-
cava literalmente reproduzir a idéia de
za e povo. Os estados fundamentados no
que o pecador iria arder no fogo do in-
direito canônico 1 9 e no direito romano
ferno, pagando uma pena eter na.
estão em pleno processo de centraliza-
A existência da Inquisição e de todo o ção de poder, definindo sua relação com
aparato que a envolvia deve ser pensa- os súditos. Para isso, estará reforçando
da a partir da posição que a Igreja ocu- seu aparato jurídico administrativo que,
pava naquele momento, de modo espe- além de garantir o patrimônio régio, res-
cial nas monarquias ibéricas. Após a res- guardará o seu poder.

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R V O

Manter a ordem e a justiça era fundamen- reinado de Felipe II.


tal para o fortalecimento da soberania
A presença e o peso do direito canônico
do rei, que se fazia presente através da
emprestaram uma configuração distinta
estrutura hierárquica de jurisdições e
às monarquias ibéricas, onde os víncu-
alçadas. Criou-se toda uma legislação
los Igreja e Estado permanecerão fortifi-
procurando garantir a manutenção des-
cados durante um bom tempo. Desse
sa ordem, através de uma relação direta
modo, justiça secular e justiça eclesiás-
entre lei, poder/soberania e violência.
tica se articulam, lembrando que cada
Data dessa época o aparecimento dos
uma mantinha seus processos separada-
códigos legislativos que acompanham a
mente, como podemos observar no pri-
for mação e o fortalecimento das monar-
meiro parágrafo do Livro V das Ordena-
quias nacionais, dentre os quais um dos
ções Filipinas: “o conhecimento do cri-
primeiros será o português.
me de heresia pertence principalmente

Em Portugal, durante o reinado de d. aos juizes eclesiásticos”. A justiça vai ser

João I (1385-1433), foi iniciada uma re- feita em nome de Deus e do rei.

for ma legislativa que tinha por finalida- Cabia, portanto, ao rei manter a paz e a
de a sistematização das diversas leis justiça ou ainda, em outras palavras, o
existentes no reino. Era preciso harmo- direito de guerrear e de punir. Uma pas-
nizar os domínios entre os direitos sagem das Ordenações Filipinas
canônico, romano e nacional. Essa refor- exemplifica a posição do rei: “O rei é a
ma só foi concluída em 1446, ficando o lei animada sobre a terra e pode fazer a
corpo legislativo conhecido como Orde- lei e revogá-la quando vir que convém
nações Afonsinas, em homenagem à fazer assim”. A justiça, grosso modo , se
maioridade do rei Afonso V. restringia ao reconhecimento dos direi-
tos e aos castigos e punições; era um
Mais tarde, d. Manuel, empolgado com a
poder absoluto que podia dispor da vida
chegada da imprensa em Portugal e
e da morte, legado do direito romano.2 0
“exasperado” com a confusão de códi-
gos e coleção de leis posteriores às Or- As penas deveriam refletir o tamanho dos
denações Afonsinas , ordenou a elabora- delitos. Crime e castigo se ligavam pela
ção de uma nova legislação. Em 1514, forma e se aproximavam na atrocidade.
foi publicada a edição completa das Or- Essa idéia é partilhada pela Igreja, como
denações Manuelinas , mantendo a lógi- exemplifica essa frase de um manual da
c a d a a n t e r i o r, e m c i n c o v o l u m e s Inquisição: “aquele que violenta a lei
temáticos. No período da unificação dos será violentado por ela”. Para acompa-
reinos de Portugal e Espanha foi ela- nhar essa concepção foi criado um vas-
borado uma nova coleção, Ordena- to repertório de suplícios que ia dos açoi-
ções Filipinas , entrando em vigor no tes, passava pelo esquartejamento (an-

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tes ou depois da morte) até as inúmeras suas punições é narrado por um solda-
for mas à morte, dando origem à expres- do holandês que esteve no Brasil, no pe-
são “mil-mortes”. Podia-se “morrer por ríodo da invasão, e que enumera os cas-
isso” ou “por elo” (uma espécie de mor- tigos que vigoravam a bordo do navio Es-
te civil, o réu tornava-se infame, perdia perança :
os bens e o status, no caso de nobre,
a) Quando alguém blasfema, ou usa de
podendo ser degredado); “morrer por
grosseria linguagem indecorosa, é
isso morte natural” (envenenado, por
batido várias vezes de encontro ao
instrumentos de ferro ou fogo); “morte
mastro grande, de sorte não poder
natural na forca ou pelourinho” etc. 2 1
se sentar sem dor.

Porém, uma ressalva precisa ser feita. O


b) Aos que cometem faltas mais gra-
castigo não era igual para todos. Se a
ves, prendem, a pão e água, por dias
pena acompanhava a gravidade do deli-
e semanas, no beque do navio,
to, crescendo proporcionalmente, ela era
onde, quando o mar se agita em
amenizada de acordo com o status do
grandes vagas, ninguém pode ficar
infrator. As Ordenações Filipinas escla-
enxuto; é, assim por dizer, o cárce-
recem quem é passível de sofrer deter-
re de bordo.
minadas punições: “das pessoas que são
escusas de haver pena vil ” . Sob esse tí- c) Quando um soldado ou um mari-

tulo estão relacionadas profissões e no- nheiro saca, para outro, de punhal,
bres que não seriam penalizados com estilete ou faca, toma-se a dita arma
açoites, degredo, por razão de privilégio e com ela prega-se-lhe a mão no

ou linhagem: “os escudeiros dos prela- mastro grande, de modo que para
dos e dos fidalgos, os escudeiros a cava- livrá-la, tem de lascá-la.
lo, os moços da estribeira do rei ou da
d) O salto de verga consiste no seguin-
rainha, os príncipes e os infantes, os du-
te: ... ata-se o condenado com uma
ques, os marqueses, os prelados, os con-
roda em volta do corpo, pela qual é
des ou qualquer pessoa do Conselho
içado, mediante a roldana, à ponta
Real, e os pajens dos fidalgos”.
da grande verga; chegado àquela

As normas de conduta para as viagens horrível altura, deixam-no cair, de

em alto-mar e as punições nelas aplica- súbito, ao mar, o que se repete vá-

das mantinham o mesmo rigor das utili- rias vezes, e, se o padecente não

zadas em terra. Seguia-se a regulamen- conservar as per nas bem unidas,

tação real que condenava práticas como pode suceder-lhe grave dano corpo-

o jogo de cartas, a prostituição, leituras ral. Após esse suplício, colocam-no,

profanas, destacando-se as blasfêmias e assim todo molhado, junto ao gran-

pragas. Um exemplo dessas nor mas e de mastro, onde, primeiramente em

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R V O

nome de Deus e do direito, e por gente. Fica, evidente a gradação dos cas-
fim em nome da suprema autorida- tigos que aumentam conforme a gravi-
de do país, todos os oficiais e tripu- dade do delito; o sofrimento físico é
lantes lhe batem com uma corda estendido até a “pena última”, até a morte.
grossa, de forma que, por algum
Para além do horror das punições que
tempo, não se pode sentar.
esse ou qualquer outro caso possa de-
e) O severíssimo castigo de ser passa- m o n s t r a r, i n t e r e s s a r e g i s t r a r q u e a
do por baixo da quilha do navio, é hierarquização e estruturação das penas
assim posto em prática: amarram ao exploravam a resistência física à tortura
condenado uma longa corda, sus- e a capacidade de suportar a dor. O es-
pendendo-lhe ao corpo pesos de al- petáculo neste caso não se restringia à
guns quintais; prendem-lhe os bra- exibição dos castigos impostos; convida-
ços, com o chapéu embebido em va-se “todos os oficiais e tripulantes”
azeite diante da boca, para que pos- (item d) para participar da punição em
sa respirar debaixo d’água; mergu- nome de Deus, do direito e da suprema
lham-no assim no mar até a profun- autoridade do país.
didade de várias braças, e fazem-no
Nem todos que viveram aquela época tra-
passar por diversas vezes, por bai-
tavam daqueles métodos com tanta na-
xo da quilha do navio, conforme a
turalidade. Michel de Montaigne espan-
gravidade do delito. Este castigo é
tava-se com a crueldade dos castigos e
o que mais aproxima da pena últi-
com a violência de seu tempo, narrando
ma; se o padecente consegue man-
em seus Ensaios , no final do século XVI,
ter a respiração, muito bem; do con-
uma profusão de cenas de horror. Em
trário, perece.
Da crueldade , questiona os suplícios e
f) Finalmente, colocam um poste fu- os tormentos dos “atos de justiça”:
rado junto ao mastro e ali é estran-
Mal podia eu conceber, antes de o ver,
gulado o condenado, sendo o seu
que existem pessoas capazes de ma-
corpo lançado ao mar para repasto
tar pelo simples prazer de matar; pes-
dos peixes. 2 2
soas que esquartejam o próximo, in-
Outro tipo de punição consistia em aban- ventam engenhosos e desconhecidos
donar o condenado em lugar desabitado suplícios e novos gêneros de assassí-
sem recursos. A crueldade dos castigos nios, sem ser movidos nem pelo ódio
não é novidade, tampouco a naturalida- nem pela cobiça, no intuito único de
de com que é enumerada. Os castigos assistir ao espetáculo dos gestos, das
se prestavam para manter a disciplina contorções lamentáveis, dos gemidos,
interna, transformando, portanto, os con- dos gritos angustiados de um homem
denados em exemplos da autoridade vi- que agoniza entre torturas. 2 3

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Em seu conhecido ensaio “Dos canibais”, mecânica do poder que se queria abso-
mais que relativizar a idéia da selvage- luto, que precisava se afirmar através de
ria dos índios brasileiros, como os pin- manifestações de força física. Ou ainda,
tavam na Europa, Montaigne atacava a de acordo com Foucault: “um poder que
violência da sua sociedade e a perversi- se afirma como poder ar mado, e cujas
dade da estrutura social e política. A fi- funções de ordem não são inteiramente
gura dos canibais é recurso para o esta- desligadas das funções de guerra; de um
belecimento de uma reflexão sobre as poder que faz valer as regras e as obri-
práticas de uma sociedade que não en- gações como laços pessoais cuja ruptu-
xerga a sua própria crueldade, devida- ra constitui uma ofensa e exige uma vin-
mente institucionalizada: “não me pare- gança...” 2 5
ce excessivo julgar bárbaros tais atos de
Muito da idéia de vingança tem origem
crueldade, mas que o fato de condenar
na própria concepção judaico-cristã de
tais defeitos não nos leve à cegueira acer-
um deus vingador, de uma ira divina.
ca dos nossos”. 2 4
Blasfemar, por exemplo, significava um
Mas que poder era esse que precisava desvio contra o qual a Igreja e o Estado
lançar mão da tortura e do suplício? deviam, juntos, proteger a sociedade.
Foucault alertou para a função jurídico- Temia-se uma possível vingança de
política do suplício como pena justa, o Deus.2 6 Era preciso punir os
qual seria um cerimonial para reconstruir blasfemadores para que não atraíssem
a soberania lesada por um instante. Um sobre o mundo fome, pestes, tempesta-
crime não estava referido apenas à sua des (no caso dos navios) e tremores de
vítima imediata. Atacava diretamente o terra. O medo de uma punição divina
soberano ao desrespeitar a sua lei, tra- deveria ser equivalente ao medo provo-
zendo algum prejuízo ao reino, seja na cado pelo monarca através da aplicação
for ma de desordens, de mau exemplo: de suas penas.
“em toda a infração há um crimem
Na segunda metade do século XVIII, épo-
magestatis , e no menor dos criminosos
ca das Luzes, iniciou-se um processo de
um pequeno regicida”. O ritual das puni-
rejeição dos suplícios aplicados como
ções públicas teria como finalidade es-
pena justa. Filósofos e juristas manifes-
tabelecer a dissimetria entre o súdito que
taram repúdio contra aquelas formas de
ousou violar a lei e o soberano todo po-
punição. Denunciaram a barbárie e a
deroso em sua força. O castigo seria,
atrocidade de tais práticas, estabelecen-
portanto, um ritual político apresentado
do uma associação direta entre o uso
como uma “vingança pessoal e pública”.
daqueles métodos com uma “idade das
A proximidade entre o crime e o castigo, trevas”. Essa mudança pode ser sentida
na forma da atrocidade, fazia parte da no artigo Suplício, escrito por Louis de

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R V O

Jaucourt para a Encyclopédie, em 1765: lentos. Sentiu-se a necessidade de um


“a vastidão da imaginação humana em controle emocional e a adoção de uma
questões de barbárie e de crueldade é série de regras, convencionalmente cha-
um fenômeno inexplicável”. madas de etiqueta. O padrão de condu-
ta adotado nas cortes, a “cortesia”, apre-
A violência da tortura estava, portanto,
sentava-se como um refinamento, uma
ligada à or ganização das relações socio-
marca de distinção.
políticas e à própria estrutura do convi-
ver. As nor mas jurídicas deter minavam A partir do século XVI, a cortesia foi sen-
uma conduta exter na, voltada para a do substituída por um novo padrão defi-
manutenção da estrutura social. Uma nido como civilidade ( civilité ) . 27 Essas
questão essencial que nos aproxima um mudanças comportamentais acompanha-
pouco da mentalidade daquela época e ram a estruturação das monarquias na-
de seu entendimento é o autocontrole cionais. Nessa nova formação social e
das emoções, como aspecto do ser civi- política, o uso da força será restrito ao
lizado. rei e regulamentado. É a grande diferen-

Norbert Elias, em seu clássico O Proces- ça, uma vez que no momento anterior

so civilizador, apresentou uma socieda- não havia poder social punitivo. Na soci-

de em transição, onde comportamentos edade guerreira da Idade Média, o saque,

e costumes alteravam-se em função de a rapinagem e o assassinato eram práti-

uma reorganização do espaço e da pró- cas comuns. Ao se formar um monopó-

pria estrutura social. Elias percorre um lio da força física, criavam-se espaços

longo espaço de tempo, analisando a sociais pacificados, livres dos atos de

conformação da sociedade medieval e as violência. A tortura, o suplício e a humi-

modificações que essa sociedade se vê lhação do indivíduo se converteram em

obrigada a adotar em função da dinâmi- monopólio da autoridade, ficando sub-

ca política e econômica. Nos espaços metidas a regras e leis cada vez mais ri-

dispersos e descentralizados dos feudos, gorosas.

o exercício da força era privilégio de gru-


Ao longo dos séculos, o padrão do com-
pos guerreiros rivais. A violência era um
portamento humano foi mudando gradu-
fato diário e, de certo modo, útil. A guer-
almente numa direção específica. Sen-
ra fazia parte da vida.
tar-se à mesa, comer, ir para cama ou se
A transformação da ordem desses guer- envolver em conflitos hostis foram ga-
reiros, cavaleiros, em nobres cortesãos nhando outras for mas. Sentimentos
é parte significativa desse processo. As como vergonha e delicadeza alcançavam
reuniões realizadas na corte promoveram significados especiais. Contudo, a idéia
uma convivência social mais freqüente, de um movimento ainda inconcluso está
na qual não cabia comportamentos vio- exposta desde o título do livro Processo

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 79-94, jan/jun 2002 - pág.91


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civilizador . O ser civilizado ainda estava deram e tiveram consciência desse arti-
sendo construído, ainda estava em pro- fício. O conhecimento de si se verifica-
cesso. va na “forma refletida de sua relação com
os outros, com todos os outros”:
Enfim, essa sociedade que se depara
com o novo mundo não é uma for ma Esse mundo tão grande, que alguns am-

acabada (mas qual é a sociedade pronta pliam ainda, como as espécies de um


e estática?). É uma sociedade que se gênero, é o espelho em que nos deve-

questiona e que ainda não se conhece. mos mirar para nos conhecer mos de

O conhecimento daquela outra realida- maneira exata. Em suma, quero que


de, daquele outro mundo acabava por seja esse o livro do nosso aluno. A in-

ficar soterrado na reflexão de si próprio, finita diversidade dos costumes, seitas,

isto é, o que se escrevia se escrevia so- juízos, opiniões, leis ensina-nos a apre-
bre si, e não sobre o objeto observável. ciar sadiamente os nossos, a reconhe-

Nesse sentido, podemos pensar na aber- cer suas imperfeições e fraquezas, o

tura dos Ensaios , de Montaigne: “assim, que já não é pouco. 29


leitor, saiba que eu mesmo sou o con-
A recorrência à violência não era fruto
teúdo do meu livro”. Mas essa
de um poder fortalecido, mas sim de um
autoconsciência que acompanha o autor
poder frágil que encontrava na força, no
é exceção e não regra geral. A
arbítrio a sua sustentação. De um modo
autocrítica, o questionamento do mun-
geral, toda a cultura precisava ainda se
do que Montaigne executa ao longo dos
reconhecer para poder conhecer o outro.
Ensaios é levada aos extremos, “tudo é
Hoje é possível chegarmos a conclusão
trapaça, logro, aparência e artifício”. 28
de que a violência era parte integrante
Ao lado desta imagem de sociedade que
daquele tempo e era tão selvagem quan-
se formava, se estruturava em termos de
to a dos selvagens. Mas em algo elas se
ordem, disciplina, nor mas e valores,
diferenciavam. A violência institucionalizada
equilíbrio e paz, construía-se o seu re-
podia até ser inexplicável aos olhos do
verso. Procurava-se acentuar as caracte-
iluminista Louis de Jaucourt, acima citado.
rísticas desse outro mundo em estado
No entanto, como bem notou Foucault,
bruto, natural e primitivo, plasmado na
aquela violência não tinha nada de sel-
violência, desordenado, calcado nos sen-
vagem nem de irregular, uma vez que
timentos e emoções incontrolados, ple-
estava estabelecida a partir de regras
no de excessos.
bem definidas e afixadas por lei. A dife-
A reflexão que se iniciou naqueles pri- rença, portanto, entre a violência selva-
meiros encontros buscou, na maioria das gem e a civilizada estava contida na for-
vezes, enxergar apenas uma imagem in- ma da lei e de sua institucionalização; a vio-
vertida. Poucos, como Montaigne, enten- lência civilizada era regrada e fazia parte

pág.92, jan/jun 2002


R V O

de um sistema penal ao passo que a vio- vez que não estamos tão melhores as-
lência selvagem não estava gravada em sim. Do ponto onde estamos, podemos
lei e nem autorizada em papel. apenas perguntar se aquele processo ini-
Tratar da violência de um passado já tão ciado em uma Idade Média já foi conclu-
distante, sentindo um certo horror por ído. Será que já somos, realmente, civi-
aquelas práticas não nos consola, uma lizados?

N O T A S
1. Hannah Arendt, Da violência , Brasília, UnB, 1970.
2. Francisco José Calazans Falcon, “Tempos Modernos: a cultura humanista”, Tempos moder-
nos, ensaios de história cultural , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 23.
3. Pero Magalhães Gandavo, Tratado da província do Brasil , s.l., Instituto Nacional do Livro/
MEC, 1965, pp.177-179.
4. Idem, ibdem, p. 207.
5. Idem, ibdem, pp. 188-189.
6. Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil , Belo Horizonte, Itatiaia/ São Paulo, Edusp, 1980, p.
227.
7. Serafim Leite, Novas cartas jesuítas , pp. 156-2328.
8. Jean de Léry, op.cit. (Grifo nosso).
9. Cf. Natalie Zemon Davis, “Ritos da violência”, Cultura dos povos, sociedade e cultura no
início da França moderna , (Coleção Oficina da História), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990,
pp. 129-156.
10.Idem, ibdem, p. 156.
11.Michel Foucault, Vigiar e punir , Petrópolis, Vozes, 1997, p. 31.
12.Aqui estou estabelecendo uma relação direta com o momento anterior da própria igreja cató-
lica. Não é o caso de historiar as formas de torturas e suplícios utilizadas como penas que
sempre existiram. Basta mencionar a lei de Talião e a própria maneira que Cristo foi punido
pelos romanos. Convém lembrar que a legislação civil do início da Época Moderna tem muito
do direito romano.
13.Durante os interrogatórios, no duelo da quaestio , para arrancar a “verdade” eram utilizados
um arsenal de suplícios, chamados de armaria: quaestio per tormenta. Tor mentum designava
o instrumento de tortura: a cruz, o flagellum, a furca, numellae, as ingullae, a venatio etc.
Corrado Bologna, “Tortura” em Ruggiero Romano (dir.), Enciclopédia–Política, Lisboa, Einaudi/
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, v. 22, p. 354.
14.Cf. “Tortura”, Enciclopédia Einaudi, op. cit., v. 22.
15.Francisco Bethencourt, História das inquisições : Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX),

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 79-94, jan/jun 2002 - pág.93


A C E

São Paulo, Cia das Letras, 2000, p. 227.


16.Cf. “Dos hereges e apóstatas”, Ordenações Filipinas ( livro V), São Paulo, Cia das Letras,
1999.
17.Em 1478, o papa Sisto IV assina uma bula fundando uma nova inquisição na Espanha, que só
começaria a funcionar dois anos depois. Em Portugal, o estabelecimento da Inquisição data
de 1536.
18. Cf. cap. 8, “Estatutos” em Francisco Bethencourt, op. cit., pp. 290-334.
19.O direito canônico diz respeito à obediência ao papa e à Igreja, referindo-se às questões
espirituais e temporais.
20.A recuperação do direito romano vinha dos séculos XII e XIII, quando os doctores , ao elabo-
rar um sistema jurídico, basearam-se naquele direito e, paralelamente, a legislação canônica,
os glosadores e os comentadores ocuparam-se dos problemas teóricos relacionados ao em-
prego dos suplícios na quaestio . Cf. “Tortura” em Ruggiero Romano, Enciclopédia– Política,
op. cit., v. 22, p. 356.
21. Cf. Silvia H. Lara, “Introdução”, Ordenações Filipinas (livro V), op. cit., pp. 22-23.
22.Johann Gregor Aldenburgk, “Relação da conquista e perda da cidade de Salvador pelos holan-
deses em 1624-1625”, Revista dos Tribunais , v. 1, SP, Conselho Nacional de Pesquisa (Cole-
ção Brasiliensia Documenta), 1961, pp. 167-168.
23.Michel de Montaigne, “Da Crueldade”, Ensaios (Coleção Os Pensadores), São Paulo, Nova Cul-
tural, 1996, p. 367.
24. Idem, ibdem, “ Dos canibais” op. cit., p. 199.
25. Michel Foucault, op. cit., p. 48.
26.Cf. Jean Delumeau, “Uma civilização da blasfêmia”, História do medo no Ocidente , São Pau-
lo, Cia das Letras, 2001.
27.Norbert Elias desenvolve longamente os conceitos de cortesia e civilidade. No caso desse
último conceito, ele registra seu ponto de partida com a publicação do tratado De civilitate
morum puerilium (Da civilidade em criança) de Erasmo de Rotterdam, em 1530. Com o seu
tratado, Erasmo deu força a uma palavra muito antiga e comum, civilitas . Palavras correspon-
dentes surgiram em várias línguas: a francesa civilité, a inglesa civility, a italiana civilitá e a
alemã ziviliät . Cf. “O Processo civilizador”, Uma história dos costumes , v. 1, Rio de Janeiro,
Zahar, 1994.
28.J. Starobinski, Montaigne em movimento , São Paulo, Cia das Letras, 1992, p. 11.
29.Michel de Montaigne, “Da Educação das Crianças”, op.cit., v. 1, p. 158.

A B S T R A C T
This article reviews the penal system’s methods in a transitioning society not as moder n as
subsequently was classified. The Modern Age – in spite of all its cultural transformations, new
for ms of political, economic and social relations – was characterised by the use of extremely
violent punitive methods. Crime and punishment were both sides of the same coin, united by
atrocity.

pág.94, jan/jun 2002


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Adhemar Lourenço da Silva Jr


Jr..
Professor assistente do Departamento de História e Antropologia da Universidade
Federal de Pelotas e doutorando em História do Brasil pela PUC-RS

Os Sindicatos
na Idade da Pedra

I
ndependente das definições possí- “levante” foram utilizadas para se refe-
veis, o âmbito da violência não pode rir à greve, mesmo em jornais simpáti-
prescindir de incluir o confronto fí- cos ao movimento. O jornal governista
sico em situações não-lúdicas, como A Federação condenava a greve e clama-
ocorreu em março de 1917, durante a va por punição àqueles que ultrajaram
greve de trabalhadores das pedreiras e “a nossa sociedade até então virgem de
do calçamento (canteiros e calceteiros) semelhantes brutalidades”. 1
em Porto Alegre. Saturnino Sandoval ten-
tava convencer uma turma de calceteiros Porto Alegre não era “virgem” de violên-
a deixar o trabalho, quando decidiu ca- cias, pois padeiros eram famosos por
cetear Antonio Fabrete, xingando-o de ataques a fura-greves, espancamentos de
“carneiro sem-vergonha”. Sandoval fugiu homens e animais, tiroteios, incêndios
e, mais tarde, um grupo estimado em de carroças, explosões de for nos, enve-
mais de cem trabalhadores atacou a tur- nenamento de farinha etc., e, em janei-
ma de trinta calceteiros, com um saldo ro de 1917, tecelões grevistas cobriram
de vários feridos e quatro baleados, um de cacetadas o mestre-das-oficinas. Mas
dos quais morreu. O homicídio foi des- esta era a primeira vez, salvo engano,
taque na imprensa, e expressões como em que ocorria um homicídio em confli-
“movimento revolucionário”, “complô”, tos de trabalho. A greve dos calceteiros

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 95-114, jan/jun 2002 - pág.95


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foi abordada mais recentemente por um as diferentes capacidades individuais


autor que, ecoando os jor nais, avaliou desses trabalhadores de ofício. O custo
que a historiografia tende a “mascarar o se elevaria mais quando proprietários de
caráter agressivo e irredutível do anarco- pedreiras, sabendo da necessidade do
sindicalismo, (...) [e] obscurece a violên- poder público e da construção civil par-
cia exercida pelos trabalhadores ticular, não queriam (ou não podiam, de-
ideologizados”. Concordo apenas em par- vido a baixos capitais, tecnologia ou
te com o autor. Com efeito, historiado- capacitação da mão-de-obra) aumentar a
res do trabalho costumam apresentar oferta de pedras irregulares, paralelepí-
militantes anarquistas como intelectuais pedos e lajes no mercado porto-
pacíficos, cuja eventual agressividade alegrense. A carência da mão-de-obra
verbal não se transporia para o confron- especializada era crônica, a julgar pela
to físico, como alimentamos a expectati- repetição das exigências, trinta anos de-
va de que intelectuais de hoje não o fa- pois. 3 Em 1913, quando foi iniciada a
çam. Dessa forma, a violência sindical – construção de esgotos, a Intendência
e mesmo a criminalidade típica dos anar- Municipal de Porto Alegre aproveitou
quistas expropriadores – desapareceria para trocar o calçamento das ruas em
na historiografia brasileira. Minha grande escala, pois a obra implicava “o
discordância com o autor não é sobre a revolvimento do solo”. Aberta a concor-
violência do caso, mas sobre seu cará- rência, estimando o custo da obra em
ter anarquista: demonstrarei aqui que mais de 5.000 contos de réis, várias
esse foi um caso no qual a violência sin- empresas apresentaram propostas que
dical foi um procedimento racional de ultrapassavam o valor ou que propunham
resolução de conflitos de classe. 2
modificações na técnica de pavimenta-
ção para se adequar à estimativa. Ape-
Há poucos registros dos ofícios tradicio- nas a Empresa do Calçamento apresen-
nais de canteiros e calceteiros em Porto tou, para todos os tipos de pavimenta-
Alegre antes de 1915, quando foi inicia- ção, preços 10% inferiores. A experiên-
da a pavimentação de 515.568m 2 de cia da empresa carioca em obras de São
ruas. O gover no municipal republicano Paulo e Salvador a fez ciente que o cus-
já tentara calçar ruas na década de 1890, to da execução do calçamento decorria,
para evitar os flagelos decorrentes do em parte, da remuneração da mão-de-
ciclo das estações: “o lodo no tempo do obra, que oscilava entre 30% e 49% das
inverno e a poeira no tempo do verão”. despesas totais. A mesma empresa ob-
Mas o serviço, executado por contratos teve a concessão para a exploração de
individuais com os poucos calceteiros, pedreiras e ainda ganhou a concorrên-
corria o risco de custar muito por um cia para a construção de 600m do cais
calçamento não padronizado, refletindo do porto de Porto Alegre, em 1916.

pág.96, jan/jun 2002


R V O

Canteiros e calceteiros não tinham o rariam em qualquer lugar onde o ferro


mesmo ofício e era raro integrarem o se encontrasse com a pedra, reduzindo,
mesmo sindicato. O trabalho em pedrei- assim, o tempo de ociosidade.4
ras era “duro e pesado”, lembra um
memorialista. Capatazes coordenavam A Empresa do Calçamento ganhou as
turmas nas pedreiras, onde trabalhavam concorrências em Porto Alegre ao ofere-
canteiros propriamente ditos, cer um custo inferior da mão-de-obra,
encunhadores e mineiros (trabalhando pois não aproveitaria apenas os trabalha-
com explosivos). Diferentes técnicas de dores especializados em cantaria e pavi-
pavimentação e diferentes habilidades mentação que moravam na cidade, man-
são requeridas dos calceteiros. Do obje- dando buscá-los alhures. Intermediários
tivo da pavimentação dependerá o ma- na colocação de mão-de-obra no Rio de
terial (granito, basalto, borracha, madei- Janeiro, chamados de “agentes”, ofere-
ra etc.), bem como a for ma das “peças” ciam aos trabalhadores a jornada de oito
e sua disposição (disposição padroniza- horas e uma remuneração satisfatória.
da com paralelepípedos retangulares, Nessas condições, era fácil obter mão-
com pedras irregulares ou ainda o de-obra, não só devido à “crise por que
granituilo , com cubos basálticos dispos- atravessa o mundo proletário” (desem-
tos em círculo), pois cada técnica visa prego e baixos salários), como também
obter deter minado tipo de atrito, que é porque o deslocamento de uma cidade à
tanto menor quanto menores forem as outra era pago pelo Ministério da Agri-
irregularidades das “peças” e menor for cultura. Mesmo com vantajosos estímu-
o número de “juntas” (espaço entre as los para aumentar a oferta de mão-de-
“peças”). Embora os padrões atuais de obra, seria difícil verificar o êxito das
pavimentação procurem menor atrito e medidas, se não houvesse uma constan-
trepidação – obtido com o revestimento te mobilidade desses trabalhadores. É
asfáltico –, não se pode esquecer que até surpreendente a rotineira migração de
pelo menos no ano de 1929 circulavam trabalhadores em pedra, auxiliada por
em Porto Alegre mais carroças que auto- uma rede de obtenção de mão-de-obra
móveis e que um revestimento muito liso que extrapola o município ou as regiões
inviabilizaria a circulação de animais fer- próximas. O trabalhador exerce o ofício
rados em ladeiras. Nas pedreiras e no continuamente, mesmo que tenha que se
calçamento ainda havia duas “classes transladar de uma cidade a outra, em
anexas”: os cavouqueiros (ou busca de melhores salários, condições
“socadores”) trabalhavam na extração de de trabalho ou simplesmente emprego.
pedras e no preparo do terreno para pa- Dentre os 78 trabalhadores com nacio-
vimentação; os ferreiros trabalhavam no nalidades conhecidas (para uma estima-
“reparo da[s] ferramenta[s]” e as repa- tiva total de seiscentos em Porto Alegre

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 95-114, jan/jun 2002 - pág.97


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na época), 69,23% haviam nascido em res das “canteiras do Minuano” (Uruguai)


Portugal e Espanha, o que não era o pa- que rumaram para Buenos Aires em
drão entre os trabalhadores urbanos no 1917, ou como ameaçavam fazer os can-
Rio Grande do Sul da época. Pode-se teiros de Piriápolis (Uruguai), meses an-
supor, ainda que os dados não per mitam tes. O início do asfaltamento em Monte-
uma conclusão peremptória, que os sol- vidéu teria levado cerca de 80% da cate-
teiros migrassem mais facilmente, pois goria ao desemprego: “os canteiros tive-
54% dos rio-grandenses da amostra eram ram que emigrar ou dedicar-se a outros
casados e 61% dos não-rio-grandenses trabalhos”. Lembro que os marmoristas
eram solteiros. O calceteiro português (outro ofício ligado a pedras) iniciadores
Delfino dos Santos há 11 anos trabalha- da greve geral de 1906 em Porto Alegre,
va em diversas cidades do Brasil e pro- acabaram “embarcando para o Rio de
vinha do Rio de Janeiro “com o fim de Janeiro em busca de trabalho”,
empregar-se no calçamento desta cida- inconformados com a jornada de nove
de [Porto Alegre] o que logo conseguiu”. horas quando sua reivindicação era de
O ferreiro espanhol Severino Gomes, há oito. 5
4 anos no Brasil, já trabalhara em San- A rede de obtenção de mão-de-obra en-
tos, São Paulo e Rio Negro (Paraná) an- volvia agentes em diferentes cidades,
tes de vir a Porto Alegre. O oleiro espa- dentre as quais, como já mencionado, o
nhol Longuiño Monumento provinha de Rio de Janeiro. Mas não é preciso supor
Pelotas (Rio Grande do Sul), onde já tra- que a rede se restringisse aos limites do
balhava em pedreiras. O canteiro espa- Estado Nacional, porque a vinda do tra-
nhol Daniel Quintas, desgostoso após a balhador europeu para o Novo Mundo é
greve, pretendia ir-se a Buenos Aires. para “fazer a América” e não especifica-
Felipe Prieto, secretário-geral, em 1917, mente o Brasil, a Argentina ou o Uruguai,
do Sindicato dos Canteiros e Classes sendo possível encontrar “agentes” em
Anexas de Porto Alegre encontra-se no diferentes cidades. A irrupção de uma
final de 1918 em Livramento (na frontei- greve de trabalhadores em pedra, em
ra com o Uruguai), onde lidera uma gre- determinado local, não raro vinha acom-
ve no Frigorífico Ar mour e, logo após, panhada da ação apressada de “agentes”
aparece como membro da Comissão Ad- em recrutar novos trabalhadores em ou-
ministrativa do Sindicato de Canteiros tras cidades. Fura-greves provenientes de
em Maldonado (Uruguai). A migração Buenos Aires ocuparam postos em Paso
ocorria sempre que o mercado de traba- del Molino (Uruguai) em 1915, fenôme-
lho oferecia melhores oportunidades no também documentado em Durazno,
alhures. Quando derrotados em uma gre- em 1919 e em Tandil (Argentina) em se-
ve, os trabalhadores optavam por migrar, tembro de 1913. Interessante foi o ocor-
como os cento e cinqüenta trabalhado- rido nas pedreiras de Capão do Leão, no

pág.98, jan/jun 2002


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Rio Grande do Sul: trabalhadores contra- dade algumas vezes invisíveis ao seu
tados na Argentina souberam que ocu- controle. Os três fenômenos ocorrem em
pariam as vagas de recentes demitidos Porto Alegre (1916 e 1917), Cotia e Ri-
por ocasião de uma greve, “e partiram beirão Pires (São Paulo), em Montevidéu
no mesmo vapor que os trouxera”. 6
As (1901) e na Argentina, em Tandil (1908-
migrações do Velho para o Novo Mundo, 1909), Los Pinos e Balcarce (1913). Al-
comuns na virada do século, assumiri- guns calceteiros habitavam em Porto Ale-
am um diferente sentido para os traba- gre, faziam refeições e sesteavam em um
lhadores em pedra: ao invés de simples- acampamento na zona urbana. Também
mente optarem pela inserção no mer- em Pelotas havia “pequena[s] casa[s] de
cado de trabalho brasileiro ou portu- madeira” para os trabalhadores das pe-
guês, por exemplo, o deslocamento dreiras de Capão do Leão. Na Colônia
transoceânico resultaria no alargamento Africana, em Porto Alegre, diversos tra-
de uma rede de obtenção de mão-de-obra balhadores em pedra foram detidos em
em nível global. Dizendo-se de outra for- batidas nos restaurantes durante a gre-
ma, a percepção do mercado de traba- ve de março de 1917, tendo 26 deles,
lho por canteiros e calceteiros não era entre grevistas e não-grevistas, declara-
local ou nacional, mas constituída por do morar no bairro. Em uma única casa
um espaço amplo e descontínuo, envol- foram presas 17 pessoas, e outras 15 o
vendo diversas cidades da América do seriam em um restaurante do bairro. O
Sul e mesmo da Península Ibérica. As- depoimento de José Antas confirma a
sim, ao contrário de observações gené- convivência em “restaurantes” (possivel-
ricas sobre a mobilidade geográfica ser mente não eram mais do que bodegas
um fator de retardamento no desenvol- com comida), pois, embora trabalhasse
vimento da consciência de classe, o sú- “por conta própria” em uma pedreira da
bito aumento na demanda de mão-de- Colônia Africana, conhecia “apenas de
obra em determinada região gerava uma vista” os líderes da greve. Além dos res-
situação propícia para a rápida organi- taurantes, era na Colônia Africana que
zação dos trabalhadores recém-chega- os trabalhadores mantinham o clube de
dos: de um lado, chegavam “sem dinhei- futebol e, segundo corria, escondiam
ro, sem relações” e, de outro, comparti- “ar mas Winchester de 15 tiros e três
lhavam rapidamente da convivência não bombas de dinamite” durante a greve. 7
restrita apenas ao local de trabalho. Ao A estreita convivência era acentuada pela
for necer habitações individuais ou cole- tentativa de manter incólumes certos la-
tivas, prover alimentação também cole- ços frente à constante migração, levan-
tiva ou remunerando em vales só do parentes a tomarem os mesmos ofíci-
descontáveis em deter minados lugares, os e rumos. Ao longo do processo (ver
o patronato criava espaços de sociabili- notas) são citados os irmãos que traba-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 95-114, jan/jun 2002 - pág.99


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lhavam e moravam juntos, Félix e vemente dos primeiros dois fatores para
Dorothéu Rivera; Feliciano, José e Fran- nos determos mais detalhadamente no
cisco Sales; Luís e Fer nandes Peralvo; terceiro.
Jaime e Daniel Quintas. Anos antes, a
reunião para tor nar uma seção sindical É claro que muitos dos conflitos de tra-
entre canteiros do subúrbio contou com balho envolviam a imposição ao
a presença de Gustavo e Guilher me patronato do closed shop . A greve de
Crüne, Sílvio, Emenegildo e Júlio Soligo, março de 1917 em Porto Alegre também
além de Luís e João Maestero. O sobre- o foi, quando a primeira reivindicação
nome de quatro fura-greves de Ribeirão era a demissão do capataz Rivera e seu
Pires, em 1913, era Muselli, e de dois irmão. Já em setembro do ano anterior,
grevistas em Capão do Leão, em 1925, as categorias venceram greve quando
eram Fracassi. Por não comparecerem ao reivindicavam, entre outras coisas, a
trabalho no 1 de maio de 1908, no Rio
o
readmissão de demitidos e “não poder a
de Janeiro, o canteiro M. Barbosa e seu empresa despedir operário sem motivos
irmão foram demitidos. Também no Uru- justificado”. Chega a ser cansativo
guai se verifica esse fenômeno: em La inventariar os conflitos de trabalho rela-
Paz trabalhava o capataz Domingo cionados à imposição do closed shop : a
Galichi junto com dois filhos, o mesmo Sociedade Regeneradora de Canteiros de
ocorrendo em Piriápolis, com respeito a Mútuo Melhoramento de Montevidéu o
Batista Padiñoli e seu filho. 8 exigia do patronato, já em 1895. O
descumprimento da medida pelo propri-
De um lado, a concentração rápida de etário das “canteiras El Minuano” (Uru-
trabalhadores especializados e, de outro, guai) deflagrou uma greve (derrotada) de
a migração constante dissolvendo laços oito meses. Na Argentina, a greve de
solidários: como constituir um sindica- 1908-1909 em Tandil obteve a reivindi-
to? Por padrão, os sindicatos das cate- cação, que foi violada pelo patronato em
gorias se empenhavam no controle da 1913. 9 Mais interessantes que as reivin-
oferta de mão-de-obra nos locais ( closed dicações são as eventuais atitudes do
shop ), possível na confluência de três patronato, que cria associações sob seu
fatores: anuência patronal, rede de in- controle. Um dos temas que os militan-
for mações semelhante à dos “agentes” tes argentinos enfrentaram no congres-
e disciplina. A estratégia racional de ad- so de unificação de centrais sindicais em
ministração da violência em meio a con- 1914 era o estreito contato que a Socie-
flitos de trabalho se relaciona à discipli- dade de Canteiros de Montevidéu manti-
na sindical que, entre canteiros e nha com a Sociedade de Canteiros de
calceteiros, era mais provável se bem Tandil, organização acusada de patronal
manejada a migração. T rataremos bre- e rival da União Operária das Pedreiras

pág.100, jan/jun 2002


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de Tandil. Anos mais tarde, em Tandil, o O patronato se interessa por criar asso-
patronato criaria, com o mesmo objeti- ciações e os sindicatos são capazes de
vo, uma certa Sociedade de Trabalho Li- impor suas condições quando ambos são
vre. 10
Mesmo que o sindicato não tives- afetados – e pretendem interferir – na
se orientação patronal, havia um motivo oferta de mão-de-obra nos locais. Ambas
para os patrões reconhecerem o closed associações concorrem, na verdade, com
shop : o “agente” é pago para obter o os “agentes” recrutadores, mas só o po-
maior número de migrantes, mas não se dem fazer se mantêm redes de relações
responsabiliza pela qualidade do traba- com o conjunto de associados (ou “agen-
lho efetuado. Ignora-se a existência de tes”) em outros locais. No que tange aos
rituais instaurando a condição de “ofici- sindicatos, o trabalhador migrante deve-
al” e que, portanto, poderiam dar algu- ria levar consigo um certificado de asso-
ma segurança ao patronato sobre a qua- ciação ao sindicato da cidade de origem.
lidade do trabalho efetuado, mas, apa- A prática transcendia os limites continen-
rentemente, só os oficiais eram sindica- tais da América do Sul, como se vê pe-
lizados em Porto Alegre, o que José los contatos entre os canteiros do Porto,
Fer nandes considerava natural: “sendo Matozinhos e Leça (em Portugal) e os
servente, não é sócio de sociedade algu- colegas do Rio: “aqueles que compare-
ma”. No caso da Empresa do Calçamen- çam sem o competente certificado, pe-
to em Porto Alegre, que responderia pe- dimos não reconhecê-los como operári-
rante o poder público pela qualidade dos os, criando-lhes embaraços para que sin-
paralelepípedos e do calçamento, era tam a necessidade de agremiar-se.” O
importante confiar ao sindicato parte do “passe” ou “passo” deve ser bastante se-
controle sobre a qualidade do trabalho. melhante nos vários lugares, a julgar pela
Foi o que ocorreu no caso dos 11 quase coincidência dos textos e das re-
calceteiros inicialmente demitidos em ferências: “Os saudamos como de cos-
setembro de 1916, quando foi acorda- tume, e recomendamos os portadores
do, depois da greve, que, se o sindicato [dos certificados] pelo comportamento a
avaliasse que de fato produziam pouco respeito do movimento. Pedimos que
(como dizia a empresa), concordaria com lhes seja dada a proteção que merecem,
a redução salarial. Também na Argenti- assim como faria este comitê com os que
na, uma greve em La Plata durante o ano se apresentarem da mesma forma.” 12
de 1919 reivindicava a co-participação
do sindicato em avaliar a qualidade do Ao apresentar brevemente os dois fato-
trabalho executado, assegurando ainda res (anuência patronal e rede de infor-
que este sindicato reconheceria como mações semelhante a dos “agentes”) já
empregador apenas o patrão contra o indiquei alguns elementos do terceiro, a
qual, naquele momento, se opunha. 11 disciplina sindical. No caso do closed

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shop , a associação ao sindicato é com- permito continuar com a disciplina sin-


pulsória, pois é ele que tenta adminis- dical. Além de ser compulsória a associ-
trar a ordem das admissões ao trabalho. ação, os estatutos do sindicato em Porto
Quando o patronato resiste ao monopó- Alegre (artigos 4 e 24) previam castigos
lio sindical, nem sempre a resposta dos a quem não comparecesse às assembléi-
trabalhadores é a da violência física. Na as da categoria. Também o sindicato de
pedreira municipal de Porto Alegre, um Paso del Molino impunha multas a quem
trabalhador se apresentou ao capataz faltasse “sem causa justificada (...) a
com um cartão do diretor. Mal começou duas assembléias”, medida que foi toma-
a trabalhar, os demais canteiros prorrom- da contra a irresponsabilidade dos jo-
peram em “hostilidades” que fizeram vens, “vergonha da seção”. 15 O controle
José Grana reclamar ao capataz. Em sobre a migração, qualidade do trabalho,
meio ao bate-boca de greve, um cantei- direito de admitir e demitir, e de se filiar
ro teria declarado que o cartão “serviria ao sindicato era exercido, em Porto Ale-
para outro fim” que o “decoro” do dire- gre, por um cargo administrativo previs-
tor da pedreira não o per mitia dizer, mas to nos estatutos denominado “delegado”.
que outros o disseram: “o cartão dele só Ao cargo competiria representar a cate-
serve para limpar a bunda”. 13
Embora goria em cada “pedreira ou oficina”, as-
com termos já publicáveis, não menos sociar os trabalhadores ao sindicato,
agressiva é a linguagem de um panfleto cobrar mensalidades, zelar pelos interes-
de boicote à pedreira de Rodolpho River, ses dos associados, obrigar o patronato
em Porto Alegre. Homens como ele são a pagar pontualmente, autorizar a para-
qualificados, em uma única página im- lisação do trabalho (em caso de greve) e
pressa, de “indignos”, “repugnantes”, decidir pela admissão de novos trabalha-
“répteis venenosos”, “impregnados de dores em cada pedreira, turma ou ofici-
uma tara moral em tal grau pervertida”, na. É por meio do delegado que o sindi-
dotado de “garras de abutre insaciáveis”, cato se contrapunha à intermediação da
“corruptos de alma”, “pervertidos de sen- mão-de-obra por parte dos “agentes” de
timento”, “tiranetes de feia e triste figu- diferentes cidades. Assim, o sindicato
ra”, cuja “única preocupação (...) é o vil não é, necessariamente, uma entidade
metal”, “hipócritas”, “sugadores de san- externa à categoria: é pelo sindicato que
gue”, “pobres diabos ressuscitados”, “de- passa a própria possibilidade de obter-
generados”. O próprio River seria “desu- se emprego por esses trabalhadores em
mano”, “mesquinho e miserável”, de constante migração. E os estatutos pre-
“péssimo e mesquinho proceder”, “ma- vêem funções efetivamente exercidas,
léfica figura humana”, cuja história é “mais como se vê pelos depoimentos do fer-
negra que um monte de tormenta”. 14
reiro Firmino Lopes, que pagava 1$000rs
Ainda volto a Rodolpho River, mas me recolhidos mensalmente pelo delegado

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da pedreira onde trabalhava, ou de An- te ia àquela porque não se queria envol-


tônio Pires que “deixou de pagar [e] foi ver em questões”. Já Albino Batista,
excluído do sindicato”. A base da cate- “mesmo sendo sócio do sindicato, não
goria não se refere aos delegados por comparecia à sede por não dar-lhe apre-
esse nome, mas por outros que atestam ço.” O canteiro Joaquim Pereira de Je-
melhor a percepção do papel e legitimi- sus declarou “que assistiu ao meeting
dade do sindicato e de seus cargos ad- realizado, simplesmente como um ho-
ministrativos. Ao serem interrogados so- mem do público, não se imbuindo no que
bre o ato de participar na greve, os tra- disseram os oradores”. Por que tão pou-
balhadores em pedra tomavam a orien- cos se “envolviam em questões”, se to-
tação do sindicato como uma ordem vá- dos os oficiais eram sindicalizados, con-
lida, transmitida por colegas que estão forme consta em diversos depoimentos?
no exercício impessoal de cargos da en- Isso ocorria não só por causa do closed
tidade. Manuel Dias e seus colegas “to- shop (e a sindicalização compulsória),
maram parte na greve devido à ordem mas também, segundo o depoimento de
dos chefes do movimento nas pedreiras”. Alfredo Ferreira, “para não ser malvisto
O calceteiro Fernandes Peralvo, irmão do entre os seus colegas de arte”.16
capataz Luís, “foi obrigado a acompanhar
a greve, ordenada pelo sindicato, por te- Depoimentos em processos criminais
rem todos levantados [sic] o trabalho”. não são reflexo da realidade, e o grau
Outro depoente, dando conta da visita de impessoalidade na referência aos de-
de uma comissão às pedreiras, declarou legados – e ao próprio sindicato – pode-
“que obedecendo aos mesmos que eram ria ser condicionado pelo fato de esta-
dirigentes, [os canteiros] não trabalha- rem detidos a maior parte dos canteiros
ram”. Também Luís Teixeira e seus cole- e calceteiros que eram citados na docu-
gas “pararam o trabalho por ordem do mentação consultada. Contudo, à expec-
sindicato”. A expressão chave para o tipo tativa de que os depoentes digam à polí-
de relacionamento que a base mantinha cia não conhecer ninguém e “não se en-
para com o sindicato é “envolver-se em volver”, se contrapõem o destemor em
questões/em greves”. O canteiro Alfredo se declarar sócio do sindicato, acresci-
Lages disse que “na pedreira os operári- do do relato do ocorrido no encontro de
os pouco se envolvem em questões do uma vítima com um dos agressores. Fran-
sindicato”, por causa da distância que cisco Sales e seu irmão, ambos serven-
separava a sede, “na cidade”, da pedrei- tes e fura-greves, não eram sindicaliza-
ra da Serraria, por exemplo, viagem que dos e foram ambos feridos no ataque de
duraria “de quatro a cinco horas”. Tam- 19 de março de 1917, sendo que um
bém o ferreiro Severino Gomes “é sócio deles chegou a depor no hospital. Heitor
da Federação Operária, porém raramen- Guimarães dos Santos participara da tur-

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ba pela manhã, fugira após o ataque sem mos cumprir a tabela [de salários] em-
voltar à sede do sindicato, e pela tarde bora para isso seja preciso empregar a
soubera da morte do calceteiro Luís da violência.” No decorrer dessa mesma gre-
Silva, quando encontrou um dos Sales. ve houve alguns “traidores” (expressão
Este, ao contrário de uma previsível vin- bastante freqüente) que logo ficaram
gança, teria compreendido a “sem vontade de trabalhar, tal o susto
impessoalidade do ataque violento pela que levaram”. 18
manhã, advertindo o agressor: “é melhor
você não trabalhar porque você pode to- Mas nem sempre o confronto físico é uti-
mar uma camaçada de pau (...) [do se- lizado como punição aos fura-greves,
cretário do sindicato, que estava] escon- porque os próprios sindicatos criam mei-
dido e armado de pau com o fim de dar os de escar mentar os reticentes. Mais
no depoente”. 17 vergonhoso do que não entrar em greve
parecia ser fazê-lo após tê-la aprovado
Após o decreto de uma greve ou boicote em assembléia. Uma extensa nota pro-
a uma pedreira, os refratários à determi- veniente de La Paz (Uruguai),
nação do sindicato podem sofrer conse- pretensamente destinada a “justificar” a
qüências, que, se chegam ao confronto atitude tomada por três fura-greves, pro-
físico, são melhor documentadas. Em cura antes puni-los pela ridicularização
agosto de 1901, ocorreu uma “batalha e difamação. O primeiro, Francisco
campal” entre os operários da “canteira Bataglioti, era acusado de ser um can-
de Teja” (que produzia pedras para a teiro incompetente, pois era “incapaz de
construção do porto de Montevidéu) e a ganhar a vida”, a não ser se fazendo de
polícia, que protegia fura-greves. Quan- “rufião dos patrões”. Já a noiva de
do da greve generalizada de 1913 em Henrique Trapolini, além de surrá-lo com
Puerto Sauce (Colônia, Uruguai), um po- freqüência, tomava-lhe todo o dinheiro
licial a cavalo quis prender um canteiro que ganhava. Continua a nota: “... quan-
grevista. O filho de um dos envolvidos do começou a greve, voltou para casa, e
contou que “um paralelepípedo se encon- a mulher, ignorando o que se passava, e
trava perto, e quando o outro [policial] sem per guntar-lhe, lhe deu uma sova
pegou o revólver, meu pai arremessou a soberana, prometendo-lhe outra no dia
pedra e afundou-lhe o osso parietal”. seguinte se não fosse trabalhar. Isto é o
Nesses ataques a fura-greves, diversas que dizem as más línguas”. Se Trapolini
vezes são invocadas expressões envol- já se submetia (suprema infâmia!) à sua
vendo a honra do ofício. Em abril de noiva, o que dizer de Amadeu Macchi,
1909, os canteiros do Rio de Janeiro rei- “que em tempo normal se vê condenado
vindicaram aumento salarial, permanentemente a cozinhar talharim”,
conclamando: “chega de covardia! Faça- prato preferido de sua esposa que, du-

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rante a greve, fê-lo ainda lavar os pra- recusa ao consumo, o uso do boicote di-
tos. Cansado da tarefa, Amadeu preferiu zia normalmente respeito à proibição de
voltar ao trabalho. 19
Os dois últimos se empregarem trabalhadores nas pedrei-
exemplos deixam explícito o teor da ras acometidas pela campanha. A primei-
ridicularização corrente entre os traba- ra forma também existiu, como quando
lhadores em pedra, que é o da falta de empresas de calçamento de Buenos Aires
hombridade, mais freqüentemente refe- foram avisadas pelo sindicato local que
rida pelo termo “carneiro”. Sabe-se que deveriam recusar as pedras do Capão do
o termo era usado no Rio de Janeiro e Leão, no Rio Grande do Sul, onde havia
em Porto Alegre, mas o Uruguai é fértil greve. Os boicotes a empregadores tam-
em expressões derivadas, desde o ver- bém poderiam se revestir de confronto
bo carnerear , até outros substantivos e físico, quanto mais porque os trabalha-
verbos que ampliam a ridicularização: dores admitidos certamente não foram
pastorear , borrego , lanudo , guanpudo , orientados a fazê-lo pela associação sin-
aos quais se fazem ameaças de “romper- dical. Assim, os canteiros de Maldonado
lhes os cor nos” e pô-los em “remate pú- (Uruguai), boicotando Pedro Antônio
blico”. 20
Mas os sindicatos também apli- Schiavoni, partiram quase todos para
cam penas maiores que o escárnio. Em Montevidéu: os que ficaram na cidade
1909, no Rio de Janeiro, “alguns [car- vigiariam a pedreira para impedir a pre-
neiros] foram condenados a ficar para- sença de “car neiros”. Não apareceram
dos um tempo deter minado e vir à sede “carneiros” em Maldonado, mas o que
todas as noites para assinar os seus no- aconteceria se para lá migrassem? A pos-
mes, isto durante um lapso de tempo que sível resposta pode ser encontrada no
varia entre trinta e noventa dias”. No relato, em tom de epopéia, sobre o ocor-
Uruguai, o “car neiro” Donato Sangiovani rido em Santos, em 1913:22
teve de pagar ao sindicato uma multa
Foi então que os operários todos se re-
equivalente à sua remuneração durante
voltaram e resolveram fazer valer a sua
o período de greve, além de se subme-
dignidade de homens conscientes e
ter a uma suspensão de um mês, isto é,
respeitadores de sua causa, e em uma
não poderia trabalhar. E em São Paulo,
massa, compacta desfilaram em dire-
a União dos Canteiros também julgava
ção à pedreira, onde estavam os
sócios e impunha multas, em 1917. 21
crumiros, e fizeram uso da ação dire-
ta, fizeram evacuar a pedreira.
Pelo fato dos trabalhadores e das pedras
circularem, tão ou mais importante que Como os traidores resistissem à

as greves são os boicotes, que nor mal- intimação dos camaradas, estes avan-
mente resultam de algum insucesso ocor- çaram e foram cumprindo o seu dever,

rido nelas. Longe de pacíficas for mas de do que resultou sair alguns crumiros

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feridos e estropiados, que miseravel- tos dos mestres ou empreiteiros a seus


mente pediam misericórdia. associados.

Nenhuma conduta violenta parece ter Mas não é apenas protesto contra maus-
resultado do boicote a pedreira de tratos, mas o uso de um meio freqüente
Rodolpho River, em Porto Alegre, mas o entre os membros das categorias para a
dano físico a esses trabalhadores não era resolução de seus problemas. O papel
restrito aos acidentes de trabalho. A gre- do sindicato é claramente o de discipli-
ve de março de 1917, da qual resultaria nar a administração do confronto físico,
o processo, originou-se de uma briga en- e utilizar esse meio quando julgado efi-
tre dois calceteiros de uma turma e da ciente. Uma pequena greve em uma úni-
intervenção do capataz, ir mão de um ca turma onde um capataz ameaçou de
deles, ameaçando o terceiro com uma faca um calceteiro por questões pesso-
faca. Manuel Domingues residia no Ho- ais: esse pequeno conflito de trabalho
tel dos Viajantes, onde também morava se torna um problema geral das catego-
Isidro Vicente, líder operário em Porto rias quando a comissão que tentava
Alegre. Não tendo o primeiro entrado em readmitir o ameaçado teve como respos-
greve em março de 1917, o segundo tor- ta do engenheiro-chefe da obra em Por-
nou-se “seu desafeto”. Pelo menos dois to Alegre o locaute nas pedreiras. A par-
casos de ferimentos (um voluntário e tir daí, o sindicato assume a negociação
outro acidental) com armas de fogo por- e exige que se entreguem vários impli-
tadas por trabalhadores durante o servi- cados à decisão da assembléia geral da
ço ocorreram em Pelotas. 23
A epopéia categoria, o que era o ponto central do
acima narrada em Santos se deu porque desacordo. As crescentes reivindicações
o empreiteiro recebeu a comissão de contrastam com a decrescente polidez
negociação dizendo “que havia chumbo dos ofícios enviados pelo sindicato à
e bala” para a garantia dos fura-greves, empresa ao longo dos primeiros dias de
e o boicote a River fora deflagrado por março de 1917. Na manhã de 19 de
ter ele “a pretensão de falar com desafo- março, grupos de grevistas abordavam
ros e despotismo a seus operários, de- os “carneiros” do calçamento com dife-
safiando-os belicosamente com armas na rentes argumentos: cortar o pescoço, re-
mão”. São tantos os registros de confron- ceber insultos, arrepender-se caso traba-
to físico entre trabalhadores em pedra – lhassem e mesmo – talvez o mais sortudo
mesmo os que não dizem exatamente – receber 1$500 por dia não-trabalhado.
respeito às reivindicações do mundo do O medo dos “car neiros” tendeu a ser
trabalho – que já não estranhamos quan- revertido pelo capataz da “turma nove”,
do o artigo dezoito do estatuto do sindi- que os estimulava a reagirem, como ho-
cato de Porto Alegre alinha, entre seus mens que eram, e como assim fizeram
objetivos, protestar contra os maus-tra- quando puseram a correr o segundo se-

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cretário do sindicato, Satur nino não a estatal e, por conseguinte, como


Sandoval, que caceteara Antônio capaz de regular parcelas da ordem so-
Fabrete. Cerca de duas horas depois, cial como pretendiam muitos anarquis-
com a assembléia geral reunida a pou- tas. A segunda razão é bem menos abs-
cas quadras do local, combinava-se o trata: foram apreendidos folhetos anar-
ataque à “turma nove”, quando Longuiño quistas na sede do sindicato, que funci-
Monumento quis se retirar para não to- onava na Federação Operária, onde tam-
mar parte. Um canteiro lhe barrou a saí- bém atuavam anarquistas conhecidos.
da dizendo “não sai ninguém”. A assem-
bléia escolheu o momento para o ataque, Contudo, a tendência a exagerar a pre-
que resultou em feridos, um morto, pro- sença do anarquismo no movimento ope-
cesso, julgamento (e absolvição) e que, rário da época teria problemas com os
afinal, resolveu a greve, pois ninguém trabalhadores em pedra: sua agitação
mais trabalhou em pedras enquanto os tem momentos violentos imputáveis ao
implicados não foram demitidos. É ver- fervor revolucionário, mas sua base tem
dade que o sindicato pagou o preço do motivos para perceber o sindicato como
advogado, mas, até julho desse ano, os dispondo de “chefes”, “ordens” etc., e
trabalhadores em pedra de Santos, Rio não como espaço “libertário”. Na verda-
de Janeiro, Garibaldi e Carlos Barbosa de, a associação era sindicalista (politi-
já tinham contribuído com 226$000. 24
camente neutra, como declaram os es-
tatutos), e suas lideranças, anarquistas
Violentos, sim, mas por serem anarquis- que divulgavam o folheto O ideal
tas? 2 5 Duas razões per mitiriam respon- libertário em assembléias da categoria.
der afir mativamente. A mais abstrata é Diferenças políticas nas lideranças das
a de que o sindicato promulgava nor mas redes de entidades levariam a momen-
e as fazia cumprir, nor mas que per miti- tos de tensão, como na Argentina, onde
am o trabalho dos cadastrados, obriga- muitas vezes se debatiam as relações dos
vam a participação em assembléias ou sindicatos de canteiros afiliados a fede-
que proibiam a atividade de fura-greves. rações rivais. Tensa é também a corres-
Além disso, os associados o percebiam pondência de Porto Alegre à Federação
como exercendo violência legítima e con- Sul-Americana de Canteiros, com sede
soante a essas normas, racionalmente em Montevidéu, que depois de 1918 pas-
deliberadas. Ao romper o monopólio da sou a apoiar o poder soviético, dizendo:
violência legítima pelo Estado – não pela “que não aderiam se esta não concordas-
simples aplicação da violência, mas pela se com os princípios do sindicalismo re-
legitimidade garantida pelo closed shop volucionário”, a diplomática e evasiva
– o sindicato pode ser pensado como fun- resposta fê-la se filiar. Filiar-se à Federa-
dado na idéia de outra legitimidade que ção, independente de posições políticas

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em momento crítico do debate, não era passível de ser generalizada: o analfabe-


uma questão menor, porque parte da le- tismo. De 88 trabalhadores depoentes no
gitimidade do sindicato dependia das processo, 24 se declararam alfabetiza-
relações estabelecidas alhures e as dife- dos, trinta “assinaram” seu depoimento
rentes orientações políticas ou deveriam com o polegar e 34 o fizeram desenhan-
se homogeneizar, ou deveriam colaborar. do letras. Também no Rio de Janeiro, “os
Um dos objetivos do Sindicato das Pe- canteiros na sua maioria [eram] escas-
dreiras do Rio de Janeiro, ao se filiar à sos de conhecimentos”. Isso importaria
Federação, era conseguir endereços das para caracterizar a orientação política do
“sociedades congêneres”. É provável que sindicato, porque tendencialmente os
muitas, filiadas à Federação, fossem de analfabetos teriam dificuldade de expres-
cidades onde sindicatos de trabalhado- são ou desinteresse em questões estri-
res em pedra eram os primeiros organi- badas em conceitos abstratos, mormen-
zados, ou então, das principais associa- te políticos, tais como “sindicato”, “par-
ções de classe, como seria Ribeirão Pi- tido”, “eleição” etc. Poucos canteiros
res e Cotia (São Paulo), Maldonado (Uru- analfabetos de Porto Alegre dão depoi-
guai), Tandil, La Falda e Vila Dolores (Ar- mentos consistentes: eram típicas as
gentina). A correspondência entre as en- brief responses e a própria polícia não
tidades brasileiras e a Federação era algo parecia estar interessada nos analfabe-
valorizado pelas entidades e pela repres- tos, pois seus registros não trazem ida-
são, pois uma carta de Porto Alegre à de, estado civil, eventualmente local de
entidade fora extraviada pela censura, nascimento ou ofício. Isso ajudaria a ma-
enquanto que os funcionários do correio tizar o anarquismo na categoria. O anal-
em Ribeirão Pires se negavam a entre- fabeto José Gulias teria distribuído o
gar o El Picapedrero, por serem “jor nais livreto anarquista em assembléias da ca-
subversivos”. 26
tegoria, mas o oleiro espanhol em cujas
mãos o foi apreendido, declarou que ten-
Mas a explicação para sindicatos com do pouca instrução e desconhecendo o
orientações políticas distintas associa- português não sabia o que era O Ideal
rem-se em uma Federação Sul-America- Libertário.
na não se restringe à conveniência rela-
A própria liderança do sindicato não pa-
cionada à migração, ou a uma civilizada
recia especialmente alfabetizada, como
convivência pluralista. Ao trabalhador
se pode ver em um dos cinco ofícios en-
comum, era indiferente a orientação po-
viados à direção da empresa, em meio
lítica das lideranças, talvez porque esta
às negociações: 27
carecesse de distinções significativas.
Isso é mais provável, quando se verifica Rezulveu a classe em jeral, que termi-

uma situação existente em Porto Alegre, nantemente para convinar con os

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o p e r a r i o s i o S r. , p a r a q u e s e j ã o vável que o sindicato tenha um presiden-


expolços os trabalhadores ja citados te que o declarante não conhece”. Já o
sinco vezes, e seja adimetido o cap. provavelmente semi-alfabetizado Alfredo
gironimo tambem perciza que os tra- Fernandes Lages assim percebe a práti-
balhadores ou sejão calceteiros te- ca libertária da rotatividade no secreta-
nham caida aberta para assim poder riado das assembléias: “[o sindicato] é
fazer mais alguns dias de serviço, Não presidido por qualquer operário aclama-
sendo tomada essa rezulução con- do na sessão (...), tendo sempre assim
tinuaremos, lutando, pela cauza, outro presidente, não havendo, portan-
não tumando ou assumindo a to, responsáveis”. 28
responçabilidade este Syndicato
pellos danos que poção aver. Seria difícil aos analfabetos ocuparem

Pela Comissão isperamos


cargos de dirigentes sindicais, fazerem
discursos em comícios, ou acompanha-
Arezulução por iscripto.
rem procedimentos administrativos em
O fato de haver analfabetos ou semi-al- assembléias. Mesmo para as lideranças,
fabetizados nas categorias não me leva a semi-alfabetização era problema, como
a crer que canteiros e calceteiros fossem se viu no ofício transcrito e na ajuda que
uma “massa manipulável” nas mãos das pediram a um caixeiro na escrita de ou-
lideranças anarquistas (ou dos policiais tros ofícios e documentos. Mas havia um
que os interrogavam). O pedreiro anal- meio dos analfabetos participarem das
fabeto Luciano Barreiros foi explícito em atividades e da militância sindicais: ser
seu depoimento, “acompanhou a greve membro da “tropa de choque” da enti-
por união de classe”, e o canteiro anal- dade. Ao contrário do que se pensa, vin-
fabeto Fernando Gomes não conhecia culando à violência desses trabalhado-
ninguém “como cabeça do movimento, res a posições anarquistas, o ápice da
sendo o ‘suspendimento’ do trabalho participação de analfabetos nesse sindi-
acordado entre os próprios trabalhado- cato seriam os ataques tumultuosos de
res”. Alguns dos que falaram em “ordens” grevistas a “carneiros” e não, por exem-
e “chefes” eram analfabetos, mas alguns plo, a impessoalidade da dinamite (ma-
militantes grevistas nas pedreiras tam- terial rotineiro no trabalho nas pedrei-
bém o eram. A investigação queria sa- ras, mas cujo uso em greves da catego-
ber também quem era o presidente do ria não deixou, salvo engano, registros).
sindicato, para incriminá-lo, e dois de- O envolvimento pessoal no confronto fí-
poimentos são interessantes: em um de- sico abre as melhores possibilidades
les, o alfabetizado canteiro português deles participarem na gestão da oferta
José Pereira, talvez percebendo as im- de mão-de-obra, ponto chave da ativida-
plicações da situação, disse que “é pro- de sindical. Portanto, a violência não era,

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nessas categorias, a linguagem da cessário ser alfabetizado para cortar pe-


desrazão e do desespero, mas compo- dras, mas o desafio masculino é claro
nente de um código de honra masculi- no caso do cartão do diretor da pedreira
na, compartilhado por lideranças e lide- municipal em Porto Alegre: antes de di-
rados, e utilizado como meio na luta sin- zer o que fazer com o papel por ele es-
dical, pouco diferente de outras experi- crito, os canteiros reclamaram “ele que
ências sindicais da época. 29
Não é ne- venha cortar pedra”.

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N O T A S
1. Para confronto físico como atividade lúdica, ver Carolyn Conley, “The agreeable recreation of
fighting”, Journal of Social History , 33.1 (1999) 57-72. Capturado em 17 jun. 2000, online,
disponível na Inter net: http://muse.jhu.edu/jour nals/jour nal_of_social_history/v033/
33.1conley.html. Exceto indicação em contrário, todas as referências à greve em Porto Alegre
provém do processo crime n. 856, Porto Alegre, Tribunal do Júri (réus: Ângelo Cavanellas e
outros, maço 53, estante 29 e/c., 1917), Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Os
jornais agora mencionados, todos de Porto Alegre, foram anexados a este processo ou se
encontram no Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa ( O Diário , 5-6 jan. e 22 e
20 mar. 1917; Última Hora e A Noite , 19 mar. 1917; A Federação , Porto Alegre, 24 mar.
1917).

2. Para a conduta de padeiros e tecelões em Porto Alegre, ver Adhemar Lourenço da Silva Júnior,
Povo! Trabalhadores! : tumultos e movimento operário, Porto Alegre, dissertação de mestrado
em história-UFRGS, 1994, pp. 271-276 e 283; processos crimes n. 526 (réu: Paulino Rodrigues
da Rosa, maço 29, estante 29 e/c., 1914) e n. 1029 (réu: Leopoldo Silva, maço 67, estante
29 e/c., 1919); relatório das investigações policiais procedidas acerca das agressões de João
Fantinel, ocorrida em 4 do corrente, enviado ao doutor juiz distrital do crime em 8 de janeiro
de 1917, Polícia, Documentação avulsa, Porto Alegre. Transcrição de relatórios do 3 o Distrito,
1914-1917, cód. 48 (Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul). O texto sobre a
greve é o de Sérgio da Costa Franco, “A greve dos calceteiros”, ZH Cultura , Porto Alegre, 10
nov. 1990, p. 6. Para anarquistas expropriadores no Uruguai e Argentina, ver Salvador Neves
e Alejandro Pérez Couture, Pólvora y tinta : andanzas de bandoleros anarquistas, Montevidéu,
1993 e Osvaldo Bayer, Los anarquistas expropiadores , Montevidéu, Recortes, 2001. A pesqui-
sa sobre essas categorias já foi feita em minha dissertação de mestrado (op. cit., pp. 29-124),
financiada pela CAPES e desenvolvida ulteriormente com bolsa FAPERGS. Outras dimensões
da conduta dos canteiros podem ser vistas em Adhemar Lourenço da Silva Júnior, “Contribui-
ção a uma história dos de baixo do sindicalismo”, Estudos Ibero-americanos , Porto Alegre, v.
21, n. 1, pp. 61-83, 1995; e idem Quem construiu o calçamento da Rua da Praia? (E de outras
tantas ruas do Cone Sul) , em Ana Lúcia Velinho D’Angelo (org.), Histórias de Trabalho , 5ª
versão, 1995, Porto Alegre, 1996, pp. 135-154.

3. Para a falta de calceteiros em 1823, ver Antônio José Gonçalves Chaves, Memórias ecônomico-
políticas sobre a administração pública do Brasil , Porto Alegre, Companhia União de Seguros
Gerais, 1978, pp. 106-107. Para os demais anos ver os relatórios da Diretoria de Obras da
Intendência Municipal de Porto Alegre,Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre, 1896 (pp.
12-15) e 1897 (pp. 17-19). As pedras extraídas de pedreiras rio-grandenses para a construção
do Palácio Piratini, por falta de tecnologia, custariam o triplo do calcáreo proveniente da
França; cf., Doris Maria Machado de Bittencourt, Os espaços do poder na arquitetura do perí-
odo positivista do Rio Grande do Sul : o Palácio do Governo, Porto Alegre, dissertação de
mestrado em história do Brasil-PUCRS, 1990, pp. 133-134 e 139. Segundo o jornal A Federa-
ção (Porto Alegre, 23 out. 1926, p. 5), o lento ritmo de pavimentação em Porto Alegre na
época devia-se à “falta de calceteiros e socadores, serviço que exige habilitação do operá-
rio”.

4. O memorialista referido para cantaria é Gregório Bezerra, Memórias : primeira parte (1900-
1945), 3ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 192. Outra imagem do trabalho
em pedreiras (também no Rio de Janeiro) é a de João do Rio, A fome negra: a alma encanta-
dora das ruas , Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Docu-
mentação e Informação Cultural, 1991, pp. 113-117. Detalhes técnicos, inclusive os decor-
rentes da concorrência pública, ver em: relatório da Diretoria de Obras da Intendência Muni-
cipal de Porto Alegre, Porto Alegre, 1917-1918; ver também Relatório e projeto de orçamento
para o exercício de 1916 apresentado ao Conselho Municipal na sessão ordinária de 1915,
Porto Alegre, Oficinas Gráficas d’A Federação, 1915, pp. 46-48; relatório da Diretoria da Via-
ção Fluvial, Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, Rio Grande do Sul, 1916;
Lelis Espartel, estradas de rodagem, execução e movimento de terras, Egatea, Porto Alegre,
v. VII, jan.-fev. 1922, pp. 25-32; Benno Hofmann, A pedreira do Capão do Leão, Egatea, Porto
Alegre, v. 12, n. 2, mar-abr. 1926, pp. 91-105 (continua no v. 21, n. 3, maio-jun. 1926, pp.
164-172); Secretaria de Estado da Indústria e do Comércio, Minerais do Paraná S.A. Gerência
de Fomento e Economia Mineral; ver também Paralelepípedos e alvenaria poliédrica : manual
de utilização. s/l : s/ed., 1983, pp. 11-13. Sobre o trabalho dos ferreiros, ver depoimento
constante em Processo , fl. 90.

5. Para a migração interna de trabalhadores no Brasil da época, ver Josué Modesto dos Passos
Sobrinho, Migrações internas : resistências e conflitos (1872-1920), Cadernos de Estudos

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 95-114, jan/jun 2002 - pág.111


A C E

Sociais, Recife, v. 8, n. 2, jul.-dez. 1992 pp. 235-260, e Silvia Regina Ferraz Petersen, Cruzan-
do fronteiras : as pesquisas regionais e a história operária brasileira (anos 90), Porto Alegre,
n. 3, jun. 1995, pp. 137-142. Para a subvenção da viagem do Rio a Porto Alegre pelo Ministé-
rio da Agricultura, ver A Luta , Pelotas, 31 maio 1916. Os dados e depoimentos foram extraí-
dos do processo, ff. 17-19 e 87-90. Sobre Felipe Prieto fora de Porto Alegre, ver os periódicos
La Batalla , Montevidéu, 30 jun. e 10 out. 1918 e El Picapedrero , Montevidéu, ago. 1919. Para
as demais referências sobre o Uruguai, ver Ger man d’Elia e Armando Miraldi, História del
movimiento obrero en el Uruguay : desde sus orígenes hasta 1930, Montevidéu, Banda Orien-
tal, 1986, p. 127; La Batalla , Montevidéu, nov.1916; El Picapedrero, Montevidéu, abr. 1919.
Para marmoristas em Porto Alegre, ver A Luta , Porto Alegre, 29 set. e 10 out. 1906. (Os
jornais uruguaios foram consultados na Biblioteca Nacional desse país).

6. Respectivamente: La Batalla , Montevidéu, jul. 1915; El Picapedrero , Montevidéu, abr. 1919;


Sebastián Marotta, El movimiento sindical argentino : su génesis y desarrollo, 2ª. ed., Buenos
Aires, Libera, 1975, p. 501; Opinião Pública, Pelotas, 4 abr. 1914. Sobre a migração de can-
teiros entre Portugal e Rio de Janeiro, ver A Voz do Trabalhador , Rio de Janeiro, 1º jun., 1º
set. e 1º nov. 1913; entre Rio de Janeiro e Tandil, ver 17 abr. 1909.

7. Sobre mobilidade geográfica e consciência de classe, refiro-me a à passagem de June E.


Hahner, Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil - 1870-1920, Brasília, Ed. UnB, 1993,
p. 252: “Os imigrantes que percebiam problemas (...) freqüentemente procuravam soluções
mudando de emprego ou de uma região para outra, ou mesmo retornando para a Europa, em
vez de através da ação coletiva”. As demais referências são: A Luta , Pelotas, 31 maio 1916;
Correio do Povo , Porto Alegre, 17 jul. e 20 mar. 1917; Carlos Zubillaga, Jorge Balbis, “Historia
del movimiento sindical uruguayo”, tomo III, em Vida y trabajo de los sectores populares
(hasta 1905) , Montevidéu, Banda Oriental, 1988, p. 106; Marotta, op. cit . , p. 371 e 499; O
Diário , Porto Alegre, 20 mar. 1917; Opinião Pública , Pelotas, 11 abr. 1914 (os jornais de
Pelotas foram consultados na Biblioteca Pública da cidade); A greve dos trabalhadores do
calçamento [Boletim anexo ao processo]; processo, ff. 58, 60 e 69. Para o futebol na Colônia
Africana, ver O Syndicalista , Porto Alegre, 17 jun. 1919, p. 3. Para Ribeirão Pires (inclusive
com prática de futebol), ver Antônio José Marques, Os trabalhadores em pedreiras de Ribei-
rão Pires : a organização sindical dos canteiros e as lutas operárias no começo do século XX,
São Paulo, dissertação de mestrado em história-USP, 1996, p. 39 e pp. 138-139.

8. Respectivamente: O Diário , Porto Alegre, 25 jan. 1912; A Voz do Trabalhador , Rio de Janeiro,
1º dez. 1913 e 6 dez. 1908; El Picapedrero , Montevidéu, jul. 1925, mar. 1919 e nov. 1918.

9. Respectivamente ver Carlos Zubillaga e Jorge Balbis, op. cit . , p. 87; Correio do Povo , Porto
Alegre, 8-12 set. 1916; Universindo Rodríguez Díaz, Los sectores populares en el Uruguay del
novecientos : primera parte (1907-1911), Montevidéu, Compañero, 1989, pp. 81 e 88-89;
Marotta, op. cit., pp. 446 e 501.

10.Marotta, op. cit., pp. 531-533; El Picapedrero , Montevidéu, ago. 1919.

11.Processo, f. 85. Para o caso de La Plata: “8 o - Todo empresário que tiver operário incompeten-
te e (...) quiser suspendê-lo, deverá participar à comissão administrativa para que esta averigüe
se é ou não correto”, ver El Picapedrero , Montevidéu, 31 dez. 1919.

12.Para contatos entre os canteiros do Rio de Janeiro e os de Portugal, ver A Voz do Trabalhador,
1º set. e 1º jun. 1913; 20 jun. 1914. Para textos de passes, ver El Picapedrero, Montevidéu,
nov. 1918; fev., nov. e dez. 1919; nov. 1920. Para comparações com textos no Brasil, ver o
passe tipografado do Sindicato dos Canteiros em Pedra-Granito, (Congresso Operário de 1913),
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, cód. 41-2-22-A, doc. 36.

13.Investigações procedidas n. 3, DP 3 o distrito, jun. 1917 a 17 abr. 1918, delegado Eduardo


Sarmento, 10 abr. 1918, Museu da Academia de Polícia, cód. 582. Agradeço a Joan Lamaysou
Bak pela oferta dessa fonte.

14.Sindicato dos Canteiros e Classes Anexas, Boicote à pedreira de Rodolpho River , Porto Ale-
gre, 12 fev. 1917. [Anexo ao processo, f. 56].

15. El Picapedrero, Montevidéu, out. e nov. 1919.

16.Respectivamente: processo, ff. 83 e 85-86; 69-70 e 78; 84, 87-88, 90-92, 96, 97.

17.Processo, ff. 165-166 e 21

pág.112, jan/jun 2002


R V O

18.Respectivamente: Carlos Zubillaga e Jorge Balbis, “Historia del movimiento sindical uruguayo”,
tomo I; em Cronologia y fuentes (hasta 1905) , Montevidéu, Banda Oriental, 1985, pp. 129-
131; o depoimento consta em Graciela Sapriza, Los caminos de una ilusión . 1913: huelga de
mujeres en Juan Lacaze, Montevideo, Fin de Siglo, 1993, p. 103; A Voz do Trabalhador , Rio
de Janeiro, 1º maio e 22 jun. 1909.

19. El Picapedrero , Montevidéu, mar.1919.

20.Para o Rio de Janeiro, ver A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 15 ago. 1908. Em Porto
Alegre, o termo ocorre quando relatado no começo deste texto. O ter mo estaria também
implícito na ameaça feita a Carlos Bento de Lima, na mesma data, quando se dirigia às obras
do calçamento: “que não trabalhasse, senão lhe cortariam o pescoço.” (processo, f. 13). A
ocorrência do termo é abundante no Uruguai e a própria lista de expressões seria interminá-
vel. Os exemplos citados provém de El Picapedrero , Montevidéu, fev., abr. e out. 1919. Ou-
tras expressões também ocorrem nesse jornal: “elementos corrompidos” (nov. 20) e “potrilho
gordo com cara de idiota” (abr. 1919).

21. A Voz do Trabalhador , Rio de Janeiro, 30 out. e 9 dez. 1909; El Picapedero , Montevidéu, jun.
1919; Yara Aun Khoury, As greves de 1917 em São Paulo , São Paulo, Cortez/ Autores Associ-
ados, 1981, p. 135 (reproduzindo A Plebe , São Paulo, 16 jun. 1917).

22.Respectivamente: El Picapedrero , Montevidéu, jul. 1925 e jan. 1919; A Voz do T rabalhador ,


Rio de Janeiro, 1º jul. 1913.

23. O Diário , Porto Alegre, 20 mar. 1917; Rebelião , Porto Alegre, 14 mar. 1917; processo, ff. 208-
209; Correio Mercantil , Pelotas, 24 jan. 1914; Diário Popular , Pelotas, 4 mar. 1914.

24.A narração básica provém do processo e da imprensa de Porto Alegre. A demissão dos impli-
cados está em El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1918. Para a contribuição de outros sindica-
tos, Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jul. 1917.

25.A sensibilidade à violência depende de definição, e os trabalhadores em pedra poderiam ser


insensíveis à violência do confronto físico. Mas são explícitos ao atribuírem à greve geral de
1919 em Porto Alegre, quando houve choques com a polícia, o seguinte lema: “ou a violência
de cima, ou a de baixo”, El Picapedrero, Montevidéu, out. 1919.

26.Para a distinção entre anarquismo e sindicalismo, ver Adhemar Lourenço da Silva Junior,
Anarquismo e movimentos sociais : uma tipologia de suas relações, Cadernos do CPG História
UFRGS , Porto Alegre, v. 8, pp. 3-23, 1993 e, Cláudio H. M. Batalha, O movimento operário na
Primeira República , Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 24-25, ver também O Ideal
Libertário , Rio de Janeiro, Centro Libertário, s/d, anexo ao processo ... ff. 38-41. Para diver-
gências políticas no Uruguai e Argentina, ver Fernando López d’Alessandro, Historia de la
izquierda uruguaya : la fundación del partido comunista y la división del anarquismo (1919-
1923), Montevidéu, Vintén, 1992, p. 248; Marotta, op. cit., pp. 470-471, 487-489, 524-535;
El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1919. Para relações do sindicato em Porto Alegre com a
Federação [Operária] , ver El Picapedrero, Montevidéu, fev. 1919. Para as relações dos sindi-
catos das demais cidades com a Federación, ver El Picapedrero , Montevidéu, nov. 1918; jul.,
nov. e 31 dez. 1919, nov. 1920.

27.Quanto à relação do trabalhador comum com a orientação política das lideranças, Eric J.
Hobsbawm afir ma: “Afinal, ao nível do militante (...), as diferenças doutrinárias ou
programáticas (...) são geralmente muito irreais e podem ter pouca importância (...). Assim se
compreende que a transferência da liderança do sindicato dos trabalhadores do tabaco de
Cuba das mãos dos anarco-sindicalistas para as dos comunistas não tenha introduzido qual-
quer modificação substancial nem em suas atividades sindicais, nem na atitude de seus mem-
bros e militantes.”, Revolucionários , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, pp. 72 e 75. Quanto à
ignorância dos canteiros do Rio de Janeiro, ver A Voz do T rabalhador , Rio de Janeiro, 13 jan.
1909 (o que seria ratificado pelas incorreções ortográficas semelhantes às aqui citadas –
desde o processo, f. 136 – por: ofício do Sindicato dos Operários das Pedreiras ao Congresso
Operário de 1913, op. cit., doc. 8). Embora Marques (op. cit., p. 42) diga o contrário para os
canteiros de Ribeirão Pires, a reprodução de uma carta no El Picapedrero (Montevidéu, out.
1920) indica a mesma pouca familiaridade com a expressão escrita. Sobre analfabetos e
conceitos abstratos, ver Mercedes Vilanova, “Anarchism, political participation and illiteracy
in Barcelona between 1934 and 1936”, The American Historical Review , v. 97, n. 1, fev.
1992, pp. 96-120.

28.Os depoimentos transcritos de analfabetos constam no processo, ff. 71 e 86; para analfabe-
tos falando em “ordens”, “chefes”, ff. 69 e 78; sobre militantes analfabetos nas pedreiras,
ver f. 65; os depoimentos sobre o “presidente” do sindicato estão nas ff. 84 e 95-96.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 95-114, jan/jun 2002 - pág.113


A C E

29.Para o recurso ao caixeiro, ver processo, f. 75. Para analfabetos como “tropa de choque”,
Vilanova, op. cit., p. 116. Para masculinidade e sindicalismo, ver Francis Shor, “Virile
syndicalism”, Comparative Perspective capturado em 6 nov. 2000, online, disponível na
Internet: http://bari.iww.org/history/Shor1.html.

A B S T R A C T
From a single case – when stonecutters and pavers attacked strikebreakers in Porto Alegre – and
comparing the workers in several cities (with several kinds of sources, from several archives,
from several places), The author argues that similar life conditions and permanent migration
created a labor market and a labor network, whose central point was the closed shop. But the
workers’ illiteracy was a problem on managing the labor network, and even political concepts.
The illiterates’ feelings of being participants in trade unions were clear, if they manfully beat
those who tried to defeat the closed shop.

pág.114, jan/jun 2002


R V O

Paulo de Assunção
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo
e professor do Centro Universitário Assunção, Centro Universitário
Capital e da Universidade São Judas em São Paulo

A Escravidão nas
Propriedades Jesuíticas
Entre a caridade cristã
e a violência

O
Estado absolutista conseguiu econômico do produto, fazendo de Por-
resolver os problemas tugal um grande exportador e intermedi-
advindos da centralização do ário desta matéria-prima para a Europa.
poder,quanto ao acúmulo de riquezas.
A Coroa favoreceu o desenvolvimento da
Procurando manter o Estado, as monar-
produção açucareira na Colônia a partir
quias utilizaram-se da doutrina
do novo direcionamento político-econô-
mercantilista como base de sustentação
mico dos governos gerais. Os incentivos
da nação. As colônias eram parte inte-
começavam pela doação de terras e
grante deste conjunto que garantia os
sesmarias, isenções dos tributos, impos-
recursos necessários para a manutenção
tos sobre o açúcar, facilidades para o
da via mercantil e, por decorrência, da
comércio do produto e uma política fa-
metrópole.
vorável à escravidão da mão-de-obra in-
dígena e negra. 1
O açúcar, mercadoria exótica e de valor
elevado, passou a entrar em Portugal em O favorecimento aos jesuítas nas terras
quantidades cada vez maiores durante o brasileiras começou logo após a instala-
século XVI. A ampliação do comércio do ção do gover no geral, em 1549, por
açúcar como produto relevante para o Tomé de Souza. A carência de alimentos
mercado português aumentou o valor fez com que os religiosos reivindicassem

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 115-132, jan/jun 2002 - pág.115


A C E

e obtivessem terras para se manterem, “seis alqueires de farinha pela medida


tendo alcançado, posterior mente, outros da terra, e doze canadas de vinagre e seis
privilégios. canadas de azeite pela medida do rei-
n o ” . 4 Esta ação só seria efetivada em
É neste universo que a Companhia de
agosto, com determinação expressa para
Jesus se tor nará proprietária de fazen-
seu cumprimento, feita pelo governador
das e engenhos. Em diversas proprieda-
Tomé de Souza. 5 Nem só de alimentos
des espalhadas pela Colônia, os jesuítas
necessitavam os jesuítas. Faltavam-lhes
procuraram consolidar o projeto de ex-
vestimentas, e o rei, zeloso, na mesma
pansão da fé católica. Com uma produti-
carta de janeiro de 1551, ordenou que
vidade significativa em algumas unida-
fossem pagos “cinqüenta e seis mil réis,
des, os colégios eram abastecidos e
em dinheiro, para a vestiaria de dez pa-
mercadorias eram trocadas. Para tanto,
dres” da região de São Vicente.6
fazia-se necessária a conquista de favo-
res reais, que posterior mente seriam Os jesuítas, pouco a pouco, recebiam
acrescidos das doações dos fiéis. favorecimentos que auxiliavam no sus-
tento dos religiosos e de suas atividades,
A justificativa para a conquista destas
no âmbito da educação e da
regalias era a necessidade de dar impul-
catequização. A posse de bens, terras ou
so à doutrinação indígena e pôr em exe-
outras regalias exigia um sistema de con-
cução o projeto colonial, do qual o
trole rígido para que as conquistas fos-
inaciano era a mola propulsora. Para re-
sem preservadas.
alizar o seu intento, o rei d. João III ex-
pediu mandados de subsídios para os Os jesuítas revelam nos seus escritos
jesuítas, e em 1550 enviou mandado ao uma acuidade muito grande com relação
almoxarife dos ar mazéns, ordenando aos engenhos. Registravam com detalhes
pagar para sustento do padre Manuel da a quantidade das produções, o açúcar
Nóbrega e de cinco companheiros “dois obtido, as dívidas pendentes, as dívidas
mil e quatrocentos reis, por um quintal pagas, os comerciantes com os quais fa-
e vinte e cinco arráteis e quarta de fer- ziam negócios, os mercadores que trans-
ro, a dois mil reis o quintal”, 2
sendo a portavam produtos para Portugal.
razão de quatrocentos réis para cada um Inventariavam os escravos que produzi-
dos religiosos, ao mês. A garantia de sub- am, os adquiridos, os vendidos ou mor-
sistência foi mantida e ampliada, bem tos e os produtos consumidos.
como a diversidade de bens for necidos.
A prática jesuítica aproximava-se dos in-
No mesmo ano o governador Tomé de
teresses da colonização e tinha objetivo
Souza concedia a sesmaria da Água dos
particular; segundo observou José Carlos
Meninos para sustento dos missionários.3
Meihy, estas atitudes assumidas pela
Em 16 de janeiro de 1551 eram pagos Companhia de Jesus, no Brasil, na fase

pág.116, jan/jun 2002


R V O

inicial da colonização, e residências, e uma habilidade para a

aliadas, ao ensino, ao controle das


gestão da propriedade que envolvia o

consciências, ao amparo dos índios,


preparo para trabalhar com unidades pro-

acabavam identificando a Companhia


dutivas, marcadas pela utilização da

com os interesses portugueses. Contu-


mão-de-obra escrava.

do, outra realidade se apresentava jun- A propriedade de terra não era o bastan-
to a esta: o desenvolvimento de uma te para o desenvolvimento de atividade
política de interesses próprios da or- econômica. A mão-de-obra escrava, lar-
dem que, imperceptivelmente, distan- gamente utilizada desde a Idade Média,
ciava os interesses nacionais, metro- foi o meio utilizado para atender ao sis-
politanos, dos particulares, universais tema econômico, garantindo o abasteci-
e jesuíticos. 7 mento do mercado consumidor euro-

A posse de terras foi o primeiro passo p e u . 1 0 Sua utilização era fundamental

para a integração no universo colonial. para o universo da vida colonial e, por

Tal como a Coroa portuguesa, os inte- decorrência, para as atividades dos reli-

resses temporais dos inacianos se volta- giosos.

ram para a atividade agrícola. O escravo era imprescindível em todas


Este interesse dirigiu-se para aspectos as etapas da produção açucareira. Du-
precisos, como o da construção das pri- rante o período de safra, o trabalho era
meiras residências e colégios. Manuel da ininterrupto e exigia muito dos escravos
Nóbrega escreveu ao padre Miguel de que trabalhavam em tor no de dezoito
Torres, no ano de 1556, preocupado com horas por dia, no decorrer de oito ou
a construção de casas e confrarias para nove meses. A labuta iniciava com o pre-
os meninos órfãos de Lisboa, 8 revelan- paro dos campos, o plantio, a monda da
do uma atenção especial para “fazer-lhes lavoura e o corte da cana que era trans-
casa; e pedir terras ao gover nador”, que portada para o engenho em carros de boi
lhe agraciou com as terras e “alguns es- ou em barcos, dependendo da localiza-
cravos d’el-rei e umas vacas para cria- ção do engenho. A cana processada na
ção”. 9 moenda ia para as caldeiras da casa de
pur gar, que deveria estar aparelhada
A administração das propriedades valeu-
pelos escravos com lenha suficiente para
se dos princípios normativos que davam
a purificação. A força de trabalho escra-
organização à ordem. A constituição de
vo era vital nos serviços de manutenção
um conjunto de administradores, para as
da propriedade, nas atividades domésti-
propriedades, revela que no bojo da for-
cas, nos carregamentos etc. 11
mação jesuítica existia um preparo quan-
to ao controle da contabilidade que au- A obra do jesuíta, padre Jorge Benci,
xiliava em muito na gestão dos colégios Economia cristã dos senhores no gover-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 115-132, jan/jun 2002 - pág.117


A C E

no dos escravos , tratou do tema da es- é possível fazer, conservar e aumentar


cravidão como um dado natural na cul- fazenda, nem ter engenho corrente”.13
tura ocidental. Defendendo um tratamen- Salientava que os resultados da produ-
to mais humanitário para o escravo, o ção dependiam de como os escravos
padre Benci entendia que todos os se- eram tratados, e que os senhores de en-
nhores deveriam agir com caridade cris- genho deveriam estar preocupados com
tã, tendo em mente que havia uma reci- a salvação deles, que praticamente não
procidade de deveres na relação de se- recebiam nenhum dos sacramentos. No
nhores e escravos. Se a riqueza dos se- que dizia respeito ao sustento e à
nhores era construída por braços negros, vestimenta, defendia que a alimentação
nada mais justo que os senhores arcas- fosse suficiente, inclusive na doença, e
sem com um sustento adequado para os que o corpo deveria ser agasalhado de
escravos, cuidando da sua alimentação, forma decente para que os negros não
saúde e vestuário. Contudo, como os andassem nus pelas ruas. Era conveni-
bens materiais eram efêmeros, fazia-se ente que o ritmo do trabalho seguisse a
necessário alimentar o espírito em con- moderação e que não excedesse às for-
for midade com a doutrina cristã, os san- ças humanas; segundo ele, os morado-
tos sacramentos e os exemplos pios, que res costumavam dizer que para o escra-
incluíam guardar os dias santos e os do- vo eram necessários:
mingos, pois isto era uma obrigação
Três PPP, a saber, pau, pão e pano. E
moral de qualquer senhor de engenho.
que posto que comecem mal, principi-

Este comportamento benevolente ou cris- ando pelo castigo que é o pau, contu-

tão, para com a escravaria, não excluía do, prouvera a Deus que tão abundan-
a aplicação de penas de acordo com o te fosse o comer e o vestir como mui-

crime cometido, que deveriam ficar res- tas vezes é o castigo, dado por qual-

tritas a açoites moderados e prisões, sem quer causa pouco provada ou levanta-
maiores opressões para os sujeitados. da; e com instrumentos de muito rigor,

Condenava o religioso os vários tipos de ainda quando os crimes são certos, de

castigos corporais a que os senhores de que se não usa nem com os brutos
engenho submetiam os negros, tais como animais, fazendo algum senhor mais

lançá-los vivos nas for nalhas. 12


caso de um cavalo que de meia dúzia

de escravos, pois o cavalo é servido, e


Outro padre jesuíta, o padre João Antô-
tem quem lhe busque capim, tem pano
nio Andreoni (Antonil), em sua obra re-
para o suor, e sela e freio dourado.
forçou a conveniência de um tratamento
cristão para com os escravos, pois “es- As punições violentas, com açoites e a
tes são as mãos e os pés do senhor do marcação no rosto com ferro em brasa
engenho, porque sem eles no Brasil não não eram adequadas, pois o escravo se

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revoltava, fugindo para o mato, poden- mento do ponto de vista da natureza

do ainda cometer suicídio ou matar aque- orgânica da sociedade, havia uma ra-
les que os oprimiam. Desta for ma, en- zão muito pragmática para se defender

tendia que o castigo poderia existir de a escravidão – o instituto burocrático

forma branda e que a culpa do delituoso da sobrevivência. 16


fosse verificada para não se punir ino- Rui Teixeira, administrador do engenho
centes. Aos culpados era dado o trata- do conde de Linhares, nos idos de 1589,
mento de açoites moderados, ou então reclamava ao conde que o engenho ia
os escravos ficavam acorrentados por “falto de cobre e de gente”. Para suprir
algum tempo no tronco. 14 esta deficiência, o administrador preten-
dia aprisionar índios, mas o governador
Estes questionamentos e observações
eram advindos das práticas dos enge- proibia tal prática, por causa dos padres

nhos da Bahia, Pernambuco e Rio de Ja- da companhia. Esta condição redundava


em críticas aos jesuítas, afirmando:
neiro, demonstrando que o trato com o
escravo era rotineiro e requeria habili- o bom fora alarga-lhes as fazendas e a

d a d e s . 15 Como observou Nicholas terra que a cultivassem, pois eles só

Cushner, os jesuítas da Argentina, Méxi- são senhores dela se dos índios que

co, Peru e Brasil participaram ativamen- com [...] ferros os servem e são mais

te na compra de escravos. O autor seus cativos que escravos de Guiné, e

enfatiza que em nenhum momento os assim não há hoje quem possa ver por

religiosos questionaram a legitimidade da seu resgate. 17

escravidão; na realidade, eles a aceita- Este mesmo engenho, anos mais tarde,
ram como um fato dentro dos seus ne- pertenceria à Companhia de Jesus que,
gócios: a partir daí, enfrentaria o problema da
administração da propriedade.
As visões contemporâneas sobre a na-

tureza orgânica da sociedade deram a No ano de 1634, Manuel de Oliveira re-


cada camada ou classe um papel pré- gistrava as dificuldades com o trabalho
definido que não era para ser pertur- do engenho o qual estava “em doenças
bado por rebeliões ou mesmo questio- de sarampo, ‘camaras’, pontadas,
nado. Os dois jesuítas brasileiros do ‘priorizes’, e outras doenças agudas de
século dezesseis, que se pronunciaram [que] tem falecido muito número de gen-
publicamente contra os demônios da te”. 18 As epidemias comprometiam a ati-
instituição, foram sumariamente envi- vidade produtiva, forçando os religiosos
ados de volta para Portugal, e o argu- a dividirem o seu tempo entre os doen-
mento de que os escravos eram neces- tes e a administração da produção, tare-
sários para manter as missões e as re- fa nem sempre fácil de ser empreendida
sidências ganhou vulto. Além do argu- e com gastos significativos na compra de

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mezinhas para a cura dos doentes. mete à indignação do padre Manuel de


Figueiredo quando escreveu ao padre
A mão-de-obra escrava era fundamental,
Bento de Oliveira, em setembro de 1713,
sem ela o modelo produtivo não vinga-
relatando os grandes danos que os pira-
ria nem auferiria a lucratividade deseja-
tas franceses causaram na região dos
da. O padre Francisco de Matos, ao re-
Ilhéus, inclusive ao engenho, pois apa-
ceber algumas cartas que insinuavam ser
nharam uma lancha que tinha saído a
mais conveniente e acertado valerem-se
pescar com sete negros.21
os inacianos do trabalho dos índios, do
que dos negros, responde à missiva dis- A compra e venda de escravos faziam

cordando, dizendo ser erro manifesto: parte das práticas necessárias para a

“por que os índios não são para aturar o produção, bem como o trato com os es-

trabalho, como os negros, por serem de cravos, tarefa árdua e difícil de ser exe-

natureza mais débil que eles, o que tem cutada. No ano de 1731, o padre Pedro

mostrado a experiência”. 19 Em setembro Teixeira fazia queixas em relação a An-

de 1733, o padre Luís Veloso escrevia tônio Jorge, ao padre Simão Esteves, por

ao padre Simão Esteves pedindo suces- causa do descuido daquele com os ne-

sor, alertando ser conveniente que o gócios. Dizia que enviara um negro pre-

novo religioso fosse muito virtuoso e di- so para ser vendido e o mesmo não ti-

ligente, pois estava o engenho arruina- nha dado a mínima atenção, pois, circu-

do. A casa de negros necessitava de re- lava com o escravo solto pela Bahia, com

paros, “que por serem muito limitadas e grande perigo dele fugir e perdê-lo. 22

nada arejadas, são nocivas à saúde, e Em 8 de junho de 1735, o irmão Mateus


sempre há doentes”; em seguida, o reli- de Souza, escrevendo de Santana dos
gioso fazia uma observação lúcida: “não Ilhéus ao padre Gaspar Esteves sobre a
basta fazer muito açúcar; o conservar a chegada do padre Antônio Fernandes,
fazenda é o melhor modo para se ter noticiava que apesar de uma febre, já
açúcar”. Lembrava que o sucessor deve- estava bem. Saúde e paciência eram de-
ria ser mais casamenteiro, a fim de evi- sejáveis “para saber levar, pois é gente
tar mancebias, dando incentivo à concep- sem razão, sem amor e sem temor de
ção, pois as crianças seriam futuramen- Deus; alguns, por bem, com brandura
te benéficas para o engenho, como for- alguma coisa fazem, outros querem ser
ça de trabalho. 20 levados com rigor”. Através do registro
ao padre Gaspar Esteves observamos
Pelos relatos, verifica-se que os escravos
problemas quanto à falta de mão-de-obra
não se dedicavam somente às atividades
a respeito do engenho de Ilhéus:
de lavoura; quando solicitados, dedica-
vam-se à pesca em lanchas para suprir fica muito falto de gente o padre Pedro

as carências das propriedades. Isto re- Teixeira, em todo o tempo que aqui es-

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teve não comprou negro nenhum, al- cumbência de administrar os engenhos.


guns morreram, outros são velhos in- Os escravos eram comprados e recebi-
capazes de servir e desterrou outros e dos por doação, sendo responsáveis pela
vendeu para o Sergipe, e está o enge- produção da doce mercadoria e dos afa-
nho muito falto de gente. 23 zeres domésticos. Por meio das transa-
ções internas dos colégios, os escravos
O padre Antônio Fer nandes, de Ilhéus
eram algumas vezes encomendados aos
escrevia, em 1737, discutindo acerca dos
padres dos colégios das ilhas do Atlânti-
problemas da transferência de negros de
co e da África. 25 Os registros sobre a cir-
um engenho para outro, cogitando sobre
culação de produtos dos jesuítas, nas
a possibilidade de fuga, advertindo ao
alfândegas das ilhas de Cabo Verde, for-
superior: “saiba que o Brasil não é esses
necem informações da constante remes-
reinos que aonde quer se dá com um fu-
sa de negros para a América portugue-
gido, cá sucede em muitas vezes come-
sa. Os pedidos em alguns casos eram
rem da mesma casa, e andarem fugidos
informados ao superior, como o faz o
muitos anos”. 2 4 A extensão das terras
padre Luís da Rocha ao padre Gaspar
coloniais e a frouxidão na perseguição
Esteves, em 1739, ao comunicar que
dos escravos levavam a ponderar sobre
mandara vir “uns escravos de Angola
qual seria o menor risco ou prejuízo para
para este engenho por virem mais em
os engenhos.
conta”. A negociação fora complexa, uma
A mão-de-obra requeria cuidados espe- vez que, para a compra dos escravos, o
ciais na sua aquisição, pois da qualida- religioso enviara canadas26 de aguarden-
de do escravo dependia a produção. A
te, de cujo produto haviam remetido dois
preocupação com a manutenção e o tra- moleques que foram vendidos a um la-
to da escravaria era uma constante, pois vrador do engenho de Sergipe do Con-
as doenças, a rebeldia e as fugas faziam
de, por duzentos mil réis, o qual se com-
parte do cotidiano da atividade do admi- prometeu a pagar o valor em açúcar.
nistrador. Trabalho sem dúvida difícil, Feito o pagamento e descontados os gas-
num contexto em que os castigos corpo-
tos com despachos e fretes, ficaram para
rais eram o meio mais utilizado contra o padre Luís da Rocha, cento e cinco mil
as rebeldias dos escravos; convencer o réis em açúcar, os quais remeteu para
negro a trabalhar desta for ma ia direta-
Portugal, parte dele para ser entregue ao
mente de encontro aos preceitos da ca- padre boticário de Coimbra, Francisco da
ridade cristã. Os engenhos possuíam Costa, referente a dívidas que contraíra.27
uma quantidade significativa de escravos
adquirida pouco a pouco.
Brás da Silva, no ano de 1613, ciente de
As transações de escravos foram uma que os superiores desejavam embarca-
constante para aqueles que tinham a in- ções carregadas de açúcar, registrava o

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seu pesar quando os navios não segui- premência deles, uma vez que das pou-
am com o produto desejado: cas peças

que tinha no ano de cinqüenta e oito,


se Vossa Realeza estivera cá destas par-
lhe morreram 13 ou 14 peças – verda-
tes o desculpava, vendo o pouco que
de é que a metade delas não serviam
se faz com a ruim safra por haver mui-
uns por velhos e outros mui
to pouca cana, e as grandes calmas que
pequeninos, ainda que nos morreram
o ano passado fez que ficando as ca-
alguns que nos fazem grande falta mas
nas todas assadas, e entendo que tam-
isto não é nada para o que nos dizem
bém para esta safra que se segue.
que são mortos em Sergipe, depois que

Tal situação, que comprometia a safra os padres da Bahia estão nele.

atual com baixa produtividade, impedia-


A falta de mão-de-obra levava Manuel da
o de “comprar negros para poder for ne-
Costa a solicitar ao reitor que intervies-
cer as fazendas que se compravam e
se “por via de Angola, que era grande
quererá Deus ajudar-nos para podermos
negócio, não faltando ao provimento do
remediar tudo”. 28 Alguns registros tam-
engenho que esse está primeiro, porque
bém infor mavam que havia a elaboração
os açúcares vendidos cá não tem muita
de listas nominais com o registro do nú-
c o n t a ” . 2 9 Desejava assim que o reitor
mero de escravos da propriedade. Pode-
auxiliasse na compra de escravos, por
se também depreender que havia a ela-
meio do Colégio de Angola, bem como
boração regular de relatórios/inventári-
provesse o engenho com o que era ne-
os gerais que detalhavam os bens e as
cessário, a fim de evitar os gastos ex-
terras pertencentes ao colégio, nor mal-
cessivos, prática comum nas transações
mente enviados ao padre provincial na
entre colégios e unidades jesuíticas.
mudança da administração, dando notí-
Com pesar, o irmão Mateus de Souza, em
cias sobre as condições em que se en-
1731, registrava que o engenho estava
contravam, como os bens fixos, o núme-
muito falto de escravos, pela morte de
ro de escravos, caixas de açúcar, cabe-
alguns, e outros já estavam muito velhos
ças de gado etc.
e não podiam trabalhar como antes. Ali-
A falta de mão-de-obra, dentro de um ado a este problema, ainda havia a difi-
modelo produtivo escravista, comprome- culdade de as crianças chegarem à fase
tia a produção. Manuel da Costa, em cor- adulta: “tem nascido muitos crioulinhos,
respondência para o padre reitor, de 8 mas também morrem muitos e custam
de julho de 1659, informava o envio de muito a criar”. 30 Os problemas com es-
vinte caixas de açúcar e alertava para os cravos seguiam as mesmas vicissitudes
problemas gerados com a morte de es- da vida colonial. O próprio Mateus de
cravos, pois os engenhos tinham grande Souza declarava, em julho de 1733, duas

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crioulas ir mãs enviadas pelo padre Pedro uma só palavra em sua defesa. Vossa

Teixeira: Realeza [...] piedoso e bom conheci-

...uma por nome Cristina, mãe de uma mento e experiência tem desta gente

rapariga que fica presa no tronco, por- e assim fará o que julgar mais [...] para

que brigando com seu marido [...] pe- o serviço de Deus e bem destas fazen-

gou em num cutelo e deu lhe uma tão das fica se preparando o engenho, para

desastrada facada pelo peito esquer- cortar e moer dia de santo Inácio, não

do que dentro de meia hora morreu, serve mais. Peço a santa benção de

sem se poder confessar; a outra, por Vossa Realeza. 31

nome Marcelina, são culpadas em se


Os problemas de brigas entre escravos
acharem presentes na ocasião da mor-
constavam, com freqüência, nos regis-
te, e isto é bastante causa para o cas-
tros da época. A violência na senzala, al-
tigo e desterro que o reverendo padre
tamente indesejável, fazia que penas
superior manda fazer lá, o julgue Vos-
mais duras contra os delituosos fossem
sa Realeza que nisso me não meto só.
adotadas pelos religiosos, pouco afeitos
Peço a Vossa Realeza ponha os olhos
ao comportamento dos trópicos. Entre-
nesta fazenda, que tão bem pertence
tanto, a produção era o foco de interes-
à Igreja de Santo Antão, e não consin-
se comum que poderia relevar os peque-
ta que se vendam nem se dê fraude
nos delitos, em favor da garantia da mão-
tanto de gente esta fazenda, que não
de-obra para o engenho. Tal fato leva a
há por onde puxar, pois a dita Cristina,
questionar a eloqüência com que Serafim
e muito serviçal e negra dito serviço,
Leite defendia as propriedades, ao afir-
e a Marcelina a moenda lhe levou um
mar que “as fazendas dos jesuítas eram
braço e ainda assim sem ele se sus-
o paraíso dos escravos”. 32
tenta, assim e quando mói engenho faz
Pelos relatos dos jesuítas, muitos sacer-
o ofício de caxumba, a rapariga que
dotes não davam a atenção devida à vida
matou o marido ainda não tem os 18
espiritual dos escravos dentro dos pre-
anos de idade, também é boa serviçal
ceitos cristãos. Envolvidos com a produ-
e sadia. Se Vossa Realeza quiser puxar
ção, assoberbados com o controle da
por ela para lá poderá ser de proveito
propriedade e o despacho do açúcar, al-
a esse engenho, que na verdade são
guns religiosos se descuidaram dos ba-
crias que sempre são melhores que os
tismos, casamentos e das missas, fato
comprados, eram muito bem casados
que foi condenado. Deve-se considerar
– o marido brigou com ela por ciúmes
também a resistência dos escravos na
e desconfiança que teve o padre supe-
participação dos cultos religiosos.
rior, e muito áspero e rigoroso e de-

masiadamente suspeitoso e assim sen- Apesar das dificuldades, as festas


tenciou estas negras sem querer ouvir marianas, 33 a festa dos apóstolos, a Pás-

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coa, o Natal, a Epifania e a festa em lou- em seu poder, os mesmos vinham expe-
vor a São Francisco Xavier 34
eram cele- rimentando os excessos e os rigores que
bradas nor malmente no engenho de “os senhores no Brasil tratam seus es-
Sergipe do Conde e com variações nas cravos, e disto tenho já ouvido algumas
outras propriedades. A possível incom- queixas, mas não está em minhas mãos
patibilidade entre o calendário religioso emendá-las”. 36
e o fluxo de produção, uma crítica co-
Durante a administração do padre Manu-
mum dos eclesiásticos aos senhores de
el de Figueiredo, no engenho de Santana
engenho, foi alvo de preocupação dos
dos Ilhéus, na primeira metade do sécu-
padres superiores que orientaram os ad-
lo XVIII, não houve estímulo ao casamen-
ministradores das unidades produtivas
to de escravos, contando com grande
na observância dos dias religiosos, bem
número de escravos solteiros, o que per-
como no guardar o domingo, já no final
mitia a mancebia, diminuindo desta for-
do século XVII. 35
ma os nascimentos e, portanto, a possi-
Em resposta a uma carta do superior, em bilidade de aumento da mão-de-obra da
4 de janeiro de 1648, o padre Francisco propriedade. Esta situação foi observa-
Carneiro evidenciava que recebera deter- da pelos administradores seguintes,
minação para ter com os criados e es- como os padres Pedro Teixeira, João
cravos do engenho e das fazendas, cui- Cortes e Jerônimo da Gama, que elabo-
dado para que fossem tratados no comer raram relatórios defendendo a conveni-
e modo de trabalhar “com piedade e pru- ência de for mar famílias com base no
dência”. Dizia o padre Francisco matrimônio. O padre Pedro Teixeira, em

que estes meses atrasados houve al- 1731, registrara um cenário inadmissí-

gum aperto em matéria de comer para vel para uma propriedade da companhia.

com os negros de serviço do engenho Os escravos eram mal doutrinados “la-

e do colégio, não foi possível outra drões desavergonhados (e especialmen-

coisa, por causa do inimigo que nos te as mulheres)”, não tinham nenhum

teve de cerco, e todos experimentamos respeito ou temor a Deus. Naquela pro-

este aperto, mas não foi tal, que hou- priedade não se trancavam as casas dos

vesse demasiado excesso. escravos, o que permitia fugas durante


a noite e grandes desordens. O jesuíta
Em sua defesa, o religioso mostrava a
procurou emendá-los, valendo-se de
situação da fazenda e engenho do Colé-
“uma formosa surra de açoites”. 37 A des-
gio de Santo Antão, não duvidando que
peito dos esforços do religioso, a insu-
lá também não houvesse demasiado
bordinação dos escravos continuou.
aperto no comer e no trabalho dos es-
cravos, porque como a fazenda fora ar- Em 20 de setembro de 1753, o padre
rendada a secular e postos os escravos Jerônimo da Gama descreveu a condição

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da estrutura familiar dos escravos. Es- Miguel da Costa reconhecia ser o padre
pantava-se com o fato de a maioria dos Rocha “zeloso da fazenda e tem muito
cativos não ser casada, as uniões serem propósito e capacidade para a governar;
instáveis e prevalecer a mancebia, o que pelo tempo adiante será um grande fa-
causava uma baixa taxa de natalidade, e zendeiro e senhor de engenho”. O padre
por decorrência, a falta de braços para Costa lembrava ao padre Gaspar
o trabalho. 38
Alguns padres não se preo- Fernandes que o padre Luís da Rocha,
cuparam em emendar o comportamento “como moço, tem muito fogo para gover-
lascivo dos negros, preferindo tolerar nar escravos, e tem feito alguns exces-
essa situação, a fim de evitar as fugas. sos com eles, já o adverti neste ponto,
Esta falta de atenção foi observada pelo indo visitar o engenho, e me prometeu
olhar atento de outros padres, para os que havia de moderar”. O motivo desta
quais a não realização de casamento era conduta, conforme confessara o próprio
um grave problema, pois com isto os Luís da Rocha, era para que os “negros
engenhos sofriam a falta de mão-de-obra, lhe cobrassem medo e respeito, e não
implicando na inflação do preço do ne- procedessem com ele na mesma forma
gro. Era preciso incentivar os casamen- em que os achou com o padre Veloso”. 39
tos e a sua decorrente procriação. Com Conforme a narrativa de um jesuíta do
certeza, estas práticas poderiam engenho de Santana, para dirigir uma
minimizar os problemas, mas os padres propriedade escravista, as palavras não
esqueciam-se de que muitos filhos de bastavam, os pés eram necessários, e ele
escravos não conseguiam vingar, por cau- andava “de contínuo com o diabo na
sa das doenças e da alimentação débil boca e o pau nas costas dos pobres”. 40
e, em muitos casos, as escravas optavam
pelo aborto como uma for ma de protes- Governando o engenho com pulso fir me,
tar contra as condições em que viviam. o padre Rocha reestruturou a proprieda-
de adequando-a à nova realidade, não
O padre Miguel da Costa, ao escrever do alterando os seus métodos de adminis-
Colégio da Bahia, em 10 de agosto de tração. No mesmo ano, escrevia dizen-
1736, infor mava que o padre Luís Veloso do que despedira os feitores para dimi-
já estava velho e faltavam-lhe forças para nuir os gastos com pagamentos de sol-
o trato do engenho, sendo conveniente dos. E em seus lugares tinha colocado
que o padre Luís Rocha fosse indicado alguns “negros de mais capacidade, por-
para o cargo, ficando o padre Veloso, no que os feitores brancos, quando são fi-
engenho, pois “com o seu conselho e éis só servem quando lá se não pode ir”,
direção [...] poder a tudo advertir ao pa- e isto era necessário na época do padre
dre Rocha”. Apesar deste comportamen- Veloso. Como ele gozava de boa saúde e
to rígido para com os escravos, o padre visitava de três em três dias as fazendas,

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o controle era maior, facultando-lhe pu- ção, empregando, por vezes, mecanis-
nir aqueles que tinham faltado com a mos de convencimento pouco brandos.44
obrigação, “o que não posso fazer aos
A rebeldia e fuga dos escravos não ocor-
brancos”. 41
riam só por causa das condições de tra-
balho, mas também devido ao rompimen-
As condições de trabalho a que eram to de relações maritais dos escravos. O
submetidos e o tratamento que recebi- padre Luís da Rocha, na sua conturbada
am per mitiram que fugas e levantes de gestão do engenho da Petinga, vendera,
negros também ocorressem nas proprie- nos idos de 1745, uma escrava para um
dades jesuíticas. O caixeiro Manuel João lavrador de canas, vizinho da proprieda-
Viana, em carta datada de 25 de abril de de. O companheiro da escrava, revolta-
1742, dava conta ao padre superior, do com a negociação, fugiu para se en-
Francisco da Guerra, sobre o levante de contrar com a mulher, recusando-se a
cinqüenta negros ocorrido no engenho retornar ao engenho. 45
do Conde, que felizmente fora controla-
Em 1750, o padre Tomás da Costa nar-
do. O ato de contenção do levante resul-
rava o triste episódio que acontecera
tou na prisão de alguns escravos no en-
com o irmão Francisco Silva. Este religi-
genho e outros na cidade da Bahia, com
oso chegara muito ferido, ao colégio, no
“correntes e grilhões, e se açoitaram to-
dia anterior, primeiro de junho, vindo do
dos muito bem”. 42 A violência que mar-
engenho de Santana de Ilhéus, por ter
cou o episódio deve ter gerado polêmi-
sido golpeado por um negro com duas
cas e críticas quanto aos excessos de
facadas. A primeira foi por detrás a cor-
Manuel João Viana, pois ele, em 26 de
tar-lhe o pescoço, mas Deus agira desvi-
abril, escrevia temeroso ao padre Fran-
ando o golpe. A segunda facada fora mais
cisco da Guerra, advertindo-o que se
cruel e provocara ferimento grave – “ca-
caso chegassem cartas acusando-o de
indo o ir mão por terra, o negro lançou-
alguma coisa, não desse atenção: “peço
se sobre ele para acabá-lo, teve ânimo e
a respeito dos negros não se fie no que
fortuna o irmão, de lhe pegar nas mãos,
dizerem várias cartas, só sim no que es-
e subster (sic) os mais golpes até chegar
crever o reverendo padre Rafael Macha-
um negro velho, com cuja vista fugiu o
do, que eu e ele é que temos acomoda-
excomungado negro”. Tudo isto ocorre-
do tudo a bem dela”. 43 Ao que tudo indi-
ra na cozinha e na sala sem a presença
ca, nem todos os religiosos concordaram
de testemunhas.
com os discursos eloqüentes sobre o tra-
tamento dos escravos. A prática demons- No mesmo ano, o padre Jerônimo da
trou que muitos assumiram de fato o G a ma , a dministr a ndo o e nge nho de
papel de senhores de engenho, tendo em Santana dos Ilhéus, reclamava aos seus
vista a resultados positivos e boa produ- superiores que com o passar do tempo

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ia ficando mais contrariado, pois a insu- sionário dizia sofrer por necessidade,
bordinação dos escravos era tamanha “não procedendo ao castigo para evitar
que não tinha como atalhar o comporta- a fuga dos escravos”, pois quando repre-
mento rebelde de muitos deles. A des- endidos, a resposta deles era apontar
peito do engenho possuir muitos negros, para o ventre, dizendo: “da barriga puxa
eles negavam-se a trabalhar por mais de o boi; dando a entender, que eu lhes não
cinco horas no dia, mesmo após o padre dou sustento”, motivo que também utili-
argüir que as condições e o trabalho dos zavam para saírem do serviço. Impoten-
escravos de outras fazendas eram muito te, fechava sua missiva, afir mando “já
piores, elementos esses que justificavam não me atrevo com tais escravos! Que-
as punições, marcadas por violência. rem regular-se pelo passado e não aten-
dem ao presente, o mais lastimoso. Meus
Em 1753, o padre Jerônimo da Gama pecados são a causa de eu vir para tal
registrava que os mesmos vícios e parte engenho”. 47 Ficava evidente a má admi-
deles derivava do fato das habitações dos nistração e gestão de seus antecessores,
escravos estarem fora do controle dos com liberdades demasiadas e desvios
superiores; além disso, algumas práticas inconvenientes, difíceis de serem
como as das escravas não trabalharem retificados por meio da violência dos cas-
quando estavam menstruadas, e a de tigos. 48
desejarem mantimentos de forma
abusiva, eram hábitos enraizados numa O tratamento que alguns padres dispen-
terra contaminada por vícios. 46 Em uma saram aos escravos, sem dúvida não era
carta escrita em 13 de junho de 1753, o comum na vida colonial. Nos registros de
jesuíta traçava a sua atuação no enge- débito, dos relatórios de prestação de
nho e os problemas que enfrentava na contas, várias vezes são feitas menções
administração. Dizia que visitava a sen- aos gastos com a alimentação ou com o
zala duas ou três vezes por dia, para os tratamento de doenças que se abatiam
lançar fora da casa e ver os que estavam sobre a senzala. Dentre outros gastos
ou se faziam doentes. O descuido dos destacavam-se a grande quantidade de
negros não era só para com as tarefas tecidos de algodão e outras variedades
produtivas. Segundo ele, os negros eram mais rústicas que eram compradas para
negligentes com o serviço de Deus, ar- a vestimenta dos negros. Nos livros de
gumentando que o terço aos sábados e contas e nas cartas são várias as refe-
missa às segundas-feiras não eram de rências do envio e pagamento de
obrigação, e somente “à força de gritari- verônicas as quais eram utilizadas como
as minhas, de persuasões e alegações mimos para “contentar os escravos, para
com as ordens dos superiores, os mais os animar a mais puxarem pelo serviço, que
deles assistem a tudo”. Desolado, o mis- agora com os novos canaviais não falta”.49

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O padre Jerônimo da Gama, ao descre- genhos e as fazendas permitiram que os


ver a situação deplorável em que se en- religiosos gozassem de privilégios reais,
contrava o engenho de Santana, em sociais e políticos que a atividade envol-
1752, dizia que cuidava dos escravos via, o que significa dizer que a adminis-
enfer mos da for ma que era possível. tração da empresa açucareira e outras
Segundo o religioso, os doentes, com atividades era operada seguindo a neces-
qualquer dor de cabeça, pediam por sus- sidade de lucro, o controle das perdas e
tento especial e ele muito fazia para dar um olhar atento para as alterações de
“uma galinha comprada para o dia de mercado. Envolvidos, por exemplo, com
purga”, e prover com peixe fresco diari- a produção de açúcar, os religiosos fo-
amente, mantendo quatro pescadores no ram forçados ao relacionamento com os
rio. Outro costume que tentava emendar produtores, lavradores, escravos e co-
era aquele das escravas menstruadas não merciantes coloniais, adotando práticas
ouvirem missa nem irem ao serviço, prá- administrativas similares àquelas empre-
tica que não existia em parte alguma. endidas pelos grandes senhores de en-
Nor malmente proibia-se a escrava de genho. Este comportamento é esboçado
andar na água, mas naquela proprieda- nos registros, onde são demonstradas as
de se negavam a fiar e passavam duas preocupações com a produção, em es-
ou três semanas deitadas. Quando pari- pecial com o trato da escravaria.
am não se contentavam com “uma gali-
nha, duas pedem por ser costume”, além A escravidão dos negros foi vista pela
de demandarem por “vinho para dar as maioria dos religiosos como algo neces-
crianças quando nascem; alhos, cebolas, sário para o bom funcionamento da so-
azeite doce, cominhos, e me causam riso ciedade colonial e da conquista portugue-
ver as petições”. O atrevimento dos ma- sa na América. No plano teórico, a defe-
ridos das escravas era tamanho, segun- sa de uma postura mais humanitária para
do ele, pois “me vem descompor a esta com o escravo era delineada de forma
casa, porque não lhes dou, quanto pe- precisa e idealizada, pelos jesuítas, em
dem, porque julgo não ser necessário, e função dos preceitos da caridade huma-
nunca tal vi em tanto mundo”. Estes há- na e da doutrina cristã. Na prática, a re-
bitos nocivos, fruto de administrações alidade era outra. Os senhores de enge-
pouco zelosas, promoveram o caos, uma nho, envolvidos com os interesses da
vez que o tempo de serviço não chegava produção, esqueciam-se das orientações
“a cinco horas no dia e muito menos, da fraternidade cristã. A punição e a vio-
quando o serviço é longe; a multidão é o lência eram os meios utilizados por es-
que faz alguma coisa, como o for mi- tes para realizar o controle social e for-
gueiro”. çar os escravos ao trabalho. A violência
Em suma, podemos observar que os en- auxiliava na pedagogia do medo que re-

pág.128, jan/jun 2002


R V O

gulava as relações entre o proprietário e dominação estabelecida pelo sistema


os escravos. colonial, nas suas diversas esferas, e a
utilização de mecanismos de punição
Nem todos os jesuítas, ao administrarem como algo natural permitiram que os re-
as propriedades da instituição, souberam ligiosos agissem de forma violenta no tra-
colocar em prática uma postura humani- to com a escravaria, comportamento jus-
tária pregada pelos seus pares. O ambi- tificado por muitos como necessário para
ente hostil dos engenhos, a relação de garantir a produção.

N O T A S
1. Vera L. Amaral Ferlini, “Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordes-
te colonial”, Tamás Szmrecsányi (org.), História econômica do período colonial , São Paulo,
1996, pp. 21-34.

2. Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil , v. 1, São Paulo, Comissão do IV Cente-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 115-132, jan/jun 2002 - pág.129


A C E

nário da cidade de São Paulo, 1954, p. 167.

3. Ver a carta régia ao governador Mem de Sá mandando confir mar todas as terras doadas aos
colégios da Companhia de Jesus no Brasil, de 11 de novembro de 1567; Serafim Leite, op.
cit., v. 4, p. 420.

4. Serafim Leite, op. cit., v. 1, pp. 212-213.

5. Serafim Leite, op. cit., v.1, p. 265.

6. Serafim Leite, op. cit., v. 1, p. 297. Sobre as terras que pertenceram ao irmão Pero Correia e
posteriormente foram incorporadas ao Colégio de São Vicente, ver Serafim Leite, “Confirma-
ção das terras que Pero Correia deu à Casa da Companhia da Ilha de São Vicente: 1542-
1553”, História da Companhia de Jesus , v. 1, pp. 541-542.

7. José Carlos S. B. Meihy, A presença do Brasil na Companhia de Jesus : 1549-1649, tese de


doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, 1975, p. 76.

8. Manuel da Nóbrega refere-se aos sete meninos órfãos de Lisboa, que chegaram em janeiro de
1550, com os padres da Companhia de Jesus.

9. Manuel da Nóbrega se refere aqui a Tomé de Sousa. Ver Serafim Leite, Cartas dos primeiros
jesuítas do Brasil , São Paulo, Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, v. 1, 1954,
p. 280.

10.Vera Lúcia A. Ferlini, Terra, trabalho e poder : o mundo dos engenhos no nordeste colonial,
tese de doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo, 1986, pp. 1-9.

11.A casa de purgar, segundo a descrição de Antonil, era separada do edifício do engenho, sendo
a do engenho de Sergipe do Conde a melhor do recôncavo, “fabricada de pedra e cal e
emadeirada com paus de maçaranduba e coberta com todo o asseio de telhas, de compri-
mento de quatrocentos e quarenta e seis palmos e oitenta e seis de largura, dividida em três
carreiras de andainas, com vinte e seis pilares de tijolo no meio, altos quinze palmos e meio,
e largos quatro, para sustentarem o teto, que assenta ao redor sobre paredes largas e fortes”.
Ver André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil , Belo Horizonte, Itatiaia, 1982, p. 128.

12.Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos , Porto, s. e., 1954, p.
139.

13.André João Antonil, op. cit., p. 89.

14.André João Antonil, op. cit., pp. 91-92.

15.Na América espanhola, os jesuítas da região de Córdoba e Assunção, no início do século XVII,
se posicionaram contra a utilização de mão-de-obra ameríndia nos ranchos e fazendas dos
espanhóis, os quais se defenderam alegando que sem esta força de trabalho não era possível
o cultivo das terras e acusavam os religiosos de agir “hypocritically because the fathers retained
all the labor they needed in the reductions while denying the same to the lay farmer or rancher”.
Ver Nicholas Cushner, Jesuit ranches and the agrarian development of colonial Argentina :
1650-1767, Albany, University of New York Press, 1983, p. 20.

16.Ibidem, p. 100.

17.Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT). Cartório jesuítico, maço 8, doc.
n. 28.

18.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 78.

19.Biblioteca da Ajuda, (BA). Cota-50-V-37, ff. 242-243.

20.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 428.

21.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 97.

pág.130, jan/jun 2002


R V O

22.IANTT. Cartório jesuítico, maço 96, doc. n. 352.

23.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 107.

24.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 141 (cópia); ver também n. 142.

25.A compra de escravos normalmente foi justificada em Portugal como necessária para manter
as atividades temporais das propriedades jesuíticas e não tinha intento comercial. Ver sobre
o assunto Dauril Alden, The making an enterprise : the society of Jesus in Portugal, its empire,
and beyond 1540-1750, California, Stanford University Press, 1966, p. 545.

26.Unidade de medida que corresponde a um litro e quatro decilitros.

27.IANTT. Cartório jesuítico, maço 69, doc. n. 206.

28.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 77.

29.IANTT. Cartório jesuítico, maço 68, doc. n. 46.

30.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 390.

31.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 170.

32.Serafim Leite, Fazendas e engenhos dos jesuítas , Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 188.

33.As festas marianas obrigatórias são: Assunção, Natividade, Conceição, Purificação e


Anunciação. Stuart B. Schwartz, Segredos internos : engenhos e escravos na sociedade coloni-
al (1550-1835), São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p. 99.

34.A celebração de São Francisco Xavier dá-se no dia dois de dezembro.

35.Confor me instrução Instructio abius qui officinam sacchaream administrant servanda, do ano
de 1699, ver Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 101.

36.Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (ARSI), 3 I Epp. Bras. (1550-1660), pp. 259-260.

37.IANTT. Cartório jesuítico, maço 15, doc. n. 23.

38.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 124.

39.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 132.

40.Apud Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 130. Ver também Nicholas Cusnher, op. cit., p. 111.

41.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 127.

42.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 160.

43.IANTT. Cartório jesuítico, maço 71, doc. n. 161, carta (2a. via).

44.O tratamento inadequado dos escravos ocupou a atenção dos padres gerais que receberam
informação sobre os excessos que alguns religiosos praticavam na América espanhola. Os
padres Vicente Carrafa e Miguel Angel Taburini escreveram aos padres responsáveis pelas
unidades produtivas, condenando os procedimentos que muitas adotavam na punição de es-
cravos, bem como as práticas de missionários que eram acusados de colocarem os índios das
reduções em espaços pequenos e com pouca alimentação, acarretando a morte de alguns.
Ver Nicholas Cushner, op. cit., p. 87.

45.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, n. 124, carta de 22 de maio de 1745 do padre Luís da
Rocha para o padre Francisco Guerra.

46.IANTT. Cartório jesuítico, maço 54, doc. n. 51.

47.IANTT. Cartório jesuítico, maço 54, doc. n. 55.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 115-132, jan/jun 2002 - pág.131


A C E

48.No contexto espanhol, os jesuítas eram proibidos de aplicar castigos aos ameríndios, como
podemos observar nas ordens fornecidas ao padre visitador Andrés de Rada, em 1663. Ver
Nicholas Cushner, op. cit., p. 42.

49.IANTT. Cartório jesuítico, maço 70, doc. n. 104. Ver Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 140.

A B S T R A C T
In his article the author exposes how the jesuits in the various properties of the Jesus Company
regarded the slaves. The discourse of some religious tended toward the defense of the humanitary
treatment, following the christian precepts of charaty, not denying or questioning, however, the
established system of slavery, assuming it as natural and necessary to the development of society.
The practice proved that many of them did not pursue those precepts, making use of mecanisms
of punishment and violence in their treatment of slaves.

pág.132, jan/jun 2002


R V O

Gutember
Gutembergg Alexandrino Rodrigues
Doutorando em História Social pela USP

O Discurso da Ordem
A composição da imagem
do menor

O
s nomes absorvem para sem- Maria Luiza Tucci Carneiro ao discutir
pre a imagem que formamos metodologicamente a questão da
das coisas. Este poder de de- polissemia dos discursos lembra-nos que
calque dos nomes, como demonstrou
a força das imagens não se encontra
Marcel Proust, 1 advém da pintura obtu-
na veracidade dos fatos que elas ten-
sa que muitas vezes os nomes apresen-
tam representar e sim na capacidade
tam das coisas.
que têm de interferir no comportamen-
to humano, gerando sentimentos e ati-
Como resultado da singularidade
tudes de medo, repulsa, ódio, inveja,
discursiva, as imagens se transfor mam
submissão, adoração, entre outros.2
em máscaras, não mais ocultando
pseudo-identidades, antes revelando, por Partimos dos discursos enquanto moda-
meio de reflexos distorcidos, os traços lidades que buscam representar a reali-
inexoráveis de pessoas concretas, que dade social, pois, ordenam, classificam
vivendo no cotidiano, dissimulam apenas e representam o universo de inserção de
o quanto é conveniente. Tal alusão tor- um determinado grupo, legitimando em
na-se latente quando lembramos a ori- alguns casos, a ação de entidades
gem da palavra máscara, que em grego institucionalizadoras, como, por exem-
significa “persona” ou “personagem”. plo, os presídios, os manicômios e enti-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.133


A C E

dades concebidas como reeducacionais, bilita a compreensão do tipo de imagem


particular mente a Fundação Estadual do que ao longo do século XX, sobretudo
Bem-Estar do Menor (FEBEM-SP). nas décadas de 1960 e 1970, foi sendo
construída em torno de crianças e ado-
Erwing Goffman concebe tais instituições
lescentes pobres da sociedade.
como totais, pois exercem um controle
absoluto sobre as pessoas a elas desti-
Por outro lado, coloca em cena a repre-
nadas. 3 Foucault denomina tais institui-
sentação desta imagem para o imaginá-
ções como completas e austeras, exer-
rio social e coletivo, bem como para prá-
cendo o máximo de controle e vigilân-
ticas de exclusão que este segmento so-
cia, disciplinando cada um de seus mem-
cial vivenciou como fruto da polissemia
bros. Internamente o poder se encontra
discursiva.
diluído pelo espaço, operando na
transversalidade das relações: todos con- O excluído, como sustenta Martine
trolam os indivíduos a eles encarregados, Xiberras, acaba sendo rejeitado para fora
maximizando a eficácia do poder de todos os espaços, tanto dos merca-
institucional. Se para Goffman ocorre dos materiais quanto dos simbólicos.
“uma mutilação do eu” diluindo a indivi- Surgem como o outro que deve ser man-
dualidade do interno, para Foucault ocor- tido à distância, não compartilhando com
re o aparecimento dos corpos dóceis, os valores “socialmente aceitos“. 6
controlados, vigiados e punidos. 4

A questão da espacialidade tor na-se ca-


Entendemos institucionalização como
pilar em uma sociedade excludente e
um conjunto de padrões que foram cria-
autoritária, erguendo fronteiras entre o
dos ao longo do tempo, abrangendo di-
normal e o patológico, o saudável e o
versas instâncias discursivas: o olhar de
doente. Cria-se, portanto, a lógica da vi-
quem fala, como fala e por que fala; a
sibilidade, da disciplina e seu corolário,
situação do interno que se torna objeto
o da segregação social.
a ser analisado e enquadrado em locali-
dades previamente construídas. Enquan-
Autores como Guillermo O’Donnell, Pau-
to objeto, o inter no não tem nenhum di-
lo Sérgio Pinheiro e Marilena Chauí afir-
reito: cada gesto, cada ato, confirma a
mam que o autoritarismo é um dado his-
necessidade da sua exclusão social. No
tórico constante na sociedade brasilei-
tecido social, a institucionalização deli-
ra. Para O’Donnell, o autoritarismo foi
mita as fronteiras entre o nor mal e o
socialmente implantado ao longo da for-
patológico, o doente e o saudável. 5
mação histórica, delineando a dicotomia
O mapeamento de diversas instâncias entre dominantes e dominados: senho-
discursivas – discursos jurídicos, médi- res – escravos, industriais, proprietários
cos, psiquiátricos e sociológicos – possi- de terras e não proprietários. 7

pág.134, jan/jun 2002


R V O

Na mesma linha que O’Donnell, Paulo muito mais que o corpo, e sim a alma
Sérgio Pinheiro atesta que o dos internos.
autoritarismo, no Brasil, é socialmente
A história da criança no Brasil, como lem-
existente, caracterizando-se por diversas
bra Mary Lucy Del Priori, 10 se fez à som-
polaridades, delimitando fronteiras, ex-
bra dos adultos, tornando-se objeto pri-
cluindo grande parcela da população por
vilegiado dos pais, clérigos, mestres, se-
meio da suspeição e mecanismo de con-
nhores, juristas, médicos e toda uma
troles correcionais dos quais a prisão, os
categoria de profissionais que, aos pou-
manicômios e os reformatórios se encar-
cos, reservaram para as crianças o mun-
regam de classificar os indivíduos em ci-
do do silêncio. Seus gestos, jogos, brin-
dadãos e não cidadãos. 8
cadeiras, atitudes, pulsações e compor-
A questão da cidadania também se en- tamentos foram, paulatinamente, tornan-
contra presente nas discussões de do-se análises de diversos saberes: o
Marilena Chauí, apontando-a como privi- olhar do adulto sempre conferiu legiti-
légio de poucos. O autoritarismo é con- midade às inúmeras ações para que a so-
cebido pela autora como um grande ciedade, ao longo da história, deter mi-
referencial para pensar mos as relações nasse o local a ser ocupado pelas crian-
entre o Estado e a sociedade civil. 9
ças. Se a história das crianças é

Tanto Pinheiro quanto Chauí observam emblemática da postura excludente da

que o autoritarismo, como dado históri- sociedade brasileira, torna-se muito mais

co da sociedade brasileira acabou se complexa quando analisamos a história

acentuando com o golpe de 1964, para- das crianças e dos jovens oriundos das

doxalmente batizado com o nome de re- camadas mais pobres da sociedade que,

volução. vivendo à margem do sistema, despon-


tam tal Hércules Quasímodo, isto é,
A imagem da criança abandonada, infra-
como personagens monstruosas, disse-
tora e delinqüente teve como sustentá-
minando o medo e a desconfiança. A
culo inúmeros artigos da revista Brasil
estas personagens não faltaram no inte-
Jovem, criada em 1967 para divulgar as
rior da própria sociedade aqueles que
obras da Fundação Nacional do Bem-Es-
defenderam o combate, e no limite do
tar do Menor (FUNABEM) que, por meio
possível, a exterminação.
de inúmeros colaboradores, compuse-
ram um quadro sobre as diversas A história, como Loreley, 11 exerce um
tipologias do abandono e da delinqüên- fascínio a todo espírito que se propõe a
cia. Este quadro encontrou ainda respal- contemplá-la, seduzindo não pelo canto,
do no interior dos prontuários da FEBEM- mas pela magia da palavra. Palavra que
SP. Nos prontuários, os discursos médi- inventa a si mesma, o mundo represen-
cos e jurídicos tentaram diagnosticar tando o desenrolar das experiências vi-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.135


A C E

vidas, assim como assegurando a circu- tem suas possibilidades e suas funções

lação das forças entre o domínio do visí- (possibilidades de mutação funcional).


vel e recompondo, no fluxo temporal, as O discurso é um espaço de posições e

trajetórias dos homens enquanto sujei- de funcionamentos diferenciados para

tos históricos. os sujeitos.14

A documentação existente no Brasil so- Para Foucault o discurso aparece como

bre a temática da menoridade pode ser acontecimento, carregando as condições

vista, em larga escala, como um de produtividade e guardando em seu

referencial de que o autoritarismo per- interior a potencialização dos dispositi-

passa todas as esferas da sociedade, vos de vigilância, 15 o esquadrinhamento

sobretudo na articulação dos inúmeros do corpo e da alma daqueles os quais

discursos produzidos. são encarregados. Cria-se por meio dos


discursos inúmeros saberes, que aplica-
Podemos dizer com Jacques Le Goff que dos objetivamente sob o estatuto da ci-
todo documento é um monumento, e ência, da razão e da objetividade, leva
como tal nunca é puramente objetivo, na ao confinamento os loucos, os presos e
medida em que é previamente construído todos os indivíduos tidos como anormais
e arquitetado com interesses de deter- e desviantes. Enfim, conseguem estabe-
minados grupos, apresentando parado- lecer a dicotomia normal/anor mal, são/
xos e antíteses. Desta forma “deve ser patológico.
analisado, descosturado e desmontado”.12
Dentro de seu método de análise,
Foucault se preocupa em investigar como
Seguindo o raciocínio de Le Goff e ten-
do como pressuposto teórico as inúme- e por que os discursos são produzidos,

ras análises discursivas de Michel quais as formas de apropriação deles,


que indivíduos, que grupo, que classes
Foucault, podemos dizer que os discur-
sos, produzidos por determinadas insti- têm acessos a determinados tipos de dis-

tuições, são monumentos, tendo dispo- cursos e quais seus limites. 16

sição própria, condições de existências Ao deter minar as condições de produti-


e atuações práticas. 13 vidade, o autor busca “tornar visível o
que só é visível por estar demasiado na
O que importa mostrar é que não se
super fície das coisas”. 1 7 Encontramos
tem por um lado discursos inertes; e
nesta busca da superfície, às vezes con-
por outro a existência de um sujeito
fusa e contraditória, o óbvio, e como lem-
todo poderoso que os manipula, os
bra Clarice Lispector, o óbvio é a verda-
transfor ma, os renova; sim que os su-
de mais difícil de se enxergar.
jeitos que produzem discursos formam
parte de um campo discursivo; que ali As contribuições de Foucault são impor-

pág.136, jan/jun 2002


R V O

tantes, na medida em que “o discurso realidade dada e, dessa forma, a pos-

não é o lugar de uma tábula rasa onde sibilidade de uma crítica real. 20
se depositam passivamente certos obje-
Para o autor, o discurso é um evento,
tos previamente constituídos, definindo-
sendo, antes de tudo, realizado tempo-
se pela capacidade de articulação de ob-
ralmente e no presente. 21 O discurso,
jetos heterogêneos”. 18
como produtor de eventos, vincula-se à

Analisar for mações discursivas, pessoa que fala e, por isso, congrega em

positividades, e o saber que lhes si uma pluralidade de tempos históricos,

correspondem, não é assinar formas de carregando as marcas da temporalidade,

cientificidade, é recorrer a um campo seus agentes e objetividades. “O evento

de determinações históricas que deve consiste no fato de alguém falar, de al-

dar conta, em sua aparição, sua per- guém se exprimir tomando a palavra”.22

manência, sua transfor mação, e che- O discurso, como lembra o autor, é sem-

gado o caso seu eclipse. 19 pre discurso de algo, refere-se a um mun-


do que tenta exprimir e representar. Por
As dimensões dos discursos encontra-
outro lado, ele tem a eficácia da persua-
das, explícitas e implicitamente nos re-
são e determina o território pelo qual as
gistros da FEBEM, ajudam, em parte, a
personagens devem se posicionar. Ins-
recompor as condições de existência de
creve-se no fluxo de práticas realizadas
parcela da população brasileira: como
constantemente, estabelecendo normas
produtores de eventos e dando horizon-
e padrões que vão ao encontro do direi-
te às suas análises, tais discursos funci-
to, da legitimidade e da soberania, num
onam como catalisadores da imagem
elo de coexistências bipolares ou, como
conferida às crianças e aos adolescen-
salienta Foucault, cria uma economia
tes que subitamente apareceram como
política da verdade. 23
o outro, ou estrangeiros dentro do pró-
O discurso possui não somente o mun-
prio território brasileiro.
do, mas o outro, outra pessoa, um
Sustenta Paul Ricouer que todo texto interlocutor ao qual se dirige: o evento
manifesta um mundo per meado de ten- é o fenômeno temporal da troca, o esta-
sões, rupturas e permanências, carregan- belecimento do diálogo, que pode tra-
do sua temporalidade: var-se, prolongar-se ou interromper-se.24

Não há intenção oculta a ser procura- A análise empreendida pelos colabora-


da detrás do texto, mas um mundo a dores da revista Brasil Jovem estabele-
ser manifestado atrás dele. Ora, esse ce uma tipologia do desvio e da delin-
poder do texto de abrir uma dimensão qüência. Parte-se da premissa de que a
da realidade comporta, em seu princí- inexistência de condições materiais (po-
pio mesmo, um recurso contra toda breza e seus corolários) contribui dire-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.137


A C E

tamente para o aparecimento do aban- com o pensamento do sociólogo.


dono. Geralmente, a causalidade do fe-
As menores transviadas e os menores
nômeno existente é explicitada a partir
infratores derivam dos cortiços (...). Na
do mundo dos setores pobres da socie-
rua, coabitada por indivíduos sem ne-
dade, vistos enquanto desviantes. Não se
nhuma índole, foco de prostituição e
questiona o sistema sociopolítico e cul-
marginalização, os menores adquirem
tural, no qual estão inseridos. Procuram-
vícios e hábitos perniciosos: furtos,
se explicitações residuais no universo
uso de entorpecentes, perversões.
material e simbólico dos indivíduos.
Atraídos pelo submundo, resvalam-se
A análise dos documentos deve sair da e são arrastados ao crime (...). 26
superfície e registrar que as condições
Geralmente nos discursos, as habitações
materiais e institucionais criadas por
precárias aparecem como metáfora da
meio da articulação dos discursos, men-
degeneração social. O mundo da favela
sagens e representações funcionam
é visto como germe do problema social,
como alegorias que simulam a estrutura
locais infectos de irregularidades.
real de relações sociais, legitimando,
como afirma Pierre Bourdieu, uma ordem A rua, de acordo com os ideólogos, fun-
arbitrária em que se funda o sistema de ciona como a continuação do mundo
dominação vigente. 25 desordenado das favelas e dos cortiços.
Mundo do caos e da desintegração mo-
Ao problematizarmos a criação da ima-
ral e social, despontando, no dizer do ju-
gem do menor, não podemos perder de
rista Lauro Barreira, a irresponsabilidade
vista as correlações simbólicas – efeitos
e a miséria; local isento de educação e
e práticas de poder, ação e correlação
condições de existência. Segundo o ju-
do saber, exclusão material e simbólica
rista, “os filhos concebidos dentro des-
– e materiais subjacentes a várias cate-
tas moradias são fracos, condenados à
gorias que em determinado momento his-
inflexível lei da seleção natural”. 27
tórico se articularam.
Nestas duas dimensões, temos a metá-
Dentro de uma análise funcionalista, des-
fora da desintegração do mundo orgâni-
ponta o pensamento do professor de so-
co, concebido pelos ideólogos, como cor-
ciologia José Cavalieri, segundo o qual
po político da nação, em oposição ao
os fatores responsáveis pelo aparecimen-
mundo ordenado de coesão e estabilida-
to dos menores infratores estão direta-
de social.
mente ligados à pobreza e a precárias
condições habitacionais, destacando os Para Georges Balandier, a metáfora cor-
cortiços e o mundo da rua deletério por poral traduz a lógica do ser vivo em lógi-
natureza. O limite entre o mundo da rua ca social. Seguindo seu raciocínio, a so-
e da marginalidade é tênue, de acordo ciedade passa a ser concebida por meio

pág.138, jan/jun 2002


R V O

de um grupo mantenedor do poder polí- trataram da problemática dos menores


tico, como corpo orgânico, cujos tecidos, abandonados, com os artigos que se de-
órgãos e membros funcionam como um bruçaram sobre os casos de conduta anti-
todo ordenado. 28
O descompasso de um sociais, ou seja, os infratores e os delin-
ou de vários órgãos levaria ao caos soci- qüentes. Ambos partiam dos mesmos
al. Tor na-se necessário diagnosticar as pressupostos, vistos como causadores da
parte infectas irradiadoras de moléstias. situação analisada: industrialização, ur-
A doença assume no interior do discur- banização, não-integração de parcela da
so político, afirma Susan Sontag, uma no- população, condições precárias de mo-
ção de repressão, concebida não como radia, higiene e alimentação. No entan-
castigo, “mas como manifestação do mal, to, enquanto parte dos colaboradores
de algo que tem que ser punido”. 29
partia de pressupostos sociológicos, ou-
tra categoria de ideólogos procurou bus-
A sociedade é concebida como corpo
car nas ciências jurídicas e/ou médica a
doente, tanto físico quanto moralmente.
validação de suas teses eminentemente
Diversos males, sustenta a estudante
excludentes e moralistas. Se o primeiro
universitária Leonora Farias Neves da
grupo tentou investigar a gênesis do
Costa, comprometiam às bases da soci-
abandono, o segundo, legitimando-se
edade. Dentro de uma lógica estritamen-
num saber técnico ou científico esqua-
te moral são apontados como graves pro-
drinhou os vetores, considerados por
blemas:
eles fundamentais para se conceber a
A realidade atual do menor é bem mais
delinqüência, enquanto desvio de perso-
aterradora que a exploração do menor
nalidade, em alguns casos de psicopa-
nos primórdios da revolução industri-
tas, completando o ciclo entre um e ou-
al, pois, agora, já não é só a saúde físi-
tro grupo.
ca do menor que se vê agredida, mas

existe ameaça atual e iminente à sua


Mário Moura Rezende, juiz de João Pes-
própria moral, comprometendo as pró-
soa, ao apontar as causas da delinqüên-
prias bases da sociedade, pelo aumen-
cia juvenil, fala das transformações só-
to indiscriminado da criminalidade, da
cio-econômicas pelas quais passou a so-
toxicomania, do meretrício e da ho-
ciedade brasileira. A passagem de uma
mossexualidade. O abandono do me-
economia rural para uma industrial e co-
nor terá, como seqüência inevitável, a
mercial é apontada como divisor para
destruição da sociedade organizada
explicar a delinqüência. Seguindo seu
com retor no ao obscurantismo e à
raciocínio, a “transformação atraiu para
barbárie. 30
os centros urbanos todos componentes
Houve, ainda, uma junção entre os dis- válidos”. A partir disso explica o apare-
cursos dos colaboradores da revista que cimento de duas categorias: na primei-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.139


A C E

ra, apontaria o grupo do qual participa- aqui no nordeste o caso está tomando

vam os indivíduos honestos que, por as proporções de verdadeira calamida-


meio de seu trabalho, conseguiram ven- de pública. Os comerciantes vivem

cer; outros “por inaptidão ou falta de aterrorizados com esses pequenos

sorte nada conseguiram, mas, nem por monstros. Enquanto isso, não dispo-
isso regressaram ao campo; preferiram mos de estabelecimentos de reeduca-

ficar habitando míseros mocambos nos ção adequados para interná-los. 32

arredores das cidades, vivendo de expe-


Pelo uso dos adjetivos imputados aos
dientes”. Finaliza o autor que a sorte dos
menores, como, por exemplo, “pequenos
filhos desses homens estava selada, pois
delinqüentes, desajustados, pequenos
já que não dispunham de meios para
monstros”, observamos como o discur-
satisfazer “seus mais elementares dese-
so constrói a imagem do infrator como
jos, ter minam praticando os primeiros
elemento de alta periculosidade. O res-
furtos e daí por diante tem mais um de-
tante da sociedade aparece como impo-
linqüente”. 31
tente diante da situação. Temos a

Mais uma vez o jurista focaliza o proble- verticalização da prática discursiva exi-

ma, vinculando-o dentro do contexto só- gindo uma postura dos órgãos competen-

cio-econômico no qual a transfor mação tes, isto é, de se criar estabelecimentos

da economia rural e urbana responderia, de reeducação para interná-los.

em primeira instância, aos fatores De acordo com um artigo intitulado In-


precípuos da marginalização do menor, vestigação Criminológica, 33 o Código de
encontrando na delinqüência juvenil seu Menores, datado de 1927, não atendia
último estágio. Porém, esta perturbaria mais às necessidades do Brasil atual. O
toda a sociedade, apresentada como im- novo código iria se preocupar em preve-
potente diante do nascimento dos cha- nir e descobrir as causas da delinqüên-
mados infratores. cia do abandono dos menores e protegê-
los antes que se tornem infratores.
A maioria da população não compre-

ende essas verdades e por isso culpa Necessitamos de uma justiça criminal

as autoridades por não destruírem ou especializada, incluindo os organismos

não manterem na prisão os pequenos policiais. Necessitamos de uma justi-

delinqüentes. Esta indignação já con- ça criminal mais rápida. Necessitamos

taminou todas as camadas sociais, que o Brasil participe mais ativamente

transfor mando-se numa verdadeira re- dos trabalhos das Nações Unidas sobre

volta contra a existência desses prevenção contra o crime e tratamen-

desajustados, principalmente porque to de criminosos. Necessitamos corri-

alguns deles já chegaram a matar. Mas, gir as distorções da legislação penal

voltando ao tema dos delinqüentes, por meio de uma adequada política cri-

pág.140, jan/jun 2002


R V O

minal, com a investigação Os paulistanos estão realmente preo-

criminológica para obtenção de uma cupados com essa onda interminável


melhor defesa social. 34 de assaltos à propriedade particular e

a transeuntes. O grande exército anô-


O artigo, acima, preconiza a prevenção
nimo, que é representado pela polícia
do crime como for ma de combater a de-
civil, em permanente vigília, multipli-
linqüência, assim como o próprio delin-
ca seus esforços para conter a onda de
qüente. O uso abusivo do verbo neces-
delinqüentes que invadiu a cidade. São
sitar, em primeira pessoa do plural, re-
Paulo é uma capital do trabalho. Aqui,
mete a necessidade de se criar uma jus-
noite e dia, os homens constroem,
tiça criminal mais eficiente, bem como
buscando o seu conforto e o da famí-
uma intervenção direta do gover no nos
lia, a própria grandeza do Brasil. Certo
crimes civis.
é que não oferecemos condições, ape-
Nesta mesma linhagem, alguns artigos sar de sermos quase seis milhões de
preconizavam a reestruturação do Códi- habitantes, para incentivar proezas dos
go de Menores, de 1927, e uma das ino- que se colocam à margem da lei. Na
vações, no dizer de vários juristas, de- verdade os que delinqüem não são in-
veria perpassar pela intervenção do cri- divíduos calejados no crime, marginais
me cometido pelo menor. facilmente identificáveis, pelos agen-

No dizer do jor nalista Gumercindo tes de segurança, pelos seus gestos e


pela sua linguagem moldada no hábi-
Fleury, uma vez que os menores são ins-
truídos sobre a proteção que a menori- to da gíria. Compreendo as tremendas

dade lhes dá, tor nam-se indiferentes e dificuldades com que lidam os inspe-
tores para apanhar os “fora da lei“ por-
por isso mais perigosos.
que todos os assaltos verificados em
Todas as medidas que a polícia vem
São Paulo nos últimos anos têm sido
tomando para conter essas gangues
praticados ainda na adolescência, e
que se tornam cada vez mais sinistras,
com menos de vinte anos de idade. 36
esbarram com óbices intransponíveis,

dos quais o principal é, sem dúvida, a Mediante observações de Rosa Maria


pouca idade dos criminosos. Estes, per- Fisher, “se por um lado a menoridade

feitamente instruídos sobre a proteção lhes permite mais livre trânsito no ‘mun-
que a menoridade lhes dá perante a lei, do do crime’, por outro lado o estigma
tornam-se indiferentes e cínicos e, por social os vincula tão fortemente à ilega-
isso mesmo, ainda mais perigosos. 35 lidade que muitas dessas crianças são
marcadas como criminosas, antes de te-
Os menores são apresentados pelo ju-
rem a oportunidade de delinqüir”. 37
rista como delinqüentes, viciosos, inici-
ados no crime, usuários de tóxicos. Da problemática exposta surgiu uma dis-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.141


A C E

cussão importante durante o período, sos durante os séculos XVIII e XIX, de-
isto é, a necessidade de intervenção do terminando o racismo, a intolerância e a
Estado no sentido de investir em pesqui- exclusão de certo segmento social.
sas científicas, tal como a criminologia,
A criminologia nasceu em 1885, medi-
defendida por Vir gílio Donnici, como
ante estudos de Rafael Garófalo, da Es-
“uma ciência jovem, procurando unifica-
cola Italiana, fortemente marcada pelo
ção metodológica, tendo em vista o con-
positivismo e pela antropologia criminal,
junto de ciências, desde a biologia, a an-
da qual também faziam parte Césare
tropologia e outras, até a estatística. É
Lombroso e Enrique Ferri, os quais viam
uma ciência viva, eminentemente soci-
o crime como fenômeno natural, deter-
al, com a finalidade de melhorar os mé-
minado por fatores biológicos que agiri-
todos para o tratamento dos criminosos
am ao nível do organismo individual.
e a prevenção da mar ginalidade”.38
A influência das idéias de Ferri, profes-
É impressionante a quantidade de vezes
sor da Escola Italiana de Direito Penal,
que os colaboradores recorrem às teori-
no Brasil, foi demonstrada por Lilia
as de Césare Lombroso. Embora alguns
Moritz Schwarcz, quando este, em 1908,
apresentem críticas ao método
visitou a Faculdade de Direito de São
lombrosiano, extremamente determinista,
Paulo, sendo recebido “com entusiasmo
concordam, em parte, com as investiga-
de alunos que com euforia atiravam-lhe
ções operacionalizadas pelo teórico ita-
flores e trepidosos aplausos”. 39
liano. O que parecia sepultado renasce
Com Lombroso (1835-1909), seria defi-
neste período, desta vez com grande ve-
nido o perfil do delinqüente, a partir das
emência, quando se pensa a questão dos
técnicas de antropometria e da
menores infratores, pois somente uma
craniologia, ao examinar os corpos dos
criminologia, cujas heranças remonta-
criminosos, bem como no tratamento
vam o século XIX, poderia deslindar a
estatístico dos resultados obtidos. Por
alma perversa dos pequenos corpos cri-
meio de seus estudos, Lombroso, classi-
minosos.
ficaria os seres humanos em dois grupos:
No Brasil existe uma pluralidade de tem- os delinqüentes e não-delinqüentes. Os
pos históricos coabitando o mesmo es- primeiros seriam objeto de estudo bio-
paço, destinando parte do contingente lógico, postulando inúmeros caracteres
social à exclusão. Esta não foi a primei- a eles peculiares. Nascia a figura do cri-
ra vez na história que métodos calcados minoso nato. 40
no pensamento, em vigor no século XIX,
Lombroso, sustenta Carrara, formulou
foram retomados, como demonstraram
uma série de estigmas que
Lilia Moritz Schwarcz e Sérgio Carrara,
ao discutirem a convergência de discur- na superfície do corpo do criminoso

pág.142, jan/jun 2002


R V O

identificava sua alma. Psicologicamen- de fato o são e carregam os estig-

te, o gosto pela tatuagem, pela gíria e mas da suspeita, da culpa e das
onomatopéia, a imprevidência, a pro- incriminações permanentes. Situação

digalidade, a vaidade, a imprudência, mais aterradora quando nos lembra-

a impulsividade, a insensibilidade mo- mos de que os instrumentos criados


ral, o caráter vingativo, o amor pela para a repressão e tortura dos presos

orgia, a preguiça, a precocidade, o pra- políticos foram transferidos para o tra-

zer no delito, e a ausência de remor- tamento diário da população trabalha-


sos completavam a figura do atá- dora e que impera uma ideologia se-

vico. Havia ainda características gundo a qual a miséria é a causa

fisionômicas: o olhar frio e fixo do as- da violência, as classes ditas


sassino. Errante, oblíquo e inquieto ‘desfavorecidas’ sendo consideradas

nos ladrões. 41 potencialmente criminosas. 43

Para Erwing Goffman, o estigma carrega O discurso psiquiátrico também se fez


em si uma valoração completamente ne- presente na revista Brasil Jovem , confe-
gativa, tor nando-se, na realidade, um rindo por meio da ciência legitimidade à
tipo especial de relação entre atributo e representação da alma potencialmente
estereótipo. Partindo deste postulado te- criminosa. O professor Elso Arruda, di-
órico, o autor fundamenta sua análise a retor do Instituto de Psicologia da Uni-
partir da inflexão de três atributos con- versidade Federal do Rio de Janeiro, con-
siderados pilares mantenedores da siderava a delinqüência como atributo de
estereotipia engendrada pelo estigma, a personalidades psicopáticas. Para ele a
saber: as abominações do corpo, mani- psicopatia era um atributo do “homem
festadas pelas deformidades físicas; as que se considerava infeliz, constituindo
culpas de caráter individual (fraquezas, grave perigo à sociedade capaz de prati-
vícios) e, finalmente, os estigmas tribais car os mais abomináveis crimes”. 44
de raça, nação e religião. Ao construir
Essas personalidades, denominadas
uma teoria do estigma, chama-nos a aten-
anormais, em sua maioria e constituí-
ção para os perigos que ela representa,
das “personalidades psicopatas“. Em
calcada na inferioridade que confere ao
virtude de suas anormalidades, as per-
outro, retirando sua individualidade e,
sonalidades psicopáticas costumam
por conseguinte, mergulhando numa es-
incidir no crime e, não raro, tornam-se
fera de animosidade baseada em outras
delinqüentes inveterados e perigosos
diferenças, como, por exemplo, de clas-
para a sociedade. Se querem dinheiro
se social. 42
roubam ou assaltam, se querem bens
Marilena Chauí lembra-nos de que as ou vantagens obtêm-nos sem olhar os

classes ditas subalternas meios; se sentem desejos instintivos,

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.143


A C E

raptam e violam; se não gostam de nin- grado enquanto mantenedor do social.


guém, atacam e matam. Destituídos de
Os discursos constroem a imagem do
sentimento e de valores éticos, seguem
corpo social enquanto pluralidade das
a regra de que os fins justificam os
dimensões corpóreas e espirituais. A so-
meios. Ao estudar essas personalida-
ciedade é revestida de car ne, órgãos,
des anormais, em particular os delin-
músculos, tecidos, nervos, e sobretudo,
qüentes contumazes, verifica-se que
de uma alma sequiosa da moralidade dos
suas anomalias e sua expressão no
valores ligados à nação, à pátria, à reli-
comportamento variam em cada caso.
gião e à família.
Assim há os que têm no roubo sua

manifestação típica. Os que assaltam Maria Helena Capelato trabalha a concep-


com uso de armas ofensivas; os que ção das imagens sagradas utilizadas em
falsificam documentos; os que atracam determinados governos e a força
menores para fins libidinosos, os que conferida a elas. Para tanto, baseia-se em
não podem ser perturbados porque Alcir Lenharo para quem a “sacralização
reagem com violência explosiva; enfim dos símbolos garante maior força à ima-
há um número infinito de condutas gem”.46
anti-sociais e criminosas desses indi-
No dia 5 de outubro, dando início às so-
víduos. Muitos deles, excessivamente
lenidades da Semana da Criança, Emílio
vaidosos, presunçosos e arrogantes,
Garrastazu Médici fez um pronunciamen-
cometem atos anti-sociais apenas para
to na FUNABEM, à posteriori incorpora-
serem respeitados, para aparecer nos
do na revista Brasil Jovem . O que cha-
jor nais e na televisão, para adquirir
ma a atenção, no pronunciamento de
notoriedade, enfim para chamar aten-
Médici, é o uso abundante da palavra
ção sobre a sua pessoa. Ao passo que
milagre, ora para ressaltar o papel da
as pessoas normais procuram se des-
Fundação Nacional do Bem-Estar do Me-
tacar pelo trabalho honesto, pelo es-
nor, ora para ressaltar o gover no militar
tudo, pela dedicação à ciência ou à
como responsável direto pela criação da
causa pública, as personalidades anor-
instituição.
mais procuram a evidência e a notorie-

dade pelas suas façanhas, pela ostenta- Nesta manhã, vejo todo o milagre. Vejo
ção, pelo exibicionismo e pelo crime. 45 o milagre da transmutação da “sucur-
sal do inferno“, da escola do crime, da

Além das metáforas extraídas do mundo fábrica de monstros morais (referênci-

orgânico, de conceitos morais, encontra- as ao Setor de Atendimento dos Meno-

mos a metáfora religiosa. O discurso do res-SAM – extinto com a criação da

presidente Emílio Garrastazu Médici, nes- FUNABEM em 1º de dezembro de 1964)

te sentido, torna-se emblemático do sa- em um centro educacional voltado para

pág.144, jan/jun 2002


R V O

o desenvolvimento integral do menor. rais e espirituais justapostas. O corpo da


Esse milagre que hoje e aqui procla- nação recebe por meio das imagens do
mamos a toda a nação brasileira, nós sagrado, do divino, insígnias de pereni-
o devemos à revolução de março. E não dade. O líder funciona como o ser atre-
tenho dúvida em afir mar que a lado à ordem das coisas, seu amor, be-
constatação mais cega e mais surda, nevolência se comparam à força do divi-
que tudo negasse à obra revolucioná- no, em luta constante para extirpar
ria, haveria, pelo menos de bendizê-lo do mundo profano a mácula da
por apagar o sangue, a corrupção e a desassistência da infância no Brasil.
vergonha do malsinado SAM, pois, nes-
O caleidoscópio dos problemas relativos
te lugar, ergue a FUNABEM. 47
aos menores abandonados e aos delin-
O general Médici, após relatar todas as qüentes ganhou status de legitimidade no
atrocidades cometidas aos menores, faz interior dos prontuários da FEBEM-SP. A
uma alusão à lenda do Negrinho do instituição na mesma linhagem que os
Pastoreio. Em seguida, associa a lenda à colaboradores da revista Brasil Jovem ,
história de vida de cada criança desam- aponta o conjunto de valores responsá-
parada, vítima da exploração e da veis pela marginalização do menor em
corrupção. termos profundamente moralistas. O de-

Penso nas crianças de tudo precisadas; bate feito pelos ideólogos sobre a ques-

penso nos menores que, lá fora, so- tão das crianças e dos adolescentes, di-

frem, dos maiores, a crueldade, a ex- lui no tempo e no espaço os aspectos

ploração e a corrupção, e me revolto sociais, políticos e econômicos nos quais

ante as imagens da criança, mendiga, as crianças e suas famílias estão inseri-

da inocência feita cúmplice e da pure- dos. Criou-se, por meio do olhar

za manchada no vício. E a saga de mi- reducionista, a idéia da pobreza e da

nha terra me vem como símbolo mes- delinqüência como atributos das pesso-

mo de todos os menores desampara- as, não como conseqüência de uma so-

dos, que em cada qual vejo um ciedade injusta, cujos bens econômicos

negrinho do pastoreio. Quisera vê-los, se encontram nas mãos de determinados

a todos, esses desamparados, não so- indivíduos, em detrimento da maioria da

mente como aquele atirado, sangrando população.

num formigueiro, afilhado de Nossa Se-


A FEBEM, da mesma forma, possui seus
nhora, e que, aparecerem as coisas per-
ideólogos cujas idéias vão ao encontro
didas, surgindo à frente de fantasmática
do pensamento nor matizador dos cola-
tropilha, diz-se fazer o milagre.48
boradores de Brasil Jovem . Para cada
A maneira como Médici constrói seu dis- caso, a instituição atribui um conjunto
curso coloca todas as dimensões tempo- de valores, recaindo ao nível sócio-fami-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.145


A C E

liar. O elo que se for mou na esteira de Os prontuários são excelentes documen-
todos estes pensamentos deter minou a tos históricos, como lembra Maria
institucionalização do menor. Clementina Pereira da Cunha, pois reve-
lam os limites da ação institucional e,
A riqueza dos prontuários permite visualizar
apesar da monotonia na qual se reveste
várias etapas da institucionalização do inter-
a história de vida de cada interno, per-
no, por exemplo, quem são os chamados
mitem-nos compreender que “esta só
“menores” abandonados e infratores, e
pode ser compreendida quando
como é realizado seu processo de
referenciada à experiência individual e
institucionalização a partir de diversas
também dessa maneira incorporada à
categorias discursivas e extradiscursivas.
problemática histórica. Resta considerar
Os prontuários possibilitam, ainda, o res-
que os processos da institucionalização
gate de uma memória social esquecida,
configuram evidentes for mas de relação
como sustenta Maria Odila Leite da Silva
ao ambiente social e, nesta medida, fa-
Dias ao estudar a vida cotidiana das mu-
lam sem cessar deste mundo que os con-
lheres pobres ao longo do século XIX:
denou ao silêncio”.51
Histórias de vida que foram se perden-
No interior dos prontuários, verificamos
do antes por um esquecimento ideoló-
como ocorreu a solidificação da imagem
gico do que por ausência de documen-
do menor abandonado e infrator. Os
tação. É verdade que as infor mações
muros da FEBEM-SP se tornaram labora-
se escondem, ralas e fragmentadas,
tórios a partir dos quais os técnicos –
nas entrelinhas dos documentos, onde
médicos, psiquiatras, psicólogos e assis-
pairam fora do corpus central do con-
tentes sociais – decodificaram cada ges-
teúdo explícito. Trata-se de reunir da-
to, cada ato do interno. Este se tor na
dos muito dispersos e de esmiuçar o
objeto a ser analisado e classificado. A
implícito. 49
FEBEM tor na-se o locus da vigilância e
Os prontuários constituem espécies de
do asilo.
dossiês nos quais observamos toda a tra-
O mundo da disciplina, da vigilância e
jetória da institucionalização da criança
do asilo encontrou em Foucault um de
ou do adolescente, levando-nos à impres-
seus estudiosos. O autor investiga a
são de que nada escapa aos olhos aten-
coisificação do homem frente às diver-
tos da instituição encarregada de acom-
sas práticas discursivas visualizadas em
panhar todo o seu percurso, cujo ponto
manicômios e em presídios.
de partida se faz ainda no ambiente fa-
miliar, passando a acompanhar, paula- Segundo Foucault, as relações de força
tinamente, todos os atos, gestos agem em múltiplos sentidos, de tal modo
identificadores de uma patologia a ser que se irradiam do centro para a perife-
sanada. 50 ria, de baixo para cima, apresentando,

pág.146, jan/jun 2002


R V O

portanto, um caráter difuso, garantindo atributos do ordenamento do tempo. 52


uma relação assimétrica entre os indiví-
Existe o jogo duplo dos olhares: de um
duos.
lado, os pareceristas esquadrinham o
Podemos dizer que as instituições, como movimento corpóreo do interno; de ou-
a FUNABEM, nascidas com o golpe mili- tro, os internos reconhecem que a lógi-
tar, funcionam como sistemas disciplina- ca da instituição procura transformá-los
res, impondo uma lógica constante de em corpos dóceis, controlados, vigiados
controle e vigilância. Nelas, como sus- e punidos.
tenta Foucault, o poder é capilar, ocor-
Para efeito de análise, três categorias de
rendo na transversalidade, isto é, em
internos foram observadas nos prontuá-
múltiplas direções – diretores, médicos,
rios, a saber: os menores abandonados
pedagogos, inspetores e vigias –, passan-
ou com problemas de conduta – crian-
do tanto pelos dominantes quanto pelos
ças de quatro a 12 anos; adolescentes
dominados. O controle existente dentro
do sexo feminino – 13 a 17 anos, inter-
das unidades da FEBEM é absolutamen-
nadas por problemas de conduta e os
te discreto, pois está em toda parte e
adolescentes do sexo masculino – de 14
sempre alerta, funcionando per manente-
a 18 anos, considerados pela instituição
mente e em grande silêncio.
como portadores de problemas de con-
Em Vigiar e punir , Foucault demonstrou duta, ou infratores.
uma nítida preocupação em entender al-
O que chama a atenção, em um primei-
guns dos processos de constituição do
ro momento, é a elasticidade das classi-
indivíduo, sendo que, dentre eles, o pro-
ficações criadas pela instituição, isto é,
cesso de tal constituição será analisado
a nomenclatura que diz respeito à con-
por meio do mapeamento da sociedade
duta assume diversas categorias diver-
d i s c i p l i n a r. O a u t o r a p r e s e n t a u m a
gentes entre si, mediante a análise dos
listagem dos valores que a relação de
pareceristas.
força assumiu no decorrer do século
XVIII, ou seja, a divisão do espaço, o Para as crianças de quatro a 12 anos, o
ordenamento do tempo e finalmente a termo problema de conduta refere-se ao
composição espaço-tempo. fato de não freqüentarem escola, não
obedecerem aos pais. Quando a ter mi-
A inter nação, o enquadramento são
nologia é usada para adolescentes do
potencializados na sociedade disciplinar,
sexo feminino de 13 a 17 anos, verifica-
no dizer de Foucault, enquanto relações
mos outras colorações, como, por exem-
de força circunscritas à divisão do espa-
plo, prostitutas, toxicômanos, indivídu-
ço, da mesma forma que a subdivisão
os agressivos, depressivos e alcoólatras.
do tempo, a codificação dos atos, bem
como a decodificação dos gestos, são A adolescente MM, 16 anos, que foi in-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.147


A C E

ternada, segundo os técnicos da FEBEM, cial é necessário muita coragem e isso

por problemas de conduta, obteve o se- ele nunca teve. Gosta de conseguir di-
guinte parecer: “menor apresenta um di- nheiro fácil, mas com prostitutas e tra-

fícil contato. Evidencia idéias assassinas, vestis, nunca roubando. 54

fazendo ameaças. É rancorosa. Não faz


Outros, como CFF, 16 anos, que foi in-
crítica de si mesma. Desde criança tem
ternado por assassinato, apresentaria,
desmaios. É dada ao uso de bebidas al-
mediante os pareceristas, as caracterís-
coólicas”. 53
ticas do delinqüente nato, sendo

Para os adolescentes classificados como categorizado como dissimulado, tentan-

infratores a internação por problemas de do usar paradoxalmente uma boa ima-

conduta poderia indicar a vadiagem ou, gem durante a entrevista.

até mesmo, reclamações por parte dos Não se contam idéias místicas ou pre-
genitores. ocupação de ordem religiosa. Pensa-

mento sem evidenciar alterações pa-


Os prontuários sinalizam para diversos
tológicas de forma, curso ou conteú-
estereótipos imputados aos adolescen-
do. Nega distúrbio de percepção. Nega
tes, vistos como frios, egoístas e
uso de psicotrópicos. Uso social de
egocêntricos, não possuindo as virtudes
bebidas alcoólicas. Uso de maconha.
do homem afeito ao trabalho, relatando
Atitude subjetiva variando de franca,
que muitos utilizam a prostituição como
cooperante. Nega crises depressivas ou
meio de sobrevivência.
episódios de choro imotivado. Nega
MPS, 15 anos, inter nado pela genitora, crise de agitação psicomotora. Nega
enquadra-se na categoria dos prontuári- crise de auto-agressividade. Nega
os em que milhares de jovens e adoles- hetero-agressividade, tentando dar
centes foram considerados como indiví- uma série de explicações para o ato
duos que não gostam de trabalhar, pre- cometido, que envolveu violência. Du-
ferindo viver da prostituição masculina. rante toda a entrevista tenta jogar uma

boa imagem, como de uma pessoa sim-


M expôs que gosta de ficar nas imedia-
pática e educada.55
ções da alameda Glete, na rua Aurora,

convivendo com prostituição e homos- Cada grupo tor na-se portador de


sexuais. Sobre isso disse que era uma caracteres específicos mediante a análi-
for ma que encontrava para conseguir se dos pareceristas. O caleidoscópio das
dinheiro, pois não tencionava trabalhar classificações abrange diversos signos,
de forma alguma. Alega M que não pos- estigmas que mediante o parecer marca-
sui o hábito de roubar porque acha rá a vida institucional do interno. As clas-
muito difícil ‘ter a profissão de ladrão’, sificações delimitam o espaço a ser pre-
que para praticar qualquer ato anti-so- enchido pelo interno nas diversas unida-

pág.148, jan/jun 2002


R V O

des da FEBEM. A criança classificada por ter sido considerada em estado de


como abandonada sempre é concebida abandono, obteve o seguinte parecer
pelos técnicos como oriunda da “cultura psicológico:
da pobreza”, mostrando-se inibida, apre-
sentando vocabulário pobre e sentimen- Menor sério, demonstrando certa difi-
to de inferioridade. culdade de estabelecer um contato
satisfatório, tendo inicialmente retraí-
Analisa-se o comportamento da criança
do-se e mostrando-se tenso. Ao famili-
durante a entrevista e qualquer gesto con-
arizar-se com a entrevista relaxou um
siderado anormal é descrito como resulta-
pouco, porém denota certas reser-
do do abandono, da pobreza e das condi-
vas, em seus relacionamentos
ções de existência material do menor.
interpessoais. Ao expressar-se oral-
Enquanto o proclamado reveste as carac-
mente denota certa limitação, revelan-
terísticas da criança abandonada, o es-
do distúrbio de linguagem, pois omite
condido, como observa Chartier, revela
e troca fonemas, tornando, às vezes,
um quadro de representação da realida-
sua verbalização incompreensível, seu
de social presente nos pareceres.
vocabulário é reduzido; entretanto evi-
Os técnicos tentam impor sua concepção dencia boa compreensão, quando so-
do mundo social ao analisarem a vida de licitado. Quanto ao aspecto emocional,
cada interno: “as lutas de representações revela certa ansiedade latente dificul-
têm tanta importância quanto as lutas tando sua interação com o ambiente,
econômicas para se compreenderem os mostrando-se insólito, inseguro, te-
mecanismos pelos quais um grupo im- mendo ser rejeitado. Há sinais de
põem, ou tenta impor sua concepção de inadequação intelectual, demonstran-
mundo social, os valores que são os seus do certa fluidez em seu controle racio-
e o seu domínio”. 56 nal. Sente-se incapaz e insatisfeito, não

conseguindo organizar e integrar seus


O quadro for mado por estas múltiplas
estímulos recebidos. Muito sensível,
representações é elucidativo da concep-
revela certa angústia ligada a elemen-
ção que têm os grupos de poder sobre
tos persecutórios e mobilizadores;
as camadas mais pobres da sociedade.
afetivamente privado, não alcançou
A pobreza, nesta linha de raciocínio
ainda boa identidade que lhe permite
estabelecida pelos pareceristas, conver-
aceitar-se. Possui bom raciocínio lógi-
ge para a criação de uma imagem do in-
co, conseguindo assimilar e discrimi-
terno como inseguro, com baixo nível in-
nar os fatos cotidianos com
telectual, e por conseguinte como
inadequação, porém o faz lentamente.
desviante das nor mas estabelecidas.
Tenta cooperar na realização das tare-

GE, de apenas 9 anos, ao ser internada fas, mostra-se bem adaptado, tendo

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.149


A C E

obtido resultado médio, situando-se morais. São eles que diagnosticam a per-
dentro da faixa da nor malidade. Mos- versidade, a ociosidade, a apatia, a falta
tra pobre desenvolvimento psicomotor, de valores éticos, tudo dentro de uma
sugerindo dificuldade em sua coorde- padronização imposta por valores domi-
nação manual motora e uma organiza- nante.
ção e estruturação grafo-perceptiva
Foucault, ao estudar instituições asilares,
inadequada para sua idade. Sua ima-
esteve atento a todos os mecanismos
gem corporal é rudimentar. Possui
produzidos e reproduzidos espacialmen-
lateralidade dominante direita. 57
te, lembrando que, no interior de cada

No caso das adolescentes, a imagem uma das unidades asilares ocorrem prá-

conferida pelos pareceristas aproxima ticas subtraídas da sociedade como um

seu universo ao mundo do alienado, dos todo, isto é, cria-se a idéia segundo a

loucos, sendo categorizadas como ran- qual o internado, o louco, o delinqüen-

corosas, portadoras de idéias assassinas, te, precisa reaprender, dentro do asilo,

vivendo na completa marginalidade, bem os valores anteriormente perdidos, po-

como na ociosidade. dendo desta forma retor nar ao convívio


social.
A jovem MLB, 16 anos, inter nada por ter
Surgem, nesta esfera, vozes destoantes
praticado atos anti-sociais, foi
para afir marem o conjunto das coisas
diagnosticada como pessoa “muito revol-
perdidas. A prática psiquiátrica será uma
tada, odiando todo mundo”, sendo
manifestação de tática moral, do século
passional, explosiva, uma vez que, de
XVII, com a normatização dos costumes,
acordo com os pareceristas, tentou as-
com a delimitação do universo dos nor-
sassinar o namorado. 58
mais e anormais, delinqüentes e homens
Aos poucos o cotidiano da FEBEM ganha honestos, normas estas conservadas in
proporção, mediante a leitura e análise totum nos rituais da vida asilar. 59

dos prontuários, permitindo visualizar


O discurso do psiquiatra contribui para
um conjunto de práticas extremamente
a institucionalização de jovens e crian-
moralistas. O mundo dos menores des-
ças, não sem antes desenhar o quadro
ponta como antítese do bom trabalhador,
dos desvios de conduta. O pincel e a tela
do bom pai, do bom filho. A instituição
da instituição ganhariam, no excluído,
não produz nenhum pensamento sui
uma musa às avessas. A representação
generis, antes reproduz valores
da delinqüência, da alienação seria ma-
subjacentes no todo social.
tizada nos pareceres, numa tentativa de
Nesta perspectiva, ganham força os dis- forjar mecanismos indiscutíveis, sendo
cursos dos psicólogos e dos psiquiatras, baseados na voz e no conhecimento de
levando à baila a eficiência das táticas especialistas.

pág.150, jan/jun 2002


R V O

A imagem do delinqüente nato se crista- imediatamente a lembrança das múlti-


liza nos prontuários do menor infrator. plas impressões, a lembrança se forma
Se os colaboradores de Brasil Jovem lan- nela aos poucos e se recompõe a partir
çaram mão das teorias lombrosianas de fragmentos mnemônicos.
para comporem um quadro no qual qual-
quer signo comprovasse a malignidade Porém, o tempo da memória permite que

manifesta, os pareceristas da FEBEM, no por meio das imagens despontem a for-

interior das diversas unidades, aplicari- ça dos discursos que se materializam nos

am o modelo da antropologia criminal traços, impressões, sabores e cheiros, e

para esquadrinhar a potencialidade revivem a cada instante, quando se evo-

subjacente à delinqüência manifesta. ca a imagem do “outro”, do “estrangei-


ro” e do “excluído”, cujos caracteres fo-
O corpo técnico da Fundação Estadual
ram construídos numa determinada
do Bem-Estar do Menor, assim como os
temporalidade.
ideólogos de Brasil Jovem , contribuíram
para o processo de estigmatização de O tempo enquanto espelho da memória
centena de milhares de menores no fi- às vezes reflete a imagem do outro en-
nal do século XX. Os pareceres da quanto estrangeiro, criatura a ser cotidi-
FEBEM, aliado aos artigos de Brasil Jo- anamente excluída. Como bem lembra
vem , mostraram que as teorias de Césare Proust, “os homens não mudam de um
Lombroso, as teorias eugênicas e dia para o outro e procuram num regime
excludentes, desenvolvidas ao longo do novo a continuação do antigo”. 60 O mun-
século XIX, não estavam soterradas: an- do da exclusão e do excluído é mapeado
tes se manifestaram por meio do viés pelos pareceristas. Para Xiberras é toda
conservador e autoritário que caracteri- a relação com o outro, que deve se idea-
za grande parte da sociedade brasileira. lizar na lógica da exclusão.

A análise dos prontuários ultrapassa os


O menor apareceu como estrangeiro,
muros da instituição, encontrando na
dentro da própria terra em que nasceu.
imprensa outro veiculador da degenera-
Terra esta que o negava, condenando-o
ção social dos indivíduos. Neste caso, a
ao pior dos mundos, julgando-o portador
idéia se tor nou mais uma evidência da
das chagas sociais, disseminando o
periculosidade intrínseca aos jovens e
medo e a desconfiança, tal como os le-
adolescentes que passaram pelos muros
prosos examinados por Foucault na His-
da instituição.
tória da loucura .
O imaginário coletivo aglutina todas as
imagens que aos poucos são tecidas pe- Emir Sader, em uma alusão impressio-
los discursos, justapondo-se na memó- nante à figura do menor enquanto estran-
ria. Se a memória é incapaz de fornecer geiro, lembra uma passagem de Foucault

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.151


A C E

que se encaixa exatamente na história de Foucault, como lembra Sader, sobre


da infância negada no Brasil. a arqueologia do banimento da loucura,
viessem a se ajustar apropriadamente ao
Esse gesto que proscreve tinha, sem
mecanismo de geração de imagem do
dúvida, outro alcance: ele não isolava
menor infrator entre nós. Imagem com-
estranhos desconhecidos, durante
posta por uma multiplicidade de espe-
muito tempo evitado por hábito; cria-
lhos, irradiando os reflexos de uma so-
va-os, alterando rostos familiares na
ciedade excludente e autoritária, trans-
paisagem social a fim de fazer deles
formando categorias como os loucos, os
figuras bizarras que ninguém reconhe-
presidiários e os menores, no outro. O
cias mais. Suscitava ali mesmo onde
verbo delinqüir, como constata Sader,
ninguém o pressentira. 61
não existe em primeira pessoa, uma vez
Quem diria que um dia essas afirmações que o delinqüente é sempre o outro. 62

N O T A S
1. Marcel. Proust, Em busca do tempo perdido: no caminho de Swan, São Paulo, Globo, 1998, p.
373.
2. Maria Luiza Tucci Carneiro, “O discurso da intolerância: fontes para o estudo do racismo”,
F ontes históricas : abordagens e métodos, São Paulo, Ed. UNESP, 1996, p. 28.
3. Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos , São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 27.
4. Michel Foucault, Vigiar e punir , Petrópolis, Vozes, 1977, p. 31.
5. Gutemberg Alexandrino Rodrigues, Os filhos do mundo : a face oculta da menoridade, São
Paulo, IBCCRIM, 2001, p. 277.
6. Martine Xiberras, As teorias da exclusão : para a construção do imaginário do desvio, Lisboa,
Instituto Piaget, 1993, p. 22.
7. Guillermo O´Donnell, Contrapontos, autoritarismo e democratização, São Paulo, Vértice, 1986.
8. Paulo Sérgio Pinheiro, “Autoritarismo e transição”, Revista da USP , São Paulo, n. 9, mar.-mai.,
1991, p. 55.
9. Marilena Chauí, Conformismo e resistência : aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1993, p. 48.
10.Mary Del Priori, História da criança no Brasil , São Paulo, Contexto, 1998, pp.7-8.
11.Loreley é o nome de uma personagem do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por

pág.152, jan/jun 2002


R V O

Heine, como observa Clarice Lispector. “A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com
seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar”. Clarice Lispector, Uma aprendi-
zagem ou o livro dos prazeres , Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1993, p. 144.
12.Jacques Le Goff, História e memória , São Paulo, Ed. UNICAMP, 1994, p. 30.
13.Michel Foucault, El discurso del poder , México, Folios Ediciónes, 1983, p.74.
14.Idem, p. 71.
15.Idem, p.39.
16.Idem, p. 33.
17.Idem, p. 16.
18.Idem, p. 28.
19.Idem, p. 117.
20.Paul Ricouer, Interpretação e ideologias , Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990, p. 138.
21.Idem, p. 46.
22.Paul Ricouer, op. cit., p. 46.
23.Michel Foucault, Microfísica do poder , Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 13.
24.Idem, ibidem.
25.Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas , São Paulo, Perspectiva, 1992.
26.José Cavalieri, “O bem-estar do menor em comentário”, Brasil Jovem , ano II, dezembro de
1967, p. 65.
27.Lauro Barreira, O menor desamparado, Brasil Jovem, Rio de Janeiro, 2º trimestre de 1971, p.
70.
28.George Balandier, A desordem : o elogio do movimento, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997,
p. 26.
29.Susan Sontag, A doença como metáfora e a SIDA e as suas metáforas , Lisboa, Quetzal Edito-
res, 1998, p. 88.
30.Leonara Farias Neves da Costa, “O problema do menor abandonado”, Brasil Jovem , Rio de
Janeiro, ano 11, n. 37, 1º quadrimestre de 1977, p.77.
31.Mário Moura Rezende, “A delinqüência juvenil e suas conseqüências”, Brasil Jovem , Rio de
Janeiro, ano IV, n. 13, março de 1970, p. 15.
32.Ibidem.
33.Artigo do professor Vírgílio Donnici (professor catedrático de direito penal do Instituto de
Ciências Penais da Faculdade Cãndido Mendes), Brasil Jovem , ano IV, 3º trimestre de 1970.
34.Idem, p. 64.
35.Gumercindo Fleury, Delinqüência juvenil, Brasil Jovem , Rio de Janeiro, ano II, n. 8, dezem-
bro de 1968, p. 72.
36.Idem.
37.Rosa Maria Fisher Ferreira, Meninos de rua : expectativas e valores de menores marginaliza-
dos em São Paulo, São Paulo, CEDEC, 1979, p. 44.
38.Virgílio Donnici, op. cit., p. 64.
39.Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 179.
40.Juan Manuel Mayorca e Nelson Pizzotti Mendes, Criminologia , São Paulo, Editora Resenha
Universitária, 1975, p. 106.
41.Sérgio Carrara, Crime e loucura : o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do
século, Rio de Janeiro, Ed. UERJ/EDUSP, 1988, p.105.
42.Erving Goffman, Estigma : notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Rio de Janei-
ro Zahar, p. 15.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.153


A C E

43.Marilena Chauí, Conformismo e resistência : aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1983, p. 57.
44.Elso Arruda, “Uma análise do ponto de vista da psicologia”, Brasil Jovem , 3º quadrimestre de
1975, p. 35.
45.Idem, ibidem.
46.Maria Helena Capelato, Multidões em cena : a propaganda política no varguismo e no peronismo,
São Paulo, Papirus, 1999, p. 259.
47.Emílio Garrastazu Médici, Mensagem ao jovem do Brasil, Brasil Jovem , ano IV, n. 16, 4º tri-
mestre de 1970, p. 53.
48.Idem, ibidem.
49.Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX , São Paulo,
Brasiliense, 1995, p. 14.
50.Gutemberg Alexandrino Rodrigues, op cit., p. 174.
51.Maria Clementina Pereira da Cunha, O espelho do mundo : Juqueri a história de um hospício,
Rio de Janeiro, Vozes, 1988, p. 114.
52.Michel Foucault, Vigiar e punir , Rio de Janeiro, Vozes, 1977, p 150.
53.PT: 27. 706-A, MM ou SAM.
54.PT: 37.095-A, MPS.
55.PT: 31.919-A, CFF.
56.Roger Chartier, A história cultural : entre práticas e representações, Lisboa, Difel, 1990, p. 17.
57.PT: 28.047-A, GE.
58.PT: 28.234-A, MLB.
59. Michel Foucault, História da loucura , São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 501.
60.Marcel Proust, Em busca do tempo perdido : à sombra das raparigas em flor, São Paulo, Globo,
1998, p.86.
61.Michel Foucault apud Emir Sader, Maria Ignês Bierrenbach e Cyntia Petronício Figueiredo,
Fogo no pavilhão , São Paulo, Brasiliense, 1987, p.12.
62.Idem, ibidem.

A B S T R A C T
This essay intends to expose the discourses analyses that search to represent the social reality of
a determined group, that one composed by the abandoned and delinquent child, during the
decades of 1960 and 1970. It also emphasizes the history of children and young persons of the
poorest strata of the Brazilian society.

pág.154, jan/jun 2002


R V O

Regina Novaes
Secretária executiva
do Instituto de Estudos da Religião – ISER

Perfil Institucional

C
omo a religiosidade se articu- campo religioso dentro das ciências so-
la, pode contribuir ou impedir ciais, propondo novas abordagens e aná-
os processos de mudança na lises do tema. A revista também faz par-
sociedade brasileira? Foram estas inda- te de uma história da emergência de uma
gações que reuniram em 1970, em Cam- cultura acadêmica, em torno dos estu-
pinas, teólogos, leigos e estudiosos da dos da religião no Brasil, servindo como
religião interessados em promover a pes- um veículo para divulgação de idéias.
quisa e a reflexão no campo da cultura e Hoje, Religião e sociedade é, no Brasil,
da religião. Com o passar dos anos, o um dos mais importantes periódicos aca-
Instituto de Estudos da Religião se con- dêmicos especializados neste tema, e
solidou como uma rede de pesquisado- continua a agregar especialistas e a pro-
res e especialistas interessados no cam- vocar novos debates na área.
po religioso, sobretudo da perspectiva
das ciências sociais. Em sua primeira década de existência, o
ISER não tinha uma sede, funcionários
Em 1977, ainda em Campinas, foi fun- ou agenda institucional fixa. Os integran-
dada a revista Religião e sociedade . A tes do Instituto se reuniam periodicamen-
publicação provocou e acompanhou o te para apresentar e discutir textos e pes-
desenvolvimento da reflexão sobre o quisas. Anos mais tarde, com a transfe-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 155-159, jan/jun 2002 - pág.155


A C E

rência da sede para o Rio de Janeiro, o buiu para a criação de alguns dos princi-
Instituto se transfor mou, estabelecendo pais movimentos e projetos voltados
uma agenda que incluía projetos de pes- para a cidadania e direitos humanos no
quisa e intervenção social. Brasil, em particular no Rio de Janeiro.

Em 1979, o ISER se mudou para o Rio Durante a Eco 92, o ISER liderou uma

de Janeiro e passou por uma ampliação grande vigília inter-religiosa pela paz que

institucional. Com os processos de de- reuniu lideranças mundiais e comunida-

mocratização dos anos 1980, o ISER des locais de diferentes tradições religi-

abriu novas frentes de trabalho, envol- osas. Esta experiência de articular dife-

vendo-se com projetos que visavam for- renças e construir unidades em torno de

talecer a participação política de grupos uma questão comum foi muito importan-

marginalizados. Nessa época, o ISER de- te para a criação do movimento Viva Rio,

senvolveu projetos ligados à pobreza ur- que nasceu no espaço do ISER e, poste-

bana, prostituição, discriminação racial, riormente, veio a se constituir em uma

crianças de rua, negros e mulheres, co- organização autônoma.

meçando também a trabalhar nas áreas Ta m b é m n o s a n o s d e 1 9 9 0 , o I S E R


de saúde e do meio ambiente. passou por um novo processo de
reformulação institucional. Tornou inde-
Reforçando o compromisso institucional
pendentes vários programas que
com novas formas de produção cultural,
priorizavam a ação direta e voltou a
o ISER abriu outras linhas editoriais –
enfatizar a produção e circulação de in-
como o jor nal Beijo da Rua , Comunica-
formações, repensando o papel da pes-
ções do ISER , Ver melho e Branco, e os
quisa como uma forma de intervenção.
Cader nos do ISER –, além de produzir
Combinando um estilo acadêmico com
vídeos através da TV Zero.
experiência em movimentos sociais, o
Na década de 1990, o ISER manteve seu
ISER se consolidou como um centro de
apoio a novas for mas de or ganização
pesquisa, assessoria e capacitação, pro-
social e política, em especial àquelas que
movendo diálogo entre atores governa-
advinham dos diversos campos religio-
mentais e não governamentais.
sos e de grupos minoritários, que se ar-
Hoje, a missão institucional, que conti-
ticularam durante o processo de demo-
nua enfatizando o fortalecimento de or-
cratização. Uma das marcas da agenda
ganizações da sociedade civil, enfoca
institucional foi o investimento na diver-
três dimensões que formam um denomi-
sidade cultural que, através da criação
nador comum aos projetos desenvolvi-
de novas instâncias e for mas de partici-
dos pelo ISER:
pação política, oferecia uma alter nativa
aos processos de mar ginalização. De a) Valorização do pluralismo religioso e
1985 a 1995, o Instituto também contri- da diversidade cultural: os projetos

pág.156, jan/jun 2002


R V O

desenvolvidos no ISER questionam vá- tantemente expedientes culturais gerado-


rios tipos de discriminação social e res de adesões individuais, redes e iden-
buscam formas de provocar rupturas tidades coletivas. Portanto, uma compre-
com preconceitos geradores de vio- ensão do campo religioso é imprescindí-
lência física e simbólica. vel para entender a dinâmica da socie-
dade brasileira.
b) Reconhecimento e incentivo a múlti-
plas for mas de participação política, Além de realizar projetos de pesquisa
religiosa, comunitária e cultural: bus- nessa área, o ISER mantém múltiplas
ca-se entender os valores e processos interlocuções com organizações religio-
que produzem vínculos sociais, ade- sas. A perspectiva pluralista do ISER per-
sões individuais e identidades coleti- mite tanto a cooperação e o diálogo com
vas. Prioriza-se a produção de infor- diferentes igrejas e organizações no cam-
mações e de suportes metodológicos po religioso, quanto a produção de sub-
que qualifiquem a participação de di- sídios úteis para a formulação de políti-
ferentes atores sociais como uma for- cas e programas sociais. No meio acadê-
ma de fortalecer uma esfera pública mico, as pesquisas são referência impor-
democrática. tante, objeto de consultas e divulgação
freqüente nos meios de comunicação. O
c) Aproximação entre pesquisa e comu-
acervo do ISER nessa área inclui, além
nicação: com o objetivo de qualificar
de publicações, uma ampla documenta-
debates públicos, procura-se divulgar
ção sobre as diversas religiões no Bra-
resultados de pesquisa na mídia, in-
sil, oferecendo, assim, recursos impor-
centivando o diálogo entre diferentes
tantes para especialistas.
setores da sociedade e promovendo
novas formas de pensar o espaço pú- V IOLÊNCIA, DIREITOS HUMANOS E
blico. SEGURANÇA PÚBLICA

Atualmente o ISER desenvolve projetos No começo dos anos 1990, pesquisado-


de pesquisa, assessoria e capacitação em res do ISER iniciaram investigações so-
quatro áreas temáticas: religião e socie- bre a incidência de crimes violentos e
dade; violência, direitos humanos e se- sobre as instituições policiais que pro-
gurança pública; meio ambiente e desen- duzem e divulgam estatísticas no estado
volvimento sustentável; e organizações do Rio de Janeiro. Desde essa época, os
da sociedade civil. projetos de pesquisa se caracterizam
pela combinação de métodos quantitati-
R ELIGIÃO E SOCIEDADE
vos e qualitativos, procurando
O foco desta área do ISER está na inter- aprofundar a compreensão das institui-
cessão entre religiosidade e transforma- ções que mediam a produção de dados
ções sociais. As religiões produzem cons- sobre a incidência de crime e conflito. O

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 155-159, jan/jun 2002 - pág.157


A C E

acervo do ISER nessa área inclui séries O ISER orienta políticas públicas compa-
históricas de dados policiais e de saúde tíveis com os princípios e objetivos do
pública; infor mações etnográficas sobre desenvolvimento sustentável. Nos últi-
o funcionamento de delegacias, bata- mos anos, o ISER tem executado proje-
lhões e organizações comunitárias; es- tos de monitoramento e pesquisas liga-
tudos sobre a justiça civil e militar e um dos à Agenda 21, promovendo sua
censo do sistema penitenciário. institucionalização e fortalecimento no
nível local. Iniciativas recentes incluem
Um dos objetivos dos projetos realiza-
a capacitação técnica de gestores e lide-
dos nessa área é qualificar os debates
ranças, projetos de educação ambiental
em torno dos problemas ligados à segu-
e assessoria na aplicação de surveys , na
rança pública, fornecendo subsídios para
elaboração de programas e na
a for mação, execução e avaliação de po-
implementação de projetos demonstra-
líticas públicas. Além de manter uma
tivos.
agenda de publicação de relatórios atra-
vés da revista Comunicações do ISER , o
O RGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL
Instituto mantém parcerias com diversas
agências gover namentais e não-governa- As organizações da sociedade civil com-
mentais. põem um setor cada vez mais importan-
te e complexo na cena pública brasileira
M EIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO – mobilizam recursos e criam novos vín-
SUSTENTÁVEL culos sociais, passando a desempenhar,
em muitos casos, importantes funções
Os projetos na área de meio ambiente e
políticas, sociais e econômicas.
desenvolvimento sustentável se
estruturam de acordo com as diretrizes Há mais de vinte anos o ISER trabalha
do programa de desenvolvimento susten- sobre esse tema, sendo uma das primei-
tável da Agenda 21 Global. Integrando ras instituições a propor uma análise
princípios de preservação ambiental empírica da emergência e crescimento
como aspectos fundamentais do desen- das organizações não-governamentais no
volvimento social, a Agenda 21 Global Brasil. Na última década, o ISER organi-
também orienta e agrega iniciativas nos zou diversos cadastros e bancos de da-
níveis nacional e local. Começando no dos sobre este setor, “sem fins lucrati-
início da década de 1990, o ISER desem- vos”, questionando o senso comum so-
penha um papel agregador, trabalhando bre a história, o papel e a natureza des-
em parceria com movimentos sociais, or- sas entidades. Mais recentemente, pro-
ganizações não-governamentais e órgãos jetos de pesquisa nessa área têm
públicos, para definir políticas e estraté- enfocado a participação, sem fins lucra-
gias de ação. tivos, de atores privados neste setor, com

pág.158, jan/jun 2002


R V O

estudos sobre filantropia empresarial e buscam qualificar não apenas os atores


trabalho voluntário. Outros projetos vi- da esfera pública – governamentais ou
sam mensurar a eficácia de organizações não –, mas também os debates que
setoriais na definição e execução de po- estruturam os processos de formulação
líticas públicas. e avaliação de políticas públicas. Por

O ISER também atende demandas de isso, o ISER entende a pesquisa como

avaliações que visam medir a eficácia de uma forma específica de comunicação e

projetos, missões, programas sociais de procura circular os produtos dos estudos

iniciativa privada e políticas públicas. realizados entre públicos não acadêmi-

Mais do que um serviço, o ISER propõe cos. Quando oportuno, os resultados dos

uma parceria estratégica com a equipe projetos desenvolvidos no ISER são di-

dos projetos e com as organizações ava- vulgados na mídia e em fóruns que reú-

liadas. Utilizando metodologias adequa- nem atores da sociedade civil, do Esta-

das a cada caso, as avaliações do ISER do e da iniciativa privada.

produzem informações, propõem indica- O ISER oferece recursos importantes


dores e oferecem sugestões que contri- para pesquisadores ou especialistas in-
buem para o planejamento de ações fu- teressados em questões relativas ao
turas. meio ambiente, segurança pública, reli-
A especificidade da missão institucional gião e as organizações da sociedade ci-
do ISER está na combinação de pesqui- vil. Além de bancos de dados e cadas-
sa com o compromisso de fortalecer uma tros de organizações, o ISER oferece um
esfera pública democrática em que as acervo de publicações, instrumentos de
organizações da vida civil exercem um pesquisa e relatórios relativos a esses
papel importante. Os projetos do ISER temas.

A B S T R A C T
Perfil Institucional deals with how the religiosity may contribute or restrain the changes in the
Brazilian society. Having in view the reflection in the field of culture and religion, the Instituto de
Estudos e Religião (ISER) was founded in the seventies to unfold projects of research in four
thematic areas: religion and society; violence, human rights and public security; environment
and sustainable development and organization of civil society.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 155-159, jan/jun 2002 - pág.159


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Bibliografia or ganizada pela Coordenação de Pesquisa e Difusão Cultural do Arquivo


organizada
Nacional
Nacional.

pág.176, jan/jun 2002


R V O

Instruções aos
Colaboradores

I. A revista Acervo , de periodicidade se- Os textos em língua estrangeira são


mestral, dedica cada número a um traduzidos para o português.
tema distinto, e tem por objetivo di-
IV. O material para publicação deve ser
vulgar e potencializar fontes de pes-
encaminhado em uma via impressa e
quisa nas áreas de ciências humanas
uma em disquete ou por intermédio
e sociais e documentação. Acervo
de e-mail com arquivo anexado, no pro-
aceita somente trabalhos inéditos,
grama Word 7.0 ou compatível, acom-
sob a for ma de artigos e resenhas.
panhado de resumo em português e
inglês, com cerca de cinco linhas cada.
II. Todos os textos recebidos são subme-
Os textos devem ter cerca de 1 5
tidos ao Conselho Editorial, que pode
laudas, excetuando-se as resenhas,
recorrer, sempre que necessário, a
com aproximadamente cinco laudas,
pareceristas.
e conter de três a cinco palavras-cha-
ve. Após o título do artigo constam
III. O editor reserva-se o direito de efetu-
as referências do autor (instituição,
ar adaptações, cortes e alterações nos
cargo, titulação).
trabalhos recebidos para adequá-los
às normas da revista, respeitando o V. Devem ser enviadas também de três
conteúdo do texto e o estilo do autor. a cinco imagens em preto e branco,
A C E

com as respectivas legendas e refe- e experiência estética . Rio de Janei-


rências, preferencialmente com indi- ro: Revinter, 1998.
cação, no verso, sobre sua localiza-
Artigo em periódico: JAMESON,
ção no texto. As ilustrações devem ser
Fredric. “Pós-moder nidade e socie-
remetidas em papel fotográfico.
dade de consumo”. Novos Estudos
VI. As notas figuram no final do texto, CEBRAP . São Paulo: nº 12, jun. 1985,
em algarismo arábico. A citação bi- pp.16-26.
bliográfica deve ser completa quan-
Tese acadêmica: ANDRADE, Ana Ma-
do o autor e a obra estiverem sendo
ria Mauad de Sousa. Sob o signo da
indicados pela primeira vez. Ex: Re-
imagem : a produção da fotografia e
nato Ortiz, A moderna tradição bra-
o controle dos códigos de represen-
sileira, São Paulo, Brasiliense, 1991,
tação social da classe dominante
p. 28.
no Rio de Janeiro, na primeira me-
VII. Em caso de repetição, utilizar Rena- tade do século XIX. Tese de
to Ortiz, op. cit., p. 22. doutoramento em história. Niterói:
VIII.A bibliografia é dispensável. Caso o Universidade Federal Fluminense,
autor considere relevante, deve 1990.
relacioná-la ao final do trabalho. Es-
IX. Caso o artigo ou resenha seja publi-
sas referências serão publicadas na
cado, o autor terá direito a cinco
seção BIBLIOGRAFIA, figurando em
exemplares da revista.
ordem alfabética, conforme os
exemplos abaixo: X. As colaborações poderão ser envia-
das para o seguinte endereço:
Livro: FERNANDES, Florestan. A re-
volução burguesa no Brasil . Rio de Revista Acervo
Janeiro: Zahar, 1976.
Arquivo Nacional – Coordenação de
Coletânea: REIS FILHO, Daniel Aarão
Pesquisa e Difusão Cultural
e SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Ima-
gens da revolução: documentos po- Rua Azeredo Coutinho, 77 – sala 303

líticos das organizações clandestinas Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

de esquerda de 1961 a 1971. São 20230-170

Paulo: Marco Zero, 1985. XI. Infor mações sobre o periódico po-
Artigo em coletânea: LUZ, Rogerio. dem ser solicitadas pelo telefone
“Cinema e psicanálise: a experiên- (21) 2224-4525 ou via e-mail
cia ilusória”. Em Experiência clínica (pesquisa@arquivonacional.gov.br).
R V O

Esta revista foi impressa em novembro de 2002,


sob a supervisão gráfica da Contra Capa Livraria, em papel
pólen bold 70 g, com tiragem de 1000 exemplares.

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