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ARTIGO / ARTICLE

Arranjos Neocorporativos e Defesa de Interesses do Médicos


Neocorporatist Arrangements and Defense of Physicians’ Interests
José M. Ribeiro 1

RIBEIRO, J. M. Neocorporatist Arrangements and Defense of Physicians’ Interests. Cad.


Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 05-20, jan/mar, 1993.
In Brazil, the trade union structure created by authoritarian corporatism in the 1930’s began to
change when the cycle of the military regime installed in 1964 came to an end. With
redemocratization, the trade union movement began to coexist with the organization of
pluralistic interests, a process which has influenced the physicians’ movement since 1977. The
new National Constitution adopted in 1988 provided for multipartite control over health policy.
We present a conceptual discussion of neocorporatist arrangements (which are common in
European social experience) and their signficance for an understanding of health policy in the
context of the so called Health Reform process in Brazil.
Keywords: Neocorporatist Arrangements; Physicians; Health Policy

INTRODUÇÃO Em vista da discussão teórica efetuada, pro-


põe se o estudo de arranjos de caráter neocor-
A discussão acerca da representação funcional porativo progressivamente presentes na for-
das diferentes categorias profissionais envol- mulação de políticas em saúde no Brasil. Tais
vidas no processo de trabalho em saúde é arranjos constituem-se numa sólida tendência
relevante para o estudo das políticas setoriais. em desenvolvimento, onde os atores sociais
Corporativismo é um termo vastamente empre- coletivos, progressivamente organizados e
gado tanto no discurso das lideranças como no conscientes de seus interesses perante o Estado
próprio debate acadêmico. Por ter seu uso e os demais setores sociais, passam a exercer,
vinculado a realidades bastante diversas ao cotidianamente, as práticas de acordos em
longo da história, faz-se necessário enfrentar a arenas cada vez mais compartilhadas e sob a
questão conceitual como um pré-requisito para égide do Estado.
a sua utilização. Assim, esta dissertação se Trata se de constatar que o corporativismo,
propõe a três objetivos que se complementam: no Brasil, é difundido, essencialmente, enquanto
1. recuperar o conceito de corporativismo à luz expressão de interesses “egoístas” e imediatos
de seus diferentes usos, buscando os elementos de categorias profissionais. Um outro uso
em comum que lhes dão sustentação ao longo freqüente do termo, também agregado à repre-
da história; 2. detectar na literatura que envolve sentação sindical, está na vinculação ao fascis-
a formulação de políticas sociais em saúde os mo e, no Brasil, a toda a estrutura sindical
itens relevantes ao estudo da atuação dos atores historicamente assentada na legislação cor-
sociais coletivos, com especial destaque aos porativa pós-30. O corporativismo, portanto, é
médicos; e 3. discutir as formas tradicionais de uma presença constante e inevitável quando se
vinculação entre organização de interesses e fala em defesa de interesses em nosso país.
políticas públicas nos Estados capitalistas Propomos, então, uma adequação do conceito,
avançados, no sentido de extrair tendências bem como a sua utilização prática em pesquisa,
relevantes ao caso brasileiro. considerando as políticas sociais em saúde
enquanto um território definido pelo Estado, no
1
Rua Visconde de Ouro Preto, 34, apto 602, 22250-000, qual os atores sociais coletivos disputam bens
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. e efetuam barganhas — cada vez mais estrutu-

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radas em arranjos duradouros de cunho neocor- tem o mérito de captar uma certa articulação
porativo — e cujo modelo gerencial do Sistema entre aspectos da prática sindical médica na
Único de Saúde emerge enquanto exemplo conjuntura de transição política do país. Ou
marcante e atual. Tais arranjos se apresentam seja, avalia os mecanismos de construção de um
apenas como mais um dentre os diversos meca- determinado movimento de múltiplas origens
nismos de tomada de decisões setoriais a serem profissionais a partir da atuação de setores
estudados, tais como o papel da estrutura dinâmicos presentes nas lutas sociais. Por outro
burocrática do Estado, os acessos privilegiados lado, acreditamos ter ocorrido uma superes-
de grupos empresariais aos recursos sociais, a timação da adesão dos médicos a este processo.
representação político partidária, etc. Na verdade, a incorporação da categoria aos
O sindicalismo médico é utilizado como princípios básicos das teses dos sanitaristas não
referência central em nossa discussão, em ocorreu, tendo a mesma ficado restrita à atua-
virtude do impacto que teve em certo período ção de lideranças politicamente engajadas via
— a partir de 1977 — na incorporação dos instâncias (como a organização partidária) cuja
médicos a experiências de defesa coletiva de dinâmica operava por fora da base sindical. O
interesses, com ressonância decisiva nas demais Movimento Sanitário não foi fruto, enquanto
categorias profissionais da saúde, e pela prática um item crucial, do sindicalismo médico e de
de colocar-se perante a população, tentando suas experiências cotidianas. Hoje fica mais fácil
vincular seus interesses imediatos a objetivos notar que não foram criadas bases sólidas
sociais mais amplos. Estas experiências estão dos projetos reformadores entre os médicos,
no cerne da questão da representação funcional embora naquela conjuntura tenha havido, isto
— desenvolver a capacidade de formular de- sim, uma importante adesão de parcelas da
mandas coletivas de um segmento e convencer categoria às reformas democráticas em nosso
os demais quanto aos benefícios comuns de país.
determinadas conquistas. Trata se de passar o O trabalho de Campos (1988a) segue um
próprio (demandas sindicais) pelo generalizado caminho diferente, enfocando, basicamente, as
(melhorias nos serviços e na qualidade de vida). diferenças internas aos médicos, mesmo no que
se refere às suas lutas corporativas. Embora
movimentos coletivos tenham se repetido envol-
MOVIMENTO SINDICAL MÉDICO vendo segmentos distintos da categoria, estes
não podem ser agrupados como uma corrente
O papel do movimento sindical médico foi política única ou mesmo marcadamente domi-
destacado em alguns estudos, sendo que con- nante. Ao se buscar caracterizar as correntes
sideramos dois deles como de maiores destaque políticas em atuação, remete-se não só a pa-
e coerência interna. Com enfoques distintos, drões ideológicos existentes, mas também a
Campos (1988a) e Escorel (1987) buscam tipos diferenciados de inserção no mercado de
estabelecer as referências centrais do sindicalis- trabalho que acabam por influenciar a prática
mo médico. Para Escorel, o movimento sindical política destes profissionais. As correntes políti-
médico, a partir das vitórias eleitorais do Movi- cas são construídas recorrendo se a certas bases
mento de Renovação Médica (Reme) ao final materiais. O “kassabismo” (favorecido pelos
da década de 70, estabeleceu alianças e projetos médicos, em número cada vez menor, com
conjuntos com outros setores da sociedade, maior controle de sua prática, dotados de eleva-
extrapolando suas demandas exclusivamente da autonomia, representando os ideais liberais
corporativas. Tal ponto de vista considera que plenos na Medicina), o Reme (desenvolvido a
o movimento sindical médico chegou a se partir das lutas sindicais envolvendo os assala-
constituir numa das vertentes fundamentais da riados e que, em certo momento, expandiu-se
constituição do Movimento Sanitário em nosso para a toda a estrutura representativa dos médi-
país, que desembocou no projeto da Reforma cos) e o neoliberalismo (expressão da crescente
Sanitária. Enquanto vertente, o sindicalismo associação entre consultório médico e convênio
médico seria um dos momentos da “constitui- empresarial, responsável pela reatualização das
ção/ação” do Movimento Sanitário. Esta análise aspirações liberais entre os médicos, carac-

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Arranjos Neocorporativos

terizando um tipo de autonomia relativa) seriam dos. O argumento de Illich se enfraquece,


correntes políticas portadoras de projetos dife- entretanto, ao negar a eficácia do ato médico
renciados, todas mantendo algum grau de or- em lidar com um conjunto de situações onde
ganicidade com a categoria, conforme assinala revela elevada resolutividade, como na assistên-
Campos. cia ao parto e ao perinatal, nas emergências, no
Este modelo tem a vantagem de dar conta da controle de variados processos crônicos (diabe-
profunda heterogeneidade da categoria, embora tes, hipertensão arterial, neoplasias, etc). Seria
a progressiva mesclagem de vínculos profis- ingênuo supor que o modelo assistencial médico
sionais leve a alguma convergência (médicos industrial tivesse se tornado hegemônico sem
simultaneamente servindo como assalariados e conseguir dar respostas eficazes e imediatas a
em relação de autonomia relativa para viabilizar uma série de problemas. Tal constatação, no
o projeto do consultório particular). Caso este entanto, não invalida a questão central apontada
processo de convergência mostre-se como uma por inúmeros autores — a de que o ato médico
tendência central, a construção de correntes tornou-se progressivamente caro, invasivo e
políticas via mercado poderá perder a neces- ineficaz em diversos aspectos da morbidade
sária nitidez. Neste sentido, apontamos, mais geral, e que a autonomia profissional tenha
adiante, para a necessidade de se avançar nos cursado com a expropriação de direitos e de
estudos sobre a intermediação de interesses na atribuições dos indivíduos. Isto coloca ainda
saúde, a fim de detectar os mecanismos fun- mais relevância na discussão acerca da autono-
damentais pelos quais tais interesses se coletivi- mia profissional.
zam e se transformam em projetos políticos e Segundo Donnangelo & Pereira (1979), a
sociais. discussão acima remete-se à politização do ato
médico, onde os consumidores potenciais
pressionam pela extensão dos benefícios da
PRÁTICA MÉDICA E ciência médica, onde se contesta o gigantismo
REFORMA SETORIAL tecnológico e seus efeitos nocivos sobre os
indivíduos, onde se nega a eficácia geral no
O ideal de autonomia médica persiste enquan- prolongamento da vida das comunidades, e
to a exteriorização de um exercício ótimo da onde se assinala o caráter discriminatório na
Medicina (Schraiber, 1989). O fato dos médicos aplicação da tecnologia.
encararem seu processo de trabalho enquanto A organização dos interesses dos médicos
expressão de uma autonomia, vista como neces- tradicionalmente acompanhou o desenvolvimen-
sária e ideal, repercute na formulação dos to da profissão. A formulação das demandas
interesses e na própria atitude perante o mer- pelas diferentes associações, entre elas os
cado. O assalariamento, visto como inevitável, sindicatos, respeita os cânones profissionais e
traz consigo algo de contraditório no que res- tende a propalar a eficácia da Medicina, a
tringe a soberania (pelo menos em parte) às necessidade da autonomia e a validade das
custas da subordinação hierárquica e da não- conquistas tecnológicas. Tais elementos acabam
determinação plena dos honorários. A autono- reforçados pela própria sociedade, no dizer de
mia pode, entretanto, ser destacada como per- Berlinguer cada vez menos tolerante à dor e às
sistente enquanto item geral. Isto é observado limitações da vida.
por diversos autores, que assinalam o papel do A politização da Medicina se expressa com
médico enquanto tomador de decisões nos particular ênfase em nosso país, especialmente
sistemas sanitários como um todo (Bjorkman, na década de 80, acompanhando o processo de
1988), ou pela sua capacidade de obstruir redemocratização do país, no debate acerca das
políticas públicas (Berlinguer, 1988). políticas públicas em saúde resumido em torno
Esta autonomia é vista por muitos como da Reforma Sanitária.
excessiva e danosa (Illich, 1975), estando a As ações em saúde consagradas na Conferên-
serviço de um sistema sanitário potencialmente cia de Alma-Ata (1977), realçando os papéis
iatrogênico, dispendioso e incapaz de promover dos serviços básicos, refletiram-se na VII
benefícios na proporção dos recursos emprega- Conferência Nacional de Saúde aqui realizada

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Ribeiro, J. M.

em 1980, onde ações integrando as políticas de rido apenas a constituição de um rótulo “alti-
âmbito federal com as estaduais e municipais ssonante” para dar coesão a itens que remontam
passaram a expressar a combinação de algumas à década de 60. Some-se a isto a literal transpo-
teses reformadoras, como a descentralização e sição do modelo italiano, em que pese o fato das
a extensão de cobertura. Entretanto, foi com a estratégias serem necessariamente distintas,
VIII Conferência, realizada em 1986, em plena em virtude dos atores sociais envolvidos. Na
conjuntura de redemocratização política do país, Itália, o movimento contou com uma base
que o projeto reformador ganhou impulso partidária e sindical mais sólida, que precedeu o
suficiente para influenciar a própria Assembléia longo debate parlamentar (Berlinguer, 1988).
Nacional Constituinte, em 1988. As teses cen- No Brasil, o peso da burocracia técnica sanitá-
trais do Movimento Sanitário reformador carac- ria na elaboração do projeto, aliado ao maior
terizaram-se pela reforma do Estado, enquanto envolvimento de uma elite sindical cujas bases,
instância capaz de redemocratizar, através de como no caso dos médicos, estavam entre
suas políticas, as relações sociais e suas desi- funcionários públicos, traz à tona uma forma
gualdades. As características dominantes da particular do “pessoal de Estado” em levar
Reforma Sanitária foram, portanto, a promoção adiante suas demandas corporativas: apresentar
do acesso universal da população aos serviços; suas aspirações de expansão e reprodução
a descentralização gerencial, com o reforço dos enquanto anseios populares (King, 1988). A
papéis dos sistemas locais; a democratização da Reforma Sanitária fundamentou-se como uma
gestão dos recursos, através de estruturas tripar- reforma do Estado cujo eixo está na própria
tites (governos, usuários e profissionais de expansão do setor na saúde, o que condiz com
saúde); e a hierarquização dos serviços visando os interesses de uma tecnoburocracia atuante e
uma integração entre os diversos níveis de voltada para a sua reprodução.
complexidade. No conjunto, uma determinação Do lado dos movimentos sociais urbanos, é
de que o Estado atue como o responsável importante destacar a sua crescente demanda
primordial pela promoção da saúde da popu- por serviços públicos. A lógica dos interesses
lação. coletivos não perpassa profissões como a Medi-
Este processo desembocou na criação do cina, cujos rígidos vínculos corporativos deter-
Sistema Único de Saúde, onde ressaltamos minam barreiras substantivas a qualquer proces-
como relevante à nossa discussão a gestão so reformador (Costa, 1989).
compartilhada de recursos e ações sanitárias, Tais obstáculos não esmoeceram o ímpeto dos
através de arranjos institucionais onde diferentes formuladores da Reforma Sanitária em superar
atores passam a disputar seus interesses, tendo os limites corporativos. O movimento médico
que compartilhar consensos e conquistar deter- foi considerado por muitos como capaz de
minados bens ou benefícios. Como veremos operar alianças históricas com o movimento
adiante, tal modelo admite as demandas fun- popular (Teixeira, 1988). Tais expectativas
cionais em políticas setoriais e locais, carac- estavam muito vinculadas ao próprio processo
terizando arranjos de caráter neocorporativo. de redemocratização do país e à intensificação
O movimento pela Reforma Sanitária apresen- das lutas sindicais e políticas, gerando esperan-
tou-se aos médicos através de suas lideranças e ças de que limites tradicionais da organização
teve ressonância, a nosso ver, especialmente por social brasileira pudessem ser superados ao
itens como a isonomia salarial entre os profis- longo do esvaziamento dos regimes militares.
sionais. Os entraves, entretanto, foram se avolumando
Enquanto movimento reformador do Estado, após as primeiras experiências gerenciais dos
muitos foram os obstáculos que se apresentaram reformadores, constituindo-se num evidente
à sua viabilização. Alguns, fruto das condições dilema.
objetivas envolvendo atores sociais; outros, O dilema reformista estaria no fato da Refor-
decorrentes da própria proposta. ma ter se desenhado em cima da crise do
A começar pelo conteúdo básico da Reforma, sistema, apresentando-se como alternativa em
Oliveira (1989) lembra que as proposições já uma conjuntura peculiar (a “Nova República”)
estavam em curso há muito tempo, tendo ocor- onde o peso de forças políticas conservadoras

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Arranjos Neocorporativos

no interior do aparelho governamental expôs influencia a organização política e social brasi-


seus formuladores à situação de gerir sem leira.
plenos poderes, levando a um desgaste da O fundamento básico do corporativismo
própria estratégia reformadora (Teixeira, 1988). encontra se no fato de atividades profissionais
Nesta altura, as diferenças com relação ao se organizarem em associações de interesses
processo italiano já se apresentavam por demais coletivos (corporações). Tal doutrina “propõe,
claras. Entretanto, assinale-se, as teses básicas graças à solidariedade orgânica dos interesses
acabaram sendo acolhidas no texto da nova concretos e às formas de colaboração que
Constituição, pendente, obviamente, de regula- podem daí derivar, a remoção ou neutralização
mentação posterior. dos elementos em conflito” (Incisa, 1986). Tal
Os limites, no entanto, não estariam apenas definição, embora vinculada a regimes autoritá-
no equilíbrio de forças no governo. O processo rios, guarda dois aspectos que persistem como
de articulações “por cima” privilegiado pelos fundamentos do que hoje é definido como
reformadores, com todas as suas conseqüências, neocorporativismo: a solidariedade interna de
não levou em consideração o peso decisivo do grupos profissionais e a intervenção do Estado
mercado em condicionar e distribuir recursos de demarcando o processo de redução do conflito.
origem pública (Campos, 1988b). Conforme O desenvolvimento das forças produtivas no
lembra Campos, entre outros, o Instituto Nacio- capitalismo interferiu na organização cor-
nal de Assistência Médica e Previdência Social porativa por ofícios, subvertendo o modelo
(Inamps) e diversos fundos públicos bancaram tradicional (Marx & Engels, 1982). Isto nos
a mercantilização da assistência médica em obriga a distinguir entre as prescrições cor-
nosso país. O peso do mercado na área da porativas católicas (vinculadas a um comunita-
saúde surge como um evidente elemento de rismo destruído pelo capitalismo) e o cor-
condicionamento da atuação dos atores sociais. porativismo dos Estados autoritários que acom-
No caso dos médicos, quaisquer reformas terão panharam o processo de acumulação de capital
que levar em conta os meios como se or- em sociedades como a brasileira (Vianna,
ganizam e expressam interesses, tendo o mer- 1976). Ou seja, mudanças nos modos de produ-
cado como fonte de demandas que não podem ção ou de regimes imprimem características
ser tomadas, a priori, como conversíveis aos próprias à organização corporativa.
interesses coletivos. A contínua expansão dos Ainda no campo conceitual e ligado às práti-
serviços privados em saúde em nosso país cas sindicais, deve-se ressaltar o debate de
(Favaret-Filho & Oliveira, 1989) enfraquece Lenin (1973) com o que denominou economi-
uma das mais caras expectativas dos refor- cismo (apontado como uma tentativa de afastar
madores: a subordinação de amplas camadas da das lutas sindicais a colocação de alternativas
medicina privada à lógica do Estado. de organização política do Estado, acreditando
que, espontaneamente, pelas experiências cotidi-
anas, os proletários chegariam à ruptura com o
CORPORATIVISMO E ESTADO Estado burguês). Lenin assinala que, pela via
das lutas econômicas, os trabalhadores não
O corporativismo tem sido descrito a partir de superariam níveis “trade-unionistas” de lutas
pontos de vista variados. Além disso, tornou-se sociais. Assim, trava embate com estratégias de
senso comum vinculá-lo aos processos de caráter corporativo no interior da esquerda,
defesa de interesses imediatos de categoriais embate este que vai influenciar toda a atuação
funcionais. Outra base empírica encontra-se nas posterior da esquerda marxista, inclusive no
políticas de Estado, como o fascismo, e em Brasil.
diversos mecanismos de cooptação de lideran- O corporativismo aparece, portanto, como
ças sindicais no sentido de torná-las cooperati- mecanismo de regulação para o Estado e como
vas com políticas governamentais. Deste modo, entrave estrutural para a esquerda marxista.
torna se importante uma precisão teórica do que Para o marxismo, o processo de conscienti-
seja corporativismo e as formas como este zação das classes dominadas é crucial. Gramsci

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(1978) define como catarse “a passagem do porativos, acrescidas da sistemática democrática


momento puramente econômico (ou egoísta-pas- especialmente expressa pela autonomia das
sional) ao momento ético-político, isto é, a organizações de interesses em assuntos inter-
elaboração superior da estrutura em super-es- nos. Os modelos neocorporati-vos, aliás, embo-
trutura na consciência dos homens”. ra surgidos pelas mãos dos sociais-democr-
Não devemos, no entanto, atribuir às estrutu- atas, persistiram em governos conservadores
ras corporativas o único papel na viabilização (Przeworski, 1989).
da crescente hegemonia burguesa (e, com ela, Portanto, a relação entre corporativismo e
o desenvolvimento do capitalismo). Segundo Estado, que remonta à própria construção do
Gramsci (1968), elementos não-organizados, capitalismo, retorna (como será assinalado por
como os intelectuais, desempenharam papel de Schmitter, 1974) no capitalismo avançado com
destaque. Dentre estes, os médicos são vistos peculiariadades que o diferenciam do antigo
como intelectuais tradicionais e alvo de políti- modelo dirigista, do qual o fascismo foi uma
cas de cooptação da parte da nova classe bur- expressão típica.
guesa, no sentido de atuarem como veiculadores O Brasil e outros países latino-americanos
de novos valores. Os médicos, assim como caracterizaram-se por modelos corporativos
juristas e eclesiásticos, para Gramsci, tendem a diferenciados. Segundo O’Donnel (1976),
procurar ocupar espaços ideológicos acima das “sociedades diversas, corporativismos diversos”.
classes fundamentais, embora o seu progressivo Na América Latina, segundo este autor, o
papel subordinado na nova sociedade capitalista padrão de Estado burocrático-autoritário (que
não tenha sido esquecido por Marx & Engels sucedeu, pela via militar, os governos populistas
no próprio Manifesto Comunista, ainda nos em decomposição) refletiu-se no próprio tipo de
primórdios da construção de uma esquerda que corporativismo. O “corporativismo bifronte”
influenciou decisivamente o movimento sindical seria expresso pela convivência entre o com-
em todo o mundo. Neste caso, buscava-se ponente estatizante (subordinação ao Estado de
ressaltar o violento e acelerado processo de organizações da sociedade civil) e o privatista
conformação das estruturas e atores sociais à (abertura de áreas do Estado à representação
lógica do capitalismo em desenvolvimento. de interesses presentes na sociedade civil).
O Estado capitalista desenvolveu relações Trata-se, portanto, de assinalar a permanência
com atores coletivos, com especial atenção às de padrões corporativos em países como o
práticas do movimento sindical operário. Para Brasil, sem excluir outros modos de represen-
Panitch (1981), o corporativismo emerge como tação de interesses e sem se prender ao modelo
uma estrutura do capitalismo avançado, “que dirigista (estatizante) oriundo do período var-
integra grupos produtivos, organizados através guista pós-30.
de um sistema de interação mútua, de represen- Para assinalar a complexidade da organização
tação e cooperação ao nível das lideranças, e política em nosso país, vale enfatizar que o
de mobilização e controle social ao nível das processo de cooptação pelo Estado guarda
massas”. Trata-se, obviamente, de uma visão características freqüentemente classificadas
pessimista quanto a tal modelo de inter- como pertencentes a uma relação patrimonialis-
mediação de interesses. A gestão por parte dos ta entre sociedade e Estado. Como assinala
sindicatos de parcelas do poder não seria sufici- Schwartzman (1988), “o estamento burocrático
ente para que tal modelo deixasse de ser “fun- brasileiro é permissivo e incorpora, com facili-
cional” ao sistema. A social-democracia mo- dade, intelectuais, empresários, líderes religio-
derna aparece como patrocinadora, na Europa, sos e dirigentes sindicais”. Delineia-se, deste
de experiências corporativas, cabendo ressaltar modo, uma corporativização da vida nacional
que o conceito de corporativismo tradicional com o Estado, através do seu estamento buro-
implica o controle do Estado sobre a represen- crático, atuando no enquadramento das as-
tação funcional e a defesa fragmentada de sociações que se destaquem por uma atuação
interesses ao nível das profissões. Tais carac- mais dinâmica.
terísticas permaneceram nos modelos neocor- Para dar conta de tamanha variedade, como a

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Arranjos Neocorporativos

aqui lembrada, Schmitter (1974), através de um SINDICALISMO E CORPORATIVISMO NO


trabalho clássico, procurou, recorrendo à cons- BRASIL
trução de modelos típicos-ideais, destacar os
diferentes tipos de corporativismo, segundo A associação habitualmente feita no Brasil
grupos de nações. Para tanto, partiu, inicial- entre sindicalismo e corporativismo torna-se
mente, de uma definição do que seria o modelo evidente a partir da década de 30, ao longo da
corporativo típico-ideal e deu origem a toda construção do Estado Novo de Getúlio Vargas.
uma escola acadêmica que passou a ser recon- Foi neste período que a Legislação Trabalhista
hecida pelos estudos sobre modelos neocor- e o próprio Estado adquiriram, de modo pro-
porativos. Procurando destacar o corporativismo gressivo, feições corporativas que influenciaram
como uma das possibilidades de representação a acumulação de capital no país. No Brasil, os
de interesses em sociedades modernas, dentre as anos 30 são referências essenciais para o enten-
quais o pluralismo despontava como a mais dimento do movimento sindical e das leis
reconhecida, assinalou Schmitter que “cor- trabalhistas, que são, até hoje, imbuídas de tal
porativismo pode ser definido como um sistema herança.
de representação de interesses no qual as O estudo de Vianna (1976) sobre este assunto
unidades componentes são organizadas em é profundo e abrangente, fornecendo uma
número limitado, de caráter singular, compul- interpretação bem particular para o processo de
sório, não-competitivo, reconhecido ou con- identificação da burguesia industrial da época
cedido (senão criado) pelo Estado, e por- com o Estado corporativo. Assinala o modo
tadoras de monopólio representativo deliberado como ocorreu a transposição do projeto liberal
em suas respectivas categorias, em troca da — fordista da burguesia industrial (obstaculi-
observação de certos controles na sua escolha zado pelas condições vigentes no país) rumo à
de lideranças e articulação de demandas e estratégia de forte participação do Estado nas
sustento”. relações mercantis e sociais. Chama também a
Para acomodar países distintos, como o Brasil atenção para o papel modernizador desta bur-
e a Suécia, entre os sistemas corporativos, guesia industrial, construindo a sua hegemonia,
recorre à subdivisão em dois tipos: um mais de forma lenta e molecular, junto às demais
autônomo e penetrante (corporativismo societá- facções burguesas (como os setores agrário-ex-
rio), e outro dependente e penetrado (cor- portadores). O peso que a transformação dos
porativismo de Estado). Ao aplicar tais modelos sindicatos livres nascentes em estruturas oficiais
ao estudo de diferentes nações, observa que tais teve no processo de acumulação explica, em
não configuram exemplos “puros”, mas sim parte, a longa duração da legislação sindical
padrões dinâmicos em cima dos quais se desen- corporativa em nosso país.
volveram as formas corporativas. O cor- O fracasso do modelo liberal fordista no
porativismo societário mostrou-se concomitante Brasil deu-se em meio a uma crise de hegemo-
ao Estado de Bem-estar Social do capitalismo nia, e o corporativismo (com leis e estruturas
avançado, emquanto o corporativismo de Estado características) surge como a via de moder-
emergiu como uma necessidade estrutural do nização autoritária adotada no país. O paradoxo
Estado capitalista atrasado. Na verdade, obser- do abandono do liberalismo característico de
va se que o corporativismo societário nasceu do países de capitalismo originário (que seria a
declínio lento, mas seguro, do pluralismo forma “vocacional natural” da burguesia) e da
preexistente, ao passo que o corporativismo de adoção do Estado forte nos anos 30 só é enten-
Estado emergiu a partir da morte prematura e dido através dos obstáculos enfrentados pela
rápida de um pluralismo nascente, como ressal- nova burguesia em enquadrar os trabalhadores
ta. através da “educação pelas fábricas” para a
O Brasil encaixa-se no que Schmitter assinala obtenção do consenso.
como corporativismo de Estado, e as relações Neste sentido, o Estado entrou nas relações
históricas deste modelo com o sindicalismo trabalhistas buscando fortalecer o sindicalismo
brasileiro foram bem desenvolvidas por Vianna oficial, criado por legislação da época e sub-
(1976). metido a diversas limitações quanto à sua

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Ribeiro, J. M.

autonomia interna e práticas reivindicatórias. O cenários local, setorial e, menos nitidamente,


florescimento de um sindicalismo livre e autô- nacional.
nomo, desde o início do século XX, no Brasil, A distinção entre os diversos enfoques
foi enfrentado pelo Estado através da repressão acerca do corporativismo se faz necessária. Para
política, associada a crescentes incentivos Regini (1986), “a diferença fundamental é a
seletivos ao sindicalismo oficial (assistência seguinte: num sistema neocorporativo, a or-
médica por convênios oficiais, financiamento a ganização representativa dos interesses par-
associados, imposto sindical, etc). ticulares é livre para aceitar ou não suas
A estrutura sindical corporativa, segundo relações com o Estado, contribuindo, portanto,
Erickson (1979), deixou de cumprir seu papel para definí-las, enquanto no corporativismo
amortecedor de tensões sociais no início dos clássico é o próprio Estado que impõe e define
anos 60. O “trabalhismo radical” foi enfrentado estas relações”.
pelos militares no golpe de 1964. Estes, às O Estado capitalista avançado é o território
custas da repressão política, reforçaram as privilegiado para a discussão conceitual por
amarras ao sindicalismo engendradas pela nele conviverem, há longo tempo, políticas
legislação corporativa. Esta foi mantida ao sociais desenvolvidas e sólidas organizações
longo dos regimes militares, para ser ques- sindicais. Para Offe & Ronge (1987), tal Estado
tionada, de modo incisivo, a partir de 1977, não pode ser reduzido a um mero instrumento
com a retomada das lutas sindicais maciças e a de uma classe específica ou mesmo de segmen-
emergência do chamado sindicalismo autêntico, tos sociais. “...o Estado não defende os interes-
que buscou livrar-se da custódia do Estado. ses particulares de uma classe, mas sim os
interesses comuns de todos os membros de
uma sociedade capitalista de classe”. Tal defesa
NEOCORPORATIVISMO E não pode, entretanto, ser confundida com uma
POLÍTICAS SOCIAIS utopia democrática. Dar conta de interesses
comuns é a expressão da necessária legitimação
O conceito de neocorporativismo nos parece deste Estado. A referência ao modo de produ-
bastante útil ao entendimento das relações entre ção capitalista define o caráter das estratégias a
o Estado capitalista e os atores sociais or- serem desenvolvidas. Como assinalam, “...nossa
ganizados. Tais arranjos foram desenvolvidos tese consiste em afirmar que existe uma, e
em diversos países da Europa, observando-se somente uma, estratégia geral de ação do
uma influência marcante de sindicatos operários Estado. Ela consiste em criar as condições
em políticas de rendas, de trabalhadores em segundo as quais cada cidadão é incluído nas
serviços públicos na elaboração das políticas relações de troca”. Tais relações de troca
sociais, e um conjunto complexo de relações implicam a caracterização do indivíduo na
sociais que não podem ser reduzidas ao modo forma mercadoria, pela venda de sua força de
clássico de pensar o corporativismo, tendo em trabalho, sendo esta forma-mercadoria o “elo
vista a convivência entre a intervenção do entre as estruturas políticas e as econômicas”.
Estado e um certo pluralismo na representação As estratégias básicas de reprodução da
funcional. Nosso interesse, no momento, não forma-mercadoria seriam, de um lado, o auto-
reside no estudo do neocorporativismo enquanto matismo de mercado (que pressupõe uma
um possível paradigma nas Ciências Sociais. reincorporação posterior das unidades de valor
Nos interessa apreender os mecanismos de seletivamente excluídas da forma-mercadoria
interferência de atores coletivos nas políticas através do balanço oferta/demanda), e, do outro,
públicas e a do Estado nos processos de elabo- as políticas estatais de preservação das unida-
ração de interesses observados na sociedade. des de valor segundo políticas anti-cíclicas
Isto em decorrência da necessidade, a nosso (keynesianas). Tais estratégias apresentam
ver, de que os marcos teóricos das pesquisas contradições significativas: a primeira, pelo des-
sociais no Brasil assimilem a tendência aqui equilíbrio na força de trabalho decorrente de
observada de que arranjos de caráter neocor- demissões não acompanhadas de ressocialização
porativo se apresentem cada vez mais nos imediata; a segunda, pelos crescentes gastos

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Arranjos Neocorporativos

fiscais em políticas públicas. Offe & Ronge que vai desde a própria elaboração de quais
delineiam uma terceira via em andamento na demandas são relevantes e plausíveis, passando
Europa Ocidental, baseada em três itens: pro- pela capacidade de tais demandas homogeneiza-
gramas de reciclagem profissional, visando rem, mesmo que apenas por um instante, os
aumentar a capacidade de troca da força de indivíduos em torno de seus representantes, até
trabalho; aceleração da capacidade de troca de chegar ao papel que as instituições públicas
bens de capital via integração supranacional de desempenham no sentido de torná-las aceitáveis
mercados e diversas políticas nacionais e regio- ou não, ou mesmo de reconhecerem seus inter-
nais de pesquisa e desenvolvimento; e “sane- locutores.
amento planejado” de segmentos da produção A formação e a atuação de grupos de interes-
atrasados quanto à sua capacidade de rápida ses, segundo Offe (1989a), dependem de três
produção e circulação de bens. pontos: da vontade e identidade coletiva do
Tais estratégias pressupõem um ampla inter- grupo; da “estrutura de oportunidades” sócio-e-
ferência do Estado nas relações de troca e na conômica; e das práticas institucionais propor-
relação entre os interesses sociais organizados. cionadas pelo sistema político a estes grupos,
Isto revela um Estado organizador do processo na forma de “status público”. O autor critica a
econômico e interessado na ação dos atores teoria pluralista por estar demasiado presa à
sociais. expressão das vontades individuais. Assinala
Algumas contradições fundamentais emergem Offe: “A forma e o conteúdo concretos da
do quadro descrito. Uma delas estaria em que representação de interesses organizada é sem-
o Estado, para viabilizar a reprodução da for- pre um resultado do interesse, mais a opor-
ma-mercadoria (de cuja atuação depende a sua tunidade, mais o status institucional”.
própria sobrevivência via recolhimento de O Estado aparece como força interferente na
impostos, etc.), lança mão de políticas que intermediação de interesses. O status público,
pressupõem o crescimento da força de trabalho positivo ou negativo, atribuído via incentivos ou
em serviços empregada nas próprias agências sanções, estimula ou cerceia interlocutores,
estatais. Tais segmentos sociais estariam dis- voltando-se para a estratégia final de redução
tante de se comportarem pela lógica da mercan- do conflito global da sociedade. Na verdade,
tilização. Seus referenciais de produção seriam não ocorre uma redução do conflito, mas uma
distintos daqueles presentes na esfera mercantil fragmentação destes ao longo da sociedade. O
plena. Desta maneira, haveria uma desmercan- status público atribuído às organizações de
tilização da força de trabalho a serviço da interesses é considerado por Offe um item
reprodução desta enquanto mercadoria. Como crucial na intermediação de interesses na socie-
assinala Offe (1982), “do meu modo de ver, dade.
esta relação entre welfare e capitalismo é A representação funcional (neocorporativa)
contraditória: sob as condições de capitalismo emerge como adaptada ao desenvolvimento
moderno, uma estrutura de apoio de institui- capitalista e capaz de dar conta de itens varia-
ções não-mercantilizadas é necessária para um dos, os quais incluem o papel de selecionar
sistema econômico que utiliza a força de traba- questões que sirvam de informação global ao
lho como se fosse uma mercadoria”. O cres- sistema, sem a sobrecarga de demanda que a
cimento do setor de serviços na rede pública representação partidária tende a oferecer. A
seria, então, um subproduto “não-funcional” da agenda política da social-democracia européia
expansão capitalista. na década de 60 já dava sinais de sobrecarga
devido às políticas de crescente proteção social,
fazendo com que os modelos neocorporativos se
A REPRESENTAÇÃO DE INTERESSES E desenvolvessem, em países como a Alemanha
O NEOCORPORATIVISMO Ocidental, em cima do enfraquecimento do
sistema de representação territorial assegurado
A representação de interesses não se dá pelos partidos políticos. Poder-se-ia dizer que a
apenas pela vontade dos indivíduos represen- representação funcional neocorporativa desen-
tados, mas atende a um complexo mecanismo volveu-se junto com uma certa degeneração do

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Ribeiro, J. M.

sistema de representação partidária (perda de fortes e organizados, forçando a um des-


identidade dos partidos, sobrecarga de deman- locamento do centro de poder para os organis-
das, etc.). Uma síntese de tal processo e das mos paritários, com a subordinação das outras
mudanças no conceito de corporativismo é partes aos desígnios do movimento social
encontrada em Offe (1989a): “Essa dupla organizado. Tal possibilidade é vista com
natureza do corporativismo é essencial: implica bastante desconfiança também por autores como
restrições impostas à base de poder de grupos, Panitch (1981), que ressalta o forte elemento de
assim como um ganho em termos de autonomia. colaboração embutido no desenvolvimento do
Significa etatisation da política de grupos em corporativismo, e Przeworski (1989), que
um caso e ‘promessa de não-interferência’ do descreve as “bases materiais” onde se estabelece
poder do Estado no outro...O aspecto carac- o consentimento dos trabalhadores com as
terístico do corporativismo moderno, em con- regras do jogo do modelo capitalista, dos quais
traste com os modelos autoritários, é a coexis- são reféns (perdem com a crise do sistema e
tência de dois circuitos, havendo uma substitui- não têm garantias efetivas de ganhos propor-
ção apenas limitada da representação ter- cionais decorrentes da superação das crises
ritorial pela representação funcional”. econômicas).
No rastro de certo esvaziamento da represen- Para Offe, o modelo neocorporativo tem seu
tação partidária, o modelo neocorporativo não equilíbrio tendendo ao fortalecimento das
se apresenta como estável ou necessariamente posições burguesas. Os trabalhadores tendem a
persistente, mas como uma instância adicional ser mais comprometidos com os acordos decor-
aos modos de representação de interesses que rentes dos organismos tripartites do que os
pode ter seu alcance aumentado ou diminuído empresários. Para estes, as tomadas de decisões,
conforme elementos conjunturais de cada região em termos de investimentos e de itens que
ou setor. A despolitização do cotidiano, imple- dizem respeito ao processo de acumulação e
mentada pela ação do Estado, soma-se à frag- reprodução do capital, passam basicamente por
mentação do conflito como uma das “vanta- canais diversos dos comitês, sendo que seus
gens” do modelo em termos de estabilização representantes não podem assegurar o mesmo
dos processos sociais. No entanto, como as- grau de solidariedade de seus pares como o
sinala Offe, tal modelo está longe de ser es- observado entre os sindicatos operários. Para os
tável, pois carrega também um certo grau de sindicatos dos trabalhadores industriais, a
imponderabilidade. Seria também um modelo centralização cada vez maior torna-se uma
frágil devido às suas contradições. A es- necessidade para enfrentar grupos econômicos
tabilização do modelo corporativo depende de cada vez mais abrangentes, o que compromete
sua capacidade de “pressupor o consenso” e de itens como a autonomia das entidades de base
uma aceitação incontestável do método de (Wallerstein, 1989).
aceitação/exclusão de organizações e dos resul-
tados alcançados, o que está longe de constituir-
se numa garantia absoluta. Outro aspecto é a DEMOCRACIA E POLÍTICAS DE
intensificação do conflito politico não-institucio- PROTEÇÃO SOCIAL
nal, ou seja, a possibilidade de que grupos
voltados a temas extra-sindicais (questão ur- A questão democrática surge acompanhando
bana, defesa ambiental, etc.) ou de que se a representação de interesses na sociedade. Ela
rompa o mecanismo tradicional de colaboração envolve a defesa coletiva e individual de inte-
entre elites sindicais, com o fortalecimento de resses perante o Estado e entre os próprios
lideranças que denunciem o caráter do pacto de segmentos sociais. O Estado de Bem-Estar
classes implícito no neocorporativismo. Social, como desenvolvido em países da Europa
Um outro cenário, menos factível, consistiria Ocidental, foi constituído em cima de alguns
“na correção do viés de classe do corporativis- parâmetros importantes: democracia política,
mo”. Tal se daria em virtude de um magnífico densidade eleitoral da esquerda social-democra-
aumento do poder de barganha dos traba- ta, políticas econômicas inicialmente de caráter
lhadores, dotados de sindicatos cada vez mais anticíclico (keynesianas), formulação de políti-

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Arranjos Neocorporativos

cas sociais redistributivas pelo Estado e de discursos anti-welfare state; interrupção dos
proteção individual. Em tais contextos, a par- gastos em políticas de bem-estar social e declí-
ticipação dos sindicatos de trabalhadores, com nio em participações orçamentárias; ausência de
destaque para o setor industrial e as grandes esforço militante no interior da sociedade em
centrais sindicais, desempenhou um papel favor de tais políticas; desserção eleitoral de
importante, chegando, em determinados mo- núcleos expressivos das classes trabalhadoras
mentos, a parcerias de caráter co-gestionário. em favor de liberais-conservadores; for-
Desta forma, o neocorporativismo, tanto em sua talecimento de movimentos sociais não vin-
expressão geral nos grandes acordos nacionais culados a classes sociais, como pacifistas,
como em suas dimensões setoriais ou locais, ambientalistas, etc.
apresentou-se enquanto elemento freqüen- Segundo Offe, ítens como a carga fiscal, a
temente associado ao Estado de Bem-Estar. crítica ao “paternalismo” de políticas de auxílio
Uma questão está nos possíveis limites redis- desemprego e a mudança do perfil ideológico
tributivos e protecionistas desta convivência de segmentos formadores de opiniões, no
entre Estado e atores sociais coletivos. Afora a sentido de avaliar como negativo o peso exces-
constatação do caráter de classe burguês dos sivo de Estado, debilitaram o consenso em
modelos neocorporativos, há também todo o torno do Estado de Bem-Estar Social. A relação
debate que envolve a própria crise do padrão dos indivíduos com a “coisa pública” passa a
“welfariano” desde a década de 70, a qual merecer especial atenção. Na democracia, o
originou, nos anos 80, o vendaval neoliberal, custo da recusa é zero para o indivíduo (o não-
colocando as estratégias sociais-democratas eleitoral), o que estimula a que cada um efetue
(dependentes fundamentalmente do Estado) em cálculos no sentido de maximizar seus ganhos,
dúvida quanto à sua capacidade de agregar na ausência de constrangimentos coletivos. A
justiça social com desenvolvimento econômico mudança nas estruturas de oportunidades em
sob a égide de políticas públicas. sociedade (com a intensificação da tecnologia,
Neste universo emerge a pergunta feita por a diversidade profissional, os ganhos econômi-
Offe (1989b): Seria o Estado de Bem-Estar cos de trabalhadores na esfera industrial, etc.)
Social uma decorrência natural e necessária da seria a base para uma certa decomposição
progressiva democracia política? Surpreenden- individualista dos modelos neocorporativos
temente, Offe detecta mecanismos onde a baseados na ação coletiva solidária.
escolha individual, freqüentementemente anôni- Os agentes individuais, assim, passam a medir
ma através do voto em eleições, atua no sentido seus ganhos específicos com cada bem público
de influenciar o desmonte de estruturas de produzido e, além disso, na ausência de incen-
proteção social. Para este autor, democracia e tivos ideológicos ou de sanções, omitem-se nas
welfare não se alimentam mutuamente, e ele contribuições à produção de determinados bens
assinala o enfraquecimento do “estatismo cen- sociais, mesmo estando de acordo com os
trado no trabalho” (onde indivíduos atuariam em mesmos.
função de solidariedades determinadas Desenha se, deste modo, um quadro onde
funcionalmente, esperando-se comportamentos cada agente individual atua de acordo com uma
eleitorais de uma maioria de trabalhadores em lógica de maximização dos ganhos, o que é
favor do welfare state) e da hipótese de auto-re- condizente com valores do liberalismo, onde a
produção institucional do modelo (os bens obtenção do máximo por cada um serve de
proporcionados pelo Estado de Bem-Estar alavanca para o desenvolvimento da sociedade.
gerariam um consenso que bloquearia possíveis Claro está que os padrões de democracia
iniciativas restritivas dos benefícios da parte de partidária, arranjos neocorporativos e ação
partidos conservadores). individual decorrente da maximização de gan-
Considera Offe que tais pressupostos não se hos convivem nas sociedades capitalistas desen-
sustentam à luz da experiência européia dos volvidas, sendo o impacto político diferenciado
anos 80, onde pode-se alinhar: derrotas eleito- conforme nação ou conjuntura.
rais de socialistas e sociais-democratas, contínu- Para as pesquisas em nosso país, con-
as, perante partidos conservadores portadores de sideramos a necessidade de absorver os elemen-

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Ribeiro, J. M.

tos descritos pelo fato do Brasil inserir-se na colocam para o Estado e para os atores sociais
rede internacional de trocas do capitalismo e coletivos.
não estar à margem de tendências observadas 3. Os textos de Offe ganharam destaque
nos países centrais. Isto estimula a recusa a recente em nosso país, podendo sua importância
conceitos de representação de interesses exclusi- ser medida através das constantes referências à
vamente baseados no patrimonialismo, no sua obra observadas em trabalhos de autores
corporativismo autoritário ou na luta direta nacionais na área de pesquisa social, inclusive
entre as classes sociais. O estudo da or- na saúde. Ao colocarmos em destaque os seus
ganização dos interesses socialmente colocados pontos de vista, vemo-nos obrigados a discernir
passa pela observação de elementos detectados quais conceitos têm aplicação mais direta ao
em sociedades com um padrão de acumulação nosso campo de trabalho, haja vista a enorme
capitalista mais intenso, para que se apreenda as diferença entre as bases empíricas.
singularidades nacionais, regionais ou setoriais. 4. Inicialmente, é necessário esclarecer algu-
mas das diferenças centrais entre o caso brasi-
leiro e o dos países de capitalismo desenvolvido
PONTOS PARA O ESTUDO DE (especialmente a Europa). Os itens mais signifi-
POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL cativos, afora as próprias dimensões em termos
de produção econômica, poderiam, apenas como
1. As análises sobre políticas sociais no resumo, ser colocados da seguinte maneira:
Brasil, e, em nosso caso, sobre as políticas de
saúde, podem se beneficiar com a incorporação • Não houve, no Brasil, a construção de um
de elementos presentes nos estudos sobre o Estado de Bem-Estar que pudesse servir de
neocorporativismo. As relações corporativas base para ações de superação do mesmo e
tradicionais são bem reconhecidas em nosso nem de análises comparadas de políticas
país, assim como o caráter autoritário predomi- sociais dentro de um contexto assistencialista
nante nas relações entre o Estado e a represen- geral. Nossos estudos devem, assim, ser
tação funcional. O conceito de neocorporativis- colocados de um modo diferente — ou seja,
mo, em que pese os enfoques diferenciados, são partes de conjunturas e processos de
pressupõe elementos adicionais tais como troca, desenvolvimento de um Estado não voltado
espaços para negociação e organização funcio- para a proteção social global;
nal dos diferentes atores coletivos. Estes aspec- • Os agentes societários, no Brasil, não expe-
tos não são absorvidos pela conceituação tradi- rimentaram um processo histórico de organi-
cional de corporativismo. Tais elementos encon- zação de modo a provocar impactos duradou-
tram-se presentes e em desenvolvimento na área ros na organização do Estado, e mesmo o
da saúde em nosso país, principalmente se movimento sindical (o exemplo mais sólido
tomamos como referência as relações governa- de práticas de representação de interesses) só
mentais (nos vários níveis), as aspirações parti- mais recentemente dá passos rumo a uma
cipativas e co-gestionárias presentes nas pautas influência nas políticas de Estado que possam
das associações de interesses dos trabalhadores levar a comparações com os arranjos neocor-
da área, e as definições de caráter democrati- porativos de outros países (na verdade, o
zante presentes na elaboração do Sistema Único sindicalismo brasileiro passou a maior parte
de Saúde (gestão dos recursos e serviços com- de sua história dentro de padrões corporativos
partilhada entre Estado, trabalhadores de saúde do tipo dirigista, implantado desde a década
e usuários). de 30, suplantando as formas de sindicalismo
2. Os arranjos neocorporativos não constituem independente só mais recentemente retoma-
elementos paradigmáticos em Ciência Política, das);
mas estruturas que vão se desenvolvendo na • No Brasil, pela sua própria formação social,
sociedade capitalista no sentido de dar conta da os conflitos extra-institucionais são muito
redução do conflito global da sociedade e da mais freqüentes e violentos do que no quadro
resolução localizada de problemas que se europeu e, conforme a conjuntura, chegaram

16 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 05-20, jan/mar, 1993


Arranjos Neocorporativos

a ocupar o primeiro plano no padrão de 6. Constata-se, com maior nitidez, os impac-


conflitos no país (conflitos de terra, movi- tos de atitudes de representação organizada de
mentos de resistência aos regimes militares, interesses sobre a organização de políticas
greves” selvagens”, etc.); sociais, como pode ser verificado através de
• O Estado brasileiro não pode ser interpretado diversos exemplos — as tentativas, no momento
apenas com o instrumental de Offe, pois o discursivas, de articulação de pactos sociais no
acesso burguês às políticas e à burocracia Brasil envolvendo governo, centrais sindicais e
tem, além dos elementos assinalados, compo- associações empresariais (governo e “organi-
nentes patrimonialistas e autoritários, que zações-pico”); a organização de câmaras seto-
colocam distante a pura e simples racionalida- riais para enfrentar políticas de preços (até o
de de “viabilização da forma-mercadoria”; momento sem a participação dos sindicatos de
• Por fim, dentre outras diferenças, a formação trabalhadores); os acordos de correntes sindicais
partidária brasileira está longe de apresentar com o Ministério do Trabalho (embora mais
um quadro consistente de representação ter- característicos de arranjos corporativos tradicio-
ritorial e ideológica, mesmo com o advento nais); e a atuação fortemente organizada dos
mais recente do Partido dos Trabalhadores, diferentes setores da sociedade junto à As-
com a legalização dos partidos comunistas e sembléia Nacional Constituinte — um processo
com a reimplantação de partidos (em geral que pode ser cosiderado como um pacto social
conservadores) de bases regionais; nacional de transição política.
7. No setor saúde, o processo experimentado
5. Por outro lado, uma vez tomados os cuida- na Assembléia Nacional Constituinte e na
dos assinalados, os estudos de Offe contribuem elaboração e aprovação dos princípios gerais do
de modo muito rico para o entendimento das Sistema Único de Saúde é um exemplo da
políticas públicas no Brasil e das suas relações importância desfrutada por propostas participati-
com as formas societárias de representação de vas e co-gestionárias junto aos partidos de
interesses. Um ponto que chama a atenção, por esquerda e sindicatos. Neste modelo, o Estado
exemplo, é o fato do discurso de esquerda e das surge como estendendo “um tapete” (que seriam
demandas de diversos setores organizados da as políticas públicas) que funciona como espaço
sociedade estarem centrados na chamada de conflitos e negociações entre os diferentes
“participação popular” perante as políticas atores sociais coletivos. Seria, deste modo, o
públicas, o que torna atual a discussão acerca Sistema Único de Saúde um exemplo de arranjo
das formas de arranjos neocorporativos se neocorporativo, apesar da exclusão do setor
estabelecerem no Brasil pela via do discurso de privado de seu espaço decisório, estabelecida
esquerda (principalmente se agregarmos exem- pelos seus proponentes. Acordos de condução
plos sobre as práticas sindicais recentes em de políticas a níveis locais, especialmente no
serviços públicos). Com a crescente reorgani- âmbito dos municípios, onde sobressaem-se as
zação do movimento sindical em níveis nacio- relações entre governos e trabalhadores de
nais; Central Única dos Trabalhadores (CUT), saúde, e mesmo de associações comunitárias,
Confederação Geral dos Trabalhadores (CGTs), compõem um padrão setorial de arranjos neo-
Força Sindical; e dos demais movimentos corporativos que não podem ser também esque-
sociais (sem-terra, comunitários, ambientalistas, cidos na pesquisa social.
etc.), a questão da introdução de arranjos corpo- 8. O enfraquecimento do padrão de Estado
rativos na mediação de conflitos em bases assistencialista na Europa e nos Estados Unidos
diferentes da tradição corporativista autoritária cria, no Brasil, um ambiente favorável ao
entra na ordem do dia, freqüentando o próprio ataque ideológico neoconservador às políticas
noticiário jornalístico (pacto social, comissões estatais, enfraquecendo aqui este modelo de
paritárias, “sindicalismo de resultados”, etc.), distribuição de “bens públicos” e interferindo na
estando ainda em aberto qual será o padrão execução de diversas políticas (habitacional,
dominante de resolução de conflitos no país (ou educacional, sanitária). O enfraquecimento, aqui
mesmo se tal se dará por mecanismos extra-ins- também notado, no modelo de correção das
titucionais). injustiças sociais via políticas de Estado atinge

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 05-20, jan/mar, 1993 17


Ribeiro, J. M.

a própria esquerda brasileira (Partido dos Tra- tário do Estado Brasileiro, restringindo o acesso
balhadores (PT), sociais-democratas, PCs, etc.), a seus níveis centrais de decisão política por
cujas políticas têm sido nitidamente vinculadas canais societários.
a dois padrões: às políticas redistributivas do 13. A relevância do que foi aqui discutido
Estado e ao estímulo participativo dos setores para o estudo ao qual nos propomos, como
sociais não detentores de capitais — conferindo desdobramento desta dissertação, está em que o
aos projetos da esquerda no Brasil padrões processo de trabalho e a produção de serviços
neocorporativos subordinados à expansão da em saúde sofrem impactos das atitudes indivi-
burocracia estatal. duais e organizadas dos profissionais do setor,
9. Nota se no discurso neoconservador brasi- especialmente dos médicos. A consolidadação
leiro uma tendência à transposição global dos de um padrão negociado de redução de confli-
diagnósticos e das soluções observadas nos tos e de gestão de políticas sociais evidencia
países centrais, sem a elaboração adequada de mais ainda os mecanismos de defesa de interes-
um projeto adaptado às bases nacionais. Porém, ses das categorias profissionais da saúde, espe-
o conhecimento dos determinantes desta “onda cialmente dos médicos. As atitudes individuais
conservadora” é crucial, pois torna-se provável e coletivas destes profissionais (e a forma como
a colocação destes princípios nos projetos de tenderão a operar com os padrões cada vez
atuação dos diversos ministérios envolvidos mais negociados de atuação profissional) são
com as principais políticas sociais (como já foi cruciais para o resultado destas políticas e para
notado no Ministério da Saúde e nas políticas o próprio processo de trabalho em saúde. Itens
científicas, por exemplo). como jornada de trabalho efetiva dos médicos,
10. O destaque dado por Offe aos elementos tempo de consulta, consumo de equipamentos e
individuais presentes na ação coletiva não serve medicamentos, controle de qualidade dos servi-
apenas para assinalar os limites de explicações ços e supervisão técnica, democratização dos
fundadas exclusivamente em modelos neocorpo- prontuários médicos, captação individual de
rativos. Ele também assinala a importância dos clientela, entre outros, são elementos de forte
estudos levarem em conta os cálculos racionais impacto no produto final das políticas sociais
na ação coletiva, não como um enfoque racio- no setor (não apenas nos serviços públicos,
nalista (onde o desejo do indivíduo fosse cerce- mas, obviamente, no setor privado) com os
ado pelas estruturas), mas enfatizando a presen- quais governos (federal ou locais), usuários e
ça de estruturas de oportunidades nas quais os profissionais do setor se defrontam e nos quais
atores coletivos e individuais atuam. As políti- arranjos de resolução de conflitos tendem cada
cas sociais em saúde conformam um terreno de vez mais a se impor.
atuação e conflitos a ser estudado sem se
ocultar a forte participação do Estado (o que
enfraquece os modelos pluralistas de análise), RESUMO
sem se submeter ao paradigma da luta de
classes no capitalismo (o que enfraquece uma RIBEIRO, J. M. Arranjos Neocorporativos e
leitura conservadora do marxismo), e sem Defesa de Interesses do Médicos. Cad.
subestimar os mecanismos pelos quais os Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 05-20,
interesses individuais se coletivizam em nossa jan/mar, 1993.
sociedade.
12. Os itens aqui descritos conformam um No Brasil, o modelo sindical formado a partir
projeto em desenvolvimento que se constitui em do corporativismo autoritário instituído na
uma tendência que pode ou não se fortalecer, década de 30 sofre transformações com o fim
conforme fatores conjunturais. Um destes do ciclo militar inaugurado em 1964. Com a
fatores seria, por exemplo, um acesso mais redemocratização, o movimento sindical
significativo da esquerda social-democrata a passou a conviver com a representação plural
níveis cada vez mais elevados de decisões de interesses, o que se refletiu no sindicalismo
políticas do Estado. A isto se contrapõem outras médico a partir de 1977. O arranjo político
tendências, como o caráter burocrático e autori- decorrente da Constituinte de 1988 consagrou,

18 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 05-20, jan/mar, 1993


Arranjos Neocorporativos

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