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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

LITERATURA AFRICANA EM LÍNGUA PORTUGUESA II

PROFESSOR: MAURO DUNDER

ALUNO: IGOR DESSOLES BRAGA

EU REPRESENTO O “TALVEZ”: O TRIBALISMO, A CONSTRUÇÃO DA


IDENTIDADE E A NEGRITUDE EM MAYOMBE, DE PEPETELA

Natal/RN
Dezembro/2016
I realized that people like me, girls with skin the color of
chocolate, whose kinky hair could not form ponytails,
could also exist in literature. (Chimamanda Ngozi Adiche)
1. Introdução

Pretendo, neste ensaio, expor as minhas percepções acerca de Mayombe,


romance escrito por Pepetela a respeito da Guerra Colonial Portuguesa, focalizando
discussões relativas ao tribalismo, à construção da identidade e à negritude de forma
conjunta. Para tanto, farei uma discussão sintética, objetivando, apesar disso, o maior
aprofundamento possível. Ademais, as reflexões aqui evidenciadas centrar-se-ão em
trechos da obra, sem se ater de forma demasiada a aspectos mais gerais.
No que diz respeito às divisões do ensaio, optei, de início, por falar brevemente
sobre Pepetela e mencionar alguns de seus livros já publicados – embora o romance
Mayombe possua especificidades que competem exclusivamente à narrativa dele, creio
que a discussão a respeito da biografia do autor e do contexto sociohistórico ao qual a
obra se refere pode enriquecer a discussão, na medida em que são trazidas informações
contextuais pertinentes. Em seguida, decidi dar foco à análise propriamente dita,
focalizando questões relativas à negritude e ao sentimento de pertença. Por fim,
seguem-se as considerações finais.
Tal como é de se esperar de um ensaio acadêmico, manterei algumas
características formais próprias do gênero, mas também acrescentarei experiências
individuais que contribuam para a análise. Assumo, pois, a subjetividade como
instrumento essencial à progressão textual, posto que é por meio dessa subjetividade
que encontro um caminho coerente para a escrita. Nesse sentido, pontuo que a
fundamentação teórica será exposta conforme seja necessária, embora relativo a
algumas questões tratadas, como se verá adiante, irei me embasar em autores
determinados.

2. O autor e sua obra

Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido pelo pseudônimo
Pepetela, é considerado um dos grandes romancistas africanos da contemporaneidade.
Nascido em Benguela, Angola, ganhou notoriedade ao ser galardoado com o Prêmio
Camões, conferido aos escritores que contribuíram de algum modo ao patrimônio
literário de países cuja língua oficial é o português. O autor, ainda, publicou mais de 15
obras, a exemplo de As aventuras de Ngunga, Luegi: o nascimento dum império,
Parábola de um Cágado Velho, A geração da utopia e nosso objeto de estudo,
Mayombe.
Sobre a prosa de Pepetela, destaco que ela alia tradição e modernidade, como
mostra Aires (2008). Tradição porque sua escrita carrega consigo a representação de
práticas já consolidadas culturalmente, sendo, essas, transmitidas por meio da aceitação
de regras sociais implícitas; e, por outro lado, modernidade porque carrega um olhar à
frente, baseado na ciência e na técnica. A junção entre essas duas modalidades de
experiência em um mesmo espaço objetiva demonstrar processos de ruptura (papel não
necessariamente desempenhado pela modernidade, pois, às vezes, é a tradição em meio
à modernidade que se configura como uma ruptura).

Quanto ao contexto sociopolítico em que Mayombe foi escrito, evidencio a


presença, em meados dos anos 60, de movimentos de libertação durante a Guerra de
Angola. Estes buscavam lutar contra o regime colonialista, que ruiria apenas em 1974,
quando Portugal inicia a descolonização no território africano (FORNOS, 2006).
Mayombe, precisamente, faz referência a um grupo específico de libertação, cujos
pressupostos ideológicos vinculavam-se ao marxismo-leninismo.

Com o intuito de encerrar essa seção, trago aqui a relação entre a biografia do
autor e esse romance. Embora não devamos confundir, sempre é válido ressaltarmos,
autor e personagem, não se deve negar que a participação de Pepetela no Movimento
Político pela Libertação de Angola (MPLA) influenciou diretamente nos episódios
narrados em sua obra.

3. Tribalismo, construção da identidade e negritude

Certa vez, disseram-me que o bom texto literário é aquele que melhor diz e,
também, que mais diz – quanto ao “mais”, não me refiro apenas à quantidade, mas,
sobretudo, ao público alcançado, isto é, à capacidade de suscitar uma série de questões a
qualquer um que o leia, independentemente da região onde habite, da cultura na qual
esteja imerso e das crenças que lhe movam. Parece-me que esse pensamento é atribuído
a Tolstoi, no entanto, não afirmo de forma certeira. Em verdade, trago essa reflexão
como ponto de partida para o que realmente nos interessa: Pepetela, ao escrever
Mayombe, um dos seus romances mais agraciados pela crítica especializada e pelo
público em geral, criou uma história cujas discussões levantadas ultrapassam o mero
relato de experiência, presente em uma esfera particular, e abarcam representações de
sentimentos humanos diversos, consolidando-se, assim, como um artefato cultural de
valor inestimável à literatura escrita em língua portuguesa.
A mim, particularmente, suscita questões relativas à negritude e à construção da
identidade/do sentimento de pertencimento, conforme mostrarei adiante. Nesse sentido,
a fim de estabelecer uma ponte entre o que por mim é constatado e pelos pesquisadores,
abordado, irei me apoiar sobre a primeira discussão em Munanga (2009), e, sobre a
segunda, em Fornos (2006) e em Reis (2010). Antes de passar à análise, é preciso,
porém, compreender os elementos da narrativa da obra em sua totalidade, pois alguns
desses aspectos serão retomados à frente.
Sobre o enredo da obra, Mayombe trata do dia a dia dos integrantes do MPLA.
Os inúmeros personagens presentes na obra – de início eram 16 –, como Mundo Novo,
Milagre, Teoria, Lutamos, Muatianvua, discutem entre si, compartilham opiniões e
sentimentos comuns, brigam, sonham; seus apelidos, como podemos observar nos
referidos exemplos, dizem respeito à função desempenhada por eles no movimento.
Além disso, três deles, o comandante Sem Medo, o Comissário Político e o Chefe de
Operações compõem o comando de guerra e, por isso, estão ainda mais expostos à
construção de laços e a disputas internas.
Boa parte desses aspectos destacados me lembra Capitães da Areia, de Jorge
Amado, não obstante a distância existente entre os respectivos contextos de produção.
Algumas das pontes que podemos estabelecer dizem respeito ao seguinte: ao fato de que
na narrativa de Amado os personagens também possuem apelidos, muitos dos quais
parecidos com os presentes na de Pepetela; à situação degradante, de fome e de luta, a
qual estão sujeitos os personagens de ambos os livros; e à influência comunista
existente tanto no contexto dos meninos que viviam no trapiche quanto no dos soldados
do MPLA.
Em relação à quantidade de capítulos, o romance é composto por 5, A Missão, A
Base, Ondina, A Surucucu e A Amoreira. Apesar da onisciência e onipresença
predominante do narrador na obra, que narra em 3ª pessoa, há, em todos os capítulos,
relatos entremeados dos integrantes do movimento em 1ª pessoa. Esses relatos versam
sobre a vida deles e, não raras vezes, trazem histórias que ilustram a personalidade os
posicionamentos ideológicos dos combatentes. Junto aos posicionamentos são
mostradas mesmo as discordâncias dos membros entre si ou a forma como as decisões
são conduzidas.
Especificamente no que concerne a Mayombe, podemos criar uma discussão que
aborda diretamente a negritude. Antes, porém, já que assumi como instrumento
metodológico as minhas experiências individuais, gostaria de relatar o porquê de essa
temática me chamar atenção. Em primeiro lugar, destaco que sou filho de pai branco e
mãe negra e que, por consequência, sinto-me incoerente inserido em qualquer grupo
familiar ou social: para meus amigos e demais conhecidos, sou negro; para minha
família por parte de pai, sobretudo a minha avó, sou branco e ninguém me “tira isso”.
Uma de minhas tias, da família paterna, não fala comigo por eu ter “manchado” a
linhagem – mesmo que meus avós tenham criado 9 filhos, eu e minha irmã somos os
únicos não brancos.

Então, sim, me ponho no lugar de quem conhece os sofrimentos e inquietações


do personagem Teoria, o qual, logo no início do romance, depara-se com um dilema
semelhante ao meu. Ele é um dos integrantes do Movimento Político Pela Libertação de
Angola e carrega consigo a culpa por ser filho de pai branco, comerciante português, e
mãe negra, angolana (ou por carregar consigo o “pecado original”, como diz). Em uma
das alterações do foco narrativo, quando, em primeira pessoa, narra a sua história,
Teoria diz “Criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem
negro. Homem, queria ser negro, para que os negros me não odiassem. Onde estou eu,
então?” (PEPETELA, 2013, p. 18). Como se percebe, as angústias do personagem
advêm de um conflito identitário. Esses problemas repercutem negativamente em seu
cotidiano, posto que ele não consegue negar aos seus parceiros de luta nenhum trabalho
a ser feito.

No que diz respeito à negritude, precisamos compreender, com base em


Munanga (2009, p. 24), que durante a ocupação efetiva da África, “os europeus tinham
a priori desprezo pelo negro, apesar das riquezas que dele tiravam”. Essa aversão
generalizada por parte dos colonizadores partia, ainda segundo o autor, da ignorância
em relação à história do povo negro, das diferenças entre as culturas africana e europeia
e do preconceito criado por pessoas que pouco ou nada sabiam sobre os costumes do
outro. Todas essas questões fomentaram nos europeus um desejo de deformar a imagem
do colonizado, atribuindo características a ele, por exemplo, como a falta de aptidão
intelectual.

Tendo conhecimento, então, do contexto em que surge a negritude, é fácil


compreendermos as preocupações de Teoria. Como pode ajudar verdadeiramente o seu
povo, carregando dentro de si o sangue criminoso do colonizador? Teoria acredita não
poder se doar por inteiro porque ele é a representação da possibilidade. Diz que “Num
universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez” (PEPETELA, 2013, p.
14). Àqueles que lutam pela causa negra, Teoria é branco, e, àqueles que buscam
exploração das riquezas naturais d’Angola, Teoria é negro. Não possui, assim, um
grupo no qual se encaixe, isto é, não constrói de forma efetiva o sentimento de pertença.

Em um diálogo entre Teoria e o comandante, em certo momento, este pergunta


àquele se “tem sempre medo”. O professor responde que sim, embora revele que tenha
de guardar segredo quanto a isso: “Um mestiço mostrar o medo? Já viste o que daria?
Tenho procurado sempre dominar-me, vencer-me... compreendes?” (PEPETELA, 2013,
p. 43). Aqui nesse diálogo se inicia algo que ficará claro mais à frente, o fato de que o
conflito de Teoria não diz respeito a ninguém, a não ser a si próprio. O próprio
comandante evidencia que a maior parte dos integrantes tem um grande respeito pelo
professor, coisa rara em um grupo de combate, e admira a coragem dele. Resta, pois,
passar por um processo de autoaceitação, que será percorrido ao longo da obra.

Questões identitárias como a de Teoria são decerto comuns aos personagens da


obra. Ao contar suas histórias em 1ª pessoa, ou mesmo durante o enredo linear,
percebemos os elos e as desavenças dos combatentes do grupo. Lutamos, por exemplo,
em certo momento está a andar distraído, quando o MPLA está prestes a capturar alguns
nativos e destruir veículos de transporte e locomoção dos portugueses. Uns
combatentes, ao verem que ele segue a mesma direção, mesmo já tendo chegado à
picada, desesperam-se achando que Lutamos é traidor e irá alertar os inimigos. A
desconfiança ocorre devido a uma discussão anterior, em que defendera o não
fuzilamento dos trabalhadores da exploração por estarem submetidos aos colonizadores
e, também, por serem da mesma província que ele, Cabinda. Esclarecedor, nesse ponto,
é o discurso indireto livre presente no trecho a seguir.
Em breve chegariam à picada que servia para o transporte das árvores
derrubadas. Também esse povo que não apoia! Só mesmo fuzilando.
O pai dele, a mãe, os irmãos? Todos fuzilados? O povo não apoiava,
porque a guerra não crescia. O povo não apoiava, porque vieram fazer
a guerra em Cabinda sem explicar bem antes por que a faziam, era
ainda Lutamos uma criança. (PEPETELA, 2013, p. 23)

Como se percebe, mesmo pertencente à mesma região dos trabalhadores,


Lutamos acredita na luta do MPLA, embora reconheça que o povo não tenha sido
realmente alertado quanto aos anseios do movimento. Desse modo, notamos que o
combatente sente-se confuso no que se refere a suas escolhas, pois não sabe se toma o
lado do MPLA ou de seus conterrâneos. Parece ter certeza, no entanto, que
independentemente da escolha feita, a ele parece que sua identidade está perturbada.

O pertencimento a uma ou outra região influenciou ainda na relação entre o


Comandante Sem Medo e Milagre. Aquele, após castigar Ingratidão do Tuga por roubar
cem escudos angolanos (moeda de Angola durante o período de colonização
portuguesa) de um nativo, despertou a ira de Milagre. Os motivos dessa raiva giram em
torno do fato de o comandante ser da província de Uíge e, por isso, falar a língua ibinda;
por outro lado, Ingratidão do Tuga fala a língua kimbundu e pertence a uma região
diferente. A distância entre esses locais e as especificidades culturais fazem com que
Milagre, mais próximo de Ingratidão, volte-se contra o comandante. É a isso que
chamamos de tribalismo.

Conforme nos mostra Fornos (2006, p. 49), “O tribalismo afeta profundamente


os ideais propostos pelo MPLA que giram em torno de um projeto nacionalista,
multirracial e cultural”. A exemplo disso, tanto a preocupação de Lutamos em relação
aos trabalhadores da exploração quanto a de Milagre em relação a Ingratidão de Tuga
constituem relações de tribalismo e, por consequência, vão de encontro às aspirações do
movimento do qual fazem parte.

Por fim, ainda sobre Sem Medo, evidencio a opiniões de Reis (2010), para
quem o comandante busca a identidade por meio do exílio. O autor acredita que a maior
fuga é a sentimental e, vendo por esse ângulo, não apenas o comandante, mas também
Teoria e os demais integrantes do MPLA estão em busca constante por suas respectivas
identidades. Cada qual possui um motivo e, muitas vezes, uma angústia que o move na
luta por uma Angola melhor.

4. Considerações finais

Como não objetivava esgotar as temáticas aqui trabalhadas – duvido muito que
alguém o faça – encerro, aqui, esse ensaio. Gostaria de destacar apenas que identidade,
negritude e tribalismo são questões bastante sensíveis, sobretudo àqueles que não
convivem com esses assuntos de forma pacífica. Mayombe, particularmente, é uma obra
deveras rica para o estudo desses aspectos e de uma série de outros, pois nos possibilita
compreender um momento histórico de um país, em que pessoas lutavam por
sobrevivência, dignidade e melhores condições de vida, sem cair no perigo da visão
única. Deveríamos aprender com Teoria, que carrega a ditadura do “sim” e do “não”
como insuficientes para a definição de si mesmo e do mundo à sua volta.

Referências bibliográficas

AIRES, T. Mundos encostados: conflito entre tradição e modernidade em Parábola do


cágado velho de Pepetela. Revista África e africanidades, ano I, n. 2, 2008.

FORNOS, J. L.. Nacionalismo, revolução e pós-colonialismo em Mayombe, de


Pepetela. Letras de Hoje, v. 41, p. 47-56, 2006.

MUNANGA, K. . Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

PEPETELA. Mayombe. São Paulo: LeYa, 2013.

REIS, B. O Mayombe de Sem Medo: a busca de uma identidade por trás do exílio. In: II
Colóquio Da Pós-Graduação em Letras, 2010, Assis. Anais - II Colóquio Da Pós-
Graduação em Letras, 2010.

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