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Tió

Tió foi criado em favela, na da Providência, aos cuidados de uma mãe sonhadora,
descendente bastarda de pais portugueses, dada a contar histórias, sobretudo as bíblicas
do Novo Testamento, mas bastante ausente, devido ao número de bocas a alimentar. A
mãe veio ainda menina de Portugal, no intuito da família de esconder as vergonhas
expostas. Foi acolhida por um convento de freiras, no Rio de Janeiro. Na adolescência,
conheceu um rapaz da favela do Morro da Providência, antigo Morro da Favela, por quem
se apaixonou. Ele também se encantou com a moça europeia, mas só puderam consumar a
paixão sob a égide do casamento, devido à rígida educação religiosa que guardava a
garota. Tió mal conheceu o pai, que continuou a ser boêmio e mulherengo mesmo depois
que contraiu os laços matrimoniais. O homem saiu um dia a vender balas e nunca mais
voltou, mas de herança Tió guardou, a sete chaves, além dos pensamentos raivosos, uma
fotografia antiga e surrada, retratando aquele que aparentemente foi seu avô, militar de
baixa patente, na última e bem-sucedida investida do exército para dizimar Belo Monte.
Uma das poucas relíquias deixadas pela figura paterna. Nas últimas vezes em que viu a
família, Tió tinha três dos seis irmãos, todos da mesma mãe, dois com quem dividia o pai,
três divididos com a terra. Um morreu de raiva, outro de tristeza e o último de raiva alheia,
sem ter provocado, só de fogo cruzado.
Tió, de batismo Bastiantônio, dos sete, era o irmão segundo, e de ser o segundo padecia.
Tudo lhe parecia questão de provar a si mesmo. Até na miséria foi cavar ser o melhor. Aos
quatorze anos, depois de tragar um tanto de raiva e outro de tristeza, foi trocando a bala
pelo trabuco, e, depois, o tráfico pelo tráfego sem cessar, a caminhar em círculos mais ou
menos tortos. Nas andanças de rua em beco, em bueiro e buraco, encontrou, numa pilha
letrada, uns papéis surrados, cadernos, documentos, e uns pedaços de livro. E também uns
inteiros. Dentre os estilhaços de impressos, leu uma capa: Os sertões, de Euclides da
Cunha. E lembrou da mãe, que falava do avô, por quem guardava carinho. Tinha ajudado
muito a mãe, esse avô, que morreu de velho e desgosto com o filho, que mal tratava de sua
donzela. O avô, ex-militar, lutara em Belo Monte e ajudou a dizimar o povo do “dito” profeta,
que estava mais pra excomungado. “Vade retro”, Tió lia e pensava. “Meu vô, herói, mandou
o tinhoso pros quintos”. Sabia que a obra falava da história do avô, porque, um dia, havia
escutado na escola, então resolveu guardar os escritos que encontrou, vasculhando nos
detritos os fragmentos do livro. Encontrou ainda, nesse precioso cofre de lixo e letras - este
bem inteiro - um livro sobre um tal Antonio Conselheiro, e, porque estivesse bonito e inteiro,
porque Tió andasse precisado de uns conselhos, e também porque o sujeito tivesse parte
do seu próprio nome, resolveu levar, igualmente. Com o passar dos dias, olhou o livro mais
atentamente, e viu no título, ainda, a curiosa menção a Canudos, cidade tomada pelo seu
avô do célebre profeta louco, que era… Antonio Conselheiro! Largou do livro como se
queimasse de pecado e peste, mas depois de muito rodeá-lo, caído no chão, e lançar sobre
ele olhares furtivos e temerosos, resolveu envolvê-lo em lenço seboso e guardou-o por
anos, como se fosse uma sorte de talismã macabro. Nesse período, envolveu os miolos e
as entranhas no debruçar sobre os quebra-cabeças de partes dos escritos de Euclides,
sempre que possível. Acerca da mãe, ouviu anos depois, num bar da cidade do Rio,
próximo ao morro da Providência, que um dia teve como casa. Comentaram que Carminha
do Monte tinha morrido dum buraco. Ele tinha ouvido bem, “dum buraco”? Ou seria num
buraco? E seria um buraco no corpo, na terra ou no espírito? Mais não comentaram. E Tió
não teve sangue de perguntar. Nem identidade. Já não era Tió. E se perguntava se tinha
deixado de ser Tió pra ser um algo qualquer. Seria uma cova comum ou uma cova em
tocaia? Nem importava se chegava a ser algo. Esse um quê ou um quem, já não tinha
passado nem mãe, mas a frase “morreu dum buraco” escavou tanto seus poros que o
envenenou até os ossos. E quedou-se em obstinação, de salvar a dama do buraco, no
buraco e, com ela, toda a sua gente, do rasgo da desimportância. Era só gente. Gente
morre. Aqui, uns trinta mil, ali uns quinhentos. E vida que segue. Era assim que ele mesmo
sentia, de desde antes. Mas aquele buraco fincou nele uma bandeira, ou, pelo menos, sei
lá, uma prece impressa na carne: salvar aquela gente do rasgo e do buraco. Conhecia um
pouco da história do avô, pelos enredos da mãe e as linhas de Euclides. Do pai a mãe
nunca falava. Respirou fundo e retirou seu tinhoso livro do isolamento, porque pelo seu
povo oprimido valia qualquer Conselho. Admirou-se com o que leu. Não concordava de todo
com tudo, mas teve outros olhos praquela história que sempre tinha contado pra si de modo
diverso. O homem era santo ou demônio? Era um herói? O povo de Belo Monte era o seu
povo ou o povo do exército? Todos esses povos eram o seu povo? O que tinha feito o avô?
Teria consciência? Ele mesmo, tinha consciência? Não era possível, o avô fez o certo,
mesmo que por veredas tortas. Ou teria abraçado o erro em linhas de retidão e marcha? E,
em delírios de lucidez e becos sombrios de consciência, começou a se construir de retalho
de avô, retalho de Conselheiro, retalho de histórias contadas pela mãe, das do Tejo, retalho
de memória, retalho da História. Vez ou outra já não fazia distinção de quem era ele ou um
outro qualquer. E essa indistinção importava e muito. Ele era o próprio povo, sem face, sem
nome, sem status nem posição. Jagunço, cangaceiro, pobre, favelado, sem-teto,
sem-pátria, soldado só, de um exército de milhões de soldados sós, que lutava
silenciosamente, na labuta inesgotável dos dias. Ouvia a voz - da mãe? - a guiá-lo,
anunciando a jornada e peripécias de um tal rei, Sebastião, lutando para retornar ao seu
povo. E sentia dentro como o monarca em selvas e pântanos, a desbravar os mistérios do
desconhecido e, sobretudo, os desafios do retorno à “casa”. A voz, quando lhe falava,
contava de seus pensamentos e relatava acontecidos, fatos, passado que se misturava ao
presente e ao futuro, num sem-tempo. Leu com afinco tudo o que podia, queria conselhos,
guianças, ensinamentos de como ajudar a sua gente em si. Devorou o Conselheiro, em
quem viu caminhos e uma mão forte estendida, embora a sua história de menino e sua
linhagem o traíssem. Em contradição e não sem resistência, se apropriou, aos poucos, do
homem e do santo. Portugal, Brasil, Sebastião e Antônio, buscando sua gente neles
mesmos. Tió se achando na crosta do barro da criação. Com seu companheiravô a tiracolo,
combatia com palavras ácidas e espadas de detrito de rua os males do mundo, da
exclusão, da miséria. De dentro das suas contradições, ora compactuando com as
violências que o feriam, ora percebendo os furos das suas mirabolantes teorias, ou criando
novas, Tió foi se vestindo de fantasia e se despindo da alienação na qual um dia mergulhou
fundo, rumo a toda a inocência e à sábia percepção de que o amor por sua dama não pôde
salvar seu povo, mas talvez possa, ao menos, arrancá-lo da ignorância.

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