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Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Henriette Tognetti Penha Morato


Marcus Tulio Caldas
(Organizadores)

Editora da Juruá Psicologia: Ana Carolina Bittencourt Prática Psicológico


ISBN: 978-86-362-4055-8
na Perspectiva
Fenomenológica
MIRO Brasil —Fax:Av.(41)3252-1311
EDITORA
Munhoz da Rocha, 143 — Juvevê — Fone: (41) 4009-3900
—CEP: 80.030-475 —Cm-Giba—Tarará —Brasil Autores:
Europa— Escritório: Av. da República, 47 — 9° DL'— 1050-188-- Lisboa—Portugal Ana Lúcia Francisco Luciana Oliveira Lopes
Loja: Rua General Torres, 1.220 — Lojas 15 e 16 — Centro Comercial Ana Maria de Santana Luciana Oushiro
TrOuro —4400-096 t Vila Nova de Gaia/Porto — Portugal Ana Paula Nanico Cimino Luciana Szymanski
Ananda Kenney da Cunha Nascimento Marcus Tulio Caldas
Editor: José Emani de Carvalho Pacheco André Prado Nunes Maria Eugénia Calheiros de Urna
André Rostworowski Maria Luisa Sandoval Schmidt
Andrea Cristina Tavelin Biselli Manha Hiromi Takeshita
Barreto, Carmem Lúcia Brito Tavares. Angela Nobre de Andrade Nilson Gomes V. Filho
8261 Prática psicológica na perspectiva fenomenológical Carmem Barbara E leonora Bezerra Cabral Rafael Au ler de Almeida Prado
Lúcia Brito Tavares Barreto, Henriette Tognetti Penha Morato, Bruna Luiza Ferreira Regina Coeli Araujo da Silva
Marcus Tulio Caldas./ Curitiba: Juruá 2013. Carmem Lúcia Brão Tavares Barreto Rodrigo da Silva &Pingues Lei tes
Danielle de Fátima da C. C. de Siqueira Leite Sáshenka Meza Mosqueira
560p. Ellen Fernanda Gomes da Silva Shirley Macédo Vieira de Melo
Franciane Seco Delavia Silvia Raquel Santos de Morais
I. Psicologia fenomenológica, 2. Psicologia — prática. 3. Heloisa Szymanski Suely Emilla de Barres Santos
Psicologia existencial. 1. Morato, Henriette Tognetti Penha. Henriette Tognetti Penha Morato Tabana Benevides Magalhães Braga
II. Caldas, Murem Tulio. 111. Titulo. Joyce Cristina de Oliveira Rezende Wedna Galindo
Laiz Maria Silva Chohfi
CDD 150.192 (22.ed.)
000322 CDU 159.9
Curitiba
Visite nossos rires na intemeç omnarjuruapsicologia.com.br e www.edilarialjuma.com
Juruá Editora
e-mail: pskologia@jurea.com.hr
2013
ATITUDE FENOMENOLOGICA
EXISTENCIAL E CUIDADO
NA AÇÃO CLÍNICA
Rafael Auler de Almeida Prado
Mareia Tulio Caldas

Sumário: 1. Introdução. 2. Cuidado/Cura/Preocupação. 3. Ação Clinica.


4 Considerações Finais. 5. Referências.

Prslare Preface
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1 INTRODUÇÃO
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51-7alual tub444,, 4.1 A Orno_ fialrsiott 4040-tinjo a hotta4s1 4,,main .tart c...9744.unus iç t4 and iztdutira Primeiramente, cabe um esclarecimento inicial sobre as expectati-
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gerar em um texto que fala sobre a clinica. Cuidado e a preocupação (flirsor-
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ge) aqui, não se referem a uma modalidade tintico-existenciária de proteção
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iVa alset Ant: time thm 440 ..4.040.:li, ruli4. .t.nrertm.4 W aia, ama Uutt 701,0 is psicológica, não têm o sentido de "alerta", tampouco se referem à formula-
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a are 4ntutina; of ISa Inpi414
cau.t.147-terna. In latture 24, re pr.,cn'taylne4Theotst. whiclt erf-u414 ção de uma nova técnica psicoterápica. Pensamos no sentido ontológico,
conforme proposto por Martin Heidegger (1889-1976). A partir da preocu-
pação enquanto condição existencial de ser-com2 na sua articulação com suas
infindáveis possibilidades existenciárias da condição tintica3, pretende-se

A palavra alemã Sorge que pode ser traduzida por Cura e nos remete ao âmbito daquilo
que podemos denominar zelo„cuidado. preocupação/solicitude. Este é um existencial
meditado por Martin Heidegger (1589-1976) na elaboração da sua ontologia fundamental
publicada em 1927 — Ser e Tempo. Usa-se o termo cuidado quando refere-se à relação do
ser-ai com as coisas (entes intramundanos) e preocupação ou solicitude para a relação do
ser-ai com os outros (coexistir). Adotar-se-ão neste trabalho as expressões Cura para abar-
car o sentido mais amplo desse existencial e que. portanto, inclui o cuidado como ocupa-
ção na relação do ser-ai com os entes intramundanos e a preocupação quando falamos da
relação do ser-ai com os outros (coexistir).
2
"Ser com os outros-. "sendo com os outros-, diz respeito ao modo como nós nos relacio-
namos, atuamos, sentimos. pensamos, vivemos cornos outros.
"(Do Gr az, amar: o ser, aquilo que é) Palavra utilizada para designar o ser-ai (Dasein)
3

em sua existência concreta. distinguindo-se do ontológico que diz respeito ao ser em ge-
ral" (Japiassú & Marcondes, 1996. p. 200). O ontológico refere-se ao âmbito das possibi-
lidades de relações que se abrem para o ser-ai.

96
Rafael Auler de Almeida Prado e Marcos Tulio Caldas p Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 97 ,
compreender como a preocupação pode ser vivenciada na prática clinica 2 CUIDADO/CURA/PREOCUPAÇÃO
numa postura fenomenológica existencial do psicólogo. O sentido da expres-
são preocupação diz respeito a uma expectativa de que algo possa vir a
Heidegger faz uso de um testemunho
- pré-ontológico para elucidar
acontecer, tal expectativa pode ser vivida de duas maneiras extremas: uma
o existencial da Cura. (Sorge). Tal teitemunho encontra-se presente na se-
delas diz respeito a uma preocupação substituidora (Einspringende fürsorge),
Tgun
—da parte da obra Fausto de Goethe e se refere à fábula 220, das Fábulas
onde o ser-aí faz tudo pelo outro, isentando-o em certa medida das suas res-
ponsabilidades, fazer este que pode envolver domínio e manipulação ainda de Higino. Essa fábula medita sobre a essência do homem, e Heidegger a
transcreve no § 42 de Ser e Tempo.
que sutil; o outro modo diz respeito à preocupação liberadora (Vorspringen-
de firsorge), possibilitando para o outro condições para que ele possa assu-
mir as suas escolhas, posicionando-se e apropriando-se da tarefa de 'ter que Cena ver., atravessando um rio, Cura viu um pedaço de terra argilosa:
cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refle-
ser e de poder ser'. Cabe ressaltar que o termo atitude é propositalmente tia sobre o que criara, interveio Júpiter. A Cura pediu-lhe que desse espi-
usado porque acredita-se que a vinculação existente entre a ontologia de rito à forma de argila, o que fez de bom grado. Como a Cura quis então
Heidegger e a ação clínica não acontecem do modo da aplicação de um co- dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fos-
nhecimento teórico a uma situação prática. se dado o seu nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome,
Mal-entendidos como a acusação de que a psicologia fenomenoló- surgiu Terra (tellus) querendo dar o nome, uma re: que havia fornecido
um pedaço de seu corpo Os disputantes tomaram Saturno corno árbitro.
gica existencial faz a "aplicação" de uma (ontologia) a uma prática são fre- Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: 'Tu
quentes. Tal equívoco tem implícita a crença de que a psicologia como práti- Júpiter; por teres dado o espirito, deves receber na morte o espirito e tu,
ca tem que necessariamente ser a aplicação de um saber estabelecido por Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, no entanto,
meio do método científico. Partindo desse pressuposto, realmente fica in- sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se P01114 pois foi feito de hú-
compreensível a "aplicação" de um pensamento para urna prática. No en- mus. (Heidegger. 2008, p. 266)
tanto, a relação entre a ontologia de Heidegger e a atuação da prática psico-
lógica acontece em âmbito completamente distinto daquele da aplicação. O Esta bela fábula, muito confortante para os homens, uma vez que
pensamento heideggeriano possibilita reflexão da experiência clinica, orien- indica estarmos em nossa origem instalados em generosa oferta de cuidados,
tada por pressupostos ontológicos, não metafísicos, referentes à experiência vai receber do pensador um tratamento bastante peculiar. Compreendendo o
humana. As condições existenciais que tal pensamento reflete estão implíci- ser do homem como Ser lançado, em ontológica angústia e liberdade, uma
tas no modo como o encontro entre psicólogo e paciente se dá, como a com- vez que se encontram sem possibilidade de alojamento e destino no conjunto
preensão entre ambos é possível e como o psicólogo está implicado no pro- da natureza, terá seu sistema de ancoragem na metafísica, na técnica e na
cesso psicoterápico. filosofia ocidental posto em suspenso pelo pensador. A esse profundo desnu-
Acredita-se que exista uma relação anterio-è à vinculação entre o daniento, a essa vertigem sem paragem, a esse apelo, responde aquele que,
pensamento de Heidegger e a clínica fenomenológica existencial, relação condenado ao esquecimento, lhe acolherá em seu ser-com-os-outros, nesse
que, inclusive, fundamenta a clínica. Trata-se da relação entre a ontologia e a agora entremeado de possibilidades de sentido, que, finalmente, pode ser
vida. Se a reflexão ontológica pode provocar uma mudança no meu modo de chamado de mundo do homem. Assim, nossa condição, sermos, antes de se
ser, a partir de uma mudança no modo como me compreendo e compreendo pensar em qualquer possibilidade de subjefiv-idade, singularidade ou indivi-
minha relação com o mundo e com os outros, ela também muda meu modo dualidade, ser-com. Portanto, insistindo um pouco mais nessa questão, a essa
de ser clínico. Na preocupação/solicitude, a reflexão cai sobre o modo como condição ontológica deve nosso mundo e nossa humanidade.
eu me coloco diante do cliente, e pode ajudar a esclarecer se tendo a substi- Retomando de outra-maneira unia observação feita acima, a crítica
tuí-lo na responsabilidade que ele tem sobre sua própria existência, ou se heideggeriana a urna essência do homem compreendido como filho de Deus,
tendo a ajudá-lo a se apropriar, a seu modo, da lida com as questões ôntico- animal racional, consequência de um processo evolutivo ou mesmo subjeti-
-existenciárias. Nesse sentido, a noção heideggeriana de cuidado nos parece vidade aninhada em urna consciência autofundante, fechada e segura de si
especialmente importante para mostrar em que se fundamenta a clinica e mesma, conduz a pensar o homem corno para-fora-de-si, na existência, a ek-
como se dá a vinculação entre filosofia e psicologia. sistir na facticidade do ser-no-mundo.
98 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 99

Dasein, terminologia proposta pelo pensador para a condição A partir, portanto do cuidado nas disposições acima comentadas,
ontológica - ser do homem como ser-no-mundo, terá seus modos de ser
do será possível sustentar o sentido que, sem afastar o ser-com, permitirá um
"articulados no "cuidado/preocupação". A propósito, Heidegger chama de modo mais próprio de ser "si-mesmo". -
_
ôntologia fundamental o conjunto de reflexões que realiza sobre o ser-do- Fazendo um breve parêntesis, encontra-se em Ser e Tempo uma inte-
-homem para diferenciá-lo de outras propostas, denominadas por ele de on- ressante indicação que nos possibilita compreender a escolha dos objetos de
tologias regionais pelo fato de não refletirem diretamente a relação entre o estudo da psicanálise. Durante toda essa obra, Heidegger parte de uma análise
Dasein e seu ser, mas partirem de uma determinada região, ou seja, do estu- de um modo cotidiano e mediano em o homem vem vivendo "quase sempre e
do do ser de algo já dado no mundo. na maior parte das vezes" (termo que o autor repete diversas vezes ao longo da
obra) uma condição ontológica. Esse modo cotidiano e mediano, que Heidegger
pensador adota essa concepção visando à apreensão formal da
chama de uma modificação existencial diz respeito ã determinado modo como
totalidade do ser-aí enquanto ser-no-mundo na sua existência fática. Sendo a
rinkesa sociedade ocidental contemporânea vem vivendo determinada condição
plena unidade das estruturas que compõem o Dasein, o cuidado/preocupação ontológica. E, partindo desse modo ôntico, dos quais os modos existenciários
vai mostrar a relação dos existenciais: disposição, decadência e compreensão particulares de cada homem são, na maior parte das vezes, uma variação, ele
com as ekstases temporais passado, presente e Muro. nos faz visualizar sua condição de possibilidade ontológico-existencial.
Assim, ao ser fundamentalmente cuidado, q ser do 'ser-aí-no- No § 41, cujo título é "O ser da presença como cura", os exemplos
-mundo' pode ser compreendido a partir das relações que estabelece sem- utilizados para tomar visível a condição ontológica da cura são o desejo e o
pre e a cada vez com os entes. Aos entes que não possuem o caráter de impulso (propensão à vida). Desejo e impulso são considerados modificações
ser-aí, q modo de cuidado é a "ocupação", enquanto utensílio na trama de existenciais, no sentido de que se "modificam" como modo ôntico-existenciário
sentidos:A "preocupação" correspondera ao relacionar-se a entes igual- - •próprio de nossa época - a condição ontológica do cuidado/preocupação
mente existentes. Essa por sua vez se dará como "substituição" ou "ante-
(Sorg,e). Fica claro, diante da força de ambos enquanto modificações existen-
cipação liberadora". ciais da cura, na impropriedade e na decadência em que se lança o ser-aí, que a
Portanto, estar "enfermo" para a closeinsanalyse não diz respeito a psicanálise os tenha tomado como seus principais objetos de estudo. A psicaná-
um modo especifico cia correspondência, que, a princípio, é uma possibilida- lise inclusive, no seu modo Cofie° de compreensão do Dasein, explica muito
de de qualquer Dasein, mas ao fato de encontrar-se limitado a esse modo bem os processos e os caminhos dos impulsos e principalmente dos desejos.
específico, levando a uma impossibilidade de corresponder a outros apelos Não é preciso alongar esta questão. pois o que se pretende com este
de sentido que se façam prementes em seu existir. Daí que a atenção psico- artigo é, a partir do cuidado, pensar no fundamento existencial que possibi-
lógica deva dirigir-se a essa limitação das possibilidades de relação que o lita a prática clínica, já que não se acredita que seja seu conjunto de técnicas
ser-do-homem pode manter no mundo, ou seja, de sua liberdade. psicoterápicas nem o estabelecimento de um corpo teórico rijo cujo intuito
modo cotidiano e mediano da "preocupa-0o" com os outros é a seja o da explicação dos fenômenos psíquicos dentro de relações de causali-
indiferença, a ausência de surpresa e a evidência, que também caracterizam a dade. Esclarecemos, porém, neste sentido, que reconhecemos a validade das
"ocupação- com as coisas enquanto instrumentos à mão. Tal modo se coloca técnicas paieotelápicas e das teor:trações psicoléá.cas, somente não se a atri-
como grande desafio à clínica daseinsanalytica. bui a elas o fundamento ontológico existencial que possibilita a clínica, que
pretendemos esclarecer com a noção de cuidado (ou cura) para Heidegger.
O terapeuta disposto a partir do ser-com como aquele que no modo
da "preocupação'. e "anteposição" se permite guiar por uma "circunvisão",
orienta-se por uma compreensão prévia a partir da qual o outro se dá como 3 AÇÃO CLÍNICA
co-presente-no-mundo, alcançando o que Heidegger denomina como "consi-
deração" ou "solicitude". A "consideração" indica uma maneira de ver que Considerando a clínica fenomenologia existencial a partir da analí-
leva em conta a diferença e a importância de tudo com que se lida, enquanto tica existencial de Heidegger, analisa-se a seguinte afirmação que, de certa
a "solicitude" comenta sobre o modo ativo de aceitação das tensões, dos forma, sintetiza não toda a estrutura ontológica, evidentemente, mas um as-
limtíèãs características 'diferenciais das situações e modos de ser. pecto dela:
100 Rafael Auter de Almeida Prado e Marcus rufio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica 101,
Como /ático, o projetar-se compreensivo da presença está sempre junto
a um mundo descoberto. É a partir dele que o projetar-se recebe suas menos clareza sobre eles. Seja frustração, seja carência, seja fraqueza, seja
possibilidades e, numa primeira aproximação, segundo a interpretação depressão, seja estresse, ou um incómodo difuso, não claro, algo vem dizer
do impessoal. Essa interpretaçãojá restringiu antecipadamente as pos-
sibilidades de escolha ao âmbito dojá conhecido, do que já se pode al-
que não podemos mais ser de determinado modo. É como se uma brechinha
cançar e suportar, do que é pertinente e conveniente. (Heidegger, 2008, de angústia se abrisse em cada um desses incômodos, uma brechinha capaz
p. 262) de pôr em questão nossa existência e que possamos nos apropriar de um
modo de ser que seja próprio, rine escolhamos uma dada escolha. O seguinte
Nessa afirmação, são colocados diversos aspectos fundamentais da trecho de Ser e Tempo indica algo nessa direção:
estrutura ontológica do ser-ai cuja articulação é a cura.
Apreendido de modo existencialmente originário, compreender significa:
O ser-ai está sempre sendo, e sendo, coloca em jogo o seu poder- ser, projetando-se Mim poder ser, em virtude do qual _a presença sempre
-ser. Isso significa que ele é sempre possibilidade de ser alguma coisa, não existr0 &nina - reen der abre o poder ser próprio de tal maneira que com-
POde. ser determinado a Partir de características que são possibilidades e não preendendo, a presença, de algum modo sabe a quantas anda. Esse saber
qualidades arraigadas. No entanto ele tem que ser, e ser quer dizer ser _num não significa contudo, ter descoberto um fato mas manter-se numa possi-
mundo que já lhe é aberto, compreendendo-se de determinado(s) modo(s). bilidade existenciária O não-saber que lhe corresponde não signlfica au-
- Embora infinitas, suas possibilidades de ser são dadas pelo mundo em que se sência dd compreender mas deve ser considerado um modo deficiente de
projetar o podei-ser. A existência pode ser digna de questionamento.
projetou compreensivamente e no qual decaiu. Q impessoal são os modos de
Para que este questionamento seja possível, é necessária zuna abertura.
ser do mundo, de todos e ninguém, o que é compartilhado. O impessoal (Heidegger, 2008. p. 422)
Sempre nos dá as possibilidades de ser, já que somos-no-mundo-com-os-
-outros. No entanto, na maior parte das vezes, o ser-aí vive as possibilidades É nesse sentido que Sá (2002b, p. 262) afirma que "[...] o espaço
que a interpretação do impessoal fornece sem tê-las propriamente escolhido,
terapêutico se mantém no esforço de sustentar a questão, enquanto questão
ou seja, impropriamente. Viver impropriamente quer dizer que as possibili- concernente ao poder ser próprio do Dasein, até o limite em que seu apelo
dades são vividas a partir do conveniente, do modo como todo mundo faz, suscite novas possibilidades de correspondência". Na clinica o que o tera-
sem se dar conta de que são poSsibilidades, mas como o que habitualmente peuta pode oferecer é um espaço em que o cliente possa ir se apropriando de
"se tem a vive'.
algumas de suas escolhas, compreendendo e podendo se responsabilizar por
A impropriedade nos protege de nos sentirmos "nada". Somos nada elas, saber que suas escolhas, mesmo que impróprias — o que acontece na
na medida em que somos possibilidades de ser e que não somos algo como maior parte das vezes —, são dele. É ele quem pode cuidar delas, lidar com
aquilo que nos determina como simplesmente dados. Sendo a compreensão elas, se haver com elas. O compreender é algo fundamental na psicoterapia.,
sempre aberta por determinada disposição afetiva, sorninte na disposição da É compreendendo o modo como assume suas possibilidades de ser, numa
angústia podemos nos compreender como seres de possibilidades. Nela, determinada abertura dada por incômodo, que consiste numa disposição
sente-se o vazio de sermos nada enquanto lugar não definitivo, não garanti- afetiva que remete à angústia, como se dela fosse uma variação, que o paciente
do. Na angústia, é-nos revelado que somos possibilidades de ser. A angústia pode ir se apropriando de seus modos de ser.
nos é privilegiada porque ela permite que nos compreendendo como respon- Na cotidianidade decadente (no sentido da decadência ontológica
sáveis pelas possibilidades que somos, podemos escolhê-las com proprieda- do ser, não num juizo de valor) da impessoalidade em que o ser-ai está ab-
de. Isso não quer dizer que sempre que estamos dispostos na afinação da sorto no modo da ocupação com os entes, da preociipação com os outros, ele
angústia iremos a seguir nos apropriar de possibilidades que o impessoal nos se compreende como um eu-sujeito, simplesmente dado. Esse compreender-
disponibiliza. Na verdade, o modo como nos entregamos ao impessoal sem se que se reflete na concepção teórica de nossa tradição filosófica em que o
assumirmos nossas possibilidades corno próprias, consiste em uma "fuga" da sujeito é colocado separadamente de seu mundo, refere-se a urna de suas
angústia, acomodando-nos nos ditames impessoais. estruturas ontológicas, ou seja, ao modo como ele "é", ou "tem sido" na
Em determinados momentos de nossa existência, determinados maior parte das vezes. Segundo a tradição, o eu-sujeito lida com seu mundo
modos que vínhamos sendo provocam-nos incômodo, tenhamos nos mais ou exterior a si representando-o através de unia instáncia chamada consciência
ou psique.
Prática Psicológica na Perspectiva FellOrtletlüli5giCa 103
102 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas

Voltando á ação clínica, Sá (2002a, 2002b) caracteriza a psicotera- absoluta vitalidade da vida" (Diechtchekenian, 2011, p. II). O modo "certi-
pia como uma modalidade de prática clinica na qual são explicitadas verbal- nho" de ele ser é o modo de alguém que se esforça ao máximo para manter a
mente ideias e sentimentos. O mesmo autor comenta que, além disso, é fim- organização na vida cuja imprevisibilidade originária lhe é tão perturbadora.
damental estar presente sempre algum grau de apropriação temática do con-
teúdo explicitado. Nesse sentido, é tematizando e apropriando-se de sua pré- Desse modo, sofrimento reflete a própria condição humana de existir -
compreensão aberta por uma determinada disposição que o Dasein pode pôr-se a caminho apesar da inospitalidade do mundo e da experiência de
corresponder, em maior liberdade, ao que lhe vem de encontro no seu mundo desamparo diante dessa tarefa tiz'o humana e angustiante, nias, ao mesmo
tempo, libertadora. Existir é cuidar— a existência se apresenta como pura
fático. possibilidade e abertura ao sei; podendo o homem perder-se ou apropriar-
-se na existência. (Barreto, 2011, p. 10)
De inicio e na maior parte das vezes, o homem encontra-se nata mundo
cujo sentido dos entes é simplesmente dado, não sendo portanto tema de Se o sofrimento pode ser vivido em determinados momentos como
uma apropriação reflexiva. Apenas quando uma coisa ou acontecimento perder-se de si, de modo que não se possa tematizar o que faz sofrer e assim
escapa ao seu lugar e-speratia na- rede de significáncia instituída corno
mundo, surge o estranhamento, a angústia e a demanda nem sempre cor- me apropriar-se deste sofrimento, a procura pela clinica pelo paciente, desde
respondida de teniatização de sentido. Essa demanda pode assumir dois que sendo uma decisão apropriada, já é um gesto de busca por apropriação
níveis de abrangência distintos. No prüneiro, questiona-se o sentido de de seu sofrimento. Na clinica, o sofrimento não tematizado e que lhe fazia
uni ente intra-mundano a partir do horizonte de sentido já estabelecido. estar perdido, pode ser apropriado aos poucos à medida que o diálogo com o
No segundo, impõe-se um questionamento mais radical que põe em jogo o terapeuta possa ajudar o paciente a tematizar seu sofrimento e ouvir aquilo
próprio horizonte de sentido enquanto tal e, portanto, aS limites do mun- que o próprio sofrimento aponta. À medida que se apropria dele, o sofri-
do (do Dasein como abertura). E neste caso que pensamos ser mais peru-- mento passa a mobilizar o paciente a outras Possibilidades de ser. Por isso, a
pente falar em distúrbio ou crise na cotidianidarle do Dasein. (Sã, 2002a,
p. 261) ação clinica pode ser compreendida corno possibilidade de intervenção do
psicólogo implicado "[...] no movimento de experienciação do cliente, acom-
Essa colocação de Sá ainda aponta para o modo como se compreen- panhando-o na tarefa de ampliar o que já sabe pré-reflexivamente, possibili-
de.a doença ou o distúrbio na daseinsanalvse. Se os homens são, e têm que tando que, na situação clinica concreta e totalmente singular, se compreenda
ser, possibilidades de ser, e todos os modos de.ser são compreendidos como e assuma o que ele está sendo e no que pode ser" (Barreto, 2011, p. 11).
legítimos no sentido de serem o modo como cada um pôde a seu modo lidar A ação clínica não é diferente da vida. Não é a objetividade nem a
com a sua angústia de ser, não há como classificar determinada possibilidade neutralidade e nem o afastamento que garantem sua eficiência. O terapeuta
como doentia ou como distúrbio. A doença sã pode ser compreendida C01/10 não pode conduzir voluntariamente o processo, já que o mesmo diz respeito
restrição de possibilidades de ser, no sentido de restringir a liberdade com ao modo como o cliente é afetado pelas questões de sua vida e ao modo
que alguém corresponde aos apelos do mundo na sua facticidade. Assim, a como ele pode, a cada momento, lidar com elas. Com essa constatação, lon-
doença não quer dizer não existência, mas é uma possibilidade da existência. ge de tentar derrubar outras modalidades de prática psicológica que se fun-
Ao responder a uma questão de um estudante que lhe questionava se damentem no método cientifico, pretende-se apenas levar a cabo o fato de
a Fenomenologia se vale de alguma noção nosográfica, Dietchtchekenian dá que &clinica acontece porque o homem é ser-com e assim, o modo como
um exemplo bastante ilustrativo. O autor coloca que a Fenomenoloaia não alguém se coloca como teratieuta e o paciente se coloca como paciente é que
nega a nosografia enquanto uma possibilidade de se apreender um aspecto do possibilita que haja uma ação clinica. Cabe ao terapeuta, portanto, incessan-
fenômeno do ser obsessivo-compulsivo, mas ressalta que isso não basta para temente, estar atento para e refletir sabre o modo como se coloca na relação
compreender o modo corno o obsessivo é fundamentalmente afetado na sua a fim de .que possa o mais— possível colocar-se como alguém que cuida no
disposição e o modo como lida com suas possibilidades de ser no mundo que modo da consideração e da tolerância, embora saibamos que o cuidado en-
quanto substituição e antecipação liberadora se misturem inevitavelmente.
se lhe abre a partir dessa disposição. Enquanto alguém que vive intensamente a
"explosão da vida", ser obssessivo-compulsivo "[...] ao mesmo tempo pode ser O que possibilita a ação clínica? Duas condições ontológicas fun-
visto como o único modo que aquela pessoa encontrou de incluir a ordem na damentais possibilitam a ação clínica, de modo que ela se configura pelo
104 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica • 105
encontro e pela articulação das duas. Primeiro, o _cliente enquanto- alguérti mentais da existência que nos atravessam na relação com o outro - e que
que sofre é alguém que põe em questão determinado ente intramundano no nos ajudam a compreender como estamos implicados na relação com nosso
horizonte de sentido no qual está lançado ou põe em questão o, próprio ' paciente - e também naqueles que dizem respeito ao modo como lidamos
.horizonte de sentido, de modo que a disposição afetiva que abre a compreen- com o modo como somos afetados e solicitados pelo mundo enquanto seres-
são de seu mundo, ainda não claramente tematizada, possibilita não Só o -de-possibilidades e responsáveis por nossa existência. Esses aspectos já nos
pôr em questão, maa . o apropriar-se de sua questão pela fala, bem como o
ajudam a compreender o sentido fundamental do que vive nosso paciente -
apropriar-se do modo como lida com ela_ A outra condição diz respeito ao assim como no exemplo do obsessivo-compulsivo - não para estabelecer
cuidado enquanto sua modalidade ôntica de consideração e solicitude tam-S; uma "intervenção-padrão" a determinado comportamento-padrão, mas para
h-ém-permite - ao outro apropriar-se desuas questões, de suas escolhas e
poder acompanhar o modo como o paciente acolhe e responde às determina-
escolher com propriedade. Dessa forma, o que cabe ao terapeuta é ir-se ções de sua existência.
dando conta do modo como cuida de seu pacieritVa
r firri de cada vez mais
p`rivilegiar o modo da consideração e da solicitude no seu modo próprio de Se na ação clínica estão presentes as mesmas condições existen-
ser. É ai, retomando -o que se disse no inicio do texto, na reflexão que ele ciais de outras situações de vida, o que a caracteriza como ação clinica é o
-faz- sobre o seu ser-aí-com-os-outros e assim dele enquanto terapeuta, que a fato de que alguém que é tocado por um questionarnento ou sobre o sentido
filosofia de Heidegger pode ajudar, não no modo da aplicação de um co- de determinado ente intramundano no seu horizonte de sentido, ou pelo
nhecimento prévio. Também, evidentemente, o terapeuta o faz por meio de questionamento do próprio horizonte de sentido, em disposição afetiva mais
psicoterapia individual e supervisão. Próxima da angústia, buscar no diálogo com outro uma tematização de sua
pré-compreensão. O outro, o terapeuta, se coloca como aquele cujo cuidado
-enquanto consideração e soirdifirdePode' proporcionar algo assim para o pa- -
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ciente. Conforme comentado anteriormente, tanto determinada disposição
afetívi em que o sofrimento abre o aí do ser-o-aí, como o cuidado enquanto
O grande desafio de ser psicólogo é o desafio de sermos nós mes- consideração e solicitude, são ocasiões de apropriação de sentidos e singula-
mos, ou seja, de nos apropriarmos também de nossas escolhas, posições e rização.
convicções. Neste -sermos nós Mesmos", o diálogo entre o que carregamos
enquanto nossa pré-compreensão, o que inclui a reflexão teórica, e o novo
que vem ao encontro na prática clinica, é fundamental para podermos estar 5 REFERÊNCIAS
abertos e acolher o novo, que, muitas 'vezes, implica modificar nosso modo
de compreender. Barreto. C. L. B. T. (2011). A ontologia existencial de Ileidegger como possibilidade para
pensar outros modos de constituição da subjetividade e da ação clinica. In: Simpósio Nacional
A reflexão teórica pode implicar, sim, aquisição de conhecimentos de Práticas Psicológicas em Instituições - Perspectivas e Rumos da Psicologia na Atualidade,
e técnicas psicoterápicas, dependendo somente do fato de fazerem sentido 10. Anais... Rio de Janeiro: UFF., 1CD-ROM.
àquele terapeuta especifico, no modo própricrcle ele ser. No entanto, nenhum Dichtchekenian, N. Direito de Resposta - A Fenomenologia. Disponível em: littp://www.
tipo de conhecimento ou técnica é absoluto ao ponto de que, se não for in- fesoegrupos.comnPM-Article3/pdfs/nichan_resposta.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2011.
corporado, a ação clínica não terá fundamentação ou estará fadada ao fracas- Japiassú, 1-1.; Marcondes„ D. (1996). Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 265p.
so. Insiste-se que o que determina a importárícia da referência teórica é o
1-1eidegger, M. (2003). Ser e Tempo. 3_ ed. Tradução de M. S. C. Schuback. Bragança Paulista:
sentido que ela faz ao terapeuta no modo como ele compreende seu ser-no- Universitária São Francisco. Petrópolis: Vozes, 598p.
-mundo-bom-os-outros.
Heidegger, M. (2001). Seininárias de Zollikon. Ttradução de M. F. A. Prado. São Paulo:
Para os terapeutas de atitude fenomenológica existencial, é de im- EDUC. Petrópolis: Vozes. 31Ip.
prescindível importância apropriar-se de sua pré-compreensão, seus precon- Sá, R. N. (2002a.). A noção heidtg,geriana de cuidado (Surge) e a clínica psicoterápica. Re-
ceitos, seus pressupostos deittOdo- que não se dirija nossa reflexão teórica a visto Vertias-. Porto Alegre, MG, v. 45, n. 2. pp. 259-266, maio/ago.
formulações de referências específicas próprias de teorias psicológicas ou de Sá. R. N. (2002b.). A psicoterapia e a questão da técnica. Revista Arquivos Brasz7eiros de
Psicologia. Rio de Janeiro. v. 54. n. 4. pp. 348-362, out./dez.
técnicas psicoterápicas. Centramos nossa reflexão naqueles aspectos finda-

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