Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Prslare Preface
ia
1 INTRODUÇÃO
:403- ano 14400 ai infinity.
no ia rena Et tema o! 5s roefficietts. lo lacture 20. 'te ware that a
51-7alual tub444,, 4.1 A Orno_ fialrsiott 4040-tinjo a hotta4s1 4,,main .tart c...9744.unus iç t4 and iztdutira Primeiramente, cabe um esclarecimento inicial sobre as expectati-
- lerilie ate étocept ar imi enr1
1 7, tw 44044 oh, differeatin-
iu betin414ty ettaint ia matutun medulas ao tile boundary. T/14 rudt
hnntino,. iippliesuinw a, hasininfn funr4114..... vas que o termo Cura (Sorge)' "Cura como cuidado ou preocupação" pode
p.,1141 dast aí funtrion Etc:a
Leauuns 21 ainr.1 12, TM collett4everal rutinfor plco
gerar em um texto que fala sobre a clinica. Cuidado e a preocupação (flirsor-
ai v.,„t intp.77ant, in Omar: And...tine nt nimbem ;net fentreeenn. 111444 remiu,aro n4.-417i r4p....c442y
njat Ince aí eamplex annlysi4.
ia lotei 1.4tuttns in Letetur. 13, 7r4 Iticrtduce a posur .47ità and shotr
ge) aqui, não se referem a uma modalidade tintico-existenciária de proteção
whiti: /una.). 44
iVa alset Ant: time thm 440 ..4.040.:li, ruli4. .t.nrertm.4 W aia, ama Uutt 701,0 is psicológica, não têm o sentido de "alerta", tampouco se referem à formula-
radiu 4,ns-ergam-na ptne snrin nau 1, inumntb.ci angl ..0744.ntiz4441
a are 4ntutina; of ISa Inpi414
cau.t.147-terna. In latture 24, re pr.,cn'taylne4Theotst. whiclt erf-u414 ção de uma nova técnica psicoterápica. Pensamos no sentido ontológico,
conforme proposto por Martin Heidegger (1889-1976). A partir da preocu-
pação enquanto condição existencial de ser-com2 na sua articulação com suas
infindáveis possibilidades existenciárias da condição tintica3, pretende-se
A palavra alemã Sorge que pode ser traduzida por Cura e nos remete ao âmbito daquilo
que podemos denominar zelo„cuidado. preocupação/solicitude. Este é um existencial
meditado por Martin Heidegger (1589-1976) na elaboração da sua ontologia fundamental
publicada em 1927 — Ser e Tempo. Usa-se o termo cuidado quando refere-se à relação do
ser-ai com as coisas (entes intramundanos) e preocupação ou solicitude para a relação do
ser-ai com os outros (coexistir). Adotar-se-ão neste trabalho as expressões Cura para abar-
car o sentido mais amplo desse existencial e que. portanto, inclui o cuidado como ocupa-
ção na relação do ser-ai com os entes intramundanos e a preocupação quando falamos da
relação do ser-ai com os outros (coexistir).
2
"Ser com os outros-. "sendo com os outros-, diz respeito ao modo como nós nos relacio-
namos, atuamos, sentimos. pensamos, vivemos cornos outros.
"(Do Gr az, amar: o ser, aquilo que é) Palavra utilizada para designar o ser-ai (Dasein)
3
em sua existência concreta. distinguindo-se do ontológico que diz respeito ao ser em ge-
ral" (Japiassú & Marcondes, 1996. p. 200). O ontológico refere-se ao âmbito das possibi-
lidades de relações que se abrem para o ser-ai.
•
96
Rafael Auler de Almeida Prado e Marcos Tulio Caldas p Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 97 ,
compreender como a preocupação pode ser vivenciada na prática clinica 2 CUIDADO/CURA/PREOCUPAÇÃO
numa postura fenomenológica existencial do psicólogo. O sentido da expres-
são preocupação diz respeito a uma expectativa de que algo possa vir a
Heidegger faz uso de um testemunho
- pré-ontológico para elucidar
acontecer, tal expectativa pode ser vivida de duas maneiras extremas: uma
o existencial da Cura. (Sorge). Tal teitemunho encontra-se presente na se-
delas diz respeito a uma preocupação substituidora (Einspringende fürsorge),
Tgun
—da parte da obra Fausto de Goethe e se refere à fábula 220, das Fábulas
onde o ser-aí faz tudo pelo outro, isentando-o em certa medida das suas res-
ponsabilidades, fazer este que pode envolver domínio e manipulação ainda de Higino. Essa fábula medita sobre a essência do homem, e Heidegger a
transcreve no § 42 de Ser e Tempo.
que sutil; o outro modo diz respeito à preocupação liberadora (Vorspringen-
de firsorge), possibilitando para o outro condições para que ele possa assu-
mir as suas escolhas, posicionando-se e apropriando-se da tarefa de 'ter que Cena ver., atravessando um rio, Cura viu um pedaço de terra argilosa:
cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refle-
ser e de poder ser'. Cabe ressaltar que o termo atitude é propositalmente tia sobre o que criara, interveio Júpiter. A Cura pediu-lhe que desse espi-
usado porque acredita-se que a vinculação existente entre a ontologia de rito à forma de argila, o que fez de bom grado. Como a Cura quis então
Heidegger e a ação clínica não acontecem do modo da aplicação de um co- dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fos-
nhecimento teórico a uma situação prática. se dado o seu nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome,
Mal-entendidos como a acusação de que a psicologia fenomenoló- surgiu Terra (tellus) querendo dar o nome, uma re: que havia fornecido
um pedaço de seu corpo Os disputantes tomaram Saturno corno árbitro.
gica existencial faz a "aplicação" de uma (ontologia) a uma prática são fre- Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: 'Tu
quentes. Tal equívoco tem implícita a crença de que a psicologia como práti- Júpiter; por teres dado o espirito, deves receber na morte o espirito e tu,
ca tem que necessariamente ser a aplicação de um saber estabelecido por Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, no entanto,
meio do método científico. Partindo desse pressuposto, realmente fica in- sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se P01114 pois foi feito de hú-
compreensível a "aplicação" de um pensamento para urna prática. No en- mus. (Heidegger. 2008, p. 266)
tanto, a relação entre a ontologia de Heidegger e a atuação da prática psico-
lógica acontece em âmbito completamente distinto daquele da aplicação. O Esta bela fábula, muito confortante para os homens, uma vez que
pensamento heideggeriano possibilita reflexão da experiência clinica, orien- indica estarmos em nossa origem instalados em generosa oferta de cuidados,
tada por pressupostos ontológicos, não metafísicos, referentes à experiência vai receber do pensador um tratamento bastante peculiar. Compreendendo o
humana. As condições existenciais que tal pensamento reflete estão implíci- ser do homem como Ser lançado, em ontológica angústia e liberdade, uma
tas no modo como o encontro entre psicólogo e paciente se dá, como a com- vez que se encontram sem possibilidade de alojamento e destino no conjunto
preensão entre ambos é possível e como o psicólogo está implicado no pro- da natureza, terá seu sistema de ancoragem na metafísica, na técnica e na
cesso psicoterápico. filosofia ocidental posto em suspenso pelo pensador. A esse profundo desnu-
Acredita-se que exista uma relação anterio-è à vinculação entre o daniento, a essa vertigem sem paragem, a esse apelo, responde aquele que,
pensamento de Heidegger e a clínica fenomenológica existencial, relação condenado ao esquecimento, lhe acolherá em seu ser-com-os-outros, nesse
que, inclusive, fundamenta a clínica. Trata-se da relação entre a ontologia e a agora entremeado de possibilidades de sentido, que, finalmente, pode ser
vida. Se a reflexão ontológica pode provocar uma mudança no meu modo de chamado de mundo do homem. Assim, nossa condição, sermos, antes de se
ser, a partir de uma mudança no modo como me compreendo e compreendo pensar em qualquer possibilidade de subjefiv-idade, singularidade ou indivi-
minha relação com o mundo e com os outros, ela também muda meu modo dualidade, ser-com. Portanto, insistindo um pouco mais nessa questão, a essa
de ser clínico. Na preocupação/solicitude, a reflexão cai sobre o modo como condição ontológica deve nosso mundo e nossa humanidade.
eu me coloco diante do cliente, e pode ajudar a esclarecer se tendo a substi- Retomando de outra-maneira unia observação feita acima, a crítica
tuí-lo na responsabilidade que ele tem sobre sua própria existência, ou se heideggeriana a urna essência do homem compreendido como filho de Deus,
tendo a ajudá-lo a se apropriar, a seu modo, da lida com as questões ôntico- animal racional, consequência de um processo evolutivo ou mesmo subjeti-
-existenciárias. Nesse sentido, a noção heideggeriana de cuidado nos parece vidade aninhada em urna consciência autofundante, fechada e segura de si
especialmente importante para mostrar em que se fundamenta a clinica e mesma, conduz a pensar o homem corno para-fora-de-si, na existência, a ek-
como se dá a vinculação entre filosofia e psicologia. sistir na facticidade do ser-no-mundo.
98 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 99
Dasein, terminologia proposta pelo pensador para a condição A partir, portanto do cuidado nas disposições acima comentadas,
ontológica - ser do homem como ser-no-mundo, terá seus modos de ser
do será possível sustentar o sentido que, sem afastar o ser-com, permitirá um
"articulados no "cuidado/preocupação". A propósito, Heidegger chama de modo mais próprio de ser "si-mesmo". -
_
ôntologia fundamental o conjunto de reflexões que realiza sobre o ser-do- Fazendo um breve parêntesis, encontra-se em Ser e Tempo uma inte-
-homem para diferenciá-lo de outras propostas, denominadas por ele de on- ressante indicação que nos possibilita compreender a escolha dos objetos de
tologias regionais pelo fato de não refletirem diretamente a relação entre o estudo da psicanálise. Durante toda essa obra, Heidegger parte de uma análise
Dasein e seu ser, mas partirem de uma determinada região, ou seja, do estu- de um modo cotidiano e mediano em o homem vem vivendo "quase sempre e
do do ser de algo já dado no mundo. na maior parte das vezes" (termo que o autor repete diversas vezes ao longo da
obra) uma condição ontológica. Esse modo cotidiano e mediano, que Heidegger
pensador adota essa concepção visando à apreensão formal da
chama de uma modificação existencial diz respeito ã determinado modo como
totalidade do ser-aí enquanto ser-no-mundo na sua existência fática. Sendo a
rinkesa sociedade ocidental contemporânea vem vivendo determinada condição
plena unidade das estruturas que compõem o Dasein, o cuidado/preocupação ontológica. E, partindo desse modo ôntico, dos quais os modos existenciários
vai mostrar a relação dos existenciais: disposição, decadência e compreensão particulares de cada homem são, na maior parte das vezes, uma variação, ele
com as ekstases temporais passado, presente e Muro. nos faz visualizar sua condição de possibilidade ontológico-existencial.
Assim, ao ser fundamentalmente cuidado, q ser do 'ser-aí-no- No § 41, cujo título é "O ser da presença como cura", os exemplos
-mundo' pode ser compreendido a partir das relações que estabelece sem- utilizados para tomar visível a condição ontológica da cura são o desejo e o
pre e a cada vez com os entes. Aos entes que não possuem o caráter de impulso (propensão à vida). Desejo e impulso são considerados modificações
ser-aí, q modo de cuidado é a "ocupação", enquanto utensílio na trama de existenciais, no sentido de que se "modificam" como modo ôntico-existenciário
sentidos:A "preocupação" correspondera ao relacionar-se a entes igual- - •próprio de nossa época - a condição ontológica do cuidado/preocupação
mente existentes. Essa por sua vez se dará como "substituição" ou "ante-
(Sorg,e). Fica claro, diante da força de ambos enquanto modificações existen-
cipação liberadora". ciais da cura, na impropriedade e na decadência em que se lança o ser-aí, que a
Portanto, estar "enfermo" para a closeinsanalyse não diz respeito a psicanálise os tenha tomado como seus principais objetos de estudo. A psicaná-
um modo especifico cia correspondência, que, a princípio, é uma possibilida- lise inclusive, no seu modo Cofie° de compreensão do Dasein, explica muito
de de qualquer Dasein, mas ao fato de encontrar-se limitado a esse modo bem os processos e os caminhos dos impulsos e principalmente dos desejos.
específico, levando a uma impossibilidade de corresponder a outros apelos Não é preciso alongar esta questão. pois o que se pretende com este
de sentido que se façam prementes em seu existir. Daí que a atenção psico- artigo é, a partir do cuidado, pensar no fundamento existencial que possibi-
lógica deva dirigir-se a essa limitação das possibilidades de relação que o lita a prática clínica, já que não se acredita que seja seu conjunto de técnicas
ser-do-homem pode manter no mundo, ou seja, de sua liberdade. psicoterápicas nem o estabelecimento de um corpo teórico rijo cujo intuito
modo cotidiano e mediano da "preocupa-0o" com os outros é a seja o da explicação dos fenômenos psíquicos dentro de relações de causali-
indiferença, a ausência de surpresa e a evidência, que também caracterizam a dade. Esclarecemos, porém, neste sentido, que reconhecemos a validade das
"ocupação- com as coisas enquanto instrumentos à mão. Tal modo se coloca técnicas paieotelápicas e das teor:trações psicoléá.cas, somente não se a atri-
como grande desafio à clínica daseinsanalytica. bui a elas o fundamento ontológico existencial que possibilita a clínica, que
pretendemos esclarecer com a noção de cuidado (ou cura) para Heidegger.
O terapeuta disposto a partir do ser-com como aquele que no modo
da "preocupação'. e "anteposição" se permite guiar por uma "circunvisão",
orienta-se por uma compreensão prévia a partir da qual o outro se dá como 3 AÇÃO CLÍNICA
co-presente-no-mundo, alcançando o que Heidegger denomina como "consi-
deração" ou "solicitude". A "consideração" indica uma maneira de ver que Considerando a clínica fenomenologia existencial a partir da analí-
leva em conta a diferença e a importância de tudo com que se lida, enquanto tica existencial de Heidegger, analisa-se a seguinte afirmação que, de certa
a "solicitude" comenta sobre o modo ativo de aceitação das tensões, dos forma, sintetiza não toda a estrutura ontológica, evidentemente, mas um as-
limtíèãs características 'diferenciais das situações e modos de ser. pecto dela:
100 Rafael Auter de Almeida Prado e Marcus rufio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica 101,
Como /ático, o projetar-se compreensivo da presença está sempre junto
a um mundo descoberto. É a partir dele que o projetar-se recebe suas menos clareza sobre eles. Seja frustração, seja carência, seja fraqueza, seja
possibilidades e, numa primeira aproximação, segundo a interpretação depressão, seja estresse, ou um incómodo difuso, não claro, algo vem dizer
do impessoal. Essa interpretaçãojá restringiu antecipadamente as pos-
sibilidades de escolha ao âmbito dojá conhecido, do que já se pode al-
que não podemos mais ser de determinado modo. É como se uma brechinha
cançar e suportar, do que é pertinente e conveniente. (Heidegger, 2008, de angústia se abrisse em cada um desses incômodos, uma brechinha capaz
p. 262) de pôr em questão nossa existência e que possamos nos apropriar de um
modo de ser que seja próprio, rine escolhamos uma dada escolha. O seguinte
Nessa afirmação, são colocados diversos aspectos fundamentais da trecho de Ser e Tempo indica algo nessa direção:
estrutura ontológica do ser-ai cuja articulação é a cura.
Apreendido de modo existencialmente originário, compreender significa:
O ser-ai está sempre sendo, e sendo, coloca em jogo o seu poder- ser, projetando-se Mim poder ser, em virtude do qual _a presença sempre
-ser. Isso significa que ele é sempre possibilidade de ser alguma coisa, não existr0 &nina - reen der abre o poder ser próprio de tal maneira que com-
POde. ser determinado a Partir de características que são possibilidades e não preendendo, a presença, de algum modo sabe a quantas anda. Esse saber
qualidades arraigadas. No entanto ele tem que ser, e ser quer dizer ser _num não significa contudo, ter descoberto um fato mas manter-se numa possi-
mundo que já lhe é aberto, compreendendo-se de determinado(s) modo(s). bilidade existenciária O não-saber que lhe corresponde não signlfica au-
- Embora infinitas, suas possibilidades de ser são dadas pelo mundo em que se sência dd compreender mas deve ser considerado um modo deficiente de
projetar o podei-ser. A existência pode ser digna de questionamento.
projetou compreensivamente e no qual decaiu. Q impessoal são os modos de
Para que este questionamento seja possível, é necessária zuna abertura.
ser do mundo, de todos e ninguém, o que é compartilhado. O impessoal (Heidegger, 2008. p. 422)
Sempre nos dá as possibilidades de ser, já que somos-no-mundo-com-os-
-outros. No entanto, na maior parte das vezes, o ser-aí vive as possibilidades É nesse sentido que Sá (2002b, p. 262) afirma que "[...] o espaço
que a interpretação do impessoal fornece sem tê-las propriamente escolhido,
terapêutico se mantém no esforço de sustentar a questão, enquanto questão
ou seja, impropriamente. Viver impropriamente quer dizer que as possibili- concernente ao poder ser próprio do Dasein, até o limite em que seu apelo
dades são vividas a partir do conveniente, do modo como todo mundo faz, suscite novas possibilidades de correspondência". Na clinica o que o tera-
sem se dar conta de que são poSsibilidades, mas como o que habitualmente peuta pode oferecer é um espaço em que o cliente possa ir se apropriando de
"se tem a vive'.
algumas de suas escolhas, compreendendo e podendo se responsabilizar por
A impropriedade nos protege de nos sentirmos "nada". Somos nada elas, saber que suas escolhas, mesmo que impróprias — o que acontece na
na medida em que somos possibilidades de ser e que não somos algo como maior parte das vezes —, são dele. É ele quem pode cuidar delas, lidar com
aquilo que nos determina como simplesmente dados. Sendo a compreensão elas, se haver com elas. O compreender é algo fundamental na psicoterapia.,
sempre aberta por determinada disposição afetiva, sorninte na disposição da É compreendendo o modo como assume suas possibilidades de ser, numa
angústia podemos nos compreender como seres de possibilidades. Nela, determinada abertura dada por incômodo, que consiste numa disposição
sente-se o vazio de sermos nada enquanto lugar não definitivo, não garanti- afetiva que remete à angústia, como se dela fosse uma variação, que o paciente
do. Na angústia, é-nos revelado que somos possibilidades de ser. A angústia pode ir se apropriando de seus modos de ser.
nos é privilegiada porque ela permite que nos compreendendo como respon- Na cotidianidade decadente (no sentido da decadência ontológica
sáveis pelas possibilidades que somos, podemos escolhê-las com proprieda- do ser, não num juizo de valor) da impessoalidade em que o ser-ai está ab-
de. Isso não quer dizer que sempre que estamos dispostos na afinação da sorto no modo da ocupação com os entes, da preociipação com os outros, ele
angústia iremos a seguir nos apropriar de possibilidades que o impessoal nos se compreende como um eu-sujeito, simplesmente dado. Esse compreender-
disponibiliza. Na verdade, o modo como nos entregamos ao impessoal sem se que se reflete na concepção teórica de nossa tradição filosófica em que o
assumirmos nossas possibilidades corno próprias, consiste em uma "fuga" da sujeito é colocado separadamente de seu mundo, refere-se a urna de suas
angústia, acomodando-nos nos ditames impessoais. estruturas ontológicas, ou seja, ao modo como ele "é", ou "tem sido" na
Em determinados momentos de nossa existência, determinados maior parte das vezes. Segundo a tradição, o eu-sujeito lida com seu mundo
modos que vínhamos sendo provocam-nos incômodo, tenhamos nos mais ou exterior a si representando-o através de unia instáncia chamada consciência
ou psique.
Prática Psicológica na Perspectiva FellOrtletlüli5giCa 103
102 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas
Voltando á ação clínica, Sá (2002a, 2002b) caracteriza a psicotera- absoluta vitalidade da vida" (Diechtchekenian, 2011, p. II). O modo "certi-
pia como uma modalidade de prática clinica na qual são explicitadas verbal- nho" de ele ser é o modo de alguém que se esforça ao máximo para manter a
mente ideias e sentimentos. O mesmo autor comenta que, além disso, é fim- organização na vida cuja imprevisibilidade originária lhe é tão perturbadora.
damental estar presente sempre algum grau de apropriação temática do con-
teúdo explicitado. Nesse sentido, é tematizando e apropriando-se de sua pré- Desse modo, sofrimento reflete a própria condição humana de existir -
compreensão aberta por uma determinada disposição que o Dasein pode pôr-se a caminho apesar da inospitalidade do mundo e da experiência de
corresponder, em maior liberdade, ao que lhe vem de encontro no seu mundo desamparo diante dessa tarefa tiz'o humana e angustiante, nias, ao mesmo
tempo, libertadora. Existir é cuidar— a existência se apresenta como pura
fático. possibilidade e abertura ao sei; podendo o homem perder-se ou apropriar-
-se na existência. (Barreto, 2011, p. 10)
De inicio e na maior parte das vezes, o homem encontra-se nata mundo
cujo sentido dos entes é simplesmente dado, não sendo portanto tema de Se o sofrimento pode ser vivido em determinados momentos como
uma apropriação reflexiva. Apenas quando uma coisa ou acontecimento perder-se de si, de modo que não se possa tematizar o que faz sofrer e assim
escapa ao seu lugar e-speratia na- rede de significáncia instituída corno
mundo, surge o estranhamento, a angústia e a demanda nem sempre cor- me apropriar-se deste sofrimento, a procura pela clinica pelo paciente, desde
respondida de teniatização de sentido. Essa demanda pode assumir dois que sendo uma decisão apropriada, já é um gesto de busca por apropriação
níveis de abrangência distintos. No prüneiro, questiona-se o sentido de de seu sofrimento. Na clinica, o sofrimento não tematizado e que lhe fazia
uni ente intra-mundano a partir do horizonte de sentido já estabelecido. estar perdido, pode ser apropriado aos poucos à medida que o diálogo com o
No segundo, impõe-se um questionamento mais radical que põe em jogo o terapeuta possa ajudar o paciente a tematizar seu sofrimento e ouvir aquilo
próprio horizonte de sentido enquanto tal e, portanto, aS limites do mun- que o próprio sofrimento aponta. À medida que se apropria dele, o sofri-
do (do Dasein como abertura). E neste caso que pensamos ser mais peru-- mento passa a mobilizar o paciente a outras Possibilidades de ser. Por isso, a
pente falar em distúrbio ou crise na cotidianidarle do Dasein. (Sã, 2002a,
p. 261) ação clinica pode ser compreendida corno possibilidade de intervenção do
psicólogo implicado "[...] no movimento de experienciação do cliente, acom-
Essa colocação de Sá ainda aponta para o modo como se compreen- panhando-o na tarefa de ampliar o que já sabe pré-reflexivamente, possibili-
de.a doença ou o distúrbio na daseinsanalvse. Se os homens são, e têm que tando que, na situação clinica concreta e totalmente singular, se compreenda
ser, possibilidades de ser, e todos os modos de.ser são compreendidos como e assuma o que ele está sendo e no que pode ser" (Barreto, 2011, p. 11).
legítimos no sentido de serem o modo como cada um pôde a seu modo lidar A ação clínica não é diferente da vida. Não é a objetividade nem a
com a sua angústia de ser, não há como classificar determinada possibilidade neutralidade e nem o afastamento que garantem sua eficiência. O terapeuta
como doentia ou como distúrbio. A doença sã pode ser compreendida C01/10 não pode conduzir voluntariamente o processo, já que o mesmo diz respeito
restrição de possibilidades de ser, no sentido de restringir a liberdade com ao modo como o cliente é afetado pelas questões de sua vida e ao modo
que alguém corresponde aos apelos do mundo na sua facticidade. Assim, a como ele pode, a cada momento, lidar com elas. Com essa constatação, lon-
doença não quer dizer não existência, mas é uma possibilidade da existência. ge de tentar derrubar outras modalidades de prática psicológica que se fun-
Ao responder a uma questão de um estudante que lhe questionava se damentem no método cientifico, pretende-se apenas levar a cabo o fato de
a Fenomenologia se vale de alguma noção nosográfica, Dietchtchekenian dá que &clinica acontece porque o homem é ser-com e assim, o modo como
um exemplo bastante ilustrativo. O autor coloca que a Fenomenoloaia não alguém se coloca como teratieuta e o paciente se coloca como paciente é que
nega a nosografia enquanto uma possibilidade de se apreender um aspecto do possibilita que haja uma ação clinica. Cabe ao terapeuta, portanto, incessan-
fenômeno do ser obsessivo-compulsivo, mas ressalta que isso não basta para temente, estar atento para e refletir sabre o modo como se coloca na relação
compreender o modo corno o obsessivo é fundamentalmente afetado na sua a fim de .que possa o mais— possível colocar-se como alguém que cuida no
disposição e o modo como lida com suas possibilidades de ser no mundo que modo da consideração e da tolerância, embora saibamos que o cuidado en-
quanto substituição e antecipação liberadora se misturem inevitavelmente.
se lhe abre a partir dessa disposição. Enquanto alguém que vive intensamente a
"explosão da vida", ser obssessivo-compulsivo "[...] ao mesmo tempo pode ser O que possibilita a ação clínica? Duas condições ontológicas fun-
visto como o único modo que aquela pessoa encontrou de incluir a ordem na damentais possibilitam a ação clínica, de modo que ela se configura pelo
104 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Tulio Caldas Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica • 105
encontro e pela articulação das duas. Primeiro, o _cliente enquanto- alguérti mentais da existência que nos atravessam na relação com o outro - e que
que sofre é alguém que põe em questão determinado ente intramundano no nos ajudam a compreender como estamos implicados na relação com nosso
horizonte de sentido no qual está lançado ou põe em questão o, próprio ' paciente - e também naqueles que dizem respeito ao modo como lidamos
.horizonte de sentido, de modo que a disposição afetiva que abre a compreen- com o modo como somos afetados e solicitados pelo mundo enquanto seres-
são de seu mundo, ainda não claramente tematizada, possibilita não Só o -de-possibilidades e responsáveis por nossa existência. Esses aspectos já nos
pôr em questão, maa . o apropriar-se de sua questão pela fala, bem como o
ajudam a compreender o sentido fundamental do que vive nosso paciente -
apropriar-se do modo como lida com ela_ A outra condição diz respeito ao assim como no exemplo do obsessivo-compulsivo - não para estabelecer
cuidado enquanto sua modalidade ôntica de consideração e solicitude tam-S; uma "intervenção-padrão" a determinado comportamento-padrão, mas para
h-ém-permite - ao outro apropriar-se desuas questões, de suas escolhas e
poder acompanhar o modo como o paciente acolhe e responde às determina-
escolher com propriedade. Dessa forma, o que cabe ao terapeuta é ir-se ções de sua existência.
dando conta do modo como cuida de seu pacieritVa
r firri de cada vez mais
p`rivilegiar o modo da consideração e da solicitude no seu modo próprio de Se na ação clínica estão presentes as mesmas condições existen-
ser. É ai, retomando -o que se disse no inicio do texto, na reflexão que ele ciais de outras situações de vida, o que a caracteriza como ação clinica é o
-faz- sobre o seu ser-aí-com-os-outros e assim dele enquanto terapeuta, que a fato de que alguém que é tocado por um questionarnento ou sobre o sentido
filosofia de Heidegger pode ajudar, não no modo da aplicação de um co- de determinado ente intramundano no seu horizonte de sentido, ou pelo
nhecimento prévio. Também, evidentemente, o terapeuta o faz por meio de questionamento do próprio horizonte de sentido, em disposição afetiva mais
psicoterapia individual e supervisão. Próxima da angústia, buscar no diálogo com outro uma tematização de sua
pré-compreensão. O outro, o terapeuta, se coloca como aquele cujo cuidado
-enquanto consideração e soirdifirdePode' proporcionar algo assim para o pa- -
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ciente. Conforme comentado anteriormente, tanto determinada disposição
afetívi em que o sofrimento abre o aí do ser-o-aí, como o cuidado enquanto
O grande desafio de ser psicólogo é o desafio de sermos nós mes- consideração e solicitude, são ocasiões de apropriação de sentidos e singula-
mos, ou seja, de nos apropriarmos também de nossas escolhas, posições e rização.
convicções. Neste -sermos nós Mesmos", o diálogo entre o que carregamos
enquanto nossa pré-compreensão, o que inclui a reflexão teórica, e o novo
que vem ao encontro na prática clinica, é fundamental para podermos estar 5 REFERÊNCIAS
abertos e acolher o novo, que, muitas 'vezes, implica modificar nosso modo
de compreender. Barreto. C. L. B. T. (2011). A ontologia existencial de Ileidegger como possibilidade para
pensar outros modos de constituição da subjetividade e da ação clinica. In: Simpósio Nacional
A reflexão teórica pode implicar, sim, aquisição de conhecimentos de Práticas Psicológicas em Instituições - Perspectivas e Rumos da Psicologia na Atualidade,
e técnicas psicoterápicas, dependendo somente do fato de fazerem sentido 10. Anais... Rio de Janeiro: UFF., 1CD-ROM.
àquele terapeuta especifico, no modo própricrcle ele ser. No entanto, nenhum Dichtchekenian, N. Direito de Resposta - A Fenomenologia. Disponível em: littp://www.
tipo de conhecimento ou técnica é absoluto ao ponto de que, se não for in- fesoegrupos.comnPM-Article3/pdfs/nichan_resposta.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2011.
corporado, a ação clínica não terá fundamentação ou estará fadada ao fracas- Japiassú, 1-1.; Marcondes„ D. (1996). Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 265p.
so. Insiste-se que o que determina a importárícia da referência teórica é o
1-1eidegger, M. (2003). Ser e Tempo. 3_ ed. Tradução de M. S. C. Schuback. Bragança Paulista:
sentido que ela faz ao terapeuta no modo como ele compreende seu ser-no- Universitária São Francisco. Petrópolis: Vozes, 598p.
-mundo-bom-os-outros.
Heidegger, M. (2001). Seininárias de Zollikon. Ttradução de M. F. A. Prado. São Paulo:
Para os terapeutas de atitude fenomenológica existencial, é de im- EDUC. Petrópolis: Vozes. 31Ip.
prescindível importância apropriar-se de sua pré-compreensão, seus precon- Sá, R. N. (2002a.). A noção heidtg,geriana de cuidado (Surge) e a clínica psicoterápica. Re-
ceitos, seus pressupostos deittOdo- que não se dirija nossa reflexão teórica a visto Vertias-. Porto Alegre, MG, v. 45, n. 2. pp. 259-266, maio/ago.
formulações de referências específicas próprias de teorias psicológicas ou de Sá. R. N. (2002b.). A psicoterapia e a questão da técnica. Revista Arquivos Brasz7eiros de
Psicologia. Rio de Janeiro. v. 54. n. 4. pp. 348-362, out./dez.
técnicas psicoterápicas. Centramos nossa reflexão naqueles aspectos finda-