Você está na página 1de 4

O cratês em discurso directo.

A ideologia e a proposta política

Manuel Jacinto Sarmento (Professor e Director do Departamento de Ciências Sociais


da Educação, no Instituto de Educação da Universidade do Minho)

Nuno Crato, actual Ministro da Educação, não se terá dado conta de como entrava
em contradição com tudo o que tem dito e escrito sobre o sistema educativo
português, quando foi recentemente receber ao aeroporto os seis estudantes do
ensino secundário que participaram nas olimpíadas da matemática, onde ganharam
várias medalhas, nomeadamente uma de ouro e duas de bronze.
Estes estudantes são todos de escolas públicas, participam, como todos os seus
colegas, da formação regularmente ministrada na escola e demonstraram – tal
como muitos outros, em múltiplas demonstrações de competência e capacidade –
que o ensino na escola pública está longe de poder ser caracterizado, como
habitualmente faz (fazia) o agora ministro como o reino do facilitismo, onde
campeia a incompetência docente e o abastardamento da capacidade de
aprendizagem dos discentes. Aliás, a caracterização da escola pública portuguesa
como um espaço deceptivo de desperdício de recursos públicos por incumprimento
da sua missão educacional, em consequência de uma presumida invasão de teorias
pedagógicas (o “eduquês”) facilistas e destrutivas do sentido do esforço da
aprendizagem, constitui uma das pedras angulares do argumentário de Crato1. Este
tipo de discurso possui uma influência considerável – senão mesmo hegemónica –
na opinião pública, a ponto de os seus argumentos se constituírem como
ingredientes do caldo de cultura em que se degrada a imagem da escola pública. A
desconstrução do discurso cratiano, apesar de sofrer de uma reduzida visibilidade
pública, não tem deixado de ser feita, a partir sobretudo da análise crítica das
políticas da educação em Portugal2. Mas a análise do fundamento desse discurso
torna-se crucial, quando o seu difusor e principal impulsionador da corrente
ideológica de ataque à escola pública assume funções como ministro.
Deixemos de lado os aspectos relativos ao ataque cratiano às ciências da educação
e à presumida influência que teriam, na opinião do ministro, sobre a escola3, para
nos determos na proposta política imanente às concepções que vem expedindo.
Poderemos sintetizar essas concepções em quatro pontos essenciais:
Primeiro, o sistema educativo português tem-se degradado nos últimos anos, não
apresenta resultados satisfatórios, inculca o desinvestimento na aprendizagem dos
alunos, incentiva a preguiça e a indisciplina e promove a incompetência. A proposta
política de resposta a esta situação consiste na criação de uma “cultura de
exigência”, só susceptível de ser realizada através da realização de exames
nacionais no final de cada ciclo de escolaridade, de um férreo reforço da disciplina
nas escolas e, de uma forma geral da promoção de modalidades exaustivas de
avaliação do sistema, das políticas, das escolas, dos professores e dos alunos.
Segundo, os conhecimentos escolares têm vindo a ser substituídos por uma cultura
de entretenimento, com expressão em curricula cada vez mais afastados dos

1
Cf. Crato, Nuno (2006). O ‘Eduquês’ em Discurso Directo. Uma Crítica da Pedagogia Romântica e
Construtivista. Lisboa. Gradiva. (5ª ed.)
2
Cf.. e. g., Licínio Lima (2011). A Educação na Republica. Porto. Profedições.
3
A denúncia do ‘eduquês’ não é negligenciável na ideologia pedagógica do actual ministro, e, por
consequência, a sua desconstrução crítica é inerente ao processo de refutação dessa ideologia. No
entanto, neste texto, centramo-nos nos efeitos imediatamente políticos das concepções ideológicas do
ministro.
cânones científicos, substituídos por conteúdos sem significado, em nome da
“motivação” e das culturas de origem dos alunos, por actividades de complemento
curricular e pela promoção exagerada das tecnologias de informação. A contraposta
a este diagnóstico consiste numa reestruturação curricular, de objectivos,
conteúdos e métodos, que façam da escola um espaço exclusivamente centrado na
instrução dos alunos.
Terceiro, a preocupação pedagógica com o ritmo de desenvolvimento das
aprendizagens leva ao nivelamento por baixo de todos os alunos e impede a
promoção da excelência. Por contraponto com isto, defende-se a diferenciação das
vias e trajectos escolares, estabelecendo processos de estratificação e
sequencialização da escolaridade em função do mérito dos alunos.
Quarto, o Ministério da Educação exerce um poder de controle que deve ser
substituído por uma maior autonomia na educação, e por um maior rigor na
avaliação dos resultados. A proposta política consequente com isso é a “implosão
do Ministério da Educação, numa orientação de liberalização do campo educativo.
Em algumas das últimas entrevistas dadas por Nuno Crato antes de ser ministro4,
tornam-se bem visíveis os aspectos fundamentais do que acabámos de sintetizar.
O primeiro ponto e consequente proposta – fundamentada num diagnóstico jamais
comprovado, o que o matemático Crato imputa à ausência de dados…5 - exprime-se
na afirmação clara de que “Estamos a bater nos mínimos, estamos.” (Crato, 2010),
e, portanto, é indispensável “Instituir em todos os níveis uma cultura de avaliação.
Avaliação dos alunos, avaliação das escolas, avaliação de professores, avaliação de
manuais escolares”. (Crato, 2005). Esta proposta condensa em si a intenção de
performatividade do sistema, como critério primeiro da acção educativa, tendo
como instrumento operativo a avaliação.
O segundo ponto assenta na crença (de facto, é de crença que se trata, dada a
ausência de uma comprovação do argumento) de que a escola “deveria assegurar a
transmissão de conhecimentos e, às vezes, o que se passa é que, com pretextos
muito grandiosos, de criar cidadãos críticos, jovens cientistas, escritores activos,
eleitores activos, com esses slogans grandiosos, esquece-se aquilo que é
fundamental na escola, que é transmitir conhecimentos básicos” (Crato, 2011). A
proposta política que aqui se contém consiste no “back to basic”, com expurgação
de tudo o que a escola possa fazer para promover capacidades, competências e
conhecimentos inerentes à cidadania, ao pensamento crítico e à curiosidade
cientifica – coisas reduzidas à condição de slogan…
O terceiro ponto, porventura indiciado apenas em sussurro, mas nem por isso
menos importante no pensamento do ministro, consiste na dualização do sistema
educativa e na estratificação da escolaridade: “Nós temos um grande problema
no sistema de ensino e em Portugal em geral: pensamos que todos são iguais e
que não se pode progredir se não for todos ao mesmo tempo e todos da mesma
maneira” (Crato, 2010), Logo, na resposta à pergunta dos jornalista se a resposta
seria a de “ensinar a várias velocidades”, a resposta surge com carácter de
obviedade “Temos de fazer isso em Portugal, é indispensável. Devíamos ter alunos
que conseguissem fazer as coisas de forma mais rigorosa e avançada, alunos que
fizessem o percurso médio – a larga maioria – e alunos com apoios especiais. É um
sistema que existe em muitos países.” (idem).

4
Nuno Crato, “Menos Estado para melhor educação” Agência Ecclesia, 22 de Fevereiro de 2011; Nuno
Crato “No Tagus Park o passado é passado” (entrevista de Miguel Pacheco e Inês Cardoso), Jornal
Público, 2 de Junho de 2010;; Nuno Crato “É Preciso Tomar Medidas Urgentes no Ensino da
Matemática”. E-Ciência, 5 de Maio de 2005.
5
“Nós estamos muito piores do que estávamos há 10 ou 20 anos, mas também não tenho dados para
mostrar isso, porque o Ministério não dá dados às pessoas…” (Crato, 2011)
Finalmente, quanto ao quarto ponto, a solução expeditiva do ministro (três meses
antes de o ser…) é; “Acho que o Ministério da Educação deveria quase ser
implodido, devia desaparecer…” (Crato, 2011) e dado, que “há excesso de Estado
na Educação” (idem), a solução ainda que não definitivamente estudada, passará,
se não pela total privatização - “Há pessoas que defendem um chamado cheque
escolar, há várias maneiras de o fazer, não sei exactamente qual a melhor
maneira” (idem), pelo menos pela preservação das escolas privadas como modelo
de referência: “O ministério quer contaminar a escola privada com os defeitos da
escola pública. Quer que tudo seja mau, mesmo que haja excepções. È o
verdadeiro eixo do mal. (…) Só as escolas internacionais conseguem, por enquanto,
fugir aos baixos níveis de exigência.” (Crato, 2010). A proposta é, portanto a da
liberalização do ensino a caminho da privatização da educação.
Performatividade, “back to basic”, dualização e estratificação do sistema,
liberalização e privatização, são palavras expressivas que, com efeito, condensam o
essencial da ideologia cratiana. São estas as palavras, que, desde Reagan e um
conhecido relatório intitulado “Uma Nação em Risco” no início da década de 80,
inspiram o programa reformista neo-liberal, posto em prática inicialmente nos EUA
e depois expandido aos países centrais e destes aos países periféricos e semi-
periféricos6. A “modernidade” do pensamento de Crato tem, na verdade, trinta anos
de experiência (trágica) na história comparada da educação…
Resumamos, então, o sentido da proposta política contida na ideologia que o cratês
bem exprime.
O que está em causa na política neo-liberal e neo-conservadora da educação, de
que a ideologia cratiana não é mais do que uma versão para uso interno, é a
transformação da missão histórica da escola, enquanto instituição de formação de
cidadãos e de transmissão da cultura. A escola desvincula-se do compromisso
político da formação das novas gerações para a participação social – compromisso
este assumido desde a sua génese como escola pública, no período iluminista,
continuamente reafirmado ao longo da História – para adoptar a missão exclusiva
da instrução, mensurável em resultados escolares avaliados por exame, enquanto
instrumento de produção de capital escolar a investir tendo em vista a
rentabilização económica. O produtivismo é o fundamento da performatividade
como critério de definição de política educativa. Mas também do princípio do back
to basic. Na verdade, a escola é despojada de tudo o que possa vincular a
aprendizagem com a vida quotidiana, na diversidade dos mundos de vida dos seus
alunos. (é esse o sentido de componentes curriculares como “área de projecto” ou
as actividades curriculares livres, etc.). Esta desvinculação torna-se operativa numa
concepção austeritativa da educação escolar, de acordo com a máxima implícita de
que a vida da criança ou jovem está a mais e torna-se fundamental reduzir o
trabalho escolar à aprendizagem dos conhecimentos disciplinares. É claro que esta
desvinculação faz emergir a vida sob formas disruptivas: o desinteresse é o
preâmbulo do insucesso e do abandono escolar.
Nesta definição de um novo mandato político da escola, a impossibilidade de
garantir a todos e a todas uma educação de qualidade7, é assumida claramente
numa perspectiva de produção de desigualdades escolares, sistemicamente
assegurada pela assunção de vias estratificadas de escolaridade. Sabe-se bem

6
Sobre as políticas neo-liberais em educação, a sua génese e os seus efeitos em Portugal, sobretudo no
campo avaliativo, cf. Afonso, Almerindo Janela (1998), Políticas Educativas e Avaliação Educacional.
Braga. Universidade do Minho. Para uma análise dos efeitos sociais e pedagógicos das políticas neo-
liberais em educação, numa perspectiva comparativa, cf. Ball, Stephen (2006). Educational Policy and
Social Class. London, Routledge.
7
Esta expressão é veiculada pela UNESCO como eixo da definição das políticas educacionais. Não por
acaso, a ideologia cratiana toma frequentemente como alvo directivas das agências internacionais que
perspectivam a educação como um eixo de coesão social. O anátema sobre os Relatórios Faure
(Aprender a Aprender) e Delors (Educação, Um Tesouro a Descobrir) são uma manifestação flagrante
disso mesmo.
como as desigualdades escolares reproduzem e reforçam as desigualdades sociais.
O que está aqui em causa, de forma explícita, é a assunção do princípio de
promoção da desigualdade como programa de política educativa. Não espanta,
portanto, que o Estado seja desvinculado da tarefa de regulação equitativa da
educação e, em contrapartida, que se reforce a estratificação interna - as escolas
vão à procura dos melhores alunos, numa lógica de mercado educacional pela
atracção de “clientes”, o que resulta em escolas públicas de alunos “desejáveis” e
“indesejáveis”8 - ou externa, com criação de vias diferenciadas e forte incentivo ao
ensino privado.
Uma ideologia educacional, por si só não faz uma política. O ideólogo Crato
confrontar-se-á, amiúde, com a agenda conflituante do ministro Crato. Não é claro
que a política educativa do XIX Governo Constitucional seja a governamentalização
do cratês. Não porque as bases ideológicas do governo sejam distintas das do
independente Nuno Crato. Pelo contrário, Crato é ministro por afinidade ideológica
com as concepções neo-liberais e neo-conservadoras da aliança governamental.
Mas porque uma ideologia corresponde a uma visão da realidade que não “encaixa”
com a complexidade do real, quando se procura transformar em força de acção.
Aliás, o tom mitigado de apresentação do programa de governo para a educação na
Assembleia da República9, não disfarçando propósitos, limita as ambições
transformantes. No quadro austeritativo da política actual, o mais certo é que Crato
se preocupe sobretudo em garantir as alianças necessárias para construir um
programa mínimo de acção: reforço das políticas de avaliação a todos os níveis;
reestruturação curricular, destruição de recursos educacionais (nomeadamente com
despedimento massivo de professores) e desmantelamento das políticas cujo
sentido é o do combate às desigualdades escolares (Programa Novas
Oportunidades; Territórios Educativos de Intervenção Prioritária; Progama e-escola
etc.); introdução progressiva de medidas de esvaziamento do papel do Estado na
educação.
Um novo ciclo político desafia a escola pública. Mas se o real se opõe à aplicação
mecânica de ideologias simplificadoras, é importante que, do mundo real das
escolas públicas se exprima o desejo de que este novo ciclo seja revertido e que,
no interior das contradições que gera, se exprima o sentido de uma outra política
possível para a defesa da escola pública, enquanto espaço de afirmação de
conhecimento, cultura, cidadania e igualdade.

8
A investigação sociológica da educação tem demonstrado como a combinação das políticas educativas
como estratégias de diferenciação territorial produzem um apartheid escolar e social, com consequências
trágicas. Os motins, com forte participação juvenil da periferia de Paris, há uns anos atrás, ou de
Londres e outras cidades inglesas, neste Verão, são disso (também) uma expressão eloquente.
9
Cf.
http://www.portugal.gov.pt/pt/GC19/Governo/Ministerios/MEC/Intervencoes/Pages/20110701_MEC_Int
_ProgGov.aspx

Este artigo foi publicado na edição de Setembro de 2011 do Le Monde Diplomatique – Edição
Portuguesa

Você também pode gostar