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Tayná Gonçalves - Criação e Perpetuação Do Humanismo - Como Destruir o Sonho
Tayná Gonçalves - Criação e Perpetuação Do Humanismo - Como Destruir o Sonho
Quando uma âncora pergunta a Ta-Nihisi Coates o que significa perder seu corpo, ele é tomado
por uma tristeza volumosa e tenta responder à pergunta da melhor maneira possível, mas assim
que termina, a âncora exibe o retrato de um policial branco abraçando um menino negro de
onze anos e pergunta a Coates sobre “esperança”. Nesse momento, ele sabe que havia
fracassado, sabe que não foi capaz de despertar a jornalista de seu mais profundo e maravilhoso
Sonho. Coates escreve esse sonho com maiúscula, porque ele é a ilusão que sustenta uma
civilização, é aquilo que repousa sobre as costas de corpos que não importam, que continua
submetendo-os à violência. Quanto à esperança, ela pode até ser um bom sentimento, mas
enquanto houver o Sonho, haverá apenas a luta para proteger o corpo. Partindo dessa cena,
Coates inicia Entre o mundo e eu, uma carta ao filho de quinze anos, na qual o instrui sobre as
estruturas de seu país, os Estados Unidos.
Coates diz para o filho: “[você] deve sempre se lembrar que a sociologia, a história, a economia,
os gráficos, as tabelas, as regressões, tudo isso acabará atingindo, com grande violência, o
corpo”. A frase anterior pode funcionar como uma síntese do projeto iluminista, o qual, como
explica Silvio de Almeida, “é o conhecimento que se funda na observação do homem em suas
diversas facetas e diferenças” que culminou no estudo da biologia, da economia, da psicologia
e da linguística. Homens da elite europeia, influenciados pelas ideias iluministas, foram
responsáveis por comparar e classificar diferentes grupos humanos e, em sua restrita visão,
embaçada pelas postulações positivistas, forneceram justificativas para a Europa despejar toda
sua violência contra esses corpos. No século XVIII, por exemplo, variedades de seres humanos
foram catalogadas como pertencentes ao Reino Animal. Na Grande Cadeia dos Seres, que fazia
a classificação hierárquica da família humana, o africano foi colocado por último, seguido pelo
macaco. Em Desejo Colonial, Young ressalta, que inclusive “houve certo debate se o africano
deveria ser caracterizado como pertencente à espécie do macaco ou à do ser humano”.
Toda essa ideia ressoa nas sociedades pós-coloniais em uma espécie de realidade indubitável
do mundo natural. De forma que, como explica Coates, “a necessidade de atribuir
características profundamente inerentes às pessoas e depois humilhá-las, diminuí-las e destruí-
las”, ou seja, o racismo, seria como uma consequência inevitável de uma condição inalterável.
Em Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson, mostra que em tudo aquilo que é encarado
como natural, há sempre algo que não foi escolhido, como a época e o lugar de nascimento, a
cor da pele e o parentesco. Dessa forma, parece que o poder hegemônico define determinadas
características como ligadas à biologia humana (tamanho do crânio) e cria um discurso em
torno delas (as diferentes formas de crânios determinam a capacidade cognitiva e mostra que
existem muitas espécies separadas no gênero humano) para depois usá-los como concepções
naturais (como negros têm crânios de determinados formatos, eles são cognitivamente
inferiores e, portanto, de outra espécie) e não imaginadas. Assim, o racismo passa a ser
encarado como um fenômeno natural, como diz Coates: “as pessoas deploram o tráfico negreiro
e a remoção forçada dos índios da mesma forma como se deplora um terremoto, um tornado
ou qualquer outro fenômeno considerado além do âmbito da ação dos homens”.
A diferença de raças, imposta pela europa, iniciou uma cisão dentro da espécie humana, na
qual os traços fenotípicos embasaram a justificativa de diferenças cognitivas entre categorias
de seres humanos. Nesse contexto, a raça branca foi erigida à superioridade e as outras julgadas
como inferiores. Dessa forma, o inferiorizado foi criado pela colonização, como explica Fanon
em Pele Negra, Máscaras Brancas: só se começa a sofrer por não ser branco “na medida em
que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, extorque de
mim todo o valor, toda a originalidade, diz que eu parasito o mundo, que preciso o quanto antes
acertar o passo com o mundo branco”. Essa criação talvez seja a base do Sonho, uma vez que
a ilusão da raça faz com que pessoas de pele clara acreditem que são brancas e, com isso,
aceitem todo um imaginário cultural acerca do branco. Na verdade, não é uma questão de
acreditar apenas, mas de nascer em uma sociedade onde essa diferença aparenta ser natural,
cujas pessoas racializadas não têm direitos, são assassinadas, associadas o tempo todo ao crime.
A colonização foi uma imposição cultural, que aniquilou as estruturas internas da sociedade
dominada por meio: da divisão de propriedade, a qual desfaz a antiga organização social tribal,
suprimindo as forças de resistência e trocando o coletivo pelo indivíduo, que se torna mão de
obra; da restrição de compra imposta aos nativos de produtos da colônia a preços baixos, porque
a prioridade é vendê-los à metrópole; da substituição agrícola, caracterizada pela mudança de
produtos cultivados no solo, de forma que os nativos perderam sua terra para os produtos
preferidos da metrópole. Sartre ressalta que, se existiam colônias até o século XX, foi por conta
da criação, brutal e artificial, de condições para o liberalismo capitalista funcionar em um país
agrícola e feudal. Essas características trazem impactos traumáticos na sociedade colonizada:
população subnutrida, expectativa de vida baixa e violência cotidiana. O colonialismo é um
sistema, como afirma Sartre, no qual o colono é um comprador artificial, criado por um
capitalismo que busca novos mercados. Nesse processo, os colonizadores têm a propriedade
dos corpos colonizados (descorporificação) e de suas terras (exploração da natureza), sendo
movidos pelo lucro, que está acima das vidas e da natureza.
O racismo está no cerne do sistema colonial, é engendrado pelo aparato colonial e sustentado
pelas relações de produção – de um lado o colono (privilégio e humanidade), de outro o
colonizado (ausência de direito, sub-humanidade). Como mostra Benedict Anderson, “o
império colonial [...] permitia a muitos burgueses e pequeno-burgueses se fazerem de
aristocratas fora da corte central, isto é, em qualquer lugar do império, exceto na terra natal”,
ou seja, os colonos não eram nada senão cidadãos comuns em seu país, entretanto, ao tomarem
posse de uma colônia, tornavam-se aristocratas. Não é surpreendente supor que esse ganho de
poder impactou a forma que os colonos encaravam os colonizados, se em sua terra já se
achavam superiores a eles, ao sair dela e ganhar um status mais importante, essa superioridade
se transformou em ações diretas. A violência colonial tinha como aspecto central a
desumanização, a qual é direcionada do opressor (colono) aos oprimidos (colonizados), mas
tanto Césaire quanto Sartre apontam que a desumanização acaba atingindo também os próprios
colonos.
Após muito desprezar os colonizados e tratá-los como animal, o colonizador, para tirar o peso
da consciência, aliena-se e torna-se ele próprio um animal. Para funcionar e se manter, o
sistema colonial precisa de uma rigidez mecânica que é apoiada, ao mesmo tempo, pela morte
e pela multiplicação de suas vítimas. Assim, a colonização está condenada à entropia, uma vez
que produz o esgotamento de todos envolvidos em suas engrenagens. Para citar Césaire, “a
colonização é uma coisificação” e os resquícios dessa desumanização continuam vigentes nas
sociedades pós-coloniais. Coates narra o dia em que estava saindo do cinema com o filho de
quatro anos. Uma mulher branca empurrou o garoto, e disse “anda logo!”, o pai percebeu todo
o contexto que fez aquilo acontecer, respondeu à mulher, que se assustou. A ação dela de
empurrar uma criança de quatro anos, como se ela não fosse nada, como se não fosse sequer
uma criança, mostra a coisificação; sua reação assustada com a resposta do pai evidencia sua
imersão no Sonho e, como consequência, sua própria alienação.
Os Estados Unidos são o filho querido dos colonizadores tradicionais, herdou deles – o Sonho
– toda a organização de vida, utiliza de meios semelhantes para a dominação (a pilhagem) e,
também, de semelhantes “desculpas”, como por exemplo, a utilização de frases com
“excepcionalidade americana”, para disfarçar todo o poder imperialista dessa nação. A
superioridade americana parece levar, como aponta Coates, a uma ideia de país inocente, cuja
sociedade é pouco receptiva a críticas: “é tão fácil desviar o olhar, viver com os frutos da nossa
história e ignorar o grande mal cometido em nome de todos nós. Mas você e eu nunca
usufruímos verdadeiramente desse luxo”. Quem usufrui dos frutos da história não sente o gosto
podre em cada um deles, não percebe que está iludido. A excepcionalidade americana é apenas
uma outra forma de continuar imerso no Sonho.
A pilhagem amadurecera em forma de hábito e vício; as pessoas que criaram
a morte mecanizada de nossos guetos, o estupro em massa das prisões
privadas, e depois arquitetaram seu próprio esquecimento deverão
inevitavelmente pilhar muito mais. Não é uma crença em profecia, mas no
poder de sedução de uma gasolina barata. (COATES, 2015, p. 121)
O medo é uma constante na narrativa de Coates. Por um lado, há o medo dos brancos que está
embrenhado nas estruturas democráticas do país. O medo reflete na polícia, com o
encarceramento em massa, a detenção aleatória de pessoas racializadas, a tortura dos suspeitos.
O medo está nos cidadãos brancos que saem das cidades para morarem nos subúrbios. Por outro
lado, o medo de viver sob a pele negra, que não traz segurança em nenhum lugar e a necessidade
de sempre estar em guarda ocasiona, como descreve Coates, um dispêndio de energia, uma
lenta drenagem da essência. O medo do pai que recorria ao chicote. O medo das ruas, que fez
ele memorizar uma lista de quarteirões proibidos e reconhecer o cheiro e a sensação de um
clima de briga. O medo que foi herdado a cada geração, toda vez que um filho nasce.
Agora à noite, seguro você em meus braços e um grande medo, com a amplidão de
todas as gerações americanas, me assalta. Agora entendo meu pai e o velho mantra:
“Ou eu bato nele, ou bate a polícia”. Entendo tudo isso, os cabos e os fios de extensão,
o ritual do açoite. Os negros amam seus filhos com uma espécie de obsessão. Você é
tudo que temos, e já nos chega em perigo. Penso que preferiríamos matá-lo nós mesmos
a vê-lo morto pelas ruas que a América criou. Esta é a filosofia dos descorporificados,
das pessoas que nada controlam, que nada podem proteger, que estão destinadas a temer
não apenas os criminosos entre elas, mas também a polícia que age soberana acima
delas com toda a autoridade moral de uma gangue de proteção (COATES, 2015, p. 72).
Quando estava crescendo nos Estados Unidos, Coates compreendeu desde muito cedo que tanto
as ruas, quanto as escolas eram aspectos da sociedade que atingiam os corpos racializados. Aos
cinco anos, percebeu que nas ruas havia ritual, regulamentos e códigos, os quais, “atestam toda
a vulnerabilidade dos corpos dos adolescentes negros”. Enquanto o discurso das escolas de
“crescer e ser alguém” nunca fizeram sentido para ele, porque nelas, ele escrevia a mesma frase
dezenas de vezes e trabalhava em silêncio, em suas palavras, as escolas “não inspiram, não
permitem sonhos, e mais aprisionam o corpo racializado que o libertam”. Com isso, ele
descreve um sentimento de desesperança, por ser inadequado às ruas e às escolas e sabendo
que o conforto não poderia vir da religião, por conta de sua criação ateia, a qual fez ele
compreender que os corpos são os próprios eus, as almas são as voltagens conduzidas pelos
neurônios e nervos, os espíritos são a carne. Assim, seu corpo tão alvejado era, ao mesmo
tempo, tudo o que ele tinha, tudo que ele acreditava. Então sua curiosidade mudou tudo,
curiosidade que foi estimulada pela mãe, que o ensinou a fazer perguntas.
Sua curiosidade fez com que encontrasse textos de autores que começaram a responder algumas
de suas perguntas e o ensinaram a fazer muitas outras. Foi a partir da metade do século XX,
apesar dos assassinatos, dos silenciamentos, das reestruturações do capitalismo, das crescentes
desigualdades, foi apesar de tudo que começaram a surgir uma profusão de novos pensamentos,
que criticavam o humanismo europeu em uma tentativa de reescrever a história pela caligrafia
dos vencidos. Essa história será reescrita por meio dos chamados pensamentos decoloniais que:
estimulam o questionamento de tudo que foi tornado natural, necessário e absoluto pelo antigo
sistema de ideias; propõem modelos alternativos de organização política; tentam desconstruir
as estruturas racistas, patriarcais e heteronormativas que regem a sociedade. Longe de querer
construir uma visão universal, o objetivo é conseguir dissipar todas as certezas, aceitar a
interculturalidade e o pluriversal. Nos EUA, um momento importante de ação inspirada por
esses novos pensamentos foi a luta pelos direitos civis nos anos 1960, os quais Audre Lorde
define como “anos vitais para o despertar da consciência, para o orgulho e para o erro. Os
movimentos pelos direitos civis e o Black Power reacenderam possibilidades para os grupos
marginalizados nessa nação”.
Essas energias combativas, os intelectuais e os ativistas de cor dessa época exerceram uma
forte influência sobre Coates nos anos 1990. Nesse período, ele estava prestes a sair da casa
dos pais e descobrir o que iria fazer sobre sua vida e todas essas descobertas e inspirações são
descritas por ele como um florescer da consciência, porque ele começou a ter uma degustação
de como seria um outro mundo, para além do Sonho. Apesar de não usufruir do Sonho, Coates
já se viu enganado por ele, buscando se espelhar no mundo lá fora para criar suas próprias
reivindicações à civilização. Parece que após o episódio de florescer da consciência, ele buscou
durante sua vida formas de estar cada vez mais para fora do Sonho. Ao entrar na universidade
de Howard, depois se tornando jornalista. Em sua narrativa fica evidente o quão necessário é
sair completamente do Sonho, abandonar a civilização da forma que ela é conhecida, começar
algo novo.
Nesse sentido, o autor critica a representatividade, mostrando que pessoas de cor adentrando
em instituições e/ou ficando em posições de poder não significa uma uma vida sem medo para
pessoas racializadas. Como exemplo, é possível relembrar da história que Coates conta sobre
Prince Jones, um colega de universidade brilhante e amoroso. Prince um dia foi parado por um
policial sem distintivo e com uma arma na mão. Morreu ali, há poucos metros da casa de sua
noiva. Depois, como justificativa, o policial alegou que ele havia tentado atropelá-lo com o seu
jipe. O policial era negro, os políticos que davam o aval para o policial matar eram negros, o
corpo sem vida era o corpo de um jovem negro. Também, é possível criticar a presidência de
Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, eleito anos após o assassinato do
amigo de Coates. Um homem negro ter atingido o posto de poder mais importante dos Estados
Unidos, talvez do mundo, não chegou perto de resolver a questão racial no país e os corpos
racializados continuaram, como sempre, sendo sujeitados pelo Estado. Essas são algumas
evidências de como o racismo é estrutural, ou seja, foi formado por processos históricos e
políticos, alguns deles explicitados nesse texto, que criaram as condições sociais para que
pessoas racializadas sejam discriminadas de forma sistemática.
Se, no século XX, a nação mais poderosa do mundo começou a usar de artifícios semelhantes
àqueles utilizados pela Europa colonialista, é porque, como ela, os Estados Unidos quis se
tornar, e se tornou, um Império. A mesma lógica de lucro acima das vidas e da natureza são
seguidos por eles e, a cada nova crise do capitalismo, a desigualdade piora, os ricos se tornam
cada vez mais ricos, enquanto as pessoas racializadas e de classe baixa sofrem, sobrevivem e
resistem. Se antes a máquina colonial estava fadada ao fracasso, como disse Sartre, a máquina
neoliberal do século XXI também está porque segue os mesmos passos de sua antecessora.
Após séculos de exploração, corpos que não importam continuam a ser combustível para a
máquina e, agora, correm o risco de serem os primeiros a sofrer com a crise climática. A
esperança da geração que lutou nos anos 1960 nos Estados Unidos era que, em algum momento,
os Sonhadores iriam colher o que semearam. Coates, por outro lado, diz que “se os Sonhadores
fossem colher o que tinham semeado, todos colheríamos junto com eles”.
“Descorporificados”: é dessa forma que a sociedade americana (e não apenas ela) faz as pessoas
racializadas se sentirem. O corpo com cor, construído por uma necessidade de dominação,
criado para ser o contraste, é alvejado pelas pessoas, pelas instituições, pela economia e pelo
direito. Quem o habita precisa estar o tempo todo em guarda, viver com medo, porque tudo
“acabará atingindo, com grande violência, o corpo”. A morte de Prince Jones fez com que a
fúria substituísse o medo em Coates e nessa fúria que ardia e arderá pelo resto de seus dias, ele
buscou fazer mais perguntas, as quais não apenas o tiraram do Sonho, mas o ensinaram a lutar
e a considerar as perguntas, muitas vezes, mais importantes que as respostas. É isso, no fim,
que Coates aconselha a Samori, seu filho: lutar pela memória dos ancestrais, lutar pela
sabedoria, lutar pela integridade do seu corpo, mas não pelos Sonhadores. O pensamento
decolonial parece começar nos corpos desimportantes, ao possibilitar a eles o acesso a outras
histórias, ao fornecê-los a seiva que fortifica, que dá coragem para viver fora do Sonho. A
consequência disso é a fúria que arde no corpo e se transforma em luta: “talvez tudo que
tenhamos seja a luta, porque o deus da história é ateu, e nada que diga respeito ao seu mundo,
à história, deveria necessariamente ser como é”.
Referências Bibliográficas
COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. Trad. P. Geiger, Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu, 2020
LORDE, Audre. Irmã Outsider. Ensaios e Conferências, Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
YOUNG, Robert J.C. Desejo Colonial. Hibridismo em teoria, cultura e raça, trad. Sergio
Medeiros, São Paulo: Perspectiva, 2005.