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OS ANÉIS DA LÊNIN E A TRANSFERÊNCIA SOCIAL (II)

Segunda parte

No artigo anterior, estudamos a função primordial da teoria da teoria dos anéis de Lênin
na vida social e política, mas também na vida individual. O que retivemos é o seguinte fato:
aquilo a que chamamos de transferência social, transferência de valores na vida social, é
esclarecido por esta função dos anéis identificados por Lênin. A vida social, a vida humana,
torna-se uma cadeia de anéis de valores transferenciais. Assim, a transferência de valores
funciona sob a forma de anéis, cadeias de anéis, e para intervir nesta transferência, é necessário
ter em consideração esta transferência sob a forma de anéis e assim analisar a ordem de sucessão
dos anéis, as formas destes anéis, o seu conjunto. Esta intervenção sobre a transferência diz
respeito tanto ao trabalho terapêutico individual, cuja base é a relação transferencial, como ao
trabalho social e político na vida social. Ler Lênin é de uma atualidade óbvia que salta aos olhos
assim que há um confronto com o texto. O seu grande interesse pelo nosso trabalho de análise
prática da transferência é a afinidade que as suas concepções têm com o fato de estabelecer um
transporte da vida social para a vida mental, no pensamento. Isto encontra-se, naturalmente, na
sua “teoria do reflexo” que expõe no magistral “Materialismo e Empirismo”, redigido em 1908
e publicado em 1909, e que constituiu a preparação teórica do partido bolchevique. Teremos a
oportunidade de voltar a este assunto no terceiro artigo do tríptico.

1. A análise das relações sociais, dos processos sociais conflituosos é a chave para a análise
do individual

O que quero destacar como fundamental é que a análise das relações sociais, dos
processos sociais, é a chave para a análise do individual. Este flui de Marx e da sua 6ª tese sobre
Feuerbach: “Feuerbach resolve a essência religiosa através da essência humana. Mas a essência
humana não é uma abstração inerente ao indivíduo tomado a parte. Na sua realidade, é a
totalidade das relações sociais”. Isto está relacionado com as conclusões que encontramos no
estudo 1 do tríptico: um anel por si só não possui uma função de conjunto, é necessário que
haja uma ligação a dois outros anéis e é um anel especial que mantém o todo junto e permite o
movimento dinâmico que torna possível uma passagem, uma transição, um passo à frente do
outro. Fazer uma passagem, uma transição, possível, é certamente uma forma de abordar a
questão do drama humano como um drama humano social, nomeadamente a questão do
“desenvolvimento das potências do homem que é para ele mesmo o seu próprio fim” (Karl
Marx).
O problema mental diz respeito intimamente à dialética humana fundamental e entre a
potência e a ameaça desta problemática deve ser colocada em estreita ligação com a
transferência de valores. Escolhi para desenvolver esta conexão o texto “Discurso ao Congresso
dos Trabalhadores de Transportes”, publicado no jornal Pravda, número 67 e 68, de 29 e 30 de
Março de 1921. OC, vol. 32, pp. 287-300, Editions sociales, Paris, Editions du Progrès,
Moscou, 1966.

2. Análise do texto “Discurso ao Congresso dos Trabalhadores de Transportes”

“Isto são, portanto, verdades elementares e fundamentais que suscitam em nossas casas
mal-entendidos e falsas interpretações”. Esta frase se encontra na primeira linha do discurso de
Lênin, resume uma parte dos dramas humanos e dos mal-estares relacionais na vida quotidiana:
as questões dos mal-entendidos e das falsas interpretações. Esta frase concerne a um pormenor
anotado por Lênin quando chegou à sala do congresso, um cartaz num canto onde diz “O
reinado dos trabalhadores e dos camponeses não terá fim”. Ele indica então “Se o reinado dos
trabalhadores e camponeses fosse infinito, isso significaria que nunca haveria socialismo, uma
vez que o socialismo é a supressão de classes”. Assim sendo, como se fabrica a transferência
no mental, os mal-entendidos e falsas interpretações? Ao ler o texto, as coisas são simples: é
produzida pela falta de análise prática das relações contraditórias num conflito, da aplicação
prática do saber prático lúcido e claro.
Trata-se portanto de criar as condições sociais para chegar a esta análise concreta
prática. Para esse fazer, Lênin toma o exemplo da análise do conflito atual face ao poder dos
soviéticos. Estas questões são práticas: Quais são as forças envolvidas? Como estão agrupados
uns contra os outros? Qual é a respectiva disposição destas forças no momento presente? Esta
expressão: “Quais são as forças presentes e como estão agrupadas?”, também diz respeito ao
conflito psíquico, o conflito na mente; trata-se de fato de poder analisar as forças mentais em
conflito, os impulsos contrários que animam o psíquico. Convém ver que com a teoria dos anéis
expostos precedentemente, estas forças mentais transferidas do social podem fazer
encadeamento, uma montagem concreta na mente de uma pessoa, numa sucessão ordenada e
objeto de tensões, de conflitos.
Neste contexto me parece importante sublinhar que o que transparece do discurso
pronunciado de Lênin é uma tensão entre a força e a privação. Com efeito, em 1921, ele indica
que a União Soviética venceu os seus inimigos à custa de privações incríveis sem precedentes
e vividas pelo proletariado. Lênin coloca a questão da força da classe proletária: “Onde ela
obteve as forças morais para suportar estas privações materiais?”. “Está claro, é bastante óbvio
que teve de recorrer em alguma parte às forças morais para poder superar estas privações
materiais. A força moral, o apoio moral é, como vocês o sabem, uma noção vaga; por força
moral se pode compreender tudo o que se quer, pode-se implicar tudo. Para evitar o perigo de
implicar na noção de força moral o que quer que seja de vago ou de fantasístico, pergunto-me
se não poderíamos encontrar pistas permitindo definir exatamente isso que foi dado ao
proletariado pela força moral para suportar as privações materiais inauditas que implicavam a
sua dominação política? Penso que se colocarmos a pergunta desta forma, poderemos encontrar
uma resposta exata”.
Aqui está um belo exemplo que se afasta dos princípios idealistas e metafísicos da
filosofia clássica que predominam na psicanálise clássica, um belo exemplo também para reter
com Marx que se a resposta está na questão, é na condição de tomarmos em consideração, em
primeiro lugar, a formulação: “A resposta está na formulação da questão”, indicou ele. Isto é o
que Lênin, portanto, põe-se a fazer.
Trata-se, sendo assim, de não se perder no vago, no difuso ou no fantasístico sob o
pretexto de uma posição filosófica. Qual é a resposta de Lênin?: “A força moral do trabalhador
russo é que ele conhecia, sentia, tocava com o dedo a ajuda, o apoio que lhe era dado nesta luta
pelo proletariado de todos os países avançados da Europa”. Antes de concluir, disse:
“Fortalecido por este apoio, o nosso proletariado, fraco porque em número reduzido, esgotado
por dificuldades e privações, venceu graças à sua força moral. Esta é a primeira força”. A análise
prática é clara: trata-se, portanto, da criação de uma relação de valores que dá potência em
agrupamentos de anéis solidários onde o anel especial tem uma função crucial, uma vez que
tanto mantém a cadeia unida como põe em marcha a dinâmica da cadeia.
Este anel especial é evocado no texto do discurso e é nomeado Partido Comunista, o
anel que rompe com o engano socialdemocrata, que faz a separação com o abuso real da classe
capitalista, que faz o engate de uma dinâmica de anéis solidários dando força moral, e assim na
mente, para lutar contra a privação material e os seus efeitos na mente. A criação deste anel
especial tem lugar com uma montagem onde a sensação do corpo está presente: o proletariado
“sentiu, tocou com o dedo a ajuda, o apoio” e especialmente foi conectado à ação concreta
solidária concreta dos proletariados avançados da Europa, com o fazer. É interessante notar o
casal dinâmico privação/abuso dinâmico do casal que fabrica uma relação social.
Se há um abuso para um grupo social, há uma privação para um outro grupo social: este
é o sentimento frequente do que é vivido na transferência social. Esta dialética entre o abuso e
a privação faz parte do funcionamento psíquico sentido e explica a eventual desordem, os
sentimentos de injustiça descritos por Lênin neste texto, e que diz respeito ao valor humano
social, o valor proletário. A segunda força em presença é a da pequena burguesia. “É a lei
econômica e política que rege a segunda força: ou sob a direção do proletariado, um caminho
difícil mas que a pode libertar do domínio dos grandes proprietários fundiários e capitalistas,
ou sob a direção dos capitalistas, como nas repúblicas democráticas avançadas, (...)”. É assim
a força da pequena burguesia que está submetida a impulsos contrários.
Lênin prossegue a sua análise:

Não há meio-termo. Aqueles que sonham com um meio termo são sonhadores, utopistas. A
política, a economia e a história provam que estão errados. Toda a doutrina de Marx mostra que
desde o instante em que o pequeno patrão é proprietário dos meios de produção e da terra, as
trocas entre os pequenos produtores engendrarão necessariamente o capital, assim como as
contradições entre o capital e o trabalho. A luta do capital contra o proletariado é inevitável: é
uma lei que tem sido verificada no mundo inteiro; aquele que não se quer enganar é forçado de
o reconhecer.

O trabalho sobre o engano na transferência social e política é fundamental e a báscula é


feita no texto de Lênin para o indivíduo, a pessoa, com a frase: “quem não se quer enganar a si
próprio”. Como se fabrica o engano pessoal, o seu próprio engano? Esta é uma questão essencial
para qualquer camarada humano que queira fazer uma análise prática de sua existência. Este
engano provém desta falta de análise destes impulsos transferenciais contrários, destas
oscilações de grupo social, de classe social, aqui a pequena burguesia. Ela é sobretudo a
ausência de análises relativas aos antagonismos. Aqui está o eixo que nos deve nos ajudar
concretamente tanto na análise do engano pessoal como na análise do engano coletivo. Isto
convoca a questão transferencial da negação do conflito, de não querer ver, de não querer saber
sobre este conflito e sobre os seus interesses fundamentais.
A questão dos deslizamentos e deslocamentos dos anéis está colocada. Evocando os
camponeses, ele escreve:

Entretanto, o carácter pequeno-burguês de nossas zonas rurais se tornou acentuado. Esta é uma
classe à parte, a única classe que, após os grandes proprietários fundiários e os capitalistas terem
sido expropriados e caçados, é susceptível de se opor ao proletariado. É por isso que é absurdo
escrever em cartazes que o reino dos trabalhadores e camponeses nunca terá fim.
Por que é assim que acontece?.
A explicação está na frase anterior do discurso:

Graças à energia revolucionária e ao espírito da abnegação do proletariado que exerce a ditadura,


esta força (a pequena burguesia, o campesinato) conseguiu triunfar rapidamente como nunca
antes sobre os seus inimigos da direita, a classe dos grandes proprietários fundiários; varreu-os
para o lado, aboliu o seu domínio com uma rapidez sem precedentes. Mas quanto mais
rapidamente aboliu esta dominação, mais rapidamente ela instalou as suas próprias explorações
sobre a terra passada ao povo, mais resolutamente estabeleceu a sua conta com uma pequena
minoria de cúlaques, e mais rapidamente ela mesma se transformou em pequenos patrões. Vocês
sabem que durante este período a zona rural russa foi nivelada. O número de grandes agricultores
e camponeses que não cultivavam as suas terras diminuiu, o número de camponeses médios
aumentou.

Há nos jogos de anéis lugares de valores que funcionam concretamente. Deslocamentos


com ordens de domínio, de poderes que são criados com as mesmas funções de exploração que
os que são substituídos. A abolição de uma determinada dominação não impede por si só a
chegada de uma outra dominação.
Para além da substituição dos anéis nas cadeias que não modificam em nada o
funcionamento anterior das relações sociais sobre este ponto preciso do campesinato, o
marcador essencial salientado por Lênin é a ambiguidade, as oscilações e os impulsos contrários
na transferência de valores.

Esta força hesitou: por vezes se deixou dirigir pelo proletariado, por vezes pela burguesia. Por
que é que esta força, que constitui a imensa maioria, não se dirigiu a si própria? Porque, devido
às suas condições econômicas de existência, não se pode unir ela mesma, não se pode agrupar
ela mesma. Isto é evidente para todos aqueles que não se deixam enganar por palavras vazias
sobre o “sufrágio universal”, a Assembleia Constituinte e a “democracia”, que, em todos os
países, enganou o povo durante centenas de anos e que os socialistas-revolucionários e os
mencheviques aqui praticaram durante centenas de semanas, apenas para “tropeçarem sempre”.
A nossa experiência ensinou-nos, - e o curso de todas as revoluções o confirma se considerarmos
a época moderna, digamos, os últimos cento e cinquenta anos, em todo o mundo, que por todo
o lado e sempre o resultado foi idêntico: todas as tentativas da pequena burguesia em geral, e
dos camponeses em particular, de tomar consciência da sua força, para dirigir à sua maneira a
economia e a política, acabaram por fracassar. Ou a liderança do proletariado, ou a liderança
dos capitalistas. Não há meio-termo.

Os elementos que constituem esta classe social não se podem unir devido às condições
econômicas, ou seja, as condições de valores de gozo do grupo, ou seja, a relação com a
propriedade dos meios que produzem estes valores de gozo material. A questão do engano se
ramifica igualmente sobre esta característica.
Estes fatores econômicos essenciais explicam porque esta força não pode se manifestar ela
mesma, porque é que as tentativas neste sentido em todas as revoluções sempre falharam.
Quando o proletariado não assume a liderança da revolução, esta força se coloca sempre sob a
liderança da burguesia. Tem sido assim em todas as revoluções, e é óbvio que os russos não são
ungidos com qualquer óleo especial, e que se quisessem ser canonizados se cobririam de
ridículo. A história, bem entendida, tem o mesmo destino reservado para nós e para os outros.

Esta é a segunda força envolvida no antagonismo e nas contradições, e é importante


distinguir entre as duas: o antagonismo tem a ver com uma aposta na destruição, uma aposta na
vida ou na morte, e a contradição tem a ver com uma obra de separação. É uma questão de
identificar as forças psíquicas, transferidas do social, que impulsionam para a vida.
Prosseguimos com o texto de Lênin:

Em nossa casa, esta segunda força hesita; está particularmente cansada. Ela suporta o fardo da
revolução, que desde há alguns anos se tem tornado cada vez mais pesado: más colheitas,
entregas obrigatórias apesar das epizootias, falta de forragem, etc. Nestas condições, é
compreensível que esta segunda força, a massa de camponeses, tenha entrado em desespero.
Não podiam pensar em melhorar a sua situação, apesar de terem passado três anos e meio desde
a supressão dos grandes proprietários fundiários; mas esta melhoria é necessária. Os soldados
desmobilizados não conseguiam encontrar um emprego normal. E esta força pequeno-burguesa
se tornou um elemento anarquista, que traduziu suas reivindicações em agitação. A terceira força
é conhecida por todos: os grandes proprietários fundiários e os capitalistas.

Antes de passar à análise de Lênin sobre esta terceira força, farei duas observações. A
primeira é novamente sobre a privação e a necessidade material como condições para o
movimento social mas também como condições para o desespero, na mente, devido à ausência
de crença num valor que possa funcionar.
Lênin tem em consideração a questão da miséria social ligada à privação social e o
fracasso político que lhe deu origem. Com a questão da privação vem sempre a questão do
abuso e da dominação, mas também a questão da ordem em que os anéis são agrupados. Estas
condições sociais descritas por Lênin favorecem o anarquismo, que para além do acontecimento
histórico exige a seguinte reflexão: trata-se de resolver uma questão social de hierarquia na
ordem dos valores de gozo de conjuntos de anéis e de seu fracasso. O agrupamento dos anéis
deve ser acompanhado por outras relações sociais no concreto disso que convém ser tomado
em consideração: as dominações e as suas hierarquias concretas.
Em relação à terceira força, a dos grandes proprietários fundiários e capitalistas, Lênin
diz:

Atualmente, não se vê mais esta força entre nós. Mas um dos últimos acontecimentos mais
importantes, uma das lições particularmente importantes destas últimas semanas, os
acontecimentos em Kronstadt foram como um relâmpago que, melhor do que qualquer outra
coisa, iluminou a realidade.

A questão poderia assim ser resumida da seguinte forma: o que se passou neste
movimento histórico transferencial de valores, dos quais alguns funcionaram, outros não
funcionaram mais ou funcionaram mal? Vamos ler o resto do artigo.

Hoje, não há um único país na Europa onde não haja guardas brancos russos. Existem até
700.000 emigrantes russos. Foram os capitalistas que fugiram e esta massa de empregados que
não conseguiram se adaptar ao poder soviético. Esta terceira força, não a vemos; está no
estrangeiro, mas ela vive e ela atua aliada aos capitalistas de todo o mundo que a apoiam tal
como apoiaram Koltchak, Ioudénitch, Wrangel; elas a sustentam financeiramente, e por outros
meios, porque eles têm ligações internacionais. Todos se lembram destas pessoas. Nos últimos
dias, vocês tem sem dúvida observado nos nossos jornais a abundância de citações, de trechos
da imprensa da Guarda Branca comentando os acontecimentos em Kronstadt. Há alguns dias
que estes eventos são descritos por Bourtsev, que publica em um jornal de Paris; foram julgados
por Milioukov, - vocês o leram certamente. Porque é que os nossos jornais lhes deram tanto
espaço? Estavam eles certos? Sim, porque é necessário conhecer a fundo o seu inimigo. Não se
pode vê-lo muito bem agora que ele está no estrangeiro. Mas vejam: ele não foi muito longe,
alguns milhares de quilômetros no máximo, e ali está ele à espreita. Ele está são e salvo, ele está
à espera. É por isso que temos de o vigiar atentamente, tanto mais porque não são apenas
refugiados. Não, eles são auxiliares diretos do capital mundial, mantidos por ele e agindo em
conformidade com ele.

Lênin sublinha, portanto, a importância da transferência visual nos fatores de


desconhecimento possíveis: “Esta terceira força, não a vemos; está no estrangeiro, mas ela vive
e ela age aliada aos capitalistas do mundo inteiro que a sustentam”;

pois é preciso conhecer bem o inimigo. Não o vemos muito bem, uma vez que ele está no
estrangeiro. Mas veja: ele não foi muito longe, alguns milhares de quilômetros no máximo, e lá
está ele à espreita. Ele está são e salvo, ele está à espera. É por isso que temos de o vigiar
atentamente, especialmente porque não são apenas refugiados. Não, eles são auxiliares diretos
do capital mundial, mantidos por ele e atuando em concertação com ele.

É necessário ter esta bússola concreta da potência e da ameaça, a potência ameaçada


pelo inimigo. A potência da Revolução está ameaçada. Isto pode ser extrapolado por um
indivíduo no poder, ou seja, é a possibilidade de o fazer que pode ser ameaçada.
A ameaça é certamente um elemento fundamental na vida humana. A ameaça de morte
é constitutiva da consciência do ser humano, ameaças de privações concretas da liberdade de
fazer, de ter o poder de fazer e de criar. Estas ameaças estão presentes nas relações sociais de
produção. Convém, portanto, lançar luz sobre a lógica desta ameaça, quer para o indivíduo quer
para o todo coletivo. Prosseguimos com o texto:
Terão reparado que as citações retiradas dos jornais brancos publicados no estrangeiro,
apareceram ao lado das citações emprestadas dos jornais na França e na Inglaterra. É o mesmo
refrão, a mesma orquestra. É verdade que em orquestras deste tipo não há um único maestro
para executar a partitura. O maestro aqui é o capital internacional; os seus meios são menos
visíveis que o bastão, mas a orquestra é única, qualquer citação deve prová-lo a si. Eles
admitiram que se colocar o slogan: “O poder dos soviéticos sem os bolcheviques”, eles estão de
acordo. E Milioukov explica isto de uma forma particularmente nítida. Ele estudou
cuidadosamente a história, e refrescou todos os seus conhecimentos estudando a história russa
às suas próprias custas. O resultado dos seus vinte anos de estudos universitários foi corroborado
por vinte meses de estudos pessoais. Ele declara que se a palavra de ordem é: “O poder dos
soviéticos sem os bolcheviques”, ele é a favor disso. Este turno irá um pouco para a direita ou
um pouco para a esquerda na direção dos anarquistas? No estrangeiro, em Paris, não se vê. Ali
não vêem o que está a acontecer em Kronstadt, mas Milioukov diz: “Não se apressem, senhores
monarquistas. Não venha nos incomodar com os seus clamores”. E ele proclama: se se trata de
uma mudança para a esquerda, eu estou pronto a me declarar pelo poder dos soviéticos contra
os bolcheviques. Isto é o que escreve Milioukov e é absolutamente justo. A história russa assim
como a dos grandes proprietários fundiários e capitalistas não deixaram de o instruir, uma vez
que ele afirma que, em qualquer caso, os acontecimentos em Kronstadt traduzem o desejo de
criar um poder dos soviéticos sem os bolcheviques, um pouco à direita, um pouco de liberdade
de comércio, um pouco de Constituinte. Ouça qualquer menchevique falar, e ouvirá tudo isto,
talvez mesmo sem sair desta sala. Se a palavra de ordem dos acontecimentos de Kronstadt é um
ligeiro desvio para a esquerda, o poder dos soviéticos com os anarquistas gerado pelas
calamidades, a guerra, a desmobilização do exército, então como é que Milioukov é a favor
dela? Porque ele sabe que o desvio só pode ter lugar do lado da ditadura proletária, ou do lado
dos capitalistas.

A aposta da oscilação para os capitalistas é claramente descrita e a equivalência do


desvio para a direita ou para a esquerda é também descrita, o que constitui uma límpida bússola
política para os dias de hoje, tanto a nível nacional como internacional. De notar que este texto
de 27 de Março de 1921 é contemporâneo com o estabelecimento da nova política económica,
a NEP (Novaya Ekonomiceskaya Politika [Nova Política Econômica]). Lênin dá a orientação
da luta:

Caso contrário, o poder político não existiria. Embora a luta que estamos agora a travar não seja
a luta final, mas um dos últimos e decisivos combates, se perguntarmos contra quem vamos
agora travar uma destes combates decisivos, a única resposta correta é a seguinte: contra o
elemento pequeno-burguês em nossa casa (Aplausos). No que diz respeito aos grandes
proprietários fundiários e capitalistas, nós os vencemos na primeira campanha, mas apenas na
primeira; a segunda será à escala internacional. O capitalismo atual, mesmo que fosse cem vezes
mais forte, não pode fazer guerra contra nós, porque lá, nos países avançados, os trabalhadores
o sabotaram ontem, e fá-lo-ão de novo hoje ainda melhor, ainda mais seguramente, porque as
consequências da guerra são cada vez mais sentidas lá. Quanto ao elemento pequeno-burguês
em casa, derrotamo-lo, ele voltará a sair, e é isso que os grandes proprietários fundiários e
capitalistas, especialmente os inteligentes, como Milioukov, disseram aos monarquistas: Não se
mexa, fique quieto, pois caso contrário apenas reforçará o poder soviético. Isto foi demonstrado
pelo curso geral das revoluções, onde houve breves ditaduras dos trabalhadores,
temporariamente apoiados pelo campo, mas onde o poder dos trabalhadores não foi reforçado;
em pouco tempo foi a queda porque os camponeses, os trabalhadores, os pequenos patrões não
podem ter a sua própria política; depois de uma série de oscilações, são forçados a voltar atrás.
Foi isto que aconteceu durante a Grande Revolução Francesa, bem como a uma escala menor
em todas as revoluções. E é concebível que todos tenham beneficiado com esta lição. Os nossos
Guardas Brancos estão entrincheirados do outro lado da fronteira, a três dias de viagem de nós,
e estão atentos lá, com o apoio e ajuda da capital da Europa Ocidental. Esta é a situação. As
tarefas e obrigações do proletariado são claras.

O que está em jogo para os revolucionários é descrito: o objeto de análise diz respeito
aos impulsos contrários, as oscilações da pequena burguesia quando este elemento
intermediário entre o proletariado e o capital se move em direção à força antagônica à
revolução. A questão crucial está aí. O slogan “Para os soviéticos sem os bolcheviques!”, é um
engano que só pode levar ao retorno do velho regime de valor de gozo. Isto pode ser realçado
pela descrição do oportunista feita por Lenine:

ao falar da luta contra o oportunismo, nunca se deve esquecer a característica de todo o


oportunismo moderno em todos os campos sem exceção: o que ele tem de vago, de impreciso e
de evasivo. Pela sua natureza, o oportunista evita sempre colocar questões de maneira clara e
resolvida: procura sempre a resultante, tem persianas como cobra entre dois pontos de vista que
se excluem, procurando a “se concordar” com um e com o outro, e reduzindo as suas diferenças
a ligeiras modificações, dúvidas, desejos inocentes, etc...

“Um passo em frente, dois passos atrás”. OC vol. 3 p. 423, Social Editions, Paris,
Progress Editions, Moscovo, 1966, escrito depois de 18 de Maio de 1904.
A descrição da situação concreta é a seguinte:

A lassidão e o esgotamento dão origem a um certo estado de espírito, por vezes até ao desespero.
Como sempre, este estado de espírito e este desespero se traduz em anarquismo entre os
elementos revolucionários. Foi assim em todos os países capitalistas e é assim também no nosso
país. O elemento pequeno-burguês está a atravessar uma crise porque teve de sofrer muito nos
últimos anos, menos do que o proletariado em 1919, mas muito mesmo assim. Os camponeses
tiveram de salvar o Estado, de consentir em requisições sem remuneração; mas não podem
suportar mais tal tensão; é por isso que estão indefesos, hesitantes, hesitantes; o nosso inimigo
capitalista tem isto em conta e diz: basta vacilar, vacilar para que tudo desmorone. É este o
significado dos acontecimentos em Kronstadt, examinados do ponto de vista das relações das
forças de classe, à escala russa e internacional. Este é o significado de uma das últimas e
decisivas batalhas que estamos a travar porque ainda não derrotamos este elemento anarquista
pequeno-burguês, e é desta vitória que depende o destino próximo da revolução. Se não o
ganharmos, recuaremos como a revolução francesa. É inevitável, e devemos olhar para as coisas
sem ataduras nos olhos e sem gargarejar com frases. Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso
alcance para aliviar a situação desta massa e para manter a liderança do proletariado; então o
movimento revolucionário comunista que está a crescer na Europa será reforçado. O que não
aconteceu hoje pode acontecer amanhã; o que não vai acontecer amanhã pode acontecer depois
de amanhã, mas na história mundial amanhã ou depois de amanhã significa vários anos, pelo
menos. Esta é a minha resposta à pergunta para que fim estamos a lutar hoje, e a travar um dos
nossos últimos e decisivos combates, qual é o significado dos últimos acontecimentos, qual é o
significado da luta de classes na Rússia. Compreendemos agora porque é que esta luta se tornou
tão exacerbada, porque é que temos tanta dificuldade em compreender que o principal inimigo
não é Ioudénitch, Koltchak ou Dénikine, mas sim a nossa própria situação, o nosso próprio
ambiente.
Isto é importante na transferência de valores: os impulsos transferenciais contrários têm
uma lógica e é aconselhável localizar esta lógica para real trabalho de emancipação coletiva. A
ordem dos anéis a ser estabelecida é então muito importante para desatar as contradições porque
é de fato uma ordem de valor de gozo material como Lênin a descreve na sua análise da terceira
força. Esta forma de tomar a questão, invocando a verdade concreta prática, é decisiva na
análise política:

Nós devemos considerar as coisas sem ataduras nos olhos e sem gargarejar com frases. Devemos
fazer todo o possível para aliviar a situação desta massa e manter a direção do proletariado;
então o movimento revolucionário comunista que está a crescer na Europa será reforçado.

A potência do anel especial do “Partido Comunista” é a questão crucial e deve lutar


contra aquilo que não permite ver esta verdade e se perde na fraseologia filosófica. Mas não se
trata apenas de denunciar e identificar a lógica do inimigo, a principal batalha é sobre “a nossa
situação, o nosso próprio ambiente”, daí a importância hoje em dia de trabalhar a partir de
análises da transferência social e da transferência de valores para encontrar a lógica precisa
destas situações e ambientes que funcionam com valores transferenciais. A prática da
transferência psicanalítica nos ensina que esta transferência é um deslocamento mas também
uma substituição. O deslocamento em psicanálise também diz respeito ao verbo mover-se,
Verschieben: remeter, mover-se, deslizar, manobrar, mas também, contrabandear, diferir, adiar,
recuar, retardar, protelar, deixar para mais tarde, para uma data mais distante. Trata-se portanto
de saber como detectar isso que é contrabandeado em valores, tal é a análise de Lênin em
relação a Milioukov.

3. O ensino dos impulsos contrários

O que podemos retirar do texto é aquilo a que chamei “os impulsos contrários”. Estes
impulsos contrários respondem a uma lógica. Eu o esbocei no esquema abaixo, ao qual nomeio
de o esquema dos impulsos contrários.
Existe uma intersecção entre os grupos sociais, as classes sociais, entre Proletários (P)
e Capitalistas (C) e esta intersecção é a pequena burguesia ou Campesinato (Pb) que pertence
de forma ambígua de acordo com os momentos históricos a ambos os campos. Esta pequena
burguesia tem valores transferenciais em comum com os capitalistas mas também com o
proletariado. Estes são elementos transferenciais que submetidos à privação vão como átomos
se encontrar capturados por um ou outro agrupamento de anéis. Esta captura responde a uma
lógica de conjuntos de anéis: qual anel situado na fronteira, na borda da fronteira dos conjuntos
irá capturar uma cadeia de anéis após um período crucial de oscilações? Isto é o que é ilustrado
pelas setas de sentidos contrários que testemunham as contradições e antagonismos. Lênin
estava interessado em distinguir antagonismos e contradições.
No livro “Sobre a economia do período de transição” Boukharine qualifica o capitalismo
de “sistema antagônico contraditório”. Nas suas notas Lênin escreve a propósito deste termo:
“arqui-inexato, antagonismo e contradição não são de todo uma única e mesma coisa, a primeira
desaparecerá, a segunda permanecerá no socialismo”. É na intersecção dos conjuntos que se
localizam as zonas de transformação, como as disciplinas científicas nos indicam. Gostaria de
acrescentar que estas zonas concernem à dinâmica crucial das segregações sociais. Este
esquema de impulsos contrários nos ensina sobre o que se passa hoje a respeito do racismo, da
identidade de gênero, da precariedade, de problemáticas ligadas às migrações, de identidades
religiosas e de ideologias.
A dinâmica dos anéis cruzados com a transferência de valores oferece grandes
potenciais lógicos para apreender este campo de segregações. O que aprendemos com o texto
de Lênin é a importância da privação material na organização das oscilações de impulsos
contrários, da incidência desta privação na organização da ordem de sucessão dos anéis, das
formas destes anéis, de seu agrupamento.
A fim de identificar esta função de privação e os seus efeitos, para inverter
positivamente os seus possíveis efeitos na mente, é necessário encontrar pistas para definir
exatamente o que deu ao grupo a força moral para suportar as privações materiais inauditas que
implicavam em sua dominação política. O que torna possível ultrapassar o obstáculo é enfatizar
o anel especial que mantém o todo unido e cria uma força dinâmica solidária dos anéis na
transferência de valores.
A armadilha seria fazer uma entidade deste intermediário, desta intersecção entre dois
conjuntos, uma vez que o valor do gozo que circula neste grupo, a pequena burguesia, não faz
uma unidade grupal. É neste ponto que o engano é encontrado. Este engano provém desta falta
de análise da função destes impulsos transferenciais contrários, destas oscilações do grupo
social, da classe social, aqui a pequena burguesia. É sobretudo a ausência de análises relativas
aos antagonismos. O exame da função deste espaço intermediário, na intersecção de duas
entidades, salienta que existem nos jogos de anéis lugares de valores que funcionam
concretamente, deslocamentos com ordens de domínio, de poderes que se estabelecem com as
mesmas funções de exploração que os que são substituídos.
A abolição de um domínio em particular não impede por si só a chegada de outro
domínio. Na função dos anéis existem portanto relações de domínio de valores e veremos para
o individual ainda mais concretamente a transferência concreta que se produz entre o valor de
uma palavra, o valor de uma imagem, o valor da sensação de corpo para uma pessoa numa
relação social comentando a teoria do reflexo de Lênin no último artigo do tríptico. Neste jogo
borbulhante de valores contrários, é essencial compreender o que é antagônico e o que é
contraditório, uma vez que os interesses estratégicos são diferentes: no caso do conflito
antagônico os interesses são os da destruição, no caso do conflito contraditório os interesses
são os da separação. Isto é importante em relação à ordem de sucessão dos anéis, as formas
destes anéis, seu agrupamento, que são criados e transformados no efeito de impulsos
contrários.
É esta criação transformadora que proporcionará um resultado emancipatório ao jogo
da potência e da ameaça. É aqui que reside hoje o apelo de Lênin para transformar a ameaça,
aquela que reside na nossa própria atmosfera, no nosso próprio ambiente. Isto deve ser colocado
em tensão com a sua frase que temos trabalhado frequentemente nas nossas oficinas práticas de
psicanálise social: trata-se portanto de poder fazer nascer as condições pessoais e coletivas que
impulsionam para a vida a partir disso “que impulsiona de um lado, e isso que impulsiona do
lado contrário” na vida psíquica. Esta contribuição de Lênin para a análise da transferência
social é determinante.
Trata-se de partir do conjunto coletivo para analisar o individual e não o contrário, que
é o que Brecht indicará mais tarde: apreender e compreender o individual não a partir do
individual como o senso comum tenderia a acreditar, mas a partir da massa, do coletivo, do
conjunto social, das relações sociais de produção. É também uma questão de ter como bússola
a frase de Lênin: “Estudar as contradições viventes da realidade vivente”. As contradições vivas
envolvem a existência de valores que funcionam contraditoriamente, com impulsos contrários
da realidade vivente que é a transferência social, a transferência de valores.

4. Uma intersecção com Freud em “Psicologia das Massas e Análise do Eu”

Publicada em 1923, a abordagem de Freud é muito diferente. Freud trabalha a partir do


texto de Gustave Le Bon sobre psicologia das massas. Ele analisa um movimento do grupo, da
massa em direção ao líder, por um lado, e um movimento entre os membros do grupo, da massa,
por outro lado. Qualifiquei estes dois movimentos numa perspectiva geométrica, como o eixo
vertical da transferência social e o eixo horizontal de transferência social.

Esquema 1 — Geometria da transferência1

Este esquema geométrico é importante para se avançar na questão da transferência dos


anéis de valores transferenciais e é a principal vantagem do texto de Freud sugerir esta
organização da transferência. Criei e formalizei este esquema a partir da leitura do texto de

1
Legenda: Origine: origem; Axe vertical du transfert: eixo vertical da transferência; Meneur (Führer): Líder;
Égalité: igualdade; Axe horizontal du transfert: eixo horizontal da transferência.
Freud, aproveitando outra base e uma perspectiva outra do que as suas próprias com a
transferência social. Nas relações sociais, Freud analisa a suposta relação entre a massa e o líder
(Führer) e estabelece dois desafios: o do amor, deslocamento do amor da massa para o líder
(Führer) no eixo vertical, a da igualdade no eixo horizontal.
O amor que está presente na transferência social é assim coordenado para os dois eixos.
“Chaque individu isolé est lié libidinalement d’une part au meneur d’autres part aux autres
individus de la foule [Cada indivíduo isolado está libidinalmente ligado, de uma parte ao líder
e, de outras partes, aos outros indivíduos da massa]”, observa Freud (S. FREUD, « Psychologie
des masses et analyse du moi » in Essais de Psychanalyse, Payot, Paris, 1988).
No eixo vertical, está lá um líder supremo que ama todos os indivíduos da massa com
igual amor e Freud faz fez o laço com a fundação concreta da civilização europeia, o
cristianismo: “Un courant démocratique parcourt l’église, justement parce que devant le Christ
tous sont égaux, tous ont part égale à son amour” [“Uma corrente democrática percorre a igreja,
precisamente porque antes de Cristo todos são iguais, todos têm uma parte igual no seu amor”]
(idem p. 154). Cada um quer ser amado de forma igual pelo Füher (Esta palavra Führer é a
palavra logicamente utilizada por Freud para traduzir Líder, ela assumirá um novo significado
histórico e político a partir de 1933) e faz um sinal transferencial de igualdade. No eixo
horizontal há “une compulsion à égaler les autres” [“uma compulsão para se igualar aos
outros”] (idem, p. 143). O amor em relação ao eixo vertical tem um efeito determinante no eixo
horizontal: é necessário compreender como o amor indo e vindo do vertical tem um efeito sobre
a coesão da massa e o afeto que existe entre os membros do grupo (da massa) (idem, p. 152).
O amor e a suposição do amor, “amar, querer ser amado” são tetas transferenciais
fundamentais no individual da cura psicanalítica clássica. Estas tetas secaram nas suas gamas
devido à filosofia muito idealista e especulativa que as alimentam. Freud observa: “Aujourd’hui
encore les individus en foule ont besoin de l’illusion d’être aimés de manière égale et juste par
le meneur, mais le meneur, lui, n’a besoin d’aimer personne d’autre” [“Ainda hoje os
indivíduos em massa precisam da ilusão de serem amados igual e justamente pelo líder, mas o
líder não precisa de amar ninguém”] (idem, p. 199). A perspectiva freudiana está portanto muito
longe da de Lênin ou de Marx devido a esta primazia do amor, e a frase “Cada indivíduo isolado
está libidinalmente ligado, de uma parte por um líder e, de outras partes, aos outros indivíduos
da massa” assina a perspectiva individualista e o engano do conceito de libido para explicar os
fenômenos sociais e históricos.
Insisti no perigo de interpretar a história por meio da libido freudiana
(http://hubertherve75.over-blog.com/2020/09/herve-hubert-entre-apport-et-aporie-de-la-
critique-marxiste-retour-sur-la-critique-de-georges-politzer-faite-a-la-psychanalyse.persp).
Vemos aqui os limites da análise freudiana e da primazia do indivíduo, mesmo que esteja ligada
ao social neste texto de uma forma inovadora na obra de Freud. A tomada em consideração dos
efeitos, do amor ou do ódio tem numa perspectiva totalmente diferente um certo interesse
quando este efeito está ligado ao valor de uma palavra, de uma imagem ou de uma sensação de
corpo. Simplesmente com este esquema possuímos à nossa disposição um campo geométrico
objetivo da relação entre o coletivo e o eixo hierárquico que nos permite situar os eixos de
funções e valores em ordenado e abscissa e de trabalhar a questão das segregações sociais
introduzindo o que não existe nem no trabalho de Freud nem no de Lacan: a transferência social,
a transferência de valores.

5. A intersecção da transferência de valores com os anéis de Lênin

Esquema – A circulação de valores de troca2

Com este esquema se introduz a transferência de valores e a circulação de valores: os


valores de troca que circulam transferencialmente nos dois eixos de uma relação. Os valores
circulam entre os indivíduos separados por hiatos (), furos. Há igualmente uma transferência
para o eixo vertical hierárquico onde figura a garantia, uma garantia de valores por exemplo
monetários com a Bolsa de Valores e o Estado. Esta garantia também pode ser o Partido no
funcionamento da União Soviética. Nos Manuscritos Grundrisse de 1857 Marx detalha a
relação entre a troca e a produção. Ele evoca a circulação de valores na sua relação com a

2
Legenda: Origine: Origem; Individu: indivíduo; Hiatus: hiato; Différence: diferença; Garantie: garantia; Valeur:
valor.
produção. Ele insiste no caráter do “momento determinado da troca” em relação à produção
mas também à troca considerada na sua totalidade. Este é o texto:

A própria circulação é apenas um momento determinado de troca ou troca considerada na sua


totalidade. Na medida em que a troca é apenas um fator mediador entre a produção e a
distribuição que determina, bem como o consumo; na medida em que esta última aparece como
um fator da produção, a troca é manifestamente também incluída neste último como um
momento.

Esta concepção corresponde à fórmula que eu propus para definir o funcionamento


humano na transferência social: “Somos agentes, efeitos e produtos das relações sociais”. Isto
se encontra de uma outra maneira um pouco mais adiante no texto de Marx: “a troca (exchange)
entre comerciantes (dealers) é, pela sua organização, tanto mais determinada inteiramente pela
produção como pela própria atividade produtiva”. Neste contexto, o ponto importante é “a troca
considerada na sua totalidade”. Mais uma vez retomamos a proposta de Marx expressa na seção
I de “O Capital – Livro 1” para colocar em posição homóloga os homens e as mercadorias.
Tínhamos sublinhado no artigo 1 do tríptico, que o fato de Lenine na sua obra de 1899
“Le développement du capitalisme en Russie” [“O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”]
(O. C Volume 3) assinala a descoberta fundamental de Marx, que é o efeito da divisão social
do trabalho. Lenine destaca a seguinte passagem: “Le marché de ces marchandises se développe
grâce à la division sociale du travail ; la séparation des travaux productifs métamorphose leurs
produits respectifs en marchandises, en équivalents réciproques et les fait servir d’articles
d’échange, les uns pour les autres” [“O mercado para estas mercadorias se desenvolve graças
à divisão social do trabalho; a separação dos trabalhos produtivos metamorfoseia os seus
respectivos produtos em mercadorias, em equivalentes recíprocos, e faz com que sirvam de
artigos de troca, uns para os outros”] (O.C Volume 3, p. 28).
Esta troca se refere à transferência de valores que faz a alienação. Lênin indica na frase
que precede o excerto escolhido que as mercadorias são produtos que só se tornam valores de
uso pela sua conversão em valor de troca (dinheiro), pela sua alienação. Isto tinha sido
introduzido por Marx nos Grundisse (Manuscritos de 1857-58, Editions sociales, tome 1, Paris,
1980, p. 135) onde ele escreve:

Ce qui appartient essentiellement à la circulation, c'est que l'échange apparaît comme un procès,
une totalité fluide d’achats et de ventes. La première présupposition de la circulation est la
circulation des marchandises elles-mêmes en tant que circulation naturelle, partant de multiples
côtés. La condition de la circulation des marchandises est qu'elles soient produites
comme valeurs d’échange, non pas comme valeurs d'usage immédiates, mais médiatisées. par
la valeur d’échange. Le présupposé fondamental est donc l'appropriation grâce à et par la
médiation du déssaisissement et de l'aliénation. La circulation en tant que réalisation de la valeur
d'échange implique : 1) que mon produit n'est produit que dans la mesure où il l'est pour d'autres,
qu'il est donc une singularité dépassée, un universel; 2) qu'il n'est produit pour moi que dans la
mesure où il a été aliéné, où il est devenu produit pour d'autres ; 3) qu'il ne l'est pour autrui que
dans la mesure où lui-même aliène son produit ; ce qui, déjà inclut, 4) que la production
n'apparaisse pas comme fin en soi pour moi, mais comme moyen. La circulation est le
mouvement où l'aliénation universelle apparaît comme appropriation universelle, et
l'appropriation universelle comme aliénation universelle. Même si l'ensemble de ce mouvement
apparaît comme un procès social, et si les moments singuliers de ce mouvement émanent de la
volonté consciente et des fins particulières des individus, la totalité du procès n’en apparaît pas
moins comme une connexion objective, qui naît de façon tout à fait naturelle ; totalité qui, certes,
provient de l'interaction des individus conscients, mais ne se situe pas dans leur conscience,
n’est pas subsumée comme totalité sous les individus. Leur propre entrechoquement produit une
puissance sociale qui leur est étrangère, placée au-dessus d’eux ; qui est leur relation réciproque
comme procès et pouvoir indépendants d'eux. La circulation, parce que totalité du procès social,
est aussi la première forme dans laquelle non seulement, comme dans une pièce de monnaie,
par exemple, ou dans la valeur d'échange, le rapport social apparaît comme quelque chose qui
est indépendant des individus, mais comme la totalité du mouvement social lui-même. La
relation sociale, réciproque des individus en tant que puissance au-dessus des individus, devenue
autonome, qu’on la présente désormais comme puissance naturelle, comme hasard, ou sous
quelque forme que ce soit, est le résultat nécessaire de ce que le point de départ n'est
pas l’individu social libre. La catégorie de circulation en tant que première totalité parmi les
catégories économiques est très bonne pour montrer ça3.

É por isso apropriado ler este esquema “A circulação de valores de troca” com estes
deslindamentos de Lênin e de Marx, lembrando que em alguns aspectos os seres humanos são
como mercadorias. Este esquema autoriza uma nova forma de tomar as diferenças e as
segregações, partindo do Comum, e isto é fundamental em relação ao nosso esquema de
impulsos contrários. De fato, para Marx em “O Capital”, o valor designa “Alguma coisa de

3
Isso que pertence essencialmente à circulação é a troca que aparece como um processo, uma totalidade fluida de
compras e vendas. O primeiro pressuposto da circulação é a circulação das mercadorias elas mesmas como uma
circulação natural, partindo de múltiplos lados. A condição para a circulação de mercadorias é que estas sejam
produzidas como valores de troca, não como valores de utilização imediata, mas mediadas pelo valor de troca. O
pressuposto fundamental é portanto a apropriação através e pela mediação do desinvestimento e da alienação. A
circulação como uma realização do valor de troca implica m: 1) que o meu produto é produzido apenas na medida
em que é produzido para outros, que é assim uma singularidade ultrapassada, um universal; 2) que só é produzido
para mim apenas na medida em que foi alienado, na medida em que se tornou um produto para outros; 3) que é
produzido para outros apenas na medida em que eles próprios alienam o seu produto; isso que já inclui, 4) que a
produção não aparece como um fim em si mesma para mim, mas como um meio. A circulação é o movimento em
que a alienação universal aparece como apropriação universal, e a apropriação universal como alienação universal.
Mesmo que todo este movimento apareça como um processo social, e os momentos singulares deste movimento
emanem da vontade consciente e dos fins particulares dos indivíduos, a totalidade do processo aparece no entanto
como uma conexão objetiva, que surge de forma bastante natural; uma totalidade que, com certeza, provém da
interação de indivíduos conscientes, mas não está situada na sua consciência, não é subsumida como uma
totalidade sob os indivíduos. O seu próprio choque produz um poder social que lhes é estranho, colocado acima
deles; ou seja, a sua relação recíproca como processo e poder independente deles. A circulação, por ser a totalidade
do processo social, é também a primeira forma em que não só, como numa moeda, por exemplo, ou no valor de
troca, a relação social aparece como algo independente dos indivíduos, mas como a totalidade do próprio
movimento social. A relação social e recíproca dos indivíduos como uma potência acima dos indivíduos, que se
tornou autônoma, quer seja apresentada agora como potência natural, como acaso, ou sob qualquer outra forma, é
o resultado necessário do fato de o ponto de partida não ser o indivíduo social livre. A categoria de circulação
como a primeira totalidade entre as categorias econômicas é muito boa para mostrar isto.
comum que se mostra na relação de troca ou no valor de troca das mercadorias”. Prefiro usar o
hiato em vez do conceito habitual de furo porque corresponde melhor à teoria dos anéis: o hiato
pode com efeito ser o nome de certos anéis ou orifícios. É tanto uma abertura (da boca, por
exemplo) como uma descontinuidade.

Esquema – As esquizes4

Esquema — Os anéis de Lênin5

Um indivíduo é um anel neste conjunto montado em hiato que pode os parar ou os


reunir. Um indivíduo sozinho não existe, mas a sua existência está ligada a um outro pela
possível conexão via hiato. É neste contexto que um indivíduo pode se tornar um

4
Legenda: Origine: origem; Schizes: esquizes; Individu: indivíduo; Différence: diferença; Garantie: garantia;
Valeur: valor.
5
Legenda: Anneau: anel.
diferencial, num valor de troca e esta é uma ferramenta essencial para a análise prática
da transferência de valores. A clivagem entre o capitalismo e o comunismo se baseia neste
dado. O capitalismo, por todos os meios, joga de forma mortífera no eixo das diferenças
para separar os indivíduos a fim de dividir competitivamente e favorecer o lucro, a
propriedade de mais-valor.
O comunismo com Lênin opera sobre o nó dos anéis entre os indivíduos, os proletários.
Estes dois esquemas fazem imagens de mecanismos em questão na circulação de valores
transferenciais para um indivíduo. São ferramentas de trabalho. O capitalismo põe em
funcionamento o competitivo em vista de um lucro, enquanto que o comunismo e a sua fase
preliminar, o socialismo, apresentam outro funcionamento de valores, os valores de
solidariedade que nada têm a ver com a caridade cristã ou a caridade freudiana, como temos
salientado. Estas ferramentas de trabalho também dizem respeito à análise das relações sociais,
de processos sociais conflituosos que são a chave para a análise do individual. Esta é uma
conexão que iremos estabelecer no último artigo do tríptico a propósito da teoria do reflexo.

Artigo publicado em 10 de maio de 2021 no blog de hubertherve75.

Legenda: Origine: origem; Anneau: anel; Différence: diferença; Garantie: garantia; Valeur:
valor.

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