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A experiência oblíqua: o pensamento

místico de Evelyn Underhill


Oblique experience:
the mystical thought of Evelyn Underhill

La de experiencia oblicua:
el pensamiento místico de Evelyn Underhill

Jaci Maraschin

Em preparação.
Palavras-chave: Em preparação.

ABSTRACT
In preparation.
Keywords: In preparation.

RESUMEN
En preparación.
Palabras clave: En preparación.

32
[Edição original página 47] [Edição original página 47/48]

reduzidas a fórmulas inquestioná-


veis”1. O modernismo parecia a
Introdução
muitos católicos romanos e angli-
Comecei a ler as cartas de Evelyn
canos o caminho mais viável para a
Underhill quando freqüentei o Se-
interpretação e a vivência da fé
minário Geral da Igreja Episcopal
cristã. As autoridades romanas, no
dos Estados Unidos, na cidade de
entanto, estavam atentas ao fenô-
Nova York, em setembro de 1954,
meno e temiam que o menosprezo
portanto, há mais de quarenta a-
pelos dogmas e pelas doutrinas da
nos. Essa cartas pareciam ser diri-
Igreja ameaçasse a estabilidade da
gidas a mim, muito embora os des-
ordem eclesiástica e ferisse a uni-
tinatários fossem ingleses e vives-
dade da Igreja. Muitos anglicanos
sem em ambientes culturais muito
sentiam-se atraídos pelos esplen-
diferentes do meu. Estudando Teo-
dores da Igreja Católica e pensa-
logia num dos principais centros do
vam que seria possível usufruir da
Primeiro Mundo, logo percebi que
liberdade que tinham em sua igreja
minha religião não era dogmática
na universalidade da Igreja de Ro-
nem autoritária. Não foi sem razão
ma. Outros, ainda indefinidos ecle-
que minha dissertação de mestrado
siasticamente, como era o caso de
concentrou-se no movimento mo-
Evelyn Underhill, sentiam-se atraí-
dernista da primeira década do sé-
dos pela riqueza simbólica do ritual
culo vinte procurando compreender
litúrgico da missa católica.
a fé cristã a partir dos escritos de
Essas esperanças foram destruídas
James Franklin Bethune-Baker. Os
de um só golpe. Em 8 de setembro
debates norte-americanos e euro-
de 1907 o Papa Pio X publicou a
peus da época não produziram ne-
encíclica Pascendi Dominici Gregis.
nhum impacto no acanhado mundo
Tratava-se de muito bem elaborado
teológico brasileiro. Os grandes
documento na forma de estrito sis-
temas giravam em torno da relação
tema onde o movimento modernis-
entre fé e razão em face dos desa-
ta era condenado definitivamente.
fios propostos por novas formas de
A encíclica fechou as portas de Ro-
conhecimento e de compreensão da
ma para Evelyn Underhill. Nem por
realidade como, por exemplo, a
isso decidiu filiar-se ao anglicanis-
psicanálise e a psicologia profunda,
mo. Seu amor ferido por Roma le-
de um lado, e o desenvolvimento
vava-a a considerar qualquer filia-
dos estudos de crítica das escritu-
ção institucional como se fosse trai-
ras, de outro. Pensadores como
ção.2 E assim viveu, convidada para
George Tyrrell, Loisy, von Hügel e
dirigir retiros espirituais, proferir
os anglicanos que contribuíram pa-
palestras e aconselhar os que bus-
ra a edição de Lux Mundi achavam
cavam sua orientação. Também
que era possível viver o cristianis-
muito escreveu. Sentia falta, entre-
mo de maneira mais inteligente e
tanto, de pertencer à comunidade
aberta do que a mera aceitação
cristã e, por isso, depois de muita
servil dos dogmas. Percy Gardner,
meditação, acabou sendo recebida
por exemplo, achava que “a crítica
sem estardalhaços na Igreja Angli-
bíblica era inconsistente em face de
qualquer esquema intelectual de
religião absoluta, ou de formas de 1
Modernism in the English Church, p. 23. Lon-
religião 2
don, Methuen & Co. Ltyd., 1926.
Letters, London, Longmans, 1951, 343 p.

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cana onde, na infância, havia sido losofia ensinando-nos que restam
batizada e, na adolescência, con- dois luminosos caminhos para o
firmada. pensamento contemporâneo: misti-
Os que conviveram com Evelyn Un- cismo e arte. Evelyn Underhill parece
derhill dão testemunho de alguém nos ter precedido nessa jornada
que teria vivido a fé cristã de ma- quando afirma: “O mais profundo
neira criativa e amorosa. Seus mui- desejo humano é contemplar o a-
tos livros e ensaios tornaram-na mor, isto é, Deus e, depois, expe-
conhecida na Europa da época. Foi rimentar a vida como resposta a
a primeira mulher a fazer conferên- esse amor.”5 No seu romance, The
cias na Universidade de Oxford, Grey World, afirma o seguinte:
tendo recebido da Universidade de
Parece tão mais fácil hoje em dia
Aberdeen um grau de doutorado viver mais moralmente do que viver
honoris causa. Estudou botânica, fi- de maneira bela. São inúmeros os
losofia, linguagem e história no que conseguem viver anos a fio sem
pecar contra a sociedade, mas pe-
King’s College de Londres. Amiga
cam contra a beleza em todas as
do grande poeta T. S. Eliot levou-o horas do dia. O crime é o mesmo.6
a escrever o seguinte comentário
sobre sua obra: Achava que a beleza era a única
coisa digna de ser cultivada7 por-
[Edição original página 48/49]
que , na verdade, era “o lado visual
Seus estudos têm a inspiração não
da bondade”8.
primeiramente do especialista ou [Edição original página 49/50]
dos campeões dos gênios esqueci-
dos, mas da consciência da grave
Minha apresentação do pensamento
necessidade do elemento contem-
plativo no mundo moderno.3 de Evelyn Underhill pretende exa-
minar os seguintes temas que me
Henri Bergson considerou “notá- parecem centrais para a recepção
vel” o seu trabalho.4 Escreveu e hoje de sua contribuição ao que a-
publicou 39 livros e 350 artigos. inda chamamos de vida cristã: 1)
Trabalhou como editora de revistas “vida espiritual ou vida no espírito”,
teológicas especializadas e dedicou 2) “misticismo e consciência espiri-
boa parte de sua vida à direção de tual”, 3) “caminhos do misticismo”,
retiros espirituais na Inglaterra. 4) “misticismo e adoração”, para
Casou-se com Hubert Stuart Moore terminar 5) com considerações so-
e não teve filhos. Nasceu em 6 de bre as relações de seu pensamento
dezembro de 1875 e morreu no com a nossa tarefa num curso de
domingo 15 de junho de 1941. Está Ciências da Religião nesta passa-
sepultada no cemitério da paróquia gem de milênio.
de São João em Hampstead.
Meu interesse em Evelyn Underhill
desenvolveu-se ao longo de muitos
anos e se fortaleceu depois de mi-
nhas leituras das obras de Heideg-
ger, principalmente de sua última
fase. Nelas ele constata o fim da fi-
5
Cf. Evelyn Underhill – Artist of the Infinite Li-
3
Citação de H. GARDINER in The Composition fe, Dana Greene, p. 6, New york, Crossroad,
of the Four Quartets, London, Faber & Faber, 1990.
6
1978, p. 67. P. 332, Londres, William HEINEMANN, 1902.
4 7
Cf. Two Sources of Morality and Religion, Idem, p. 93.
8
Garden City, N. York, 1935, p. 216. Idem, p. 332.

34 Jaci MARASCHIN. A experiência oblíqua: o pensamento místico de Evelyn Underhill


1. Vida espiritual ou vida da” que nada tem a ver com quan-
tidade. “A essência da vida espiri-
no espírito tual não é desejar nem ter e fazer,
mas ser”11. Experimentamos nossa
Pessoalmente, se eu não considerasse
vida diária entre aborrecimentos,
que a totalidade da vida fosse obra do
Espírito Santo,
tédio e algumas alegrias. Os filóso-
eu abandonaria tudo. Ele é o centro do fos diriam que se trata do vazio ou
meu credo: tão vívido do nada a nos perseguir. Quando
que as coisas que nos parecem desagra- Underhill fala de ser está dando ên-
dáveis, cruéis e injustas – coisas que fase à possibilidade de transcen-
não nego – não conseguem nos separar dência em relação ao tédio. En-
dele.9
quanto mística cristã essa plenitude
do ser encontra-se em Deus e em
Tanto nos dias de Evelyn Underhill nada mais. É por isso que ela não
como nos nossos o termo “vida es- acredita que “vida espiritual” seja
piritual” tem diversas conotações. algo especializado ou intenso capaz
Em geral se pensa que as pessoas de nos elevar do vazio do cotidiano
que vivem “espiritualmente” afas- às alturas do espírito por meio de
tam-se dos afazeres da vida diária muitas atividades.12 Não se trata do
e se retiram para regiões misterio- cultivo da alma individual nem da
sas da alma. Alguns imaginam que busca de virtudes.13
essa vida deva ser concentrada no A vida espiritual é a mesma vida
serviço da igreja e que se revela prática de cada dia sob a ilumina-
mais em negatividade do que em ção de Deus.
afirmação. Serão assim espirituais
os que não fazem isto ou aquilo Se Deus é tudo e sua Palavra para
nós é tudo, significa que ele é a rea-
(não fumam, não bebem, não dan- lidade e o fator controlador de todas
çam, por exemplo) abstendo-se do as situações, sejam religiosas ou
que se chama em geral de “praze- seculares, e que tudo existe apenas
res deste mundo”. Há os que pen- para a sua glória e para o seu pro-
pósito criador. Portanto, nossas fa-
sam que espiritualidade signifique voritas distinções entre vida espiri-
vida sacrificial expressa em auto tual e vida prática é falsa. Não po-
flagelação e privações materiais. demos dividir a vida. Uma afeta a
Poderia talvez ser ainda a vida que outra todo o tempo: somos criatu-
ras de sentidos e de espírito e de-
está dentro de nós e que chama- vemos viver uma vida anfíbia.14
mos, às vezes, de vida interior. Ou,
quem sabe, algo indefinido, muito Essa vida não se confina a formas
difícil de ser alcançado mas, sem de devoção ou piedade. “É, antes,
dúvida, “santo e especial”10. Seria a vida plena e real para qual fomos
enorme a lista de tipos de vida es- feitos, orgânica e social, essencial-
piritual segundo o entendimento e mente livre...”15. Segundo a autora,
a vivência de pensadores, místicos essa vida plena envolve, natural-
e religiosos. mente, nosso corpo. É por isso que
numa de suas cartas adverte seu
[Edição original página 50/51]
interlocutor para que não tenha
medo de interesses “que estão na
Para Evelyn Underhill, no entanto,
“vida espiritual” é “qualidade de vi-
11
Idem, p. 15.
12
Idem, p. 17.
9 13
Letters, p. 143. Idem, p. 25.
10 14
The Spiritual Life, p. 11, London, Harper & Idem, p. 32.
15
Br., 1937, 142 p. Idem, p. 41.

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superfície”16. É que no reino do es- deslumbrante escuridão”22. Referia-
pírito as coisas acontecem, diga- se, naturalmente, aos escritos e
mos, sem planejamento. “A luz experiências de São João da Cruz.
vem quando vem, de repente e de Insta seus leitores a jamais se reti-
modo estranho”, diz ela. “Nosso es- rarem da vida física. A vida espiri-
forço para vê-la não nos ajuda a tual é apenas complemento dessa
[Edição original página 51/52]
vida. Não é outra vida. Evelyn Un-
derhill cita a mística inglesa, Julia-
ver. É como se apaixonar: coisa na de Norwich que ouvia Deus lhe
que não acontece quando busca- dizendo : “Veja! Eu estou em todas
mos que aconteça”17. Seu pensa- as coisas! Veja! Eu jamais retirarei
mento místico tende mais para a minha mão de minhas obras, ja-
biologia do que para a história. Foi mais”23.
para demonstrar essa idéia que ela O pensamento de Underhill aproxi-
escreveu o livro The Life of the Spi- ma-se da poesia à medida que se
rit and the Life of Today.18 Percebe- distancia das formulações dogmáti-
se aí o repúdio que sempre de- cas da teologia oficial da Igreja. Pa-
monstrou em sua vida pelo emo- recia-lhe que “o teólogo profissional
cionalismo fácil tão em voga em falsifica freqüentemente a história”.
boa parte da piedade popular de Achava que a teologia nos força
muitas igrejas. Muitos cristãos pre- muitas vezes a escolher entre a
ocupam-se em sentir em seus co- história e a poesia. “Mas ambas são
rações a presença de Deus como se necessárias se
a vida espiritual dependesse das [Edição original página 52/53]
emoções. Adverte outro interlocu-
tor, numa das cartas, “você tem quisermos alcançar os símbolos a-
muitos sentimentos mas quase ne- dequados da verdade. Mas é impe-
nhum amor”19. E noutra, “Não se rativo apreciá-las separadamente.”
preocupe se não sentir as coisas Quando o teólogo opta pela história
emocionalmente. O foco da religião em detrimento da poesia comete
é a vontade e não o sentimento, “um pecado imperdoável contra a
não é?20 “Chamava a atenção para luz”24.
o fato de que “Deus age sempre, Frei Beto, em inteligente artigo, pa-
tenhamos sensações espirituais ou rece situar-se no mesmo caminho
não”21 ao acentuar a importância de Underhill quando escreve:
da biologia referia-se à vida física.
Deus está na morada. Corações e
Numa de suas cartas afirmou sem mentes são atraídos pela experiên-
rodeios que “devemos ser suficien- cia do mistério da fé, esse dom que
temente fortes para usar nossos nos permite ‘ver ’o invisível, acredi-
tar naquilo que se espera e desfru-
sentidos sem lhes permitir que pre-
tar o transcendente como amor... A
judiquem nossas almas” uma vez sadia experiência da fé nada tem de
que devemos usufruir deles sem fuga do mundo ou do misticismo
jamais nos esquecer “da profunda e espiritualista que faz da religião me-
ro antídoto para angústias individu-
ais. Nela se articulam contemplação

16
Idem, p. 98.
17
Letters, p. 51.
18
The Life of the Spirit and the Life of Today, p.
22
1. Idem, p. 79.
19 23
Leters, p. 97. Revelations of Divine Love, capítulo 2, Lon-
20
Idem, p. 183. don, 1902.
21 24
Idem, p. 184. Letters, p. 145.

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e serviço ao próximo, oração e vida, negam que o conhecimento se limi-
alegria e justiça.25 te às impressões sensoriais, aos
processos intelectuais ou ao desdo-
bramento dos conteúdos da consci-
2. Misticismo e consciên- ência. A base do método do conhe-
cia espiritual cimento místico não se encontra na
lógica, mas na vida. Eles acreditam
Os místicos sempre dizem que Deus ha- descobrir na existência a centelha
bita o “fundamento da real do verdadeiro capaz de lhes
Alma” debaixo do nível da consciência
conduzir à união com o divino.
cotidiana,
de forma completamente distinta, con- Em linguagem teológica, argumen-
tudo mais presente a nós ta Underhill, sua teoria do conheci-
do que nós mesmos. Alguns acham fácil mento afirma que o espírito huma-
sair do mundo e no, essencialmente divino por natu-
encontrá-lo em suas almas enquanto ou- reza, é capaz de comunhão imediata
tros voltam-se com Deus, a realidade una.28
para ele como se fosse o sol: as duas Evelyn tem consciência de que o
posições são
conceito da união com Deus é mui-
verdadeiras embora inadequadas.26
to antigo. Ela o situa, pelo menos
na Europa, nas experiências de
Seria possível percorrer o caminho
consciência religiosa nos Mistérios
da teoria do conhecimento para se
Órficos da Grécia e do sul da Itália.
entender o significado e os meca-
Aqui também, como em Kant, exis-
nismos do que chamamos de misti-
te um aparato mental à disposição
cismo. Hume, por exemplo, enten-
do eu com a possibilidade de nos
deu que nosso conhecimento vem
levar ao conhecimento consciente
das impressões que a realidade ob-
da realidade supra-sensível. No
jetiva imprime em nossa mente.
âmbito do conhecimento, mesmo
Em geral, os filósofos estabelecem
transcendental, há duas válvulas de
dois elementos fundamentais para
escape, por assim dizer: o desejo
a apreensão da realidade: a sensi-
de conhecer mais e o de amar ain-
bilidade e a razão. Evelyn Underhill
da mais.29 O resultado do primeiro
entende, no entanto, que o misti-
desejo se vê no progresso da ciên-
cismo percorre
cia e da tecnologia onde a filosofia
[Edição original página 53/54] serve de orientação; o desejo de
amar e de manifestar o amor gera
outras avenidas. Parte do postulado a poesia, as artes em geral e, mui-
da existência do “absoluto” e tem a tas vezes, a religião.
pretensão de provar sua existência Evelyn Underhill acredita que as
por meio do testemunho de pesso- pessoas vivem aprisionadas nas ce-
as consideradas iniciadas. Atestam las do conhecimento científico em-
“não apenas a existência do Abso- bora percebam pontos vulneráveis
luto, mas também esta ligação: a nas paredes desse edifício. Seguin-
possibilidade de conhecê-lo e , fi- do os achados da psicologia de seu
nalmente, a de entrar em contato tempo, Underhill relembra a aceita-
com ele”27. Com isso, os místicos ção da libido (ou desejo cheio de

25
O Estado de São Paulo, Caderno A, p. 2, 26
de janeiro de 2000.
26
Letters, p. 245.
27 28
Mysticism, p. 23. New York, Image Books, Idem, p. 24.
29
1990, 519 p. Mysticism, p. 28.

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energia) como fator preponderante religião vem de Deus para
da vida. A psique
nós e não vai de nós
[Edição original página 54/55]
para Deus.32
sedenta quer mais amor. O intelec-
to faminto quer mais conhecimen- Segundo Evelyn Underhill há dois
to. Relembremos agora o diagrama modos para se tratar do desconhe-
de Dionísio Areopagita que divide cido: o caminho da magia e o do
os anjos entre os serafins e os que- misticismo. Eles são basicamente
rubins. Para ele os querubins esta- diferentes. O caminho da magia
vam cheios de olhos (voltados para busca possuir o objeto de sua bus-
o conhecimento), enquanto os se- ca; o do misticismo quer dar. Ape-
rafins eram cheios de asas para re- sar disso, ambos pretendem ofere-
presentar o impulso do amor na di- cer aos iniciados poderes extraor-
reção do absoluto.30 Pode-se dizer dinários e desconhecidos. Mas suas
que os querubins também desejam razões e fins não são as mesmas.
o que vêem, unindo-se aos serafins [Edição original página 55/56]
na odisséia do amor. No entanto, a
característica do amor é ação. Suas No misticismo a vontade une-se às
emoções no desejo apaixonado de
asas são ativas. É por isso que os transcender o mundo dos sentidos
místicos dizem que a busca do co- para que o eu se junte por amor ao
nhecimento só tem valor à medida objeto supremo e eterno do amor,
que nos leva ao amor. Se ficásse- cuja existência é intuitivamente
percebida pelo que costumamos
mos apenas no conhecimento ja- chamar de alma, e que é mais fácil
mais nos perderíamos na adoração. de se chamar de sentido “cósmico”
O puro conhecimento se satisfaz ou “transcendental”.
sem o relacionamento amoroso en-
Underhill prossegue dizendo que
tre o sujeito e o objeto. Tende a ser
se trata do temperamento “poético
interesseiro. A reciprocidade de
e religioso” agindo sobre o plano da
sentimentos só se dá nos inter-
realidade.33 O misticismo
câmbios do amor. Assim, “o sim-
ples conhecimento é questão de re- “na sua forma pura é a ciência das
últimas coisas, a ciência da união
cepção, não de ação; de olhos, não
com o Absoluto, e nada mais, e o
de asas”31. místico é a pessoa que alcança essa
Quando o conhecimento se une ao união e não a que fala a esse res-
amor a consciência humana está peito. A verdadeira marca do inicia-
do não consiste em saber a respei-
pronta para a experiência da co-
to, mas em ser”.34
munhão com o transcendente. Co-
nhecimento e amor se confundem O caminho do misticismo é longo e
na contemplação. construído por séries de graus. O
alvo dessa jornada é o que muitos
chamam de “escuridão”. O absoluto
3. Caminhos do misticismo é também denominado de abismo
da divindade ou de luz não criada,
muito embora a união com ele seja
Você precisa aprender que
consciente, pessoal e completa.
o primeiro movimento da Segundo São João da Cruz, o místi-

32
Letters, 242.
30 33
De Caelesti Ierarchia, VI. 2 e VII.1. Idem, p. 7.
31 34
Mysticism, p. 46. Idem, p. 72.

38 Jaci MARASCHIN. A experiência oblíqua: o pensamento místico de Evelyn Underhill


co “frui de certo contato com a di- Mas o que o artista consegue
vindade e, na verdade, é Deus que transmitir é muito pouco em face
é provado e sentido”35. Há certa da extensão do que viveu e vive. A
correspondência entre o místico e o mesma coisa se passa com o místi-
artista. A intuição do real na pró- co. Ele quer contar o seu segredo
pria constituição do mundo visível, ao mundo. Suas dificuldades são
enormes.
... está presente de forma modifica-
da nas artes: talvez fosse melhor Em primeiro lugar temos a imensa
dizer, corrige-se Underhill, que deve disparidade entre a experiência i-
estar presente se as artes quiserem nexprimível que tem e a linguagem
se justificar enquanto formas eleva- que se mostra incapaz para isso. Em
das da experiência. É isso que lhes seguida, há enorme distância entre
dá vitalidade peculiar, estranho po- sua mente e a mente do mundo.39
der de comunicar tremendas emo-
ções, feitas de meio tormento e de O caminho místico pressupõe três
meia alegria sempre desconcertan- disposições do eu que expressam a
do os intérpretes racionais.36
inquietação profunda do ser huma-
Entretanto, a arte não segue os no. Em primeiro lugar ele se trans-
mesmos caminhos do misticismo. forma num peregrino.
O artista tem o dever de expressar Tem o desejo de sair de seu mundo
algo do que percebe. Está amarrado normal na busca do lar perdido ou
ao seu amor. No seu culto da beleza da ‘terra melhor’: talvez o Eldorado,
perfeita a fé precisa ser equilibrada Sarras, ou Sião celestial. Busca de-
com as obras. Por meio de pois o outro coração, a alma gêmea
que o transforma num amante. Por
[Edição original página 56/57]
fim, deseja a pureza interior e a
perfeição, que o transforma em as-
véus e símbolos ele interpreta sua ceta e, no fim de tudo, em santo.40
visão livre, seu vislumbre da sarça
ardente, aos outros seres humanos. [Edição original página 57/58]
É o mediador entre seus irmãos e o
divino, pois a arte é a ligação entre O caminho místico não será descri-
a aparência e a realidade.”37 to como se fosse uma viagem, mas
Por sua vez, o místico não dispensa a alteração da personalidade capaz
o símbolo nem a imagem por mais de transformar a nossa vida e o
inadequadas que sejam à sua vi- nosso ser terrenos em ser celestial.
são. Ele quer expressar a experiên- A idéia de peregrinação repete-se
cia que tem. É mais ou menos co- ao longo da história. Busca-se o
mo o poeta que vai além do sentido Santo Graal, percorre-se o caminho
unívoco das palavras para transmi- de Santiago de Compostela, passa-
tir por meio delas o que elas não se por vales para buscar amor,
conseguem transmitir sem sua aju- contemplação, êxtase, deslumbra-
da. Para Underhill; mento e, por fim, o aniquilamento
do eu.
O artista terreno, porque a percep-
O caminho místico é como a procis-
ção envolve a busca imperativa da
expressão, tenta nos dar na cor, no são para o altar onde a alma se
som ou nas palavras indicações de une a Deus como num casamento.
seu êxtase, do seu vislumbre da Há cinco estágios no caminho para
verdade.38
a união com o transcendente. O
primeiro é o despertar do eu para a
consciência da realidade divina.
35
Llama de amor viva, II.26.
36
Mysticism, p. 74.
37 39
Idem, p. 75. Idem.
38 40
Idem, p. 76. Idem, p. 127.

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Trata-se de experiência abrupta e enquanto ele (o sol) perma-
marcante. Esse momento vem a-
nece apenas visível obli-
companhado de sentimentos de a-
legria e exaltação. O segundo está- quamente.43
gio consiste na percepção da finitu-
de e da imperfeição do eu. Trata-se A adoração que se presta a Deus é
de momento de purgação e dor. O a resposta das criaturas ao criador.
postulante à vida mística descobre A vida do universo é ato de adora-
que precisa se esforçar. O terceiro ção. Trata-se de ato desinteressado
momento representa o desinteresse e puro. Conta-se que São João da
pelas coisas dos sentidos. É preciso Cruz perguntou certa vez a um de
olhar para fora e para cima onde seus penitentes: “Como é sua ora-
brilha o sol e onde as coisas se ilu- ção?” E teve como resposta: “Mi-
minam. É importante neste estágio nha oração consiste em considerar
o senso da presença divina muito a beleza de Deus e de me alegrar
embora ainda não signifique a uni- porque ele tem essa beleza”44. Na
ão final. O último estágio desse verdade, oração e adoração não
caminho é a união da alma com são a mesma coisa. Segundo E-
Deus. Santa Teresa advertia às ir- velyn Underhill:
mãs de seu convento da seguinte A adoração é essencialmente desin-
maneira: teressada – significa apenas Deus –
enquanto a oração só é desinteres-
Vocês podem pensar, minhas filhas, sada num certo sentido. A adoração
que a alma no estado de união de- oferece, a oração suplica.
veria estar de tal maneira absorvida
que chegasse a não se ocupar com Na adoração não buscamos Deus
coisa alguma. Mas vocês se enga- porque precisamos dele. Chegamo-
nam. A alma volta-se com facilidade
e mais ardor do que antes às coisas nos a ele para adorar seu esplendor
pertencentes ao serviço de Deus.41 em pura contemplação perante sua
glória. Estão aí as sementes da vi-
Evelyn Underhill reconhece que
da mística.45 Na adoração o ser
“todos os relatos sobre misticismo
humano reconhece sua dependên-
no Ocidente são de suprema ativi-
cia da livre ação de Deus imanente
dade humana”42.
e transcendente.
[Edição original página 58/59] Vamos examinar o lugar da con-
templação na adoração. É resultado
de recolhimento e silêncio. Quando
4. Misticismo e adoração entramos no estado de contempla-
ção desinteressamo-nos de tudo o
que nos pode afastar de Deus e nos
Enquanto fonte de toda luz, sentimos livres e em paz. O sujeito
o sol é mais difícil de ser abandona a multiplicidade e divisão
de sua consciência no ato do reco-
visto do que qualquer outra
lhimento. O adorador torna-se
coisa, mas se trata de mis- consciente de estar em relação i-
tério benéfico para deixar mediata com Deus. “O místico tem
que as coisas sejam vistas mais e mais a impressão de ser o
em sua verdadeira natureza,
43
After Writing, C. Pickstock, p. 11.
44
Worship, p. 5, New York, Harper & Br., 1957,
41
El castillo interior: moradas sétimas, cap. 1. 350p.
42 45
Mysticism, p. 173. Idem, p. 9.

40 Jaci MARASCHIN. A experiência oblíqua: o pensamento místico de Evelyn Underhill


que conhece, e de conhecer o que 5. Considerações finais
ele é”46. Os místicos acreditam que
a experiência da
Eu acho que, aquela senhora idosa que
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percebe no sacramento a presença de
Jesus quando exclama “meu Jesus”, está
contemplação é dada e só é alcan- muito mais adiantada espiritualmente do
çada mediante participação. Não se que os teólogos que discutem a seu res-
chega a esse estado por meio de peito.49
observação.
Já nos referimos à expressão “noite Acho muito significativo o fato de
da alma” neste ensaio. Meditemos estarmos realizando, em 2001, um
um pouco em seu significado. Un- colóquio para alunos do programa
derhill afirma que o termo “significa de doutorado sobre misticismo. Em
que Deus não é conhecido em sua primeiro lugar porque nos abre
absoluta realidade – essa realidade perspectivas alternativas aos estu-
é escura – pelo nosso intelecto”47. dos tradicionais de teologia tanto
Em outras palavras, ela quer dizer sistemática como dogmáti-
que nossas categorias não se apli-
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cam a esse tipo de conhecimento. É
por isso que a razão, perante Deus, ca. A pós-modernidade está de-
acha-se no escuro. Não se vê Deus monstrando que há novas maneiras
por meio da razão. Assim, Deus de comunicação em nosso mundo
nunca será conhecido pelo coração que vão além da racionalidade dos
enquanto não desistirmos de tentar juízos e das categorias. Em segun-
conhecê-lo pela mente. do lugar, porque o rigorismo técni-
Ora, o culto da igreja é o lugar on- co das teorias do conhecimento a-
de o caminho da vida mística co- inda em voga na Universidade co-
meça. A pura contemplação só é meça a dar lugar para experiências
alcançada depois de muita experi- que vão desde as percepções da
ência e treinamento. O culto em- arte até à aceitação de novas for-
pregará símbolos, formas artísticas mas de religiosidade. Em terceiro
e sons numa espécie de auxílio ao lugar porque o ideal iluminista do
peregrino em sua jornada para a mundo globalizado, apoiado por
união com Deus. É por isso que fortes instituições financeiras, a-
Underhill afirma que: vassala as culturas locais e quer
A resposta humilde e gradual do ser acabar com as diferenças ainda e-
humano finito à auto-revelação ge- xistentes.
nerosa e gradual do Deus infinito, O misticismo é um dos caminhos
requer além de tudo o caráter ine-
rente em nossa condição de seres deixados para o pensamento capaz
criados. Isto é, o culto precisa de de fazer desabrochá-lo de maneira
expressão concreta e de forma.48 que o racionalismo jamais permitiu.
O misticismo não se enquadra nas
teorias filosóficas existentes nem
nos sistemas teológicos conhecidos.
É fonte de criatividade e de amor.
O movimento vem das religiões o-
rientais e do judaísmo e penetra na
46
Mysticism, p. 330.
47
Idem, p. 348.
48 49
Worship, p. 13. Letters, p. 182.

Revista Caminhando, v.6, n. 1 [8], p.32-42, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2001] 41
Igreja. As cartas paulinas estão mo e a arte. Muito embora saiba-
cheias de testemunho místico prin- mos que pensar o misticismo e
cipalmente porque Paulo não co- passar pela experiência mística se-
nheceu Jesus na carne. É verdade jam coisas diferentes, compete à
que o neoplatonismo exerceu forte academia pensar as experiências
influência nos séculos segundo e vitais do espírito, como a religião e
terceiro e se manifestou por meio a arte. Talvez, a partir da reflexão
de escritores como Clemente de A- venhamos a sentir o desejo de ir
lexandria e Orígenes. No século além do pensamento para o mer-
quarto com o desenvolvimento do gulho na experiência.
monasticismo e com a experiência
dos eremitas, principalmente no E-
gito, o misticismo cristão acentuou
a renúncia do mundo e a contem-
plação. Agostinho, entre os séculos
quarto e quinto, foi grande místico
natural. Dionísio Areopagita, nos
fins do século quinto, deixou impor-
tante legado que se tornaria conhe-
cido no Ocidente no século nono
quando João Escoto traduziu seus
escritos do grego para o latim. Ele
chamava Deus de “ser além do ser,
existência incriada”. Na Idade Mé-
dia, inúmeros místicos enriquece-
ram a literatura devocional como
Santa Hildegarda, Elizabeth de S-
chonau, Santa Gertrude Magna, Ri-
cardo de São Vítor, São Bernardo,
Francisco de Assis, Jacopone da
Todi, Meister Eckhart, Ruysbroeck,
Tauler, Catarina de Siena, Catarina
de Gênova, Santo Inácio de Loyola,
São Pedro de Alcântara, Santa Te-
resa d’Ávila e São João da Cruz.
Houve místicos importantes no pro-
testantismo como Jacó Boehme, e
George Fox, logo depois da Refor-
ma. Entre os místicos modernos
Evelyn
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Underhill ocupa importante lugar


tanto pela erudição de seus escritos
como pelo exemplo de vida que
deixou.
Segundo Heidegger, como já vi-
mos, os caminhos deixados para o
pensamento depois do fim da filo-
sofia são precisamente o misticis-

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