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Luiz Signates
Doutor em Ciências da comunicação (USP)
Professor no Mestrado e Doutorado em
Ciências da religião (PUC/GO) e no Mestrado
em Comunicação (UFG)
E-mail: signates@gmail.com
um conjunto de exigências prévias para que metodológica. Essa exigência talvez seja a
tal superação possa ser feita. Algumas exi- mais difícil de todas, pois a comunicação é
gências, de caráter social ou epistêmico, sem noção plurissêmica e ambígua, justamente
a pretensão de hierarquização ou, menos porque vem sendo constituída a partir de ou-
ainda, de exaustividade, parecem-nos im- tros olhares, que não a fenomenologia de sua
prescindíveis, tal como passamos a listar. especificidade; sendo, nesse caso, exatamente
A primeira exigência é o entendimento de aquilo que não se sabe ainda e que ainda se
que a comunicação constitui um campo em quer saber. Eis porque o olhar do campo pa-
construção. Instaurado com alta contribuição rece sempre ser oblíquo, transversal, como se
dos mais diversos campos do saber, que vão a comunicação fugisse ser surpreendida pelo
desde a linguística até as ciências sociais (em saber em construção à medida que é defini-
vários países, os estudos de comunicação vin- da justamente pelo que lhe extrapola ou, pior
culam-se diretamente às áreas de sociologia), ainda, pelo que não consegue abrange-la em
é preciso que a construção do objeto não per- toda sua complexidade.
ca de vista o aporte dessas contribuições. Não O trabalho de Braga transformou essa
se trata de instaurar um campo isolado, numa angústia numa interessante pergunta: “O
perspectiva de constituição de um objeto in- que há de especificamente comunicacional
teiramente próprio, e sim de perceber, nas nos trabalhos científicos produzidos pelo
relações com os demais campos, o que seria campo da comunicação?”. Isso é o mesmo
especificamente comunicacional. A perspecti- que indagar o que, afinal, constitui comuni-
va de Braga caminha nesse sentido na medida cação, quando se estuda comunicação. A esse
em que o autor, acertadamente, assume uma direcionamento, acrescentamos um outro:
posição crítica não à realização de interfaces até que ponto os estudos de comunicação
com os demais campos do saber, e sim ao debruçam-se efetivamente sobre o comuni-
elevado risco de dispersão que essa condição cacional? Ou seja, até que ponto a comunica-
propicia (Braga, 2004). ção não aparece apenas como pretexto para
estudar outros objetos, talvez considerados
A segunda é a de que o objeto, qualquer
mais bem descritos do que a comunicação
seja ele, tem tudo a ver com a noção de rela-
parece ser?
ção. Estudar comunicação é, sempre, de al-
Esta última indagação parece-nos ser
gum modo, estudar um “entre”. O campo da
aquela que melhor perceberia a situação de
comunicação é, pois, não apenas um campo
exogenia do campo. E, por conseguinte, a
de interfaces, como se sugeriu no item an-
busca por uma resposta afirmativa para ela
terior, mas um campo em que a interface é
representa o atendimento dessa terceira exi-
constitutiva.3 Em outras palavras, a comuni-
gência, que ora formulamos.
cação seria um campo de interfaces que abri-
A quarta exigência é a abertura para o novo
garia especificamente o estudo das interfaces.
a partir das realidades empíricas. Não se pode
A terceira exigência é a da centralidade do pensar a formação de um campo sem que o
conceito de comunicação, isto é, que se confi- objeto deixe de abrigar as possibilidades ou,
ra nos estudos uma abordagem prioritária do no mínimo, novos olhares sobre as possibili-
que for que se denomine comunicação. Trata- dades existentes. Nas ciências em geral, mas
se, então, da centralização deste conceito, seja radicalmente na comunicação, as realidades
como noção teórica, seja como ferramenta emergentes no cotidiano do mundo contem-
3
Compreende-se interface, a partir da experiência haurida na porâneo extrapolam em muito as condições
internet, como sendo tanto a atribuição dos softwares que fa- teóricas que buscam descrevê-las no âmbito
zem o diálogo entre os códigos binários dos computadores e
a experiência social e intuitiva dos usuários com a linguagem
das ciências humanas e sociais disponíveis. O
escrita ou icônica. mundo se transforma celeremente e as teorias
Trata-se, inclusive, de uma ampliação assu- fim de que se articule a teoria, como se pode
mida de forma explícita por ele. Constituído perceber nesta formulação típica:
como um “lugar de observação”, a noção de O episódio comunicacional, que é a co-
dispositivo ganha modalidade metodológi- municação concreta, se desenvolve, assim,
ca, muito mais do que teórico-conceitual, o no âmbito de “dispositivos interacionais”,
produzidos nas circunstâncias históricas
que é especialmente rico para a realização do
e acionáveis nos contextos específicos dos
projeto que esse autor enceta – o de desco- participantes (Braga, 2011).
brir novas perguntas que possam orientar a
abordagem comunicacional e a identificação Dispositivo é, pois, algo de novo que for-
daquilo que é especificamente comunicacio- ma rede, ou aquilo que possibilita a rede de
nal nos fenômenos estudados. uma nova manifestação de sentido, dentro
Outra interessante peculiaridade na da qual os sujeitos se inserem e ao mesmo
abordagem adotada por Braga é a ideia de tempo o colocam em funcionamento (“acio-
dispositivo como matriz interacional, em nam-no”, no dizer de Braga) nas suas tentati-
condições de disponibilidade ante os sujei- vas de comunicação.
tos da comunicação. Nesse sentido, ele su- Trata-se, portanto, de uma poderosa
gere que as redes de conexão simbólica que noção explicativa, altamente permeável
formam os dispositivos constituem proces- com a experiência vivenciada contempora-
sos simplesmente disponíveis aos sujeitos, neamente pela internet. A rede digital que
que acorrem a eles para elaborar e reelabo- abrange e interconecta hoje praticamente
rar as interações e faze-las avançar. A visada todo o mundo constitui-se, nesse quadro
sócio-interacionista de Braga aparece nítida teórico, em um extraordinário dispositi-
nessa ideia, inclusive no acréscimo do adje- vo de dispositivos. A promoção do novo,
tivo “interacional” – a nosso ver redundan- em comunicação, é realização cotidiana no
te, considerando que, desde Foucault, é de ambiente virtual e se dá pelas estratégias de
interação que se trata, embora neste caso a apropriação popular dos softwares que se
palavra assuma uma perspectiva bastante tornam disponíveis. Nesses termos, não são
similar à do interacionismo simbólico. Tal especificamente os softwares os dispositivos
orientação deixa perceber, ainda, a persis- como se pode superficialmente pensar, mas
tente recusa de Braga em adotar o conceito sim estes relacionados aos modos de apro-
de “instituição”, importante em Foucault, priação, ao acionamento que os sujeitos co-
como formador de vínculos acima das inte- nectados fazem deles. Em outras palavras,
rações, ou mesmo constituindo dispositivos dispositivos são as estratégias de apropria-
de dominação sobre elas. ção do que os softwares possibilitam, na re-
A principal virtude da teorização de Braga, lação com as possibilidades – e limites – dos
no entanto, é a sua preocupação em conferir algoritmos em seu pleno funcionamento.
centralidade ao processo comunicacional Parece óbvia a vantagem da noção de
em seu estudo. Dispositivos são padrões co- dispositivo sobre a de mediação, não apenas
municacionais que, de alguma maneira, se como conceito ou algo que pretenda descre-
tornam meios (no sentido de processos ou ver o que ocorre em comunicação, mas, sim,
sistemas simbólicos) pelos quais os sujeitos como categoria mediante a qual a comuni-
operam suas tentativas de comunicar. cação se torna passível de descrição. Usada
A noção de dispositivo, nessa formulação, como categoria, a noção de mediação leva
ocupa corretamente a posição de categoria, o pesquisador simplesmente à busca pela
deixando o espaço do conceitual para a co- identificação dos conteúdos simbólicos que
municação, que ganha contornos fenome- estariam servindo de suporte aos proces-
nológicos, como um evento ou episódio, a sos de produção de sentido, pois o modo
pelo qual isso acontece estaria já pressupos- Além disso, a categoria dispositivo, dife-
to como uma mediação. No caso do uso da rentemente da noção de mediação, não pre-
categoria dispositivo, essa condição estaria sume realidades dicotômicas, não se vincula
apenas sugerida, sendo objeto da pesquisa a meras realidades abstratas correlacionadas
não os conteúdos, e sim os modos, os pro- aos processos interpretativos (até porque o
cessos, as estratégias e, por que não? as or- modo como se apropria o conceito, aqui, não
dens discursivas e a dialética do poder versus se submete obrigatoriamente às condições
das rotas de fuga engendradas pelos sujeitos foucaultianas) e, sobretudo, não é aplicável
em comunicação. O que a noção de dispo- a toda e qualquer realidade, sendo possível
sitivo pressupõe seria apenas a relação entre efetuar recortes específicos para o delinea-
heterogeneidades, deixando à pesquisa a ta- mento teórico e empírico dos dispositivos
refa de compreendê-la e descrevê-la como – inclusive o recorte que a apropria como ca-
comunicação, assumindo desde o princípio tegoria específica do objeto da comunicação.
que nenhum dispositivo coincide com outro Eis porque se torna possível considerar que
nos diferentes contextos em que ocorre – ao a utilização da noção de dispositivo, no sentido
contrário, o que o dispositivo possibilita é que lhe empresta hoje o grupo da Unisinos, re-
justamente a emergência do novo, do inespe- presenta um avanço importante para o atendi-
rado, da comunicação como alteridade aber- mento do que acatamos presentemente como
ta (diferente do conceito de Marcondes, na imprescindível para efetuar a superação da
qual a definição aparece fechada o suficiente exogenia nas teorizações da comunicação.
para tornar-se quase impraticável). (artigo recebido out.2015/aprovado out.2015)
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