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Da exogenia aos dispositivos:


roteiro para uma teorização
autônoma da comunicação1

Luiz Signates
Doutor em Ciências da comunicação (USP)
Professor no Mestrado e Doutorado em
Ciências da religião (PUC/GO) e no Mestrado
em Comunicação (UFG)
E-mail: signates@gmail.com

Resumo: Trata este texto de um estudo das possibilidades de


superação da exogenia teórica do campo da comunicação, defi-
nida como sendo a dependência do campo da comunicação de
teorizações de outros campos científicos, deixando de conferir
centralidade ao objeto da comunicação nos estudos dos pro-
cessos comunicacionais. Após formular o que se denominou
como sendo as exigências epistemológicas da comunicação
para a superação da exogenia, faz-se um estudo da utilização
das noções de mediação e dispositivo, tais como têm sido for-
muladas no Brasil, avaliando-as como categorias que podem
contribuir para esta superação.
Palavras-chave: Epistemologia da comunicação, exogenia, A crítica epistemológica que temos feito
1
dispositivo.
a respeito dos estudos de comunicação in-
La exogenia a los dispositivos: hoja de ruta para una teoría autó- dicam que é premente, para a afirmação do
noma de comunicación
Resumen: Este texto proviene de un estudio de las posibili- campo, que as pesquisas dedicadas à cons-
dades de superar la exogenia teórica del campo de la comu- trução do conhecimento nesta área do saber
nicación , que se define como la dependencia del campo de
las teorías de comunicación otros campos científicos , no dar considerem, de forma tão radical quanto
centralidad al objeto de comunicación en los estudios de los possível, a centralidade do conceito de co-
procesos de comunicación . Después de la formulación de lo
que se denomina como los requisitos de comunicación episte- municação como condição sine qua non da
mológicas para superar exogenia , es un estudio sobre el uso de pertinência dos estudos vinculados ao cam-
nociones y dispositivos de mediación, tal como se han hecho
en Brasil, evaluarlos como categorías que pueden contribuir a
po. Tal priorização visa enfrentar a utiliza-
este exceso . ção desmedida de conceitos e abordagens
Palabras clave: Epistemología de la comunicación, exogenia, de outras ciências humanas e sociais, bem
dispositivo.
como a formulação de questões e arranjos
From exogeny to the devices: scrip for an autonomous theory of teóricos nos quais o conceito de comunica-
communication
Abstract: This this text from a study of the possibilities of over- ção passa a ocupar uma posição secundária
coming the theoretical exogeny the field of communication, e subsidiária.
defined as the dependence of the field of theories of commu-
nication other scientific fields , failing to give centrality to the Por conta destas características, na abor-
communication object in studies of communication processes. dagem geral dos processos comunicacio-
After formulating what is termed as the epistemological com-
munication requirements for overcoming exogeny , it is a study nais, esta exogenia constitui, um dos fatores
of the use of mediation notions and device , such as have been
made in Brazil , evaluating them as categories that can contri- 1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologias
bute to this excess. da Comunicação do XXI Encontro da Compós, na Universida-
Keywords: Epistemology of communication, exogeny, device. de Federal de Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012

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limitantes para a formação do campo especí-


O conceito de comunicação e sua
fico da comunicação e para a construção de
especificidade: exigências teóricas e
seu objeto. Assim, exige-se, para a formação
epistemológicas
e a consolidação do campo e do objeto da
comunicação, a assunção de aportes episte- A busca pelo objeto específico da co-
mológicos que apontem para a construção municação tem suas exigências próprias. A
de teorias da comunicação que considerem principal delas é, sem dúvida, a superação
a centralidade do processo comunicacional, da exogenia do campo,2 sem desprestígio das
possibilitando a formação de arquiteturas contribuições que os demais campos cientí-
conceituais e metodológicas próprias ao ficos venham a trazer. Ou seja, o proveito de
campo e adequadas à especificidade do obje- conceitos, categorias e metodologias advin-
to da comunicação. dos de outros territórios do saber não podem
nem devem desviar a atenção do pensamento
reflexivo sobre o foco principal: o processo co-
municacional. A porosidade, enfim, não pode
Ao tornar-se uma con­dição
desfigurar o objeto principal – a comunicação
central para a vida, em –, considerando-o apenas uma derivação ou
seus variados aspectos, um subproduto de outros processos melhor
a comunicação exige descritos por outras ciências.
seu lugar de objeto De modo geral, já temos, na cartografia
científico prioritário do conhecimento construído por essas inter-
faces com os demais campos científicos, des-
crições e análises relativamente consistentes
em outros campos. É assim, por exemplo, o
Este ensaio busca explorar as condições delineamento da visão política da comuni-
de superação da exogenia do campo da co- cação, como âmbito em que o Estado pro-
municação, partindo da convicção de que move políticas relacionadas às concessões e
isso só será feito se e quando a noção de ao funcionamento das mídias, bem como o
comunicação for o direcionador do pensa- uso instrumental que a classe política faz dos
mento a respeito dos processos tidos como sistemas de mídia, especialmente ao longo
comunicacionais, ou submetidos à pesquisa dos processos eleitorais. É igualmente bem
em comunicação, ou mesmo de outros pro- descrita a abordagem econômica da comu-
cessos sociais, dentro dos quais a comunica- nicação, na qual se estudam os imperativos
ção produza sentido de alguma forma. financeiros, patrimoniais e de negócios dos
No caminho desse desiderato, este arti- sistemas de comunicação em sua relação com
go busca compreender o sentido epistemo- os demais agentes econômicos da sociedade
lógico da exigência pela especificidade da 2
Adota-se aqui uma diferenciação entre campo e disciplina,
comunicação, para, em seguida, verificar para se falar na autonomização do campo da comunicação, no
quais condições são essenciais para a su- sentido bourdieuano. Nesse âmbito, a visada é semelhante à
que adota Ferreira (2003), para quem “os paradigmas e as teo-
peração do problema. Na sequência, busca rias fundantes, as práticas científicas normalizadas e institucio-
compreender qual seria a categoria de aná- nalizadas, as rotinas e as formas como os agentes em interação
lise vinculada ao campo que teria melhores se articulam com um determinado conhecimento reconhecido
como legítimo são lidas na perspectiva de como, através do
condições de cumprir com tais exigências, discurso científico, de seus procedimentos, de suas formas de
analisando, nesse sentido, duas das mais interações com outros, criam os objetos, os problemas e te-
mas, compartilhando trilhas singulares de pensar o mundo,
recentes propostas: os conceitos de media- deslocando-se conforme os fluxos discursivos e concretos de
ção e dispositivo. produção de sentido”.

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capitalista. De forma semelhante, operam as Dizendo de outro modo, na medida em


descrições linguísticas dos processos comu- que a comunicação, especialmente após a
nicativos que a percebem como discursos e emergência da internet, generalizou-se na
discursividades a partir dos operadores me- experiência humana, em sua quase totalida-
todológicos de circulação dos significados. E de, os processos sociais, políticos e econômi-
assim por diante. cos tornaram-se, cada vez mais, insuficientes
Como consequência dessa multiplici- para fornecer respostas às indagações e às
dade de visadas, pode-se perceber como a perplexidades surgidas dessa realidade emer-
fragmentação das ciências decorre imediata- gente. Governos e empresas, grupos e pesso-
mente na fragmentação do saber em comu- as de todo naipe, revelam-se atônitos e per-
nicação. Percebida como mera derivação de didos, diante da multiplicidade e diversidade
visões mais consolidadas e prestigiadas do de possibilidades e limites que a grande rede
mundo científico, a comunicação apresenta- oferece e disponibiliza.
-se subalterna e subjuntiva a processos que Essa emergência exigente da realidade
sempre a extrapolam e excedem. Os estudos comunicacional do mundo é o que, a nosso
em geral chegam a surpreender interessantes ver, principalmente exige que a abordagem
momentos de processos econômicos, políti- comunicacional seja reexplicada à luz de
cos, sociológicos e culturais, mas, ao proce- seus próprios termos. Ao tornar-se uma con-
derem dessa forma, terminam por deixar à dição central para a vida, em seus variados
margem o próprio processo comunicacional, aspectos, a comunicação exige seu lugar de
já que não são capazes de enxergá-lo em sua objeto científico prioritário. E, enfim, ao não
especificidade. Em outras palavras, não é a encontrar, nas ciências correlatas, a explica-
comunicação aquilo que termina descrito e ção suficiente para o que acontece no mundo
analisado nesses trabalhos, e sim os proces- hoje, já que os conceitos básicos e categorias
sos que supostamente lhe dão origem. de análise dessas ciências foram desenvolvi-
Em regime de simultaneidade surpre- dos para explicar processos em que a comu-
endentemente contraditória, o mundo ca- nicação não ocupava ainda tamanho relevo,
minha num sentido em que os processos torna-se urgente o desenvolvimento de uma
comunicacionais passam a abranger cada ciência da comunicação, em que o conceito
vez mais espaços da vida cotidiana e insti- de comunicação passe a ser a variável inde-
tucional das sociedades contemporâneas. pendente, feita para formular o juízo descri-
Desde que o desenvolvimento tecnológico tivo e analítico dos demais processos sociais,
passou a operar para tornar a comunicação e não o contrário.
mediada, no sentido de Thompson, uma É preciso, enfim, superar a exogenia das
forma específica de vida, e não apenas um abordagens teóricas da comunicação, tare-
instrumento para determinados contatos fa para a qual levantamos alguns requisitos
interpessoais e institucionais, a comunica- fundamentais.
ção passou a exigir explicações mais densas
e próprias de um regime de conhecimento
 s exigências da superação da
A
que desse conta de sua especificidade. A di-
exogenia no campo da comunicação
nâmica da institucionalização sistêmica da
comunicação (Signates, 2009), colonizado- A superação de uma condição epistêmica,
ra do mundo da vida, no sentido haberma- como é o caso em que se encontra o cam-
siano, propiciou condições materiais para po da comunicação no Brasil, não é um ato
que os processos comunicacionais trans- voluntarista, nem depende da mera decisão
formassem todos os horizontes de sentido e dos pesquisadores ligados ao campo. Alguns
significado da vida humana. aportes constituem, no nosso entendimento,

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um conjunto de exigências prévias para que metodológica. Essa exigência talvez seja a
tal superação possa ser feita. Algumas exi- mais difícil de todas, pois a comunicação é
gências, de caráter social ou epistêmico, sem noção plurissêmica e ambígua, justamente
a pretensão de hierarquização ou, menos porque vem sendo constituída a partir de ou-
ainda, de exaustividade, parecem-nos im- tros olhares, que não a fenomenologia de sua
prescindíveis, tal como passamos a listar. especificidade; sendo, nesse caso, exatamente
A primeira exigência é o entendimento de aquilo que não se sabe ainda e que ainda se
que a comunicação constitui um campo em quer saber. Eis porque o olhar do campo pa-
construção. Instaurado com alta contribuição rece sempre ser oblíquo, transversal, como se
dos mais diversos campos do saber, que vão a comunicação fugisse ser surpreendida pelo
desde a linguística até as ciências sociais (em saber em construção à medida que é defini-
vários países, os estudos de comunicação vin- da justamente pelo que lhe extrapola ou, pior
culam-se diretamente às áreas de sociologia), ainda, pelo que não consegue abrange-la em
é preciso que a construção do objeto não per- toda sua complexidade.
ca de vista o aporte dessas contribuições. Não O trabalho de Braga transformou essa
se trata de instaurar um campo isolado, numa angústia numa interessante pergunta: “O
perspectiva de constituição de um objeto in- que há de especificamente comunicacional
teiramente próprio, e sim de perceber, nas nos trabalhos científicos produzidos pelo
relações com os demais campos, o que seria campo da comunicação?”. Isso é o mesmo
especificamente comunicacional. A perspecti- que indagar o que, afinal, constitui comuni-
va de Braga caminha nesse sentido na medida cação, quando se estuda comunicação. A esse
em que o autor, acertadamente, assume uma direcionamento, acrescentamos um outro:
posição crítica não à realização de interfaces até que ponto os estudos de comunicação
com os demais campos do saber, e sim ao debruçam-se efetivamente sobre o comuni-
elevado risco de dispersão que essa condição cacional? Ou seja, até que ponto a comunica-
propicia (Braga, 2004). ção não aparece apenas como pretexto para
estudar outros objetos, talvez considerados
A segunda é a de que o objeto, qualquer
mais bem descritos do que a comunicação
seja ele, tem tudo a ver com a noção de rela-
parece ser?
ção. Estudar comunicação é, sempre, de al-
Esta última indagação parece-nos ser
gum modo, estudar um “entre”. O campo da
aquela que melhor perceberia a situação de
comunicação é, pois, não apenas um campo
exogenia do campo. E, por conseguinte, a
de interfaces, como se sugeriu no item an-
busca por uma resposta afirmativa para ela
terior, mas um campo em que a interface é
representa o atendimento dessa terceira exi-
constitutiva.3 Em outras palavras, a comuni-
gência, que ora formulamos.
cação seria um campo de interfaces que abri-
A quarta exigência é a abertura para o novo
garia especificamente o estudo das interfaces.
a partir das realidades empíricas. Não se pode
A terceira exigência é a da centralidade do pensar a formação de um campo sem que o
conceito de comunicação, isto é, que se confi- objeto deixe de abrigar as possibilidades ou,
ra nos estudos uma abordagem prioritária do no mínimo, novos olhares sobre as possibili-
que for que se denomine comunicação. Trata- dades existentes. Nas ciências em geral, mas
se, então, da centralização deste conceito, seja radicalmente na comunicação, as realidades
como noção teórica, seja como ferramenta emergentes no cotidiano do mundo contem-
3
Compreende-se interface, a partir da experiência haurida na porâneo extrapolam em muito as condições
internet, como sendo tanto a atribuição dos softwares que fa- teóricas que buscam descrevê-las no âmbito
zem o diálogo entre os códigos binários dos computadores e
a experiência social e intuitiva dos usuários com a linguagem
das ciências humanas e sociais disponíveis. O
escrita ou icônica. mundo se transforma celeremente e as teorias

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se tornam rapidamente obsoletas, processo estabelecer o aspecto do desenvolvimento


que se tornou vertiginoso com a emergência teórico como mera constatação de hipóteses.
das novas tecnologias de comunicação. Eis porque considero que o aspecto meto-
Essa é a razão pela qual consideramos que dológico deve ser pelo menos direcionado
o novo campo não surgirá do mero debate ao que tem sido denominado de graunded
teórico ou epistemológico – e talvez seja a
principal razão pela qual o trabalho do GT
Epistemologias da comunicação, da Compós,
tem mais fracassado do que tido sucesso em De forma análoga ao que
sua empreitada de delimitar o objeto e defi- ocorre com o conceito
nir o campo da comunicação. O olhar sobre o de mediação, cuja ori-
novo demanda uma postura eminentemente gem é marcada­mente
orientada para a intervenção do mundo so- sociológica, a noção
bre o saber e não o contrário. É preciso que o de dispositivo ad­vém da
insight venha da pesquisa, que se desdobre o
olhar sobre a condição do novo que exsurge
filosofia da linguagem
na dinâmica social ou, mais especificamente,
sobre a dinâmica comunicativa da sociedade.
A ideia de novo tem, no sentido que aqui
se sugere, duas faces de apropriação: a teórica theory, ou teoria fundamentada (Charmaz,
e a epistemológica. A noção epistemológica 2009). Trata-se da abordagem dentro da qual
tem uma visada claramente fenomenológica: a teoria é construída paulatinamente, à luz
os estudos de comunicação só serão especi- da experiência advinda da relação pesquisa-
ficamente comunicacionais se fizerem surgir dor-objeto.
um novo saber a respeito das relações sociais,
simbólicas etc. A abordagem teórica, contudo,
 onsequências teóricas dos
C
tem aparecido numa visada próxima à da filo-
antecedentes previstos
sofia da alteridade: o que quer se seja comuni-
cação, ela é emergência de alguma diferença. Delineia-se, assim, um programa de pes-
Essa condição tem sido densamente apropria- quisas no qual a comunicação constitui-se
da por Ciro Marcondes Filho, no que ele tem uma noção central, firmada na ideia de in-
denominado “Nova teoria da comunicação” terface, e que passa a ser colocada no centro
(Marcondes Filho, 2004). Como, entretanto, do processo de pesquisa empírica, em busca
a noção de Marcondes implica em limita- daquilo que a especifica ou que a diferencia
ções claramente demonstradas pela crítica de em relação aos demais objetos disponíveis nos
Braga (Braga, 2010) – a mais importante delas diferentes campos de construção científica.
é o risco de desaparecimento do próprio ob- O risco que se corre nesta abordagem é,
jeto, tal a raridade com que ocorreria o que sem dúvida, a tautologia. Passa-se a denomi-
se poderia reconhecer como o típico fenôme- nar comunicação o conceito mediante o qual
no da comunicação – preferir-se-á dar relevo, se busca saber o que é comunicação. Ou não
neste trabalho, à apropriação epistemológica se sabe o que se busca ou com que se bus-
da noção de novo. ca, ou a busca se torna meramente circular,
Uma quinta condição é imediatamente no qual o objeto não passa de pretexto para
complementar a anterior: a pesquisa empí- uma busca sem fim por algo que não se sabe.
rica deve comprometer-se teoricamente de O reconhecimento desse risco engen-
maneira forte. Em outras palavras, a pes- dra uma última exigência, que abordamos
quisa sobre objetos da realidade não pode aqui como consequente do conjunto das

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exigências anteriores: é preciso contar com


Uma categoria tentativa: os
uma categoria de análise,4 urdida teorica- dispositivos
mente, a partir da qual se torne possível pen-
sar a comunicação como objeto, sem os em- Recentemente, o grupo de pesquisadores
baraços da petição de princípio. da Unisinos, encabeçado pelo professor José
Luiz Braga, em conjunto com pesquisadores
de pelo menos duas outras Universidades,
a de Juiz de Fora e a de Goiás, em projeto
O conceito de dispositivo financiado pelo CNPq, do qual o autor des-
tem de ser apropriado te ensaio fez parte, passou a considerar um
para constituir uma novo conceito: o de dispositivo num contex-
nova perspectiva que to de abordagem em que a totalidade social
passa a ser considerada uma “sociedade (ou
torne possível falar sociedades) em midiatização”. Neste traba-
de comunicação e não lho, a bem de sua especificidade, passaremos
apenas de discurso ao largo da noção de midiatização, para nos
concentrarmos na ideia de dispositivo como
possibilidade de categoria específica dos es-
tudos de comunicação.
Muitas tentativas foram feitas no sentido De forma análoga ao que ocorre com o
de encontrar tal categoria de análise. Uma conceito de mediação, cuja origem é marcada-
mente sociológica, a noção de dispositivo ad-
delas, a de “mediação”, ganhou espaço recen-
vém da filosofia da linguagem, especificamen-
te, especialmente a partir das contribuições
te das ricas formulações teóricas de Michel
de Martin Barbero, e, no Brasil, nos estudos Foucault. Para esse autor (Foucault, 1980),
de recepção, mas que não será considerada What I’m trying to pick out with this term
aqui em razão das limitações metodológicas is, firstly, a thoroughly heterogeneous
de seu funcionamento como categoria.5 A ensemble consisting of discourses, insti-
tutions, architectural forms, regulatory
mais recente e interessante delas foi a cate-
decisions, laws, administrative measures,
goria “dispositivo”, de que passamos a tratar, scientific statements, philosophical, moral
em termos analíticos e propositivos, a partir and philanthropic propositions – in short,
do recurso metodológico engendrado por the said as much as the unsaid. Such are
Braga, o de oferecer o próprio método co- the elements of the apparatus. The appa-
ratus itself is the system of relations that
municativo como viés: trata-se, pois, neste
can be established between these elements.
momento, de uma “categoria tentativa”. Secondly, what I am trying to identify in
this apparatus is precisely the nature of the
4
Define-se aqui “categoria” numa perspectiva que a diferencia
de “conceito”. Conceito é uma palavra que recebe uma defi- connection that can exist between these
nição específica, a fim de centralizar a abordagem teórica na heterogeneous elements.
qual se insere, e funciona como elemento descritivo ou um dos
elementos descritivos do processo que se constitui como obje-
to da teoria em causa. Categoria é um conceito, no momento Ressalta na formulação de Foucault o as-
em que passa a ser utilizado como aferidor ou mensurador do pecto relacional do conceito de dispositivo
fenômeno que se pretende descrever, adquirindo, assim, uma
funcionalidade instrumental, a serviço da pesquisa teórica ou
(apparatus), dentro de uma preocupação de
empírica. Dentro deste quadro de discussão epistemológica, evidenciar a estruturação do poder nas mais
portanto, a exigência de uma categoria de análise comparece diferentes ordens discursivas – de leis e institui-
como estratégia para fazer escapar a abordagem da centralida-
de da comunicação dos processos tautológicos. ções até formulações científicas e filantrópicas.
5
Para um aprofundamento das razões de se dispensar o concei- Dispositivo constitui, para o autor, a interface
to de “mediação” como categoria de análise da comunicação,
vide Signates (2006).
entre as formações discursivas heterogêneas.

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Uma interessante formulação interpreta- conformação mais rizomática, significan-


tiva do conceito de dispositivo, em Foucault, do os processos de redes sem fronteiras nas
foi feita por Gilles Deleuze, e acabou con- quais o novo e o inesperado são engendrados
ferindo ao conceito uma abordagem clara- a partir dos entrecruzamentos, cuja forma-
mente pós-moderna, na qual as definições se ção constitui dispositivos diversificados.
perdem no emaranhado das metáforas, que, De todo modo, para se ajustar aos parâ-
mesmo altamente sedutoras, constituem- metros epistemológicos que constituem a
-se pouco esclarecedoras para os estudos de exigência dos estudos contemporâneos de
comunicação no âmbito do que se pretende comunicação, o conceito de dispositivo tem
fazer aqui, isto é, no quadro de um debate que ser apropriado, extraído o quanto for
epistemológico. necessário da teorização de Foucault para
constituir uma nova perspectiva, dentro da
Mas o que é um dispositivo? Em primeiro qual se torne possível falar de comunicação,
lugar, é uma espécie de novelo ou meada, e não (apenas) de discurso.
um conjunto multilinear. É composto por O que há de interessante no funciona-
linhas de natureza diferente e essas linhas mento do conceito de dispositivo e pode tor-
do dispositivo não abarcam nem delimi-
ná-lo uma categoria de análise específica da
tam sistemas homogêneos por sua própria
comunicação é a formulação de que se trata
conta (o objeto, o sujeito, a linguagem),
mas seguem direções diferentes, formam daquilo que forma redes de relacionamento
processos sempre em desequilíbrio, e es- entre diferentes dimensões da realidade. Isso
sas linhas tanto se aproximam como se até certo ponto coincide com a ideia, bastan-
afastam uma das outras. Cada está que- te compartilhada pelo senso comum, de dis-
brada e submetida a variações de direção positivo como instrumento que possibilita
(bifurcada, enforquilhada), submetida a qualquer coisa de acontecer (na tecnologia,
derivações. Os objetos visíveis, as enuncia- um aparelho de conexão, como um controle
ções formuláveis, as forças em exercício, remoto ou aparelho de videogame, é trivial-
os sujeitos numa determinada posição,
mente denominado de dispositivo).
são como que vetores ou tensores. Dessa
maneira, as três grandes instâncias que A formulação feita por Braga acrescenta o
Foucault distingue sucessivamente (Saber, adjetivo “interacional” e busca atender a esse
Poder e Subjetividade) não possuem, de requisito em condições específicas. Vejamos:
modo definitivo, contornos definitivos; são
antes cadeias de variáveis relacionadas en- Dispositivos interacionais podem ser ade-
tre si. É sempre por via de uma crise que quadamente esse ‘lugar de observação’.
Foucault descobre uma nova dimensão, Cada episódio comunicacional, na sua
uma nova linha (Deleuze, 1990). prática de fenômeno em ação, recorre a de-
terminadas matrizes interacionais e modos
A verdade é que, em Foucault, o concei- práticos compartilhados para fazer avançar
a interação. Tais matrizes – culturalmente
to de dispositivo parece bem menos amplo
disponíveis no ambiente social (e em cons-
do que pretendeu Deleuze ou mesmo do que tante reelaboração e invenção) correspon-
pretendem os estudiosos da Unisinos, que o dem ao que chamamos aqui de “dispositi-
propõem como modo de abordar o objeto vos interacionais” (Braga, 2011).
da comunicação. A noção de dispositivo co-
meça como uma noção especificamente lin- A noção de Braga é claramente diferen-
guística, orientada para ajustar a descrição ciada da de Foucault, em vários sentidos. O
das condições pelas quais a linguagem, con- mais interessante é que o autor não se espe-
vertida em formações discursivas específicas, cifica na análise de ordens discursivas, isto é,
engendra suas derivações em termos de mi- não se preocupa com a relação entre lingua-
crofísica do poder. Em Deleuze, assume uma gem e poder, o que era central em Foucault.

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Trata-se, inclusive, de uma ampliação assu- fim de que se articule a teoria, como se pode
mida de forma explícita por ele. Constituído perceber nesta formulação típica:
como um “lugar de observação”, a noção de O episódio comunicacional, que é a co-
dispositivo ganha modalidade metodológi- municação concreta, se desenvolve, assim,
ca, muito mais do que teórico-conceitual, o no âmbito de “dispositivos interacionais”,
produzidos nas circunstâncias históricas
que é especialmente rico para a realização do
e acionáveis nos contextos específicos dos
projeto que esse autor enceta – o de desco- participantes (Braga, 2011).
brir novas perguntas que possam orientar a
abordagem comunicacional e a identificação Dispositivo é, pois, algo de novo que for-
daquilo que é especificamente comunicacio- ma rede, ou aquilo que possibilita a rede de
nal nos fenômenos estudados. uma nova manifestação de sentido, dentro
Outra interessante peculiaridade na da qual os sujeitos se inserem e ao mesmo
abordagem adotada por Braga é a ideia de tempo o colocam em funcionamento (“acio-
dispositivo como matriz interacional, em nam-no”, no dizer de Braga) nas suas tentati-
condições de disponibilidade ante os sujei- vas de comunicação.
tos da comunicação. Nesse sentido, ele su- Trata-se, portanto, de uma poderosa
gere que as redes de conexão simbólica que noção explicativa, altamente permeável
formam os dispositivos constituem proces- com a experiência vivenciada contempora-
sos simplesmente disponíveis aos sujeitos, neamente pela internet. A rede digital que
que acorrem a eles para elaborar e reelabo- abrange e interconecta hoje praticamente
rar as interações e faze-las avançar. A visada todo o mundo constitui-se, nesse quadro
sócio-interacionista de Braga aparece nítida teórico, em um extraordinário dispositi-
nessa ideia, inclusive no acréscimo do adje- vo de dispositivos. A promoção do novo,
tivo “interacional” – a nosso ver redundan- em comunicação, é realização cotidiana no
te, considerando que, desde Foucault, é de ambiente virtual e se dá pelas estratégias de
interação que se trata, embora neste caso a apropriação popular dos softwares que se
palavra assuma uma perspectiva bastante tornam disponíveis. Nesses termos, não são
similar à do interacionismo simbólico. Tal especificamente os softwares os dispositivos
orientação deixa perceber, ainda, a persis- como se pode superficialmente pensar, mas
tente recusa de Braga em adotar o conceito sim estes relacionados aos modos de apro-
de “instituição”, importante em Foucault, priação, ao acionamento que os sujeitos co-
como formador de vínculos acima das inte- nectados fazem deles. Em outras palavras,
rações, ou mesmo constituindo dispositivos dispositivos são as estratégias de apropria-
de dominação sobre elas. ção do que os softwares possibilitam, na re-
A principal virtude da teorização de Braga, lação com as possibilidades – e limites – dos
no entanto, é a sua preocupação em conferir algoritmos em seu pleno funcionamento.
centralidade ao processo comunicacional Parece óbvia a vantagem da noção de
em seu estudo. Dispositivos são padrões co- dispositivo sobre a de mediação, não apenas
municacionais que, de alguma maneira, se como conceito ou algo que pretenda descre-
tornam meios (no sentido de processos ou ver o que ocorre em comunicação, mas, sim,
sistemas simbólicos) pelos quais os sujeitos como categoria mediante a qual a comuni-
operam suas tentativas de comunicar. cação se torna passível de descrição. Usada
A noção de dispositivo, nessa formulação, como categoria, a noção de mediação leva
ocupa corretamente a posição de categoria, o pesquisador simplesmente à busca pela
deixando o espaço do conceitual para a co- identificação dos conteúdos simbólicos que
municação, que ganha contornos fenome- estariam servindo de suporte aos proces-
nológicos, como um evento ou episódio, a sos de produção de sentido, pois o modo

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Luiz Signates – Da exogenia aos dispositivos: roteiro para uma teorização autônoma da comunicação
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pelo qual isso acontece estaria já pressupos- Além disso, a categoria dispositivo, dife-
to como uma mediação. No caso do uso da rentemente da noção de mediação, não pre-
categoria dispositivo, essa condição estaria sume realidades dicotômicas, não se vincula
apenas sugerida, sendo objeto da pesquisa a meras realidades abstratas correlacionadas
não os conteúdos, e sim os modos, os pro- aos processos interpretativos (até porque o
cessos, as estratégias e, por que não? as or- modo como se apropria o conceito, aqui, não
dens discursivas e a dialética do poder versus se submete obrigatoriamente às condições
das rotas de fuga engendradas pelos sujeitos foucaultianas) e, sobretudo, não é aplicável
em comunicação. O que a noção de dispo- a toda e qualquer realidade, sendo possível
sitivo pressupõe seria apenas a relação entre efetuar recortes específicos para o delinea-
heterogeneidades, deixando à pesquisa a ta- mento teórico e empírico dos dispositivos
refa de compreendê-la e descrevê-la como – inclusive o recorte que a apropria como ca-
comunicação, assumindo desde o princípio tegoria específica do objeto da comunicação.
que nenhum dispositivo coincide com outro Eis porque se torna possível considerar que
nos diferentes contextos em que ocorre – ao a utilização da noção de dispositivo, no sentido
contrário, o que o dispositivo possibilita é que lhe empresta hoje o grupo da Unisinos, re-
justamente a emergência do novo, do inespe- presenta um avanço importante para o atendi-
rado, da comunicação como alteridade aber- mento do que acatamos presentemente como
ta (diferente do conceito de Marcondes, na imprescindível para efetuar a superação da
qual a definição aparece fechada o suficiente exogenia nas teorizações da comunicação.
para tornar-se quase impraticável). (artigo recebido out.2015/aprovado out.2015)

Referências

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