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Ministério da Educação – MEC

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES


Diretoria de Educação a Distância – DED
Universidade Aberta do Brasil – UAB
Programa Nacional de Formação em Administração Pública – PNAP
Especialização em Gestão Pública

ESTADO, GOVERNO E MERCADO

Ricardo Corrêa Coelho

2012
2ª edição
© 2012. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Todos os direitos reservados.
A responsabilidade pelo conteúdo e imagens desta obra é do(s) respectivos autor(es). O conteúdo desta obra foi licenciado temporária e
gratuitamente para utilização no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, através da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o
conteúdo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reprodução e distribuição ficarão limitadas ao âmbito interno dos cursos.
A citação desta obra em trabalhos acadêmicos e/ou profissionais poderá ser feita com indicação da fonte. A cópia desta obra sem autorização
expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanções previstas no Código Penal, artigo 184, Parágrafos
1º ao 3º, sem prejuízo das sanções cíveis cabíveis à espécie.

1ª edição – 2009

C672e Coelho, Ricardo Corrêa


Estado, governo e mercado / Ricardo Corrêa Coelho. – 2. ed. reimp. – Florianópolis :
Departamento de Ciências da Administração / UFSC, 2012.
114p. : il.

Especialização – Módulo Básico


Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-61608-81-1

1. Administração pública. 2. Política e governo – História. 3. Gestão pública. 4. Educação


a distância. I. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Brasil). II.
Universidade Aberta do Brasil. III. Título.

CDU: 35
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR – CAPES

DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDÁTICOS


Universidade Federal de Santa Catarina

METODOLOGIA PARA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Universidade Federal de Mato Grosso

AUTOR DO CONTEÚDO
Ricardo Corrêa Coelho

EQUIPE TÉCNICA
Coordenador do Projeto – Alexandre Marino Costa

Coordenação de Produção de Recursos Didáticos – Denise Aparecida Bunn

Capa – Alexandre Noronha

Ilustração – Igor Baranenko

Projeto Gráfico e Editoração – Annye Cristiny Tessaro

Revisão Textual – Sergio Luiz Meira

Créditos da imagem da capa: extraída do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.
SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................... 7

Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado,


Governo e Mercado

Introdução.............................................................................................................. 11
Conceitos Básicos.................................................................................................. 13
A Dinâmica Pendular das Relações entre Estado e Mercado................................. 22
Duas Matrizes Teóricas para a Interpretação das Relações entre Estado e Mercado:
a liberal e a marxista............................................................................................ 26
A Formação da Matriz do Pensamento Liberal..................................................... 29
A Matriz Marxista................................................................................................. 38
As Mudanças nas Sociedades Capitalistas no Final do Século XIX e seus Impactos
sobre as Matrizes Marxista e Liberal..................................................................... 50

Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

Introdução............................................................................................................ 71
O Estado Liberal................................................................................................... 73
O Estado Socialista............................................................................................... 81
O Estado de Bem-Estar Social.............................................................................. 86
O Estado Neoliberal.............................................................................................. 98

Referências.......................................................................................................... 109

Minicurrículo........................................................................................................ 112
Estado, Governo e Mercado

6 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

APRESENTAÇÃO

Caro Estudante!
A disciplina que dá início a este curso aborda uma das
questões mais controversas do mundo contemporâneo: a da relação
entre Estado, governo e mercado. Essa questão não apenas se
apresenta no dia a dia do gestor público, como é debatida em todas
as disputas eleitorais – sejam elas nacionais, estaduais ou
municipais –, além de figurar diariamente nas páginas dos jornais.
Para ela não há uma resposta conclusiva.
Por mais que se tenha buscado – e ainda se continue
buscando – encontrar o ponto de equilíbrio entre a intervenção
estatal e a liberdade de mercado, esse equilíbrio não poderá ser
mais que temporário.
Por essa razão, por meio desta disciplina pretendemos que
você, gestor público, que já se encontra no exercício da função ou
que almeja exercer uma função pública, compreenda alguns
conceitos, teorias e informações históricas que lhes possibilitarão
não só acompanhar e participar dessa discussão, mas, sobretudo,
desempenhar as funções do gestor público com mais segurança e
maior conhecimento do terreno em que atua.
Com esse objetivo e preocupação, organizamos os temas a
serem tratados nesta disciplina em duas Unidades. Na Unidade 1
vamos tratar das teorias que explicam as relações entre Estado,
governo e mercado; e na Unidade 2 estudaremos as mudanças nas
relações entre Estado, governo e mercado durante o século XX.
O domínio de conceitos-chave envolvidos na discussão das
relações entre Estado, governo e mercado é essencial para quem
atua ou pretende atuar na esfera pública, mas não é suficiente.

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Estado, Governo e Mercado

Além dele, é necessário ao gestor público conhecer e identificar as


matrizes teóricas que animam esse debate e que se encontram –
conscientemente ou não – presentes no raciocínio e no discurso de
todos aqueles que trabalham no Estado, prestam-lhe serviços ou a
ele se opõem e apresentam suas reivindicações.
Assim, ao dominar conceitos e conhecer as teorias
subjacentes ao debate e às posições e reivindicações de uns e outros,
o gestor público terá melhores condições de entender o raciocínio
dos seus inúmeros interlocutores e tomar decisões esclarecidas e
orientadas pelo seu próprio discernimento.
Mas para que as suas decisões e ações sejam, de fato,
conscientes e bem informadas, como desejam todos – dos governantes
eleitos e partidos políticos que os acolheram em suas legendas para
disputar as eleições e se eleger, aos cidadãos e eleitores que lhes
sufragaram nas urnas –, o gestor público precisa ainda estar bem
informado sobre como as relações entre Estado, governo e mercado
estabeleceram-se e modificaram-se ao longo do tempo.
Sem o conhecimento da experiência acumulada, seria difícil
ao gestor público compreender por que o setor público brasileiro é
como é, entender os lentos, mas contínuos, processos de mudança
que se operam nas relações entre Estado, governo e mercado – que
têm impacto direto no funcionamento da Administração Pública –
e posicionar-se frente a questões que envolvem conflito tomando
decisões esclarecidas conforme o interesse público.
Esperamos que os temas tratados nesta disciplina lhe
propiciem elementos para melhor conhecer o espaço em que atua e
identificar os seus interlocutores, as demandas que lhe são feitas,
os desafios que lhe são propostos para – enfim – poder, consciente
e livremente, tomar as suas decisões em um campo que se encontra
muito sujeito a influências ideológicas, as quais nem sempre são
as melhores conselheiras para as ações mais sensatas, mas que
frequentemente orientam as ações dos agentes públicos.
Comecemos, então, nosso estudo.

Professor Ricardo Corrêa Coelho

8 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

UNIDADE 1
PERSPECTIVA TEÓRICA PARA A
ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE
ESTADO, GOVERNO E MERCADO

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Definir os conceitos de Estado, governo e mercado;
 Compreender a lógica interna de cada matriz teórica, distinguindo os
seus principais conceitos;
 Identificar a influência dessas matrizes no pensamento e discurso
dos atores políticos; e
 Avaliar comparativamente as potencialidades e limites explicativos
de cada matriz.

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Estado, Governo e Mercado

10 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

INTRODUÇÃO

A extensão dos poderes do Estado sobre a sociedade é um


tema que suscita grandes controvérsias, em torno das quais não se
pode, rigorosamente, falar de consenso ou da existência de uma
posição dominante. Por se tratar de questão que emana do âmago
da reflexão e da prática política, as formulações, que venham a ser
produzidas a respeito carregarão, sempre, um forte viés ideológico,
alimentadas por diferentes visões de mundo, concepções e valores dos
quais todos os indivíduos das sociedades contemporâneas, sem
exceção, são portadores, conscientemente ou não.
O reconhecimento desses vieses não nos deve desencorajar
a enfrentar o desafio, nem tampouco nos autoriza a fazer qualquer
tipo de formulação, numa espécie de vale-tudo. Ao longo de séculos,
a civilização ocidental vem recorrentemente colocando-se questões
relativas ao Estado, ao exercício do poder e às relações entre Estado
e sociedade. Será essa reflexão socialmente acumulada que nos
servirá de base para refletirmos sobre as complexas relações entre
Estado, governo e mercado no mundo contemporâneo.

Módulo Básico
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Estado, Governo e Mercado

Há duas matrizes principais no pensamento político


contemporâneo que procuram explicar essas relações:

 a liberal, que tem raízes no pensamento dos filósofos


iluministas, do século XVII, e dos economistas da
escola clássica, do século XVIII; e
 a marxista, que se inspira no pensamento do filósofo
alemão Karl Marx, que foi o mais contundente
Saiba mais Karl Marx (1818-1883) crítico do pensamento político, filosófico e
Filósofo alemão e teórico
econômico vigente à sua época.
do socialismo. Em 1848, Mas antes de estudarmos as teorias que
Marx e Engels publicaram o
explicam essas relações e analisarmos a
Manifesto do Partido Comunis-
contribuição de uma e de outra para a
ta, o primeiro esboço da te-
compreensão da dinâmica do mundo
oria revolucionária que, anos mais tar-
contemporâneo, convém precisarmos alguns
de, foi denominada marxista. Embora
conceitos básicos que serão utilizados nesta
praticamente ignorado pelos estudiosos
acadêmicos de sua época, Karl Marx é
disciplina e que serão recorrentes durante todo
um dos pensadores que mais influenci- o curso: os de Estado, governo e mercado.
aram a história da humanidade. Suas
ideias sociais, econômicas e políticas
tiveram grande influência sobre o mun-
do do século XX. Fonte: <http://
educacao.uol.com.br/biografias/
ult1789u149.jhtm>. Acesso em: 2 jul. 2009.

12 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

CONCEITOS BÁSICOS

Quando nos referimos ao Estado, grafado com inicial


maiúscula, estamos tratando da organização que exerce o poder
supremo sobre o conjunto de indivíduos que ocupam um
determinado território. E quando falamos de exercício do poder,
estamos nos referindo à capacidade de influenciar decisivamente a
ação e o comportamento das pessoas.
Estado e poder são, portanto, dois termos indissociáveis. Mas
a capacidade de uma organização exercer o poder sobre o conjunto
de indivíduos que ocupa um território não é suficiente para definir
o Estado. Se isso bastasse, teríamos – por exemplo – de reconhecer
como Estado as organizações criminosas que controlam algumas
favelas do Rio de Janeiro e outros bairros das periferias de grandes
cidades brasileiras, uma vez que são a força dominante que dita as
regras de comportamento a serem seguidas por todos os seus
habitantes. Ou então teríamos de reconhecer como Estado as
organizações guerrilheiras que ocupam e controlam parte do
território da Colômbia.

Para diferenciar o poder exercido pelo Estado do poder de


outros grupos que controlam territórios e indivíduos com base
no uso da força física, é necessário introduzir a noção
fundamental da legitimidade.

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Estado, Governo e Mercado

De acordo com o sociólogo


Saiba mais Maximillian Carl Emil Weber (1864–1920) alemão Max Weber, o que caracteriza
Sociólogo, historiador e político alemão o Estado é o monopólio do exercício
que, junto com Karl Marx e Émile Durkheim, legítimo da força em uma sociedade.
é considerado um dos fundadores da soci- Enquanto máfias e outras organizações
ologia e dos estudos comparados sobre armadas disputam entre si o controle
cultura e religião. Para Weber, o núcleo da sobre territórios e indivíduos pelo
análise social consistia na interdependência entre
simples uso da força, o Estado se
religião, economia e sociedade. Fonte: <http://
diferencia dessas pela legitimidade
ww w.netsaber.com.br/biografias/
com que se encontra investido para
ver_biografia_c_1166.html>. Acesso em: 2 jul. 2009.
exercer, em última instância, a força
física sobre os indivíduos.
Isso significa que apenas as organizações estatais – e nenhuma
outra – têm o reconhecimento da população para estabelecer regras
a serem obedecidas por todos, administrar a justiça, cobrar impostos,
julgar e punir os infratores das regras comuns.
Em todas as sociedades, há ainda outras formas de poder,
que são exercidas por outros meios, que não a força física, e por
outros tipos de organizações. Por exemplo: grandes empresas
influenciaram o comportamento das pessoas por meio dos bens
que possuem e dispõem; as igrejas e os grandes meios de
comunicação de massa influenciam o comportamento dos
indivíduos por meio das ideias e princípios que pregam e sustentam.
As primeiras exercem poder econômico, as segundas, poder
ideológico e ambas influenciaram o comportamento dos indivíduos
de forma concomitante e concorrencial.

O Estado não admite concorrência e exerce de forma


monopolista o poder político, que é o poder supremo
nas sociedades contemporâneas.

14 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Além do caráter monopolista do poder do Estado, ressaltado


por Weber, o pensador italiano Norberto Bobbio iria ainda pôr em
destaque duas características distintivas do poder estatal:

 Universalidade: o Estado toma decisões em nome de


toda a coletividade que ele representa, e não apenas da
parte que exerce o poder.
 Inclusividade: em princípio, nenhuma esfera da vida
social encontra-se fora do alcance da intervenção do
Estado. Isso, no entanto, não significa que o Estado
tenha de intervir ou regular tudo – apenas os Estados
totalitários têm essa pretensão –, mas que é
prerrogativa do Estado definir as áreas em que irá ou
não irá intervir, conforme o tempo, as circunstâncias
e o interesse público.

Mas o caráter inclusivo e Saiba mais Barão de Montesquieu (1689–1755)


monopolista do poder do Estado não
Charles-Louis de Secondat, conheci-
o impede de exercer suas diferentes
do como barão de Montesquieu, foi
funções por meio de diferentes um dos grandes filósofos políticos do
instituições. De acordo com Iluminismo. Autor de O espírito das leis,
Montesquieu, o Estado possui três livro fundamental da filosofia política
funções fundamentais, sendo todas as contemporânea. Fonte: <http://educacao.uol.com.br/
suas ações decorrentes de uma, ou biografias/ult1789u639.jhtm>. Acesso em: 2 jul. 2009.
mais, dessas funções:

 Legislativa: produzir as leis e o ordenamento jurídico


necessários à vida em sociedade.
 Executiva: assegurar o cumprimento das leis.
 Judiciária: julgar a adequação, ou inadequação, dos
atos particulares às leis existentes.

Tendo em vista evitar que o Estado abusasse do seu poder,


tornando-se tirânico com os seus súditos, Montesquieu formulou a

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Estado, Governo e Mercado

teoria da separação funcional dos poderes, que deu origem à


separação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tal
como os conhecemos hoje.
Da mesma forma que o poder do Estado pode ser
funcionalmente distribuído entre diferentes instituições sem perder
as suas características monopolistas, ele também é passível de ser
exercido por diferentes esferas.
Diferentemente dos Estados unitários – como a França, o
Chile e Israel –, onde o poder do Estado é exercido por instâncias
político-administrativas nacionais e as autoridades locais não têm
autonomia normativa, nos Estados federativos esse poder encontra-
se ainda subdividido entre a instância nacional e as instâncias
subnacionais.
No Brasil, como nos Estados Unidos, na Rússia, no Canadá,
na Índia e em outras federações existentes no mundo, o poder do
Estado (grafado com inicial maiúscula) e suas funções executiva,
legislativa e judiciária são exercidos de forma compartilhada pela
União e pelos estados federados (grafados com inicial minúscula).
No Brasil, em particular, a Constituição de 1988 chegou a elevar
os municípios e o Distrito Federal à categoria de membros da
Federação – antes circunscrita à União e aos estados – criando
assim uma federação sui generis composta por três entes federativos:
o federal, o estadual e o municipal. Na Índia, o poder do Estado
chega ainda a ser distribuído em até cinco esferas administrativas
distintas.
Essas variações na organização formal dos Estados
contemporâneos devem-se antes à história e às conveniências
político-administrativas de cada país, em nada alterando as suas
características fundamentais, funções, poderes e prerrogativas.
Qualquer que seja a forma assumida pelo Estado – unitária
ou federativa –, em todas elas o Poder Executivo (ou – mais
precisamente – o governo e o conjunto de instituições que exercem
as funções executivas) terá papel preponderante. Essa importância
e ascendência do Executivo sobre os demais Poderes nada tem a
ver com a relevância das suas funções.

16 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Segundo Rousseau, o Poder


Saiba mais Jean-Jacques Rousseau (1712–1778)
Legislativo é, indubitavelmente, o
poder central e fundamental do Nasceu em Genebra, na Suíça. Es-

Estado, já que lhe cabe a creveu o Discurso Sobre as Ciências e


as Artes, tratando já da maioria dos
elaboração das leis a serem
temas importantes em sua filoso-
seguidas por toda a coletividade.
fia. Em 1755, publicou o Discurso
Para Montesquieu, as três
Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens.
funções do poder do Estado
Em 1761, veio à luz A Nova Heloísa, romance
devem ser distribuídas por três epistolar que obteve grande sucesso. No ano
corpos distintos para evitar que o seguinte, saíram duas de suas obras mais im-
Poder Executivo – desde sempre portantes: o ensaio Do Contrato Social e o trata-
o predominante – exorbitasse das do pedagógico Emílio, ou da Educação. Em 1762,
suas funções e exercesse o poder foi perseguido por conta de suas obras, consi-
de forma tirânica sobre os deradas ofensivas à moral e à religião, e obriga-
cidadãos. Na arquitetura do a exilar-se em Neuchâtel (Suíça). Fonte: <http:/
institucional pensada por /educacao.uol.com.br/biografias/

Montesquieu, é o Poder Judiciário ult1789u420.jhtm>. Acesso em: 1 jul. 2009.

que desempenha o papel


fundamental de mediar a relação entre aquele que manda (o
governante) e aqueles que legislam (a assembleia).

O que explicaria, então, a preponderância do Executivo sobre


os demais poderes do Estado?

Uma resposta simples a essa questão é a de que o Poder


Executivo – que a partir de agora passaremos a chamar de governo
– é que dispõe dos meios coercitivos do Estado. Embora não crie
as regras gerais que balizam a vida dos cidadãos (função legislativa),
nem decida sobre a adequação dessas regras aos casos particulares
(função judiciária), é o governo que, por meio do seu aparato
coercitivo, garante o cumprimento das decisões dos outros poderes
e executa as políticas do Estado.
É ao governo que compete recolher os impostos que
sustentam o funcionamento de todos os poderes do Estado –

Módulo Básico
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Estado, Governo e Mercado

recolhimento que é sempre compulsório e respaldado pelo uso da


força se necessário for.
São as instituições do governo que garantem a segurança
interna dos cidadãos – entendida como a proteção da sua
Esse tema será
integridade física, liberdade e bens – e os protegem das agressões

v
examinado e tratado
detalhadamente na externas; também é o governo que exerce o poder de polícia do
disciplina O Público e o Estado, que vai da fiscalização do cumprimento das normas à
Privado na Gestão punição dos infratores.
Pública.
Enfim, é o governo que transforma em atos a vontade do
Estado, o que é suficiente para fazer dele o poder preponderante
sobre todos os demais e exigir dos legisladores um contínuo
aperfeiçoamento das normas que regem o funcionamento do Estado
e regulam as suas relações com a sociedade, e dos tribunais a
constante vigilância da adequação dos atos de governo à legislação,
sem o que o poder do governo se tornaria tirânico.
*Impeachment – Proces- Da mesma maneira que as diferentes formas assumidas pelo
so político-criminal ins- Estado não alteram a sua essência, as diferentes formas de governo
taurado por denúncia no
tampouco alteram substantivamente o seu poder no conjunto do
Congresso para apurar a
responsabilidade, por
Estado. Assim, as diferenças entre parlamentarismo e presidencialismo
grave delito ou má condu- dizem respeito à forma como Legislativo e Executivo se relacionam,
ta no exercício de suas mas nada indicam sobre a maior ou menor força do governo sob
funções, do presidente
um ou outro regime.
da República, ministros
do Supremo Tribunal ou
No presidencialismo, há uma rígida separação entre
de qualquer outro funci- Executivo e Legislativo no que diz respeito à duração dos mandatos
onário de alta categoria. do presidente e dos parlamentares. Sob o presidencialismo, nem o
Cabe ao Senado, se pro-
presidente tem o poder de dissolver o parlamento e convocar novas
cedente a acusação, apli-
car ao infrator a pena de
eleições, nem o parlamento pode destituir o presidente do seu cargo,
destituição do cargo. exceto no caso extremo de impeachment* por crime de
Fonte: Houaiss (2007). responsabilidade.
Já sob o parlamentarismo, nem o governo, nem os
parlamentares têm mandatos rigidamente definidos. Na verdade, o
governo do primeiro-ministro não tem mandato temporalmente
definido, durando o seu governo enquanto a maioria do parlamento
lhe der sustentação. Os parlamentares, por sua vez, têm um mandato
com duração máxima estipulada, mas não rigidamente estabelecida
como sob o presidencialismo, pois é facultado ao governo dissolver

18 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

o parlamento e convocar novas eleições quando o plenário não for


capaz de formar uma maioria capaz de eleger um novo primeiro-
ministro e dar sustentação ao seu governo. Essa separação
claramente mais flexível entre os poderes Executivo e Legislativo
sob o regime parlamentar não significa – de forma alguma – que as
funções executivas e legislativas do Estado encontram-se misturadas
e sob o mesmo comando. Uma vez escolhido o primeiro-ministro
pela maioria parlamentar, este monta o seu gabinete ministerial e
exerce as funções executivas de forma completamente independente
do parlamento. Ao governo, caberá governar e à sua maioria no
parlamento, lhe dar sustentação e aprovar as leis do seu interesse,
exatamente como ocorre sob o presidencialismo. Portanto, a força
de um governo não pode ser derivada da sua forma. Outros fatores
merecem destaque.
Em um regime democrático – em que os governantes são
eleitos e têm seus atos constantemente submetidos ao escrutínio* *Escrutínio – Processo de
da opinião pública e dos formadores de opinião – a força de um votação que utiliza urna.
governo depende, em grande parte, do apoio que suas propostas Fonte: Houaiss (2007).

políticas e proposições legislativas encontrarem no parlamento; da


sintonia entre suas ações e as expectativas dos eleitores; e da relação
mantida com os diferentes grupos organizados da sociedade – meios
de comunicação, sindicatos e associações, empresas e ONGs etc.

Importante!
Democrático ou não, um regime se legitima pelas
respostas que dá à sociedade.

Em todos os regimes, democráticos ou não, a força do


governo dependerá também da sua capacidade de identificar
necessidades e anseios sociais e transformá-los em políticas
públicas que produzam resultados na sociedade, dando respostas
efetivas aos problemas que pretende enfrentar. Para isso, o governo
depende também de um aparato administrativo capaz de
transformar as suas diretrizes em atos e da capacidade de alocar

Módulo Básico
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Estado, Governo e Mercado

recursos sociais para realizá-los. Todo esse complexo conjunto de


exigências foi denominado de requisitos, ou elementos, da
governabilidade.
*Governança – É um ter- Mais recentemente, surgiu um novo termo – governança*
mo de origem recente – que procura dar conta de outros elementos envolvidos na
que surgiu procurando
capacidade de intervenção do Estado na sociedade e que pareciam
explicar as complexas re-
lações entre Estado e so-
não estar adequadamente recobertos pelo termo “governabilidade”.
ciedade nas sociedades Ainda que não suficientemente definido e consolidado, o novo termo
contemporâneas. Fonte: põe em destaque as interações entre o Estado e os vários agentes
Elaborado pelo autor.
não governamentais para se atingir resultados de interesse público.
O foco deixa de ser a capacidade interventora e indutora do Estado
e passa a se concentrar no seu papel de coordenador dos diversos
esforços – públicos e privados – para produzir benefícios coletivos.
Independentemente de quão frágil ou promissor seja esse novo
conceito, ele tem a virtude de voltar a atenção para as relações
desejáveis entre Estado e sociedade.
Repensar as relações entre Estado e sociedade foi a questão
central dos filósofos iluministas, à qual a teoria econômica clássica
introduziu um novo conceito que veio para ficar: o de mercado.
A partir de então, as relações entre Estado e sociedade passaram a
ser pensadas e analisadas sempre – mas não exclusivamente – como
uma relação entre Estado e mercado.
O mercado pode ser definido como um sistema de trocas do
qual participam agentes e instituições interessados em vender ou
comprar um bem ou prestar ou receber um serviço. Todos os
mercados – seja o imobiliário, de capitais, de trabalho, de grãos,
de energia etc. – estão sempre sujeitos a alguma forma de regulação.
Os mercados não existem na natureza, sendo resultado da interação
humana que requer sempre regras e princípios para funcionar. Mas
por mais variados que sejam os mercados e os princípios e regras
que os regem, existem algumas regularidades comuns a todos.

20 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

De acordo com o filósofo e


economista escocês Adam Smith, o mercado Saiba mais Adam Smith (1723–1790)

é regido por determinadas leis que estão Economista escocês, com formação
diretamente associadas ao caráter egoísta do filosófica, lecionou em Glasgow e
ser humano. publicou duas obras importantes:

Guiados pelos seus interesses egoístas A Teoria dos Sentimentos Morais e


A Riqueza das Nações. Fonte: <http:/
– que no plano econômico se traduzem no
/www.coladaweb.com/economia/adam.htm>
desejo de maximizar os ganhos individuais
Acesso em: 29 jun. 2009.
ao realizar uma troca –, os indivíduos
entrariam em concorrência uns com os
outros, e da competição generalizada resultaria o equilíbrio
econômico e o bem coletivo, com a produção e oferta de bens e
serviços requeridos pela sociedade em quantidade e preços
adequados. O mercado seria então um mecanismo autorregulável,
que dispensaria a intervenção estatal, pois a lei da oferta e da
demanda seria suficiente para regular as quantidades e preços de
bens e serviços em uma sociedade. Assim, ao Estado caberia apenas
assegurar a concorrência para o bom funcionamento do mercado,
impedindo que os produtores – movidos pela avidez – se organizem
em cartéis, distorcendo os preços e beneficiando apenas a si mesmos
em detrimento da coletividade.

A existência da concorrência é, portanto, condição


indispensável para o funcionamento do mercado.

Mercado autorregulável e concorrência são a pedra de toque *Liberalismo econômico


do liberalismo econômico*. Da adequada relação entre Estado – Doutrina que advoga o
uso maior possível das
e mercado dependeriam o crescimento econômico e o bem-estar
forças do mercado para
social. No entanto, esse ponto de equilíbrio entre liberdade determinar as decisões
econômica e intervenção do Estado nunca foi encontrado, fazendo dos agentes econômicos.
com que a história das sociedades capitalistas – sobretudo a partir Fonte: Lacombe (2004).

do século XX – fosse marcada por um movimento pendular: ora


mais liberdade de mercado, ora mais intervenção do Estado.

Módulo Básico
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Estado, Governo e Mercado

A DINÂMICA PENDULAR DAS RELAÇÕES


ENTRE ESTADO E MERCADO

Embora a história seja um movimento constante de


transformação – mais lento em determinados momentos, mais
acelerado em outros –, as mudanças e os avanços produzidos ao
longo do tempo fazem-se, aparentemente, em zigue-zague, mas
certamente não em linha reta. No que se refere especificamente às
relações entre Estado e mercado nas sociedades capitalistas,
observa-se um movimento pendular, em que figuram como as duas
principais referências ordenadoras da vida social:

 Estado, situado à esquerda; e


 Mercado, à direita – quando a sociedade é o próprio
pêndulo a oscilar entre os princípios opostos. Veja a
Figura 1:

Figura 1: Movimento pendular das sociedades capitalistas


Fonte: Elaborada pelo autor

22 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

A partir de um determinado momento em que o pêndulo


chega ao seu ponto máximo à direita, e os mecanismos de mercado
mostram-se insuficientes para estimular o investimento privado, o
desenvolvimento econômico e o bem-estar social, a sociedade
começa a inclinar-se à esquerda, buscando cada vez mais a
intervenção do Estado como forma de corrigir as falhas de mercado,
sanar as suas insuficiências e recriar as bases para a retomada dos
investimentos, a expansão da economia e o aumento do bem-estar.
No momento em que o pêndulo chega ao seu ponto máximo
à esquerda e a intervenção do Estado na regulação da vida social e
econômica não se mostra mais capaz de promover o crescimento
econômico e o bem-estar dos indivíduos – passando a ser percebido
como um empecilho ao investimento privado, que é a condição
necessária para a expansão econômica nas sociedades capitalistas
–, tem início o movimento oposto da sociedade em direção à direita,
com a retração do Estado em favor dos mecanismos de regulação
de mercado.
A imagem metafórica do pêndulo social, oscilando entre
direita e esquerda, pode bem ilustrar a alternância entre os
princípios dominantes de organização das relações sociais, mas é
insuficiente para explicar como, em cada momento específico, as
relações entre o Estado e o mercado, de fato, estabelecem-se. Para
esse movimento, a figura mais adequada é a da espiral, que agrega
uma outra dimensão nesse movimento.
Além de oscilar entre os princípios opostos à direita e à
esquerda, as relações entre Estado e mercado assumem
conformações distintas no espaço ao longo tempo, de forma que
não se possa, rigorosamente, falar de retorno a um ponto de partida,
como seria o caso do pêndulo de um relógio. Dito de outra forma,
as relações entre Estado e mercado nunca se repetem no tempo,
renovando-se constantemente.

Módulo Básico
23
Estado, Governo e Mercado

A alternância contínua entre os princípios opostos


explica-se pela impossibilidade de se encontrar o
ponto de equilíbrio entre ambos e pelas virtudes e
vícios de cada um, além das transformações do
pensamento sociopolítico de cada sociedade em
determinada época.

A história tem mostrado que os mecanismos de mercado


são bastante favoráveis ao aumento da produção, do
desenvolvimento tecnológico e da riqueza em uma sociedade. No
entanto, a experiência histórica mostra também que o notável
aumento da riqueza social ensejado pelo livre curso das leis do
mercado acaba concentrado-a nas mãos de uns poucos.
A lógica do mercado não só permite como estimula os indivíduos
a arriscarem os seus recursos privados em empreendimentos
econômicos diversos na procura de satisfação econômica. Por meio
da competição, que é a regra básica do mercado, e da busca do
lucro, que é a sua mola propulsora, o mercado acaba selecionando
os “melhores” – isto é –, aqueles que são economicamente mais
fortes, mais produtivos, que fabricam produtos e prestam serviços
de melhor qualidade e que oferecem preços mais baixos, eliminando
assim os mais “fracos” e menos produtivos e competitivos.
Essa lógica levaria inexoravelmente à concentração crescente
da riqueza nas mãos de um grupo cada vez menor, se não houvesse
qualquer intervenção do Estado no funcionamento do mercado.
E essa contínua concentração da riqueza levaria à situação de
monopólio que, por sua vez, levaria ao fim da concorrência e,
consequentemente, do próprio mercado.
Assim podemos afirmar que o mercado é, portanto, um
mecanismo bastante eficiente para acumular riquezas, mas requer
sempre algum grau de intervenção do Estado para evitar a sua
autodestruição. Como mecanismo que enseja o crescimento
concentrado da riqueza, o mercado engendra e agudiza as
desigualdades sociais, requerendo também a intervenção do Estado

24 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

para criar um mínimo de igualdade entre os indivíduos, sem o que


a vida em sociedade estaria comprometida.

O Estado figura como o contraponto indispensável ao


mercado nas sociedades capitalistas.

A história também tem mostrado que,


se por um lado, o Estado apresenta grande Saiba mais Jean de La Fontaine (1621–95)

capacidade distributiva, por outro, tem se Nasceu na França. Seu pai


mostrado bem menos eficiente que o mercado queria que ele fosse ad-
para produzir e ofertar bens e serviços, e que, vogado, mas alguns
a partir de um determinado grau de mecenas (homens ricos e
intervenção no mercado, ele passa a inibir a nobres que patrocinavam

atividade produtiva. Podemos dizer ainda que os artistas) se interessaram por ele. As-

o mercado assemelha-se à “galinha dos ovos sim, pôde se dedicar à carreira literária.
Suas fábulas escritas em versos elegantes
de ouro”, da fábula de La Fontaine (1621–
deram-lhe enorme popularidade. “Sirvo-me
1695): se viva, produz constantemente
dos animais para instruir os homens”, di-
riqueza, mas uma vez morta lega apenas um
zia ele. Os animais simbolizavam os ho-
pequeno estoque de valor que ao ser
mens, suas manias e seus defeitos. Ele
distribuído rapidamente se consome.
reeditou muitas das fábulas clássicas de
Esopo, o pai do gênero. As mais famosas
são: A gansa dos ovos de ouro (e não a gali-
nha) e A lebre e a tartaruga. Fonte:
<www.portaldascuriosidades.com>. Acesso
em: 1 jul. 2009.

Módulo Básico
25
Estado, Governo e Mercado

DUAS MATRIZES TEÓRICAS


PARA A INTERPRETAÇÃO DAS
RELAÇÕES ENTRE ESTADO E MERCADO:
A LIBERAL E A MARXISTA

No mundo contemporâneo, existem diferentes correntes


teóricas que procuram explicar as relações entre Estado e mercado
nas sociedades capitalistas e orientar a ação coletiva. Contudo,
para efeito de análise, podemos identificar duas posições principais
que aglutinam essas diferentes visões: a liberal e a marxista.

As correntes liberal e marxista se formaram


combatendo as ideias e a ordem vigentes à sua época
e propondo novas e mais justas formas de organização
da sociedade.

Com base no pensamento de filósofos ingleses e franceses


dos séculos XVII e XVIII, o liberalismo iria se estruturar em oposição
ao poder absoluto exercido pelas monarquias hereditárias da
Europa, que invocavam o direito divino como fonte de sua
legitimidade. O marxismo se estruturaria como crítica e alternativa
à sociedade burguesa e à ordem liberal vigentes no século XIX,
tomando por base o pensamento do filósofo alemão Karl Marx.

26 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Mas diferentemente do liberalismo, que ao longo do século


XIX se impôs completamente ao pensamento conservador, varrendo-
o do cenário político e reorganizando as sociedades europeias
conforme os seus princípios, o marxismo não conseguiu derrotar o
liberalismo e a ordem burguesa durante o século XX, estabelecendo-
se como forte concorrente, mas não substituto, do pensamento e da
ordem social aos quais se opunha. Nessa disputa, as duas correntes
tiveram de oferecer respostas a, no mínimo, duas questões
fundamentais que envolvem a ordem política. São elas:

 Qual é a natureza do domínio exercido pelo Estado


sobre a sociedade e do uso da coerção física sobre os
indivíduos?
 Como são as relações entre maioria e minorias na
sociedade e como essas se relacionam com o Estado?

Caro estudante: essas duas questões devem orientar a sua


leitura do texto a seguir.

As respostas à primeira pergunta constituíram o núcleo duro


de cada matriz, permanecendo praticamente inalteradas ao longo
do tempo. Já as respostas oferecidas para a segunda pergunta iriam
variar consideravelmente, conforme as provas e contraprovas da
história.
Em mais de um século de coexistência e competição, os
pensamentos liberal e marxista tiveram de rever alguns de seus
pressupostos para continuarem explicando um mundo em constante
e acelerada transformação e assim poderem nele seguir disputando
a condução da ação coletiva.
Por essa razão, parece que a melhor forma de se compreender
o significado e a contribuição de cada matriz para explicar a
dinâmica do mundo em que vivemos e o comportamento político
dos diferentes agentes sociais seja o seu estudo comparado e
contextualizado no tempo.

Módulo Básico
27
Estado, Governo e Mercado

Para tanto, começaremos analisando o surgimento do


pensamento liberal como crítica aos fundamentos da ordem
vigente nos séculos XVII e XVIII e como proposta alternativa
de organização da sociedade. Depois, estudaremos a formação
da matriz marxista a partir da crítica formulada por Marx à
teoria da economia política e à sociedade capitalista do século
XIX, para a qual ele também formularia uma nova proposta
de organização social. Por fim, examinaremos como as
mudanças políticas, econômicas e tecnológicas ocorridas entre
os séculos XIX e XX impactaram cada matriz, promovendo a
revisão de determinados princípios e prognósticos, levando à
renovação do seu quadro conceitual.

28 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

A FORMAÇÃO DA MATRIZ DO
PENSAMENTO LIBERAL

O pensamento liberal funda-se


numa corrente filosófica que foi Saiba mais Thomas Hobbes (1588–1679)

predominante na Europa durante os Nasceu na Inglaterra. Descobriu os


séculos XVII e XVIII: o Jusnaturalismo. “Elementos”, de Euclides, e a geome-
Contrariamente a toda tradição filosófica tria, que o ajudaram a clarear suas

que lhe antecedeu e que viria a lhe ideias sobre a Filosofia. Com a ideia

suceder – que tem o grupo como ponto de que a causa de tudo está na di-
versidade do movimento, escreveu seu primeiro li-
de partida –, o Jusnaturalismo buscou no
vro filosófico, Uma Curta Abordagem a Respeito dos Pri-
indivíduo a origem do Direito e da ordem
meiros Princípios. Em 1651, publicou sua obra-prima,
política legítima.
o Leviatã. Fonte: <http://educacao.uol.com.br/bio-
Entre os vários e diferentes grafias/ult1789u395.jhtm>. Acesso em: 2 jul 2009.
pensadores dessa corrente filosófica, quatro
tiveram influência decisiva na formação do John Locke (1632–1704)
pensamento liberal: Thomas Hobbes, John
Nascido na Inglaterra, caracterizou
Locke, Charles Louis de Secondat, barão
a maior parte de sua obra pela opo-
de Montesquieu (1689–1755), e Jean- sição ao autoritarismo. Para ele, o
Jacques Rousseau (1712–1778). que dava direito à propriedade é o
Tomados separadamente, o trabalho que se dedica a ela. E,
pensamento de cada um desses autores desde que isso não prejudique alguém, fica as-
é bastante singular e, em muitos pontos, segurado o direito ao fruto do trabalho. Foram
até oposto um ao do outro. Com exceção esses um dos princípios básicos do capitalismo
de Locke, o pensamento dos outros três liberal. Disponível em: <http://tinyurl.com/

não pode ser considerado propriamente m2883g>. Acesso em: 1 jul. 2009.

liberal. Mas tomados em conjunto, eles


formam o alicerce sobre o qual se fundou o liberalismo, cuja

Módulo Básico
29
Estado, Governo e Mercado

influência seria decisiva na dinâmica política das sociedades


ocidentais, do final do século XVIII até os dias de hoje.
Apesar das muitas diferenças, há elementos fundamentais
em comum no pensamento dos quatro autores:

 a ideia de que a vida em sociedade não é o ambiente


natural do homem, mas um artifício fundado em um
contrato;
 o contrato social que funda a sociedade civil foi
precedido por um estado de guerra (exceto para Locke)
e um estado de natureza, no qual as relações humanas
*Direito Natural – Conjun- eram regidas pelo Direito Natural*;
to de regras inatas à natu-
reza humana, às quais to-  que o Direito Natural constitui a única base legítima
das as pessoas devem do Direito Civil; e
obedecer. Fonte: Lacombe
(2004).
 que somente por meio da razão seria possível conhecer
os direitos naturais para, com base neles, estabelecer
os fundamentos de uma ordem política legítima.

A partir desses pressupostos e utilizando o método racional,


as obras de Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau trataram
extensamente do Direito Público e dos fundamentos e natureza do
poder do Estado, estabelecendo, pela primeira vez na história, uma
clara separação entre Estado e sociedade civil, entre esfera pública
e esfera privada, que até hoje se constitui na referência básica do
Estado de Direito.

De acordo com o pensamento liberal, todos os


indivíduos são iguais por natureza e igualmente
portadores de direitos naturais aos quais eles não
podem, em hipótese alguma, abdicar: os direitos à
liberdade e à propriedade.

No estado de natureza, isto é, naquele em que não houvesse


um poder estatal constituído regendo a relação entre os homens, os

30 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

indivíduos gozariam da mais plena liberdade e usufruiriam de tudo


aquilo que pudessem possuir. Naquelas condições, não haveria nem
“bem”, nem “mal”, nem a noção de justo ou injusto, pois nenhuma
convenção havia ainda sido estabelecida entre os homens,
determinando e diferenciando o certo do errado, assim como
tampouco haveria qualquer lei – além das da própria natureza – a
regular as suas relações.

Se a condição humana no estado de natureza era a de plena


liberdade e independência, o que, então – perguntaria você –,
teria levado a humanidade a abandoná-la para viver em
sociedade e sob o domínio do Estado?

Apesar de conceberem a passagem do estado de natureza


para o estado civil de formas distintas, todos os quatro autores
deram uma única resposta a essa pergunta: por segurança e para
proteção dos bens e da vida de cada um.
Hobbes conceberia dramaticamente o estado de natureza
como um estado de guerra de todos contra todos:

[...] tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em


que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é
válido para o tempo durante o qual os homens vivem sem
outra segurança senão a que lhes poder ser oferecida por
sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situa-
ção, não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é incer-
to; consequentemente, não há cultivo da terra, nem nave-
gação, nem uso das mercadorias que podem ser importa-
das pelo mar; não há construções confortáveis, nem ins-
trumentos para mover e remover as coisas que precisam
de grande força; não há conhecimento da face da Terra,
nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há
sociedade; e o que é pior de tudo, um constante temor e
perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária,
pobre, sórdida, embrutecida e curta. (HOBBES, 1979, p.76).

Módulo Básico
31
Estado, Governo e Mercado

Seria, portanto, essa condição miserável


Saiba mais Leviatã da humanidade no estado de natureza que a teria
É um monstro bíbli- levado a celebrar um pacto, dando origem ao
co que serviria de Estado. Ao transferirem o direito natural de
inspiração para o utilizar a própria força para se defender e
título da obra de satisfazer os seus desejos para um ser artificial
Hobbes sobre a na- e coletivo – o Leviatã –, os homens estariam
tureza e funções do
trocando a liberdade natural pela liberdade civil
Estado moderno. A
e a independência pela segurança, obrigando-
diferença entre o
se mutuamente a se submeter ao poder do
monstro da bíblia e
Estado.
o Leviatã moderno é que este seria cria-
do e composto pela união e força de to-
Montesquieu e Rousseau discordariam de
dos os homens que pactuaram em for- Hobbes, pois consideravam o estado de
mar o Estado para lhes proteger. Na ilus- natureza distinto do estado de guerra. Para
tração de capa da primeira edição da Montesquieu,
obra de Hobbes, publicada em 1651, o
Leviatã moderno é representado pela [...] logo que os homens estão em sociedade, per-
figura de um rei gigantesco que protege dem o sentimento de suas fraquezas; a igualdade
a cidade, portando a coroa sobre a ca- que existia [no estado de natureza] desaparece e o
beça e empunhando a espada na direi- estado de guerra começa. (1979, p. 27).
ta, cujo corpo e armadura são formados
por todos os homens que compõem a
Já para Rousseau,
sociedade e se encontram submetidos ao
seu poder. Fonte: Elaborado pelo autor.
[...] a guerra não representa, de modo algum, uma
relação de homem para homem, mas uma relação
de Estado para Estado, na qual os particulares só
acidentalmente se tornam inimigos, não o sendo
como homens, nem como cidadãos, mas como sol-
dados. (ROUSSEAU, 1987, p. 28).

O estado de guerra seria, portanto, um estágio degenerado e


posterior ao estado de natureza, que, por ser nocivo à sobrevivência
e felicidade humanas, teria levado os homens a celebrar um pacto
social a fim de restituir a paz.
Locke, por sua vez, discordaria de todos os três, pois sequer
consideraria a existência de um estado de guerra na origem do
pacto que criaria o estado civil:

32 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer


renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da soci-
edade civil consiste em concordar com as outras pessoas
em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com
segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando
garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutan-
do da maior proteção contra quem quer que não faça parte
dela. Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não
prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na
liberdade do estado de natureza. (LOCKE, 1983, p. 71).

Quaisquer que tenham sido as motivações que levaram a


humanidade a deixar o estado de natureza para ingressar no estado
civil, a questão fundamental para todos é que sob a ordem civil os
direitos naturais dos indivíduos têm necessariamente de ser
preservados. A renúncia a qualquer desses direitos – ainda que
voluntária – seria sempre ilegítima, pois equivaleria à abdicação
da própria humanidade.

Por se tratar de direitos humanos inalienáveis, a


preservação da liberdade e da propriedade dos
indivíduos seria considerada pelos liberais como
cláusula pétrea de qualquer contrato social. Toda
ameaça ou tentativa de usurpação desses direitos
seria sempre espúria, pois contrária à razão da
existência do próprio Estado.

Afinal, os homens teriam abdicado de utilizar a sua própria


força física em favor do Estado justamente para que este garantisse
a sua liberdade e propriedade, e não contra elas atentasse. Assim
sendo, a ação do Estado que se opuser a esses direitos básicos será
sempre ilegítima, e a um poder ilegítimo nenhum indivíduo se
encontra moralmente obrigado a se submeter.
Essa gênese do Estado, descrita pelos liberais, não encontra
qualquer comprovação histórica. A Arqueologia e a Antropologia

Módulo Básico
33
Estado, Governo e Mercado

nunca apresentaram qualquer indício de que o homem tenha, em


algum momento, vivido isolado, e não em grupos. Tampouco há
prova da existência de um estado de guerra generalizado anterior à
formação do Estado, nem de pacto fundador da união política.
No entanto, a ausência de uma base factual para essa teoria
não apresentaria qualquer constrangimento para os filósofos
jusnaturalistas, pois o seu método de trabalho é inteiramente
racional e dedutivo, dispensando comprovações empíricas.
Hobbes rejeita a objeção que poderiam lhe formular os
adeptos do método histórico da seguinte forma:

Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tem-


po, nem uma condição de guerra como esta [de todos con-
tra todos], e acredito que jamais tenha sido assim, no mundo
inteiro. [...] Seja como for, é fácil conceber qual seria o
gênero de vida quando não havia poder comum a recear,
através do gênero de vida em que os homens que anterior-
mente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-
se cair, numa guerra civil. (HOBBES, 1979, p. 76).

Rousseau desdenharia da comprovação histórica com as


palavras as quais inicia o primeiro capítulo do livro
O Contrato Social:

O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a


ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser
mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ig-
noro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta
questão. (ROUSSEAU, 1987, p. 22).

Ao rejeitarem a história como fonte do conhecimento da


natureza e dos fundamentos de uma ordem política legítima e
aterem-se estritamente à razão, os pensadores liberais romperiam
frontalmente com a tradição como fonte de legitimação do poder,
que então se constituía na base de justificação da dominação dos
reis e príncipes da Europa até o século XVIII.

34 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Ao imaginar como seria, viveria e agiria o homem fora do


convívio social e cultural, a teoria jusnaturalista buscaria encontrar
a fonte original do poder político aplicável a toda a humanidade,
independentemente das circunstâncias temporais e dos costumes
dos diferentes povos.
Essa pretensão é que animaria inicialmente a elaboração
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão pelos

v
revolucionários franceses de 1879, e que culminaria com a adoção
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Ao universalismo intrínseco dos valores liberais estaria ainda Para conhecer mais
associado um radical humanismo, que romperia com o princípio sobre a Declaração

do fundamento divino da lei e do poder dos governantes, também Universal dos Direitos
Humanos, acesse <http:/
vigentes até o século XVIII. A ideia de que a união política surge de
/www.onu-brasil.org.br/
um pacto de submissão, por meio do qual cada indivíduo abre mão documentos_direitoshumanos.php>.
do uso legítimo da sua força física, transferindo-o ao Estado,
repousa sobre a noção, até então desconhecida, de representação
popular como fundamento do exercício do poder político.
Essa inovação faria com que o poder exercido por todo e
qualquer governante – mesmo o das monarquias hereditárias –
passasse a ser concebido como poder delegado pelos governados,
e não mais por unção de Deus, como sustentavam os adeptos do
Direito divino.
Essa inversão do princípio da representação abriria o
caminho para o surgimento da democracia nos Estados liberais na
virada do século XIX para o XX, entendida essa como o governo
do povo, consagrando o princípio da soberania popular.
Mas até que a democracia fosse admitida pelos liberais
haveria um longo percurso. Inicialmente, liberalismo e democracia
eram vistos como princípios inconciliáveis. Como vimos, de acordo
com o liberalismo todo indivíduo é portador de direitos irrevogáveis,
que devem ser respeitados por qualquer governo: seja o governo de
um só, de poucos ou de muitos. Já a democracia, desde a Antiguidade,
repousa, pura e simplesmente, no princípio do governo da maioria,
que desconhece qualquer limite além da vontade desta.

Módulo Básico
35
Estado, Governo e Mercado

Ora, se para o liberalismo o poder do


Saiba mais John Stuart Mill (1806–1873) Estado deve ser sempre limitado pelos direitos
Nasceu em Londres, Ingla- naturais, então existiria uma incompatibilidade
terra. Teve a sua educação fundamental entre os seus princípios e a prática
orientada e dirigida, desde democrática. Sobre esse ponto, o julgamento do
cedo, dentro do utilitarismo filósofo e economista liberal inglês John Stuart
e das obras de Jeremy Bentham, para Mill seria peremptório:
quem o egoísmo, a ação utilitária e a
busca do prazer são princípios capazes
A democracia não será jamais a melhor forma de gover-
de fundamentar uma moral e orientar
no [...] a não ser que possa ser organizada de maneira a
os comportamentos humanos na dire-
não permitir, que nenhuma classe, nem mesmo a mais
ção do bem. Fonte: <http://
numerosa, possa reduzir todo o resto à insignificância
educacao.uol.com.br/biografias/john-
política (MILL, 1980, p. 87).
stuart-mill.jhtm>. Acesso em: 2 jul. 2009.

Aristóteles (384 – 322 a.C.) O temor da tirania da maioria não era


exclusivo dos liberais, mas compartilhado por
Nasceu na Macedônia. Aos
muitos outros pensadores havia muitos séculos.
17 anos foi enviado para a
Aristóteles considerava a democracia ateniense
Academia de Platão em
uma forma degenerada de governo, pois nela a
Atenas, na qual permane-
ceu por 20 anos, inicial-
maioria governaria de acordo com o seu próprio
mente como discípulo, depois como pro- interesse, e não para o interesse de todos, como
fessor, até a morte de seu mestre, se deveria fazer o bom governo.
tornando um grande filósofo grego. Au- Para evitar esse risco, os liberais
xiliado por Alexandre, fundou o Liceu recomendariam não só a restrição do direito de
(334 a.C.) no ginásio do templo de Apolo. participação política às classes educadas e
Aristóteles fez de sua escola um centro proprietárias, como também a garantia de direito
de estudos, em que os mestres se dis- de expressão para as minorias na assembleia de
tribuíam por especialidade, inclusive em
representantes.
ciências positivas. É considerado o dis-
A primeira recomendação iria cair por
cípulo mais ilustre de Platão. Fonte:
terra com o advento da democracia, como
< h t t p : / / w w w. p u c s p . b r / p o s / c e s i m a /
examinaremos mais adiante na Unidade 2; a
schenberg/alunos/paulosergio/
biografia.html>. Acesso em: 1 jul. 2009.
segunda, no entanto, iria se tornar em uma das
cláusulas pétreas das democracias liberais.

36 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Mas antes que o pensamento liberal tivesse de rever alguns


de seus pressupostos e previsões para se adaptar às circunstâncias
criadas pela democratização das sociedades liberais entre o final
do século XIX e início do século XX, uma outra poderosa corrente
de pensamento iria surgir na Europa em oposição a ele, fazendo
uma contundente e profunda crítica à sociedade e economia
capitalistas: o marxismo.

Atividades de aprendizagem
Para verificarmos seu entendimento até aqui, separamos uma
questão para você.

1. Aponte três aspectos fundamentais da matriz liberal.

Módulo Básico
37
Estado, Governo e Mercado

A MATRIZ MARXISTA

O marxismo iria se inserir na longa tradição organicista da


filosofia política, posta em suspensão apenas nos dois séculos
anteriores de predomínio do jusnaturalismo no pensamento
europeu.
A dinâmica das sociedades voltaria a ser compreendida e
analisada a partir das relações estabelecidas entre os seus grupos
sociais concretos, e não mais a partir de indivíduos abstratos.
A história – relegada pelos jusnaturalistas a um plano secundário –
passa a ser o objeto central da reflexão dos filósofos e economistas
alemães do século XIX, entre os quais se encontraria Marx.
Inspirado pela dialética hegeliana, Marx iria fazer tanto a crítica do
idealismo no pensamento de Hegel (1770–1831) quanto da
economia política inglesa, dialogando, a um só tempo, com ambas
as correntes de pensamento, até então apartadas uma da outra.

A história não seria uma mera sucessão temporal de


fatos e de diferentes formas de organização social da
produção, dominação e representação do mundo, mas
teria um motor – a luta de classes – que a conduziria
a uma determinada finalidade.

De acordo com essa concepção, o movimento da história


não seria aleatório ou indeterminado, nem tampouco contínuo, mas
se desenvolveria por meio de contradições, isto é, dialeticamente.
Na teoria de Marx, o movimento dialético da história não se daria
no nível das ideias, como para Hegel, mas no plano concreto das

38 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

relações de produção da riqueza social. É por isso que o método


por meio do qual Marx iria interpretar e explicar o movimento da
história seria chamado por ele de materialismo dialético. Veja
a Figura 2.

Figura 2: Operários em greve


Fonte: <http://bocadotrombone.files.wordpress.com/2009/06/
20_mhg_pais_greve.jpg>. Acesso em: 2 jul. 2009.

As classes sociais são um conceito-chave do pensamento


marxista e seriam identificadas e definidas por sua inserção no
processo produtivo, resultante da divisão social do trabalho. Em
cada período da história, as classes fundamentais de uma sociedade
seriam aquelas diretamente ligadas ao modo de produção
dominante.
O conceito de modo de produção – central na periodização
marxista da história da humanidade – iria resultar da combinação
de dois fatores:

 as forças produtivas, isto é, o trabalho humano, os


meios de produção – tais como a terra, as máquinas e
equipamentos – e as tecnologias empregadas na
produção; e
 as relações de produção, que se estabelecem entre as
diferentes classes sociais e que envolvem: a

Módulo Básico
39
Estado, Governo e Mercado

propriedade sobre os fatores de produção e sobre o


produto do trabalho; e o mando e controle sobre o
processo de produção.

Embora o interesse principal de Marx fosse dissecar e


compreender a lógica e o funcionamento do modo de produção
capitalista, que emergiu nas sociedades europeias, sua pretensão
de elaborar uma teoria geral da história da humanidade o levou
também a examinar os modos de produção anteriores ou estranhos
à civilização ocidental.
Antes que surgissem as primeiras civilizações, o modo de
produção predominante teria sido o do “Comunismo primitivo”.
Sob este, a humanidade viveria organizada em tribos, não haveria
Estado, divisão social do trabalho, classes sociais nem propriedade.
A produção e o consumo seriam coletivos, não havendo excedente
de riqueza. No comunismo primitivo, os homens viveriam na mais
absoluta igualdade, mas também na escassez e na miséria.
A produção de um excedente econômico só seria possível a partir
da invenção da agricultura e da divisão social do trabalho, que
traria consigo a divisão do grupo social em diferentes classes, as
quais, por sua vez, iriam se apropriar de forma distinta da riqueza
produzida, ensejando assim o surgimento de uma classe dominante
sobre uma ou mais classes dominadas. Seria a partir desse
momento que surgiria o Estado com a função de garantir a
dominação de classe.

Na teoria marxista, a garantia da preponderância da


classe dominante sobre a classe dominada seria a
principal razão do surgimento e manutenção do Estado.

Ao sair do comunismo primitivo, característico da Pré-


História, começariam as lutas de classe. Seria precisamente por isso
que Marx definiria a história da humanidade como a história das
lutas de classe. A história teria conhecido quatro modos de produção
dominantes: o asiático, o antigo, o feudal e o capitalista.

40 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Sob a denominação de modo de produção asiático, Marx


englobaria todos os modos de produção estranhos à civilização
ocidental, sendo, por isso, o conceitualmente mais frágil e
controverso. Esse modo de produção teria predominado entre as
civilizações surgidas nos vales do Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates,
na Mesopotâmia, e do Rio Amarelo, na China (por isso chamado
de “asiático”). Essas civilizações desconheciam as relações de
escravidão e servidão, características do Ocidente pré-capitalista,
e fundavam-se na exploração de tribos e comunidades rurais por
uma classe dominante que normalmente exercia funções religiosas
e comandava a construção das grandes obras, como as pirâmides
do Egito; os grandes templos da Mesopotâmia, Pérsia e Índia; e a
Muralha da China.
No Ocidente – mais precisamente em torno do Mar Egeu e
na bacia do Mediterrâneo – teria se desenvolvido o modo de
produção antigo, predominante durante a Antiguidade Clássica.
Esse seria fundado na escravidão e caracterizado por uma divisão
de classes em que a classe dominante seria proprietária de todos
os fatores de produção, inclusive dos homens, mulheres e crianças
– seus escravos – destituídos de toda propriedade e de qualquer
direito. Nas sociedades organizadas sob esse modo de produção,
as classes sociais fundamentais seriam a dos proprietários dos meios
de produção – a dos patrícios, na Roma republicana e imperial – e
a dos escravos. A contradição fundamental dessas sociedades
residiu na relação entre senhores e escravos, sendo as frequentes
revoltas dos cativos – como a comandada por Espártaco (109 a.C.–
71 a.C.) e celebrizada na literatura e no cinema – um exemplo da
luta de classes na Antiguidade.
Sucedendo o modo de produção antigo viria o modo de
produção feudal, predominante durante a Idade Média na Europa,
em que as classes fundamentais seriam, de um lado, a da nobreza
senhora de terra e, de outro, a dos servos da gleba. A dominação
dos primeiros sobre os segundos dar-se-ia por meio de um complexo
sistema de obrigações e direitos mútuos e desiguais, fundados no
uso da terra – que era um bem comum, da qual os servos eram

Módulo Básico
41
Estado, Governo e Mercado

uma emanação e sobre a qual os senhores exerciam o seu poder –


e na apropriação da produção agrícola.
Por fim, viria o modo de produção capitalista, predominante
nas sociedades industriais, em que as classes fundamentais seriam
a burguesia – proprietária de todos os meios de produção – e o
proletariado – dono apenas da sua força de trabalho.
Diferentemente dos modos de produção anteriores, em que a classe
dominante dispunha de meios legais para coagir a classe dominada
a trabalhar em seu benefício, sob o modo de produção capitalista
os trabalhadores seriam formalmente livres e venderiam
voluntariamente sua força de trabalho para os industriais burgueses
em troca de um salário livremente contratado entre as partes no
mercado. Marx iria mostrar em sua obra que a igualdade formal
entre burgueses e proletários perante o Estado e no mercado estaria
a mascarar, de fato, a dominação e a exploração dos primeiros
sobre os segundos. Destituídos de todas as posses, aos proletários
só restaria vender a sua força de trabalho à burguesia para
sobreviver, não havendo, portanto, verdadeiramente liberdade e
escolha para aqueles que nada possuíam.
Portanto, sob a ordem liberal dominante na sociedade
capitalista – aparentemente livre e igualitária e pretensamente
fundada nas leis da natureza – existiria de fato uma ordem burguesa,
ou seja, que atenderia, antes de tudo, aos interesses econômicos
da burguesia, assegurando o seu lugar de classe dominante na
sociedade.

A essa aparente naturalidade das relações sociais estabelecidas


no mercado Marx chamaria de fetichismo da mercadoria.
Por que “fetichismo”, você sabe?

Ao transformar todos os fatores de produção em mercadoria


– a terra, o capital (dinheiro, fábricas, máquinas e equipamentos)
e a força de trabalho – a serem livremente trocadas no mercado, o
capitalismo transformaria as relações sociais subjacentes a essas

42 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

trocas – isto é, as relações de produção, que são relações


essencialmente humanas – em relações entre coisas (mercadorias),
*Fetiche – de fetichismo,
em fetiche*.
no mercado, as mercado-
A essa visão de mundo, dominante nas sociedades liberais rias pareceriam ter uma
do século XIX e dominada pelo fetichismo da mercadoria, Marx dinâmica e uma lógica
próprias, independente
chamaria de ideologia.
da vontade e da ação das
Segundo Marx, a ideologia dominante em uma determinada pessoas, cujo valor de
sociedade seria também a ideologia da sua classe dominante. troca seria definido pela
Portanto, nada mais natural que nas sociedades capitalistas a lei impessoal da oferta e
da demanda. Fonte: Ela-
ideologia dominante fosse a burguesa, isto é, aquela que
borado pelo autor.
correspondia à visão que os burgueses tinham da sociedade como
um todo a partir do ponto de vista que tinham devido à sua inserção
econômica na sociedade e seu interesse de classe. Para Marx,
haveria então uma relação direta entre a representação que os
homens têm da realidade e a sua inserção econômica nessa
realidade. A primeira seria chamada de superestrutura e a segunda
de infraestrutura ou, simplesmente, estrutura.

De acordo com a perspectiva de Marx, a estrutura seria


determinante sobre a superestrutura, isto é, a inserção
concreta dos homens no processo econômico é que
determinaria a sua forma de ver e de conceber o
mundo.

Essa determinação da superestrutura pela estrutura derivaria


logicamente do materialismo dialético, método de investigação e
interpretação da realidade criado e utilizado por Marx em seu
trabalho. Ao examinar as relações materiais estabelecidas entre os
homens na sociedade capitalista, isto é, as relações estabelecidas
entre eles no processo de produção industrial, Marx iria formular a
sua teoria do valor e identificar uma série de leis que regeriam o
capitalismo.
A teoria do valor de Marx é complexa, extensa e demonstrada
por meio de fórmulas, assim como também o são as leis do

Módulo Básico
43
Estado, Governo e Mercado

capitalismo por ele identificadas. O seu adequado estudo e


compreensão extrapolam em muito os objetivos desta disciplina.
No entanto, compreender em linhas gerais a concepção de
Marx sobre o funcionamento do capitalismo é fundamental para
entender como e por que ele chegaria à conclusão de que o sistema
capitalista é baseado na exploração do proletariado pela burguesia
e de que a revolução proletária e as passagens, primeiramente do
capitalismo para o socialismo e finalmente deste para o comunismo,
não apenas seriam desejáveis como necessárias para o progresso
da humanidade.
Em A riqueza das nações, publicado em 1776, Adam Smith
já havia identificado o trabalho humano como fonte geradora da
riqueza de uma sociedade, que independeria dos recursos naturais
disponíveis no seu território. Marx, em sua investigação, iria dar
um passo além: identificaria na força de trabalho a origem de toda
criação de valor. Para Marx, o capital não seria outra coisa senão
trabalho morto, isto é, a parte do valor produzida pela força de
trabalho, ou seja, pelos trabalhadores, que não lhes foi paga sob a
forma de salários, mas acumulada pelo capitalista e reinvestida na
produção.
Essa parte do valor criado pelo trabalho humano e não
*Mais-valia – conceito apropriada pelos trabalhadores Marx chamaria de mais-valia*.
fundamental da teoria
A lógica dos capitalistas seria sempre extrair mais mais-valia dos
marxista. Criado por Karl
seus trabalhadores, acumulando capital para reinvestir na produção
Marx para caracterizar a
exploração do proletari- e aumentando assim constantemente a sua riqueza. Essa lógica de
ado pelos capitalistas. acumulação incessante de capital independeria da vontade dos
Na sua concepção origi- capitalistas individualmente, mas seria inerente à sua condição de
nal, era definido como a
classe e à sua sobrevivência no mercado. A concorrência entre
diferença entre o valor
dos produtos que os tra- capitalistas levaria estes a procurar aumentar constantemente a
balhadores produzem e o produtividade de suas empresas, investindo cada vez mais em
valor pago à força de tra- máquinas, equipamentos e tecnologia e, proporcionalmente, cada
balho vendida aos capita-
vez menos em trabalho humano.
listas. Fonte: Lacombe
(2004). Essa lógica implacável do capital teria diversas
consequências, entre as quais cabe destacar duas:

44 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

 a tendência à concentração do capital, por meio da


qual os capitalistas cujas empresas fossem mais
produtivas acabariam eliminando do mercado os
capitalistas e empresas menos produtivas – o que no
longo prazo levaria a uma situação de oligopólio e,
finalmente, de monopólio, exter minando a
concorrência; e
 a redução proporcional do número de trabalhadores e
o aumento crescente de desempregados, chamados
por Marx de exército industrial de reserva.
A combinação dessas duas tendências, levadas às
últimas consequências, resultaria no fim do próprio
capitalismo, já que o meio para a sua sobrevivência é
o mercado – que desapareceria sob uma situação de
monopólio – e a condição para a constante
acumulação e valorização do capital seria a mais-valia
extraída da força de trabalho, cujo contingente seria
cada vez mais reduzido.

Frente a essas contradições inerentes ao capitalismo e


insuperáveis sob esse modo de produção, a humanidade iria se ver
– conforme a projeção de Marx – frente a duas alternativas:
socialismo ou barbárie. A barbárie resultaria naturalmente da
crescente acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos e
extensão crescente da miséria, pois o desenvolvimento do
capitalismo tenderia a dissolver as demais classes sociais existentes
na sociedade em apenas duas: a dos proprietários capitalistas e a
dos proletários. O socialismo, no entanto, não resultaria assim
naturalmente, mas da ação deliberada do proletariado organizado
em partido como força política para tomar o poder e implantar
uma ordem social conforme os seus interesses de classe, que seriam
também o interesse da maioria.
A mudança da ordem social por meio de uma revolução de
classe não seria uma novidade na história, já que teria ocorrido
anteriormente quando a burguesia emergente derrubou a monarquia
francesa, pondo fim ao Antigo Regime e instituindo a ordem liberal

Módulo Básico
45
Estado, Governo e Mercado

e burguesa, primeiro na França e depois em toda a Europa.


A revolução burguesa, no entanto, não se fez sem um novo projeto
de mundo e de organização social, que foi construído pelos
pensadores liberais como alternativa à velha ordem e às velhas
ideias dominantes. Esse mesmo percurso deveria ser então seguido
pelo proletariado industrial.
Tal como a burguesia construiu uma visão de mundo,
conforme os seus interesses de classe, a qual foi posteriormente
assimilada pelas demais classes da sociedade, tornando-se ideologia
dominante, o proletariado deveria fazer o mesmo. Mas para isso,
ele deveria, antes, desenvolver a consciência dos seus próprios
interesses de classe para que pudesse transformá-los em interesses
coletivos. A tomada de consciência seria um processo
eminentemente político, não derivado automaticamente da inserção
econômica de uma classe social no processo produtivo. Para explicar
essa diferença, Marx subdividiria o conceito de classe social em
“classe em si” e “classe para si”.
Uma classe em si seria constituída por aquele grupo de
homens e de mulheres que se encontravam sob condições
econômicas idênticas, mas que não havia desenvolvido a
consciência dos seus próprios interesses. Esta seria a condição do
operariado industrial e também dos camponeses, servos da gleba,
durante a Idade Média, e dos escravos, na Antiguidade. A diferença
seria a de que, nem servos nem escravos dispunham no seu tempo
das condições de desenvolver a consciência dos seus próprios
interesses, que lhes permitissem passar da condição de classe em
si para a de classe para si.
Antes do advento da sociedade industrial, os indivíduos
pertencentes às classes exploradas encontravam-se espalhados pelo
território sem contato uns com os outros, o que não lhes teria
permitido desenvolver uma consciência de classe e formular um
projeto de organização de toda a sociedade, conforme os seus
próprios interesses.
Segundo Marx, essas condições já existiriam para os
proletários industriais no século XIX, na medida em que o
desenvolvimento da grande indústria os havia concentrado num

46 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

v
mesmo local, sob condições idênticas de vida e de trabalho. O papel
do partido comunista seria precisamente o de organizar
politicamente a classe operária, desenvolver a sua consciência de
classe e conduzi-la na tomada do poder. Manifesto do Partido
Para Marx, a tomada do poder do Estado pelo proletariado Comunista – de Marx.
poria fim à propriedade privada dos meios de produção e à ordem Disponível em: <http://
www.scielo.br/
e dominação burguesas, instituindo a ditadura do proletariado. Ao
scielo.php?pid=S0103-
utilizar o termo “ditadura”, Marx não estaria propugnando uma 40141998000300002
forma de governo mais dura ou autoritária que a dos governos &script=sci_arttext>.
liberais e monarquias parlamentares do seu tempo, mas Acesso em: 2 jul. 2009.

simplesmente indicando que aquele seria um governo de classe, e Para conhecer mais
sobre a teoria da
não um governo de todos.
revolução de Marx, leia
O Manifesto do Partido
Comunista.
Para Marx todo governo em uma sociedade de classes
seria sempre uma ditadura da classe dominante.
Portanto, da mesma forma que sob a ordem capitalista
se vivia sob a “ditadura da burguesia” – qualquer que
fosse a forma assumida pelo Estado burguês –, sob o
socialismo iria se viver sob a ditadura do proletariado.
A diferença é que, sob o capitalismo, a sociedade
viveria sob a ditadura da minoria – a da burguesia –,
enquanto que sob o socialismo iria se viver sob a
ditadura da maioria – o proletariado.

O Socialismo, no entanto, seria apenas uma fase transitória


do capitalismo ao comunismo, durante a qual o proletariado
utilizaria toda a força do Estado para acabar com a sociedade de
classes. A missão histórica e libertadora do proletariado seria
precisamente essa: acabar com as classes sociais, restabelecendo
a igualdade inicial entre os homens. No entanto, à diferença do
comunismo primitivo, em que todos seriam iguais na pobreza, sob
a sociedade comunista pós-capitalista os homens iriam ser iguais
na abundância, podendo finalmente desenvolver plenamente o seu
potencial humano. Quando as classes tivessem sido finalmente
abolidas, o próprio Estado deixaria de existir, pois teria perdido

Módulo Básico
47
Estado, Governo e Mercado

completamente a sua função, que seria a de garantir a dominação


de uma classe sobre as demais.
Segundo Marx, a sua teoria da revolução e da tomada do
poder pelo proletariado nada teria de utópica, mas estaria
cientificamente embasada. Por isso, Marx iria chamar o socialismo
por ele propugnado de “socialismo científico”, diferenciando-o
das demais formas de socialismo propostas por outros filósofos do
seu tempo, que, por não estarem fundamentadas na avaliação da
história conduzida pelo método do materialismo dialético, seriam
utópicas. Por ser científico, o socialismo de Marx não poderia ser
instituído em qualquer sociedade nem sob quaisquer circunstâncias,
mas dependeria de determinadas condições objetivas. Essas
condições seriam precisamente as do capitalismo industrial
plenamente desenvolvido.
Para Marx, o capitalismo teria desempenhado um papel
progressista na história da humanidade ao libertar o homem das
condições de dominação existentes nas sociedades tradicionais e
soltar as amarras que até então impediam o pleno desenvolvimento
das forças produtivas nas sociedades humanas. Somente sob o
capitalismo é que teriam sido criadas as condições para o aumento
crescente da riqueza social e consequente superação do quadro de
escassez a que a humanidade, até então, vivia submetida.
Portanto, a perspectiva de Marx não pode jamais ser tomada
por anticapitalista, como a de alguns socialistas utópicos, mas sim
por pós-capitalista. A partir do momento em que a burguesia tivesse
cumprido o seu papel histórico de promover o desenvolvimento do
capitalismo, subvertendo completamente a ordem das sociedades
tradicionais, e que o capitalismo não estivesse mais trazendo
qualquer progresso à humanidade, esse deixaria de ser
revolucionário para tornar-se reacionário. Essa parecia ser a
situação das sociedades capitalistas industrialmente desenvolvidas
da Europa, como a Inglaterra e a Bélgica.

48 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Para Marx, o pleno desenvolvimento do capitalismo


era uma condição necessária para a implantação do
socialismo.

Caberia então ao proletariado tomar o poder e conduzir o


gênero humano à sua libertação, cumprindo a sua missão histórica.
Foi com essa convicção que Marx participou da fundação, em 1864,
da Associação Internacional dos Trabalhadores, em Londres, que
posteriormente seria mais conhecida por I Internacional. No entanto,
o desenrolar dos acontecimentos políticos e econômicos na Europa
e nas sociedades capitalistas, em geral, iria tomar uma direção
diferente da imaginada por Marx.

Atividade de aprendizagem
Avançamos mais um tópico em nosso estudo. Se você
realmente entendeu o conteúdo, não terá dificuldades de
responder à questão a seguir. Se, eventualmente, ao
responder, sentir dificuldades, volte, releia o material e
procure discutir com seu tutor.

2. Cite três características distintivas de cada corrente de pensamento


até aqui analisada.

Módulo Básico
49
Estado, Governo e Mercado

AS MUDANÇAS NAS SOCIEDADES


CAPITALISTAS NO FINAL DO SÉCULO XIX
E SEUS IMPACTOS SOBRE AS
MATRIZES MARXISTA E LIBERAL

No fim do século XIX, a sociedade e a economia capitalistas


passariam por profundas transformações que iriam obrigar tanto
os pensadores marxistas quanto os liberais a reverem alguns de
seus prognósticos e paradigmas.
No plano político, a mudança mais impor tante foi a
democratização das sociedades liberais, com a adoção do sufrágio
universal masculino. Contrariamente à expectativa de todos, os
quais acreditavam que o governo da maioria e a economia de
mercado fossem incompatíveis, a experiência do século XX iria
mostrar que democracia e capitalismo poderiam muito bem
conviver numa mesma sociedade. Essa contraprova da história iria
desafiar ambas as correntes a explicar os mecanismos que tornariam
possível a coexistência de um sistema econômico com um sistema
político, baseados em princípios aparentemente contraditórios.
No plano econômico, a virada do século traria importantes
transformações tecnológicas e organizacionais, cujos impactos
sobre o conjunto das sociedades seriam enormes, causando diversas
mudanças que foram sentidas ao longo das décadas e levando à
reestruturação e reorganização da produção. A Segunda Revolução
Industrial produziria profundas mudanças na composição da força de
trabalho e seria acompanhada pelo desenvolvimento das sociedades

50 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

por ações que modificariam o padrão de organização e gestão


empresarial, assim como a inter-relação das empresas no mercado.
Essas transformações não foram presenciadas por Marx, que
morreu em 1883, mas o surgimento das empresas de capital aberto
– por ele assistido – seria erroneamente interpretado como indicador
de uma fase de transição do capitalismo para o socialismo, e não
como de mudança do padrão de funcionamento do próprio
capitalismo. “Aos olhos de Marx [escreveria Raymond Aron (2005,
p. 630), um dos maiores conhecedores da sua obra] as grandes
sociedades por ações [que começavam a surgir já no seu tempo]
representavam uma primeira forma de negação do capitalismo e
uma forma transitória entre o capitalismo e o socialismo”.
Por isso, toda a teoria de Marx encontra-se baseada no estudo
da dinâmica das sociedades capitalistas do século XIX, e seus
prognósticos calcados na projeção das tendências nelas então
observadas.
Em meados do século XIX, os Estados liberais europeus eram
dirigidos por governos constituídos com base na representação
popular e escolhidos por meio do voto censitário. Tanto nas
monarquias constitucionais, como as dos Países Baixos e do Reino
Unido, quanto nas repúblicas, como as da Suíça e da França após
1870, o direito de voto era sempre restrito às classes proprietárias
e educadas. Por essa razão, Marx afirmaria sem hesitar que, qualquer
que fosse a forma assumida pelo Estado, todo governo seria sempre
uma ditadura da classe dominante. Ainda que a burguesia governasse
a si própria democraticamente, pois todos os seus membros tinham
direito a voto, seu governo sobre a massa trabalhadora excluída do
processo eleitoral seria sempre uma ditadura.

Figura 3: Locomotiva utilizada no século XVIII


Fonte: <http://www.gutenberg.org/files/20417/20417-h/images/image447a.jpg>.
Acesso em: 2 jul. 2009.

Módulo Básico
51
Estado, Governo e Mercado

Quanto ao padrão tecnológico vigente no tempo de Marx,


conforme Figura 3, esse era ainda o mesmo da primeira Revolução
Industrial, iniciada nas últimas décadas do século XVIII e baseado
na máquina a vapor como motor propulsor dos engenhos fabris,
navios e locomotivas, no carvão como combustível e nas ferrovias
como principal meio de transporte terrestre. Essa tecnologia
empregava intensivamente mão de obra, o que implicava no
aumento constante do contingente de trabalhadores industriais –
embora Marx já houvesse observado a tendência de substituição
do trabalho humano pelo das máquinas. Em relação à dinâmica
do mercado e à gestão dos negócios, as empresas interagiam em
um mercado livre, desregulado e competitivo, eram
majoritariamente de propriedade individual ou familiar, e dirigidas
diretamente pelos seus próprios donos.
Seria a partir da observação dessa realidade e das tendências
nela identificadas que Marx iria formular os seus prognósticos sobre
o futuro do capitalismo. O uso intensivo de mão de obra sobre o
qual se baseava a acumulação e expansão capitalista levou-o a
imaginar que as demais classes sociais existentes – como a pequena
burguesia e o campesinato – tenderiam a desaparecer com a
absorção dos seus membros pelas classes fundamentais: a burguesia
– cada vez menor e mais rica–; e o proletariado – cada vez mais
numeroso e tendendo a se tornar majoritário na sociedade. Nesse
cenário, a polarização e a luta de classes lhe pareceriam inevitáveis.
Dado o controle familiar dos meios de produção e a crescente
desigualdade de riqueza entre as classes, os membros da burguesia
seriam facilmente identificáveis, não só pelo seu nome e sobrenome,
mas também pelo seu estilo de vida, cada vez mais opulento e
contrastante com o dos trabalhadores.
Essa situação iria mudar substantivamente após a morte de
Marx. Com o surgimento da democracia, iria se abrir aos operários
industriais a oportunidade de participar do processo político,
elegendo seus representantes, influenciando a ação do Estado de
dentro do parlamento e, eventualmente, chegando ao poder pela
via eleitoral. Assim, “a escolha crucial [que se pôs para as
organizações dos trabalhadores] foi entre participar ou não [do

52 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

processo eleitoral e do jogo parlamentar]”


Saiba mais Lênin (1870-1924)
(PRZEWORSKI, 1985, p. 19). Não sendo uma
escolha nada fácil, ela iria provocar a primeira Vladimir Illitch Ulianov

grande cisão no seio do movimento operário e nasceu na Rússia, onde


iniciou sua atividade re-
socialista internacional. Uma parte iria aceitar as
volucionária na década
novas regras do jogo e participar das eleições,
de 1890, quando formou
trocando a revolução por concessões de benefícios
um grupo marxista em São Petersburgo.
sociais aos trabalhadores, essa mesma parte
Tinha como objetivo para si provar que
também aceitaria a luta pela cooperação entre
– ao contrário das teses de Marx – uma
classes e admitiria a propriedade privada e a revolução comunista era possível tam-
economia de mercado. A outra rejeitaria a bém num país como a Rússia, onde o
proposta de adesão à democracia burguesa, capitalismo mal dava seus primeiros
mantendo-se fiel ao ideário da revolução passos. Além disso, propôs a tese do
socialista e à tomada do Estado sem concessões “centralismo democrático”, segundo a
à burguesia. Os primeiros iriam herdar ou fundar qual os marxistas podiam discutir li-
os partidos sociais-democratas e socialistas do vremente entre si antes de agir, mas,
Ocidente, e dominar a II Internacional, fundada na hora da ação, sua obrigação era
em 1889 pelos marxistas após a cisão da I obedecer, com disciplina militar, à li-

Internacional; os segundos iriam organizar-se nos derança partidária. Fonte: <http://


educacao.uol.com.br/biografias/
partidos comunistas mundo afora e promover a
ult1789u486.jhtm>. Acesso em: 1 jul. 2009.
realização da III Internacional, em 1919, e, como
Lênin, chamar os sociais-democratas de sociais-
traidores. Lênin (s/d, p. 175) assim se referiria às lideranças
operárias que haviam renunciado à revolução socialista:

Esa capa de obreros aburguesados o de “aristocracia


obrera”, enteramente pequeño burgueses por su género de
vida, por sus emolumentos y por toda su concepción del
mundo, es el principal apoyo de la II Internacional, y, hoy
día, el principal apoyo social (no militar) de la burguesía.
Porque son verdaderos agentes de la burguesía en el seno
del movimento obrero, lugartenientes obreros de la clase
de los capitalistas, verdaderos vehículos del reformismo y
del chovinismo.

As mudanças ocorridas no processo de produção e de


organização das empresas iriam igualmente transformar o cenário

Módulo Básico
53
Estado, Governo e Mercado

econômico e as perspectivas para a classe operária. Com o advento


da Segunda Revolução Industrial na virada do século XIX para o
XX, marcada pela invenção do motor a explosão, pelo
desenvolvimento da energia elétrica e das indústrias mecânica,
química e eletrônica, e pela utilização do petróleo como combustível,
o processo de produção iria se tornar muito mais complexo e uma
série de novas atividades e postos de trabalho requeridos pela nova
sociedade industrial iria proliferar em detrimento do crescimento
do operariado fabril. Assim, a expectativa de que o proletariado
industrial viesse a se tornar a classe social majoritária na sociedade
acabou sendo frustrada. Mais que isso: o operariado passaria a
regredir proporcionalmente ao conjunto da população, como nos
mostra Przeworski,

[...] de 1890 a 1980, o proletariado continuou a perfazer


uma minoria do eleitorado. Na Bélgica, o primeiro país
europeu a estabelecer uma indústria significativa, a pro-
porção de operários conseguiu, de fato, quebrar o encanto
do número mágico da maioria, atingindo 50,1% dos vo-
tantes em 1912. Desde então, sua porcentagem declinou
sistematicamente, chegando a 19,1% em 1971. Na Dina-
marca, a proporção de operários no eleitorado nunca ul-
trapassou 29%. Na Finlândia, jamais excedeu 24%.
Na França, essa proporção declinou de 39,4%, em 1893,
para 24,8% em 1968. Na Alemanha, os operários como
proporção do eleitorado passaram de 25,5% em 1871 para
36,9% em 1903, desde então constituindo cerca de um
terço dos eleitores. Na Noruega, os operários constituíam
33% do eleitorado em 1894, e sua proporção atingiu o
auge – 34,1% – em 1900. Na Suécia, a porcentagem de
trabalhadores no eleitorado cresceu de 28,9% em 1908
para 40, 4% em 1952; a seguir, declinou até 38,5% em
1964. (PRZEWORSKI, 1985, p. 38).

Assim, mesmo na hipótese de toda a classe operária votar


unida no partido que representasse os seus interesses exclusivos,
sem alianças e concessões a outras classes e grupos sociais

54 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

representados por outros partidos políticos, a sua chegada ao poder


de Estado pela via eleitoral iria se mostrar numericamente impossível.
Além disso, as sociedades por ações iriam se impor como
forma principal de organização das empresas capitalistas, em
resposta à maior quantidade e concentração de capitais requeridas
pelo padrão tecnológico da Segunda Revolução Industrial. Com a
proliferação das grandes empresas capitalistas industriais,
comerciais e financeiras, durante o século XX, a sua gestão teria
de se profissionalizar, saindo das mãos dos proprietários – cada
vez mais difíceis de identificar, sobretudo nas sociedades anônimas
– para as de administradores profissionais. Nessa nova, mais
complexa e diversificada estrutura produtiva, iria aumentar
significativamente a proporção de indivíduos cuja inserção no
processo produtivo não seria passível de ser classificada nem como
pertencente à burguesia, nem como integrante do operariado
industrial. Com isso, as car tas do jogo político concebido
estritamente em termos de luta de classes iriam embaralhar-se.
As profundas mudanças produzidas na estrutura e
funcionamento das sociedades capitalistas iriam exigir novas
explicações não encontráveis na obra dos pensadores do século
XIX, nem na de Marx, nem na dos liberais. No campo marxista, iria
se afirmar a percepção de que o capitalismo havia mudado de padrão,
deixando de ser um sistema concorrencial – em que as empresas
disputavam um mercado em relativa igualdade de condições – para
se tornar num sistema monopolista – em que grandes conglomerados
dominariam, de fato, a produção, numa concorrência desigual com
as empresas familiares e de menor porte. Para explicar essa nova
fase, Lênin escreveria em 1916 o ensaio Imperialismo, fase superior
do capitalismo, explicando-a da seguinte forma:

La propriedad privada fundada en el trabajo del pequeño


patrono, la libre competencia, la democracia, todas esas
consignas por medio de las cuales los capitalistas y su prensa
engañan a los obreros y a los campesinos, pertenecen a un
pasado lejano. El capitalismo se ha transformado en un
sistema universal de sojuzgamiento colonial y de

Módulo Básico
55
Estado, Governo e Mercado

estrangulación financiera de la inmensa mayoría de la


población del planeta por un puñado de países
“adelantados”. El reparto de ese “botín” se efectúa entre
dos o tres potencias rapaces, y armada hasta los dientes
(Norteamérica, Inglaterra, el Japón), que dominan el mun-
do y arrastran a su guerra, por el reparto de su botín, a
todo el planeta. (LÊNIN. s/d, p. 177).

A atualização pretendida por Lênin da teoria do capitalismo


de Marx não seria influenciada apenas pela observação das
tendências gerais do capitalismo nos novos tempos, mas também
pelo seu particular envolvimento na luta política do seu país – a
Rússia – que ocupava uma posição periférica no sistema capitalista
internacional. Contrariamente a Marx, que imaginava que a
revolução iria começar nos países capitalistas mais desenvolvidos,
e deles se alastrando pelo mundo, Lênin acreditava que a revolução
teria lugar justamente nos países menos desenvolvidos, uma vez
que sob a fase imperialista do capitalismo, as nações capitalistas
dominantes, por meio da superexploração do mundo, conseguiriam
cooptar e corromper as lideranças operárias nacionais. Dada a
incipiente industrialização da Rússia e, portanto, do reduzido
tamanho da classe operária do país, Lênin iria propor a aliança
entre operários e camponeses – que constituíam a maioria do povo
russo – contra a burguesia –, aliança que, para Marx, pareceria
absurda, uma vez que, aos seus olhos, o campesinato era uma classe
conservadora e reacionária.
Após a revolução de outubro de 1917 e a tomada do poder
na Rússia pelos Bolcheviques, Lênin iria dar especial atenção ao
papel do Estado soviético, sob o seu comando, e à sua forma de
governo:

Sin embargo, seria la mayor torpeza y la más absurda utopía


suponer que se puede pasar del capitalismo al socialismo
sin coerción y sin dictadura. La teoría marxista ya se ha
pronunciado hace mucho, y del modo más rotundo, con-
tra este absurdo democrático-pequeñoburgués y anarquis-
ta. (LÊNIN, s/d, p. 439).

56 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Assim, a ditadura do proletariado


assumiria na União Soviética e no Saiba mais Antonio Gramsci (1891–1937)

pensamento de Lênin um significado bem Uma das referências essenciais


mais forte do que no de Marx, pois no tempo do pensamento de esquerda no
deste inexistia democracia no mundo, ao século XX. Membro fundador e
passo que no de Lênin essa já era a forma de principal teórico do Partido Co-

governo dos países capitalistas mais munista Italiano (PCI). Promoveu


o casamento das ideias de Marx com as de
desenvolvidos da Europa e dos Estados
Maquiavel, considerando o Partido Comunis-
Unidos. A rejeição da democracia e a defesa
ta o novo “Príncipe”, a quem o pensador
intransigente da ditadura como forma de
florentino renascentista dava conselhos
garantir as conquistas da revolução socialista
para tomar e permanecer no poder. Fonte:
iriam separar claramente as correntes
<http://educacao.uol.com.br/biografias/
marxistas de orientação leninista, ligadas à III ult1789u379.jhtm>. Acesso em: 1 jul. 2009.
Internacional, que ocupariam maior espaço
entre a esquerda dos países da periferia do mundo capitalista, e as
correntes marxistas dos países capitalistas centrais.
Ocupando uma posição intermediária entre a de Lênin e a
que os marxistas da Europa Ocidental iriam assumir no pós-guerra
encontra-se o pensamento de Antonio Gramsci. Gramsci assistiria
a ascensão do fascismo no seu país, sendo encarcerado em 1926.
Foi no cárcere que ele escreveu boa parte de sua obra e passou a
maior parte dos seus dias até a morte. Seu pensamento seria
fortemente influenciado pela situação do seu país natal, dividido
entre um norte industrializado e um sul atrasado e arcaico, e
dominado pelo fascismo, que havia surgido como um movimento
de massas em meio a um regime democrático e levado a Itália ao
totalitarismo. Os papéis da cultura e da liderança políticas seriam
objetos centrais da sua reflexão e temas de muitos dos seus escritos.
A partir do conceito de hegemonia de classe, utilizado por Lênin
para indicar a liderança do operariado industrial na condução da
revolução socialista, Gramsci criaria o conceito de “hegemonia
cultural”, por meio do qual iria explicar a manutenção do Estado
capitalista e as razões pelas quais a revolução socialista, imaginada
como inevitável pelos marxistas do século XIX, não teria ocorrido
no século XX.

Módulo Básico
57
Estado, Governo e Mercado

Segundo Gramsci, o Estado não se manteria nas sociedades


capitalistas apenas pela força, mas exerceria o seu poder por meio
da ideologia, isto é, da hegemonia cultural dos valores burgueses,
compartilhados inclusive pela classe operária. Após a morte de
Gramsci, a liderança intelectual sobre o Partido Comunista Italiano
– PCI – iria ser exercida por Palmiro Togliatti (1893–1964),
fornecendo a base teórica e ideológica para o surgimento do
Eurocomunismo nos anos de 1970 e 1980, que passaria a ser a
orientação dominante na maior parte dos partidos comunistas da
Europa Ocidental. O Eurocomunismo iria se afastar ideologicamente
do Partido Comunista da União Soviética ao declarar fidelidade às
instituições democráticas, renunciar à revolução social como forma
de construção do socialismo e procurar representar outras forças
sociais além do operariado industrial, como os funcionários do setor
público, as classes médias e os novos movimentos sociais.
Na Europa Ocidental, capitalista e democrática do pós-
guerra, os pensadores marxistas não ligados aos partidos
comunistas dos seus países acabariam logo deixando de lado a
questão da revolução e do Estado socialista para refletir sobre o
papel do Estado nas sociedades capitalistas. Assim, a discussão
sobre as relações entre Estado e mercado voltaria com força no
campo do marxismo. Entre os diversos pensadores marxistas
europeus, iria se formar o consenso de que, sob as condições do
mundo contemporâneo, o mercado não seria mais o meio suficiente
para o capitalismo vicejar e se reproduzir – como acreditava Marx,
com razão, ao analisar a dinâmica do capitalismo nas sociedades
liberais do século XIX. Nas sociedades industriais e democráticas
do século XX, o Estado desempenharia um papel essencial para
garantir as condições de acumulação e legitimidade sob constante
ameaça em função de seis principais fatores, apontados por
Przeworski:

(1) a competição entre as firmas é incapaz de assegurar


que todas as atividades necessárias para a produção capi-
talista continuada sejam espontaneamente realizadas;

58 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

(2) a taxa de lucro declinou, pelas


razões antecipadas por Marx ou por Saiba mais Jürgen Habermas (1929)

pressões salariais; Filósofo alemão e princi-


(3) a economia capitalista não forne- pal estudioso da segun-
ce bens públicos suficientes e sua es- da geração da Escola de
cala se elevou acima das capacida- Frankfurt. Ensinou Filoso-
des de provisão privada; fia primeiro em
Heidelberg e depois se
(4) a população excedente não funci-
tornou professor de Filosofia e Socio-
ona suficientemente como um exérci-
logia na Universidade de Frankfurt.
to industrial de reserva; os salários ex-
Suas obras abordam temas da
cedem o nível de subsistência e ame-
epistemologia, da política, da ética e
açam a lucratividade;
da comunicação. Introduzindo uma
(5) o sistema capitalista é ameaçado
nova visão a respeito das relações
pela organização política de todos
entre a linguagem e a sociedade, em
aqueles que explora ou oprime;
1981 publicou sua obra mais impor-
(6) as condições não econômicas ne- tante: Teoria da Ação Comunicativa. Fon-
cessárias para a continuada produção te: <http://educacao.uol.com.br/bio-
e troca capitalista – como educação, grafias/ult1789u391.jhtm>. Acesso em:
padrões familiares, motivações etc. – 2 jul. 2009.
não são espontaneamente geradas,
pelo simples fato de que o sistema Claus Offe
econômico é organizado como um
Nasceu em Berlim, é
sistema econômico capitalista.
diplomado em Sociologia
(PRZEWORSKI, 1995, p. 90).
e ensina atualmente Ciên-
cia Política e Sociologia na
Contrariamente ao que Marx havia
Universidade de Bielefeld (Alemanha).
observado na sociedade capitalista do século XIX, De seus inúmeros trabalhos foram pu-
em que todas as relações sociais encontravam-se blicados na Itália Lo Stato nelcapitalismo
encobertas pelo fetichismo da mercadoria, isto é, maturo; Ingovernabilitá e mutamento delle
reguladas como que naturalmente pelas relações democrazie e, em colaboração com Y.
de troca entre coisas no mercado, sob o capitalismo Lenhardt, Teorie delle stato e política sociale.
contemporâneo essas relações estariam cada vez Fonte: <http://tinyurl.com/mhoa8d>.
mais na dependência da regulação artificial do Acesso em: 3 jul. 2009.
Estado. Segundo alguns marxistas alemães, como
o filósofo Jürgen Habermas e o sociólogo Claus Offe, o Estado não
estaria apenas a corrigir e sanar as falhas de mercado, como os
liberais classificariam a intervenção do Estado no mercado durante

Módulo Básico
59
Estado, Governo e Mercado

o período do pós-guerra, mas a substituir o


Saiba mais Louis Althusser (1918–1990)
mercado como mecanismo regulador e
Nasceu na Argélia. Em 1939 in- reprodutor do sistema capitalista. Offe veria,
gressou na École Normale inclusive, uma certa inversão de princípios
Superieur (ENS) de Paris. Mas
no funcionamento do mercado e do Estado,
antes mesmo de iniciar os seus
com a “mercantilização da política e a
estudos foi mobilizado para lu-
politização da economia privada”, o que
tar na Segunda Grande Guerra e acabou sen-
explicaria a compatibilidade observada
do prisioneiro dos alemães, permanecendo
entre democracia e economia de mercado:
em um campo de concentração de 1940 a 1945.
Após o conflito, passou a estudar filosofia na
ENS. Althusser padeceu de sucessivas crises A lógica da democracia capitalista é de contami-
psíquicas, que o acompanharam por toda a sua nação mútua: infunde-se autoridade à economia
carreira. Em 1948 ingressou no Partido Comu- através do gerenciamento da demanda global, das
nista Francês, tendo já há algum tempo des- transferências e da regulamentação, de forma que
locado-se de suas posições católicas anterio- ela perde cada vez mais seu caráter espontâneo e
res para o marxismo. Fonte: <http:// autorregulador; e introduz-se uma contingência de
w w w. m a r x i s t s . o r g / p o r t u g u e s / a l t h u s s e r / mercado no Estado [através da competição políti-
index.htm>. Acesso em: 1 jul. 2009. ca entre partidos no mercado eleitoral], compro-
metendo, assim, qualquer noção de autoridade
Nicos Poulantzas (1936–1979) absoluta ou de bem absoluto. [...] Desta forma,
uma das vias pela qual se atinge a compatibilida-
Filósofo grego, teórico marxista e
de parece ser a infusão de parte da lógica de um
estudioso do Estado, nas suas úl-
domínio no outro – i.e., a noção de ‘competição’
timas obras, alargou a tese de que
na política e a ideia de ‘alocação autoritária de
o poder político, na Modernidade,
valores’ na economia. (OFFE, 1983, p. 33).
embora assentado no econômico,
assume importância cada vez maior. O ponto
nodal dessa análise é que o poder político se
A atenção que os pensadores
materializa e se concentra no Estado. Para ele, marxistas passariam a ter com o Estado a
o Estado é mais que o epicentro do poder; é o partir do século XX não iria se restringir
campo decisivo da luta de classes, onde a soci- ao seu papel econômico de fiador e
edade estrutura os seus contornos definitivos. promotor das condições de acumulação
Fonte: <http://www.leitequente.com/index.php? capitalista. Suas funções e importância
pgID=5184>. Acesso em: 3 jul. 2009. nos planos da dominação e legitimação
política e ideológica iriam ser postas em
destaque por alguns pensadores marxistas da França, como o filósofo
Louis Althusser e o cientista político de origem grega Nicos

60 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Poulantzas. Althusser iria procurar reler Marx e resgatar sua teoria


da deformação que lhe haveria imposto o stalinismo.
Opondo-se a todo reducionismo econômico, que via nas
estruturas políticas do Estado mero epifenômeno das relações
econômicas estabelecidas entre as classes sociais no processo de
produção da riqueza material de uma sociedade, Althusser iria pôr
em destaque não apenas o papel repressivo do Estado na
manutenção da ordem capitalista pela força, como sobretudo a sua
função na manutenção da coesão ideológica da sociedade, por meio
do que ele chamaria de “aparelhos ideológicos de Estado”.
Os aparelhos ideológicos poderiam, ou não, estar
diretamente ligados e subordinados ao Estado, mas estariam sempre
desempenhando uma função importante para a manutenção e
legitimação da ordem capitalista e do Estado burguês. Entre esses
aparelhos ideológicos Althusser classificaria as escolas, as igrejas,
a família, a imprensa, os partidos e sindicatos, enfim, toda uma
série de organizações que não tinham ligação direta nem com o
sistema produtivo, nem com a repressão do Estado, mas que são
fundamentais na transmissão e manutenção dos valores em uma
sociedade.
Poulantzas não apenas reconheceu, como Althusser, o
desempenho pelo Estado de outras funções além da repressiva, Ao longo do século XX, a
matriz do pensamento
como também concebeu a ação estatal como dotada de uma
marxista iria sendo
“independência relativa” em face dos interesses da classe enriquecida com outras
dominante. Para Poulantzas, o Estado não poderia ser mais contribuições e aportes
concebido de forma reducionista como o “comitê executivo da analíticos, de forma a
poder continuar
burguesia”, tal como um dia o definiu Marx, no Manifesto do Partido
explicando um mundo
Comunista, pois suas funções na sociedade contemporânea seriam cuja dinâmica não era
variadas e complexas e não meras correntes transmissoras e mais passível de ser
executoras da vontade da classe dominante, e os agentes do Estado compreendida apenas

seriam dotados dos seus próprios interesses. pela ótica do próprio

v
Marx. Algo semelhante
Para os liberais, duas importantes mudanças ocorridas nas iria se passar também no
sociedades capitalistas durante o século XX, que desafiavam a campo do pensamento
interpretação liberal dominante no século XIX, precisariam ser liberal.

explicadas: a compatibilidade entre democracia e economia de

Módulo Básico
61
Estado, Governo e Mercado

mercado, e a convivência entre esta e a crescente intervenção do


Estado no domínio das relações econômicas.
No campo da teoria econômica, o pensamento predominante
no período do pós-guerra seria o do inglês John Maynard Keynes
(1883–1946), para quem o capitalismo contemporâneo não poderia
funcionar no seu ponto máximo de eficiência regulado apenas pelas
leis do mercado, necessitando, para tanto, da influência e
intervenção deliberadas do governo. Embora o Estado não seja
capaz de impedir o movimento cíclico da economia capitalista –
em que períodos de expansão econômica são seguidos de períodos
recessivos, durante os quais a economia se retrai até encontrar um
ponto de equilíbrio entre oferta e demanda, ensejando a retomada do
ciclo expansivo –, a intervenção do governo no mercado poderia tornar
os ciclos descentes menos profundos, aliviando os seus efeitos deletérios
sobre o emprego e o bem-estar coletivo. Para Keynes, o Estado deveria
desempenhar o papel de agente anticíclico nos períodos recessivos,
induzindo os investimentos privados por meio da redução das taxas
básicas de juros e aumentando o gasto público sob a forma de
investimentos diretos em infraestrutura e obras públicas.
Ao lançar mão desses mecanismos, o Estado acabaria
estimulando os agentes privados a investir, criando empregos e
gerando demanda para as empresas. Segundo Keynes, a intervenção
política nos mercados não deveria se limitar à ação dos Estados
nacionais para estimular e regular suas economias domésticas, mas
deveria levar à criação de instituições internacionais voltadas para
a coordenação monetária e macroeconômica entre os diferentes
países. Essa proposta acabaria sendo adotada na conferência de
Bretton Woods, em 1944, que deu origem à criação de organismos
econômicos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional (FMI).
Embora predominante, a posição de Keynes nunca foi
consensual no meio liberal, encontrando a oposição de alguns
importantes economistas, como o austríaco Friedrich von Hayek
(1899-1992) e o americano Milton Friedman (1912–2006), que se
mantiveram fiéis aos princípios do liberalismo econômico clássico
e firmes na convicção de que ao Estado basta ter uma política

62 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

monetária austera para que os mecanismos de mercado façam os


ajustes necessários à economia.

Como economista formado no campo do pensamento


liberal, Keynes não deixaria de concordar que, no longo
prazo, o mercado acabaria ajustando a economia, mas
o problema a ser enfrentado, sobretudo em conjunturas
recessivas, era de curto prazo, pois – segundo a sua
frase que se tornaria célebre – “a longo prazo, todos
estaremos mortos”.

Essa percepção da urgência e oportunidade da ação do


Estado levaria inclusive Milton Friedman, seu maior opositor, a
afirmar que “num certo sentido [no curto prazo], todos [isto é, os
economistas liberais] somos keynesianos agora; mas em outro [no
longo prazo], ninguém mais é Keynesiano”. Outra contribuição
importante para a compreensão do capitalismo contemporâneo
seria dada por Joseph Schumpeter (1883–1950), que cunharia a
expressão “destruição criadora” para explicar a dinâmica
econômica do sistema. Segundo o economista austríaco:

O capitalismo é essencialmente um processo endógeno de


mudança. Na ausência de mudanças, a sociedade capita-
lista deixa de existir. Se o motor do capitalismo parar, todo
o sistema se desintegrará. A chave que liga o motor e o
mantém funcionando é a inovação [e] a expressão capita-
lismo estabilizado é uma contradição em termos.
(SCHUMPETER apud LEITE JÚNIOR, 2009, p. 29-30).

A análise de Schumpeter sobre a dinâmica do capitalismo


não se restringiu ao funcionamento do sistema na esfera econômica,
mas se estenderia à esfera política. Schumpeter prestou uma
importante contribuição para explicar a coexistência entre
democracia e economia de mercado nas modernas sociedades
capitalistas, tida como impossível pela teoria liberal clássica. Para

Módulo Básico
63
Estado, Governo e Mercado

tanto, ele deu novo significado ao termo democracia, tirando dele


todo conteúdo substantivo e circunscrevendo-o em termos
estritamente processuais. Ao invés de conceber a democracia como
um sistema, por meio do qual o povo delibera sobre questões de
interesse coletivo, Schumpeter descreveu-a simplesmente como um
sistema de competição entre elites que disputam o voto popular
com o objetivo de exercer as funções de governo, e de seleção dos
governantes entre as elites por via eleitoral. Por essa razão, a
concepção de democracia de Schumpeter é também conhecida
como teoria elitista da democracia.
A concepção schumpeteriana de democracia seria, aos olhos
de seu autor, mais realista e apresentaria a vantagem de reconhecer
a importância vital da liderança política, negligenciada pela
concepção tradicional. Essa nova definição não negligenciaria, em
absoluto, os genuínos interesses dos grupos sociais; ao contrário,
os colocaria na posição que eles realmente teriam, isto é, de desejos
que, ainda que fortes e definidos, poderiam permanecer latentes
durante décadas, até que um líder viesse a dar-lhes vida,
transformando-os em fatores políticos.
Entendida como competição pela liderança, a democracia
requereria, no entanto, a livre competição entre elites pelo voto livre
dos eleitores. Embora estritamente processual, a concepção de
Schumpeter não classificaria como jogo democrático a competição
fraudulenta ou cerceada por um outro poder. A democracia suporia
ainda não só a capacidade de o povo eleger, por maioria, os seus
governantes, como também de destituí-los, ainda que pela simples
negativa em reelegê-los e pela formação de nova maioria.

Portanto, o império da lei e a preservação da liberdade


individual, assim como a liberdade de manifestação e
de imprensa e a possibilidade de a minoria vir a se
tornar maioria e ocupar o governo – considerados
elementos fundamentais de uma ordem política
legítima pelo pensamento liberal clássico –, seriam
igualmente fundamentais para Schumpeter considerar
um sistema político democrático.

64 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Outra contribuição relevante à teoria contemporânea da


democracia veio do cientista político americano Robert Dahl, que,
segundo Sartori (1994, p. 211), implicou em “reservar a palavra
democracia para o ‘sistema ideal’ e usar ‘poliarquia’ como sua
aproximação no mundo real”. Embora as concepções de Dahl e
Schumpeter tenham muitas coisas em comum, entre as quais uma
série de procedimentos, a definição de Dahl iria pôr o acento no
caráter pluralista do exercício do poder na sociedade. Portanto, o
termo por ele cunhado de poliarquia estava relacionado à
distribuição do poder nas mãos de várias pessoas, e não do poder
concentrado nas mãos de um só, como na monarquia, ou igualmente
distribuído pelo povo, como na definição clássica de democracia.
Nas modernas sociedades capitalistas consideradas
democráticas, o que de fato se observaria, segundo Dahl, seria que,
apesar da extrema desigualdade na distribuição do exercício e do
controle do poder, nenhuma liderança exerceria um grau
relativamente alto de controle sobre os demais líderes, donde a
definição desse sistema como uma poliarquia (poli = vários, arquia
= poder).
Como Schumpeter, Dahl também enumerou uma série de
condições e características para que se pudesse considerar uma
forma de governo poliárquica, entre as quais caberia destacar: a
de que a maioria dos adultos em uma sociedade tenha direito a
voto e o exerça livre de coerção; que os votos de cada membro da
comunidade eleitora possuam o mesmo peso, e não pesos diferentes
conforme a renda e educação do eleitor, como acontecia nas
sociedades liberais do século XIX; que as autoridades não eleitas
do Estado estejam subordinadas aos líderes eleitos, e que estes,
por sua vez, fiquem subordinados aos não líderes, isto é, à votação
popular; que existam fontes alternativas de informação disponíveis
para a população e livres de constrangimento; e que seja garantido
o direito de oposição àqueles que aceitarem e respeitarem todas
essas regras.

Módulo Básico
65
Estado, Governo e Mercado

Atividades de aprendizagem
Chegado a esse ponto do estudo, procure responder às duas
questões que orientaram as reflexões de liberais e
marxistas. Caso tenha dificuldades, faça uma releitura
cuidadosa dos conceitos ainda não entendidos ou, se
necessário, entre em contato com seu tutor.

3. Qual é a natureza do domínio exercido pelo Estado sobre a socie-


dade e do uso da coerção física sobre os indivíduos?
4. Como são as relações entre maioria e minorias na sociedade e
como essas se relacionam com o Estado?

Complementando......
Complemente seus estudos através das leituras propostas a seguir:

Democracia na América – de Tocqueville (apud WEFFORT, 1996, p.172-


3) aqui você vai aprender mais sobre as restrições dos liberais à
democracia.

A Riqueza das Nações – de Adam Smith. São Paulo: Martins Fontes,


2003.

A democracia partidária competitiva e o welfare state keynesiano –


fatores de estabilidade e desorganização. In: Dados, revista de ciências
sociais, v. 26, n. 1, Rio de Janeiro: Campus, 1983 – de Claus Offe.
Com esta obra você vai aprofundar seus conhecimentos sobre a
compatibilidade entre capitalismo e democracia e a crise da forma
assumida pelo Estado nas economias capitalistas desenvolvidas no
último quarto do século XX.

66 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

Resumindo
Nesta Unidade você viu que, ao longo do século XX, a
teoria da democracia iria abandonar o conteúdo substanti-
vo clássico de “governo do povo, para o povo e pelo povo”
para ganhar contornos mais estritamente processuais e com-
patíveis com os princípios liberais.
Além de Schumpeter e Dahl, muitos outros economis-
tas, filósofos, sociólogos, cientistas políticos e intelectuais,
em geral, cujo pensamento tem raízes no liberalismo, trou-
xeram suas contribuições para atualizar a matriz liberal e
explicar as mudanças do mundo contemporâneo. Embora as
divergências entre as posições dos pensadores de uma mes-
ma matriz sejam inevitáveis, pode-se afirmar que, no cam-
po liberal, a anterior crença em um mercado autorregulado
deu lugar ao reconhecimento da necessidade de interven-
ção do Estado na economia, embora a extensão dessa inter-
venção viesse a se tornar no grande ponto da discórdia. De
forma análoga, a ideia anteriormente consensual de que
governo da maioria e economia de mercado seriam incom-
patíveis iria se desfazer, chegando inclusive ao seu oposto.
Se a democracia dos antigos era, de fato, incompatível com
o liberalismo, a democracia dos modernos passaria a ser vis-
ta como indissociável do liberalismo, tanto quanto os direi-
tos civis e políticos que já compunham a sua matriz. Assim, a
democracia do século XX passaria a ser adjetivada de liberal
e defendida ferrenhamente pelos liberais em contraposição
não mais à democracia dos antigos, mas a uma outra con-

Módulo Básico
67
Estado, Governo e Mercado

cepção de democracia que iria surgir no campo de pensa-


mento adversário: a que se opunha à democracia formal,
dos países capitalistas, a democracia popular, ou substanti-
va, dos países socialistas.
Mas antes de começarmos a analisar como as muta-
ções experimentadas pelas matrizes de pensamento liberal
e marxistas influenciaram e foram influenciadas pelas for-
mas historicamente concretas de articulação entre Estado,
governo e mercado ao longo do século XX, que serão objeto
da segunda Unidade desta disciplina, convém fazermos um
balanço dos conteúdos trabalhados nesta Unidade.

68 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Perspectiva Teórica para a Análise das Relações entre Estado, Governo e Mercado

UNIDADE 2
AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO,
GOVERNO E MERCADO
DURANTE O SÉCULO XX

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Identificar as quatro diferentes relações entre Estado, governo e
mercado nas sociedades ocidentais ao logo do século XX;
 Relacionar as mudanças produzidas nas formas de Estado ao longo
do tempo com as matrizes teóricas estudadas; e
 Compreender os desafios colocados às relações entre Estado e
sociedade no início do século XXI.

Módulo Básico
Estado, Governo e Mercado

70 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

INTRODUÇÃO

As relações entre Estado e mercado conheceriam situações


extremas ao longo do século XX. Do apogeu do liberalismo na
Europa e nas Américas no início do século, em que o Estado pouco
intervinha nas relações entre os seus cidadãos, a Europa iria
conhecer o seu oposto nos anos que imediatamente se seguiram à
Primeira Guerra Mundial. Sobre o território e os povos que, até
1917, compunham o Império Russo, seria instituída a União das
Repúblicas Socialistas e Soviéticas, onde o Estado passaria a
assumir o controle de todo o processo produtivo e o mercado iria
praticamente desaparecer como instituição ordenadora das relações
sociais. Nas Américas, a partir de 1930, e na Europa Ocidental,
sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, iria surgir uma
combinação híbrida entre Estado e mercado como agentes e
princípios reguladores da vida econômica e social, na qual o Estado
teria certamente papel preponderante sobre o mercado, mas sem
pretender destruí-lo e garantindo com a sua intervenção as condições
para a acumulação privada do capital. A partir dos anos de 1980,
começaria no Ocidente uma onda de desestatização das relações
econômicas e sociais e de revalorização do mercado como instância
regulatória, que na década seguinte iria crescer e espalhar-se por
diversas partes do mundo, atingindo, inclusive, a União Soviética.
Ao longo do século passado, o movimento em espiral entre
Estado e mercado ocorrido no interior de cada sociedade iria
produzir tantas combinações distintas entre essas duas instituições
de regulação das relações sociais quanto era o número de nações
então existentes. Mas independentemente da trajetória singular de
cada país, é possível identificar claramente quatro padrões de

Módulo Básico
71
Estado, Governo e Mercado

relação entre Estado e mercado que foram sucessivamente


dominantes em todo o mundo: o Estado liberal até a Primeira Guerra
Mundial; o Estado de bem-estar social e o Estado socialista, que
são contemporâneos um do outro; e o Estado que iria emergir do
declínio de ambos, por muitos chamado de Estado neoliberal.
As mudanças de um tipo de Estado para outro se explicam
por uma série de fatores, cujo peso específico é difícil de precisar.
De um lado, houve profundas mutações na estrutura produtiva das
sociedades industriais na virada do século XIX para o XX – já
referidas na Unidade anterior – que, segundo Schumpeter,
acompanham inexoravelmente o desenvolvimento do capitalismo.
De outro, houve o acirramento do embate entre as diferentes forças
políticas no interior das sociedades e a confrontação entre as nações
industrializadas movidas por seus interesses econômicos – umas à
procura da ampliação de mercados consumidores para a colocação
dos seus produtos, e outras na defesa dos seus mercados cativos –
disputa essa que levou o mundo a duas grandes guerras na primeira
metade do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, emergiria
uma nova ordem global, caracterizada por uma rígida e belicosa
separação entre um bloco ocidental e capitalista e um bloco oriental
e socialista. Por fim, as contradições internas tanto do mundo
capitalista, quanto do socialista, associadas a novas mudanças
tecnológicas com impactos diretos na estrutura produtiva das
sociedades, ocorridas no final do século XX, iriam levar à dissolução
do bloco socialista – e consequentemente ao fim da Guerra Fria – e
a mudanças profundas nas relações entre Estado e mercado no
interior dos países industrializados.

Examinemos, então, mais detidamente cada uma das quatro


formas de Estado conhecidas pelo mundo durante o século
XX, atentando para as características distintivas e específicas
de cada uma e para os diferentes fatores que levaram à sua
emergência e declínio.

72 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

O ESTADO LIBERAL

O Estado liberal iria ganhar suas


Saiba mais Jeremy Bentham (1748–1832)
formas definidas ao longo do século XIX e
acabaria por se impor na Europa Ocidental Nasceu em Londres, Inglaterra. É
após um longo e tortuoso período de lutas: conhecido como o criador da filo-

primeiro, contra o poder ilimitado dos reis, sofia política conhecida como
Utilitarismo. Ficou famoso em
que reivindicavam o exercício do poder
toda a Europa e na América após
absoluto como um direito divino; depois –
publicar, em 1789, uma introdução aos princí-
quando as monarquias absolutas já haviam
pios da moral e da legislação. Seu pensa-
dado lugar a monarquias constitucionais,
mento foi completado pela obra póstuma,
em que o poder exercido pela realeza passou
Teoria dos deveres ou A ciência da moral, de 1834,
a ser limitado por uma constituição e na qual concluiu que a sociedade será ideal
compartilhado com o parlamento – contra quando permitir a realização da felicidade
o que os liberais julgavam ser uma excessiva do indivíduo, sem que esta comprometa o
intervenção do Estado nas relações entre os bem-estar coletivo. Fonte: <http://
indivíduos na sociedade. As críticas a essa educacao.uol.com.br/biografias/jeremy-
intervenção “indevida” do Estado não se bentham.jhtm>. Acesso em: 2 jul. 2009.
resumiam às medidas protecionistas que
impediam o livre comércio, mas se estendiam à proteção social garantida
aos pobres.
Na Inglaterra, a Lei dos Pobres (Poor Law), que desde o
século XVI proporcionou auxílio financeiro às pessoas indigentes e
incapazes de garantir o seu sustento com o próprio trabalho, passou
a ser severamente criticada pelos intelectuais liberais, como o
filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748–1832); o demógrafo

Módulo Básico
73
Estado, Governo e Mercado

Thomas Malthus; o economista David


Saiba mais Thomas Malthus (1766–1834)
Ricardo; e o pensador e precursor do
É conhecido pela formulação a darwinismo social, Herbert Spencer. Para
respeito do futuro da humani- eles, a L ei dos Pobres era mais um
dade. Para Malthus, a popula-
agravante do problema da pobreza do que
ção cresce em progressão geo-
um alívio, ao perpetuar uma situação de
métrica e a produção de ali-
dependência dos indivíduos em relação ao
mentos cresce em progressão aritmética. Des-
Estado que só o mercado poderia solucionar.
sa forma, a tendência é a fome, criando bar-
Para Malthus, o caráter mais pernicioso da
reiras ao crescimento populacional. Fonte:
<http://tinyurl.com/lbetsn>. Acesso em: 2 jul.
Lei dos Pobres seria o de estimular o
2009. aumento da população em um ritmo
superior à capacidade de se produzir
David Ricardo (1772–1823) alimentos. Para Spencer, ela contribuía para
produzir uma população de baixa
Nasceu em Londres, e após ter
lido A Riqueza das nações, de
qualidade, ao distorcer a lei natural segundo
Adam Smith, passou a interes- a qual apenas os indivíduos mais aptos
sar-se por questões de econo- sobrevivem. Já para Ricardo, o auxílio
mia. Escreveu um tratado teóri- financeiro oferecido pelo Estado aos mais
co geral sobre a economia, Os Princípios de Eco- pobres acabava por distorcer o valor dos
nomia Política e Tributação, publicado em 1817, salários no mercado, mantendo-os abaixo do
constituindo-se assim um marco teórico de- nível de subsistência. Todos concordavam,
cisivo para o desenvolvimento da economia no entanto – independentemente dos
política clássica. Fonte: <http://tinyurl.com/ malefícios identificados na quantidade e
lf63jj>. Acesso em: 1 jul. 2009. qualidade da população e no valor dos
salários –, que a L ei dos Pobres era
Herbert Spencer (1820–1903)
contrária ao princípio da independência (ou
Natural da Inglaterra, onde a par- autodependência) dos indivíduos em uma
tir de 1860 iniciou a publicação do sociedade livre.
que chamou de “sistema de filo-
Sob a influência das ideias liberais,
sofia sintética”, tentativa de
a pressão dos seus intelectuais e o apoio
estruturação, num sistema coeren-
da burguesia que se fortalecia e enriquecia
te, de toda a produção científica e filosófica
com o desenvolvimento da indústria, foi
de seu tempo, centrada na ideia de evolução.
formado o Estado liberal, também
Fonte: <http://educacao.uol.com.br/biografi-
as/herbert-spencer.jhtm>. Acesso em: 1 jul.
conhecido como Estado mínimo.
2009.

74 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

Por liberal, designa-se uma ordem política sob a qual


todos os indivíduos são livres e independentes, não
submetidos ao poder de nenhuma outra pessoa, mas
todos igualmente submetidos à lei; e por Estado
mínimo designa-se a organização política que
interviria apenas naquilo que fosse estritamente
necessário para garantir a liberdade e igualdade dos
cidadãos, ficando todas as demais dimensões da vida
social a cabo da regulação do mercado. Essas
definições de Estado liberal e Estado mínimo iriam ser
recorrentemente invocadas no debate político ao longo
do século XX.

Neste Estado, cabia ao poder público a manutenção da lei e


da ordem para que os indivíduos pudessem se dedicar aos seus
interesses privados e suas atividades no mercado. Por meio das
forças armadas nacionais, o Estado garantiria a defesa do país das
agressões externas e a integridade do seu povo e de seu território, a
segurança dos seus portos e das rotas de comércio pelos mares.
Um corpo de diplomatas profissionais asseguraria o contato e as
boas relações com as demais potências estrangeiras, defendendo
os interesses do país e dos seus cidadãos no mundo. Internamente,
por meio dos tribunais, o Estado distribuiria a justiça, dirimindo os
conflitos entre as partes, julgando os crimes e impondo penas. Por
meio de seu sistema prisional, encarceraria e puniria os condenados.
Ao Estado cabia ainda assegurar o direito e usufruto da propriedade,
a proteção da vida, o direito de ir e vir dos seus cidadãos e a ordem
pública. Para isso, teria de zelar pela administração e cumprimento
das leis, manutenção dos registros de bens e direitos, conservação
e segurança das estradas, policiamento das cidades e espaços
públicos e repressão física, quando necessário.

Módulo Básico
75
Estado, Governo e Mercado

Para manter tudo isso, o Estado necessitava


Saiba mais Karl Polanyi (1886–1964) recolher impostos, administrar o patrimônio e
Seu pensamento-chave ex- as finanças públicas, além de emitir a moeda
plica que, ao invés das rela- que seria utilizada como meio de troca pelos
ções sociais definirem as re- agentes privados no mercado.
lações econômicas, como
ocorrido na maioria das cul-
turas que se conhece, no capitalismo Como se pode perceber, o Estado mínimo
houve uma inversão: são as relações dos liberais não era tão mínimo assim, embora
econômicas que definem as relações fosse bem menor do que as demais formas de
sociais. Historicamente, Polanyi argu- Estado que iriam lhe suceder.
menta que a nova classe dominante,
A ideia subjacente ao funcionamento do
burguesa e mercantil, atuou conjunta-
Estado liberal – e coerente com os princípios do
mente com o Estado a fim de consolidar
liberalismo – era a de que o mercado seria uma
as novas forças, através de uma legisla-
ção adequada e do uso do poder do Es-
instituição autorregulável, não necessitando da
tado para garantir a segurança do status intervenção do Estado para funcionar bem, o que
quo desta nova classe. Fonte: <http:// de certa forma garantia autonomia ao campo
w w w. g e o c i t i e s . c o m / C o l l e g e Pa r k / econômico em relação ao campo político. Ao
G r o u n d s /3 3 7 5/ E c o n o m i s t a s / Estado, caberia apenas aquelas tarefas descritas
polanyi.htm>. Acesso em: 1 jul. 2009. no parágrafo anterior, que não poderiam ser
confiadas ao mercado e que seriam atribuições
exclusivas da autoridade política. Todo o restante deveria ser
confiado ao mercado. Foi sob essa forma de conceber a organização
da vida coletiva que a humanidade experimentou o processo mais
extremado de mercantilização* das relações sociais. O pensador
*Mercantilização – de
mercantilizar, fazer húngaro Karl Polanyi iria observar que, em toda a história
transações mercantis, econômica, seria apenas sob o Estado liberal que os três elementos
comerciais; exercer o fundamentais da produção – trabalho, terra e dinheiro – iriam se
comércio; mercar, co-
transformar em mercadorias. Para Polanyi, mercadorias são “objetos
merciar, negociar. Fon-
te: Houaiss (2007).
produzidos para venda no mercado”, de forma que trabalho, terra e
dinheiro não são, de fato, mercadorias, mas mercadorias fictícias.
Assim sendo – escreveria o autor –, se o mercado dirigisse essas
mercadorias fictícias, a sociedade desmoronaria (POLANYI, 1980).
Na Inglaterra do século XIX, por exemplo, o trabalho infantil
nas minas de carvão só iria ser proibido em 1842, e a jornada de
trabalho feminina “reduzida” para 12 horas diárias apenas dois

76 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

anos mais tarde. Somente em 1874 o direito de greve iria ser *Workhouses – são Casas
de Trabalho estabelecidas
reconhecido, embora o Estado liberal não obrigasse ninguém a
na Inglaterra no século XVII.
trabalhar. No entanto, a mendicância era proibida, assim como o Segundo a Lei dos Pobres,
auxílio direto aos pobres sob qualquer forma – dinheiro, comida, adaptada, em 1834, só era
roupas ou outros bens –, a não ser por intermédio de certas admitida uma forma de

instituições, as workhouses*, onde os pobres incapazes de se ajuda aos pobres: o seu


alojamento em casas de
sustentar podiam morar, comer e trabalhar, mas em condições trabalho com um regime
suficientemente duras que não os levassem a se acomodar àquela prisional; os operários
vida e os estimulassem a procurar trabalho no mercado, tornando-os realizavam aí trabalhos

indivíduos independentes. Esse tratamento reservado aos pobres improdutivos, monóto-


nos e extenuantes. Fonte:
não guardava nenhuma relação com a responsabilidade que o
< h t t p : / /
Estado e as “classes superiores” tinham em relação às “classes w w w. m a r x i s t s . o r g /
inferiores” na sociedade tradicional europeia pré-capitalista, nem portugues/dicionario/
derivava de uma ideia de direito natural ou abstrato dos indivíduos v e r b e t e s / w /
workhouses.htm>. Aces-
ou cidadãos, mas repousava em um cálculo estritamente utilitário.
so em: 2 jul. 2009.
Em 1875, por meio do Factory Act*, a contratação coletiva de
trabalhadores nas fábricas seria finalmente permitida pelo Estado,
algo que até então era considerado como incompatível com o bom
*Factory Act – em 1833 a
funcionamento do mercado, pois sob a ótica estritamente liberal, o
Lei das Fábricas implicou
Estado só deveria reconhecer indivíduos, e não grupos ou as medidas de proteção
associações desses, que deturpariam a igualdade fundamental aos trabalhadores. Em-
existente entre os homens no mercado. presas começaram a con-
tratar médicos para o
Mas as mudanças introduzidas pelo Estado liberal não se
controle de saúde, no lo-
restringiram aos direitos civis (como o de ir e vir) e econômicos cal de trabalho. As deplo-
(liberdade de profissão e de trabalho no mercado) dos seus cidadãos, ráveis condições de tra-
e teriam também um importante componente político. Sob o Estado balho e vida predominan-
tes na cidade eram res-
liberal, a participação dos cidadãos nas decisões públicas seria
ponsáveis pelo fato de
garantida por meio de seus representantes eleitos (democracia haver taxas de doença e
representativa), e não diretamente, como na Grécia Antiga, e o mortalidade mais eleva-
governo passaria a ser responsável e ter de prestar contas de suas das do que nas regiões

ações perante a assembleia de representantes. Essas inovações não circunvizinhas. Fonte:


<www.sindipetro.org.br/
surgiriam naturalmente nem de uma só vez, mas se baseariam na
saude/saude-trabalho/
reflexão, observação e teorização da atividade política. Em saudetrabalho02.htm>.
Considerações sobre o governo representativo, John Stuart Mill Acesso em: 02 jul. 2009.

discorreria sobre questões diversas, como o significado e os

Módulo Básico
77
Estado, Governo e Mercado

mecanismos da representação, a forma de votar, a duração dos


mandatos e a extensão do sufrágio, entre várias outras.
Em relação à extensão do sufrágio, ou seja, às condições
para habilitação dos cidadãos a votar e serem votados como
representantes, o Estado liberal seria, na maior parte do tempo,
bastante restritivo. De acordo com Stuart Mill, era absolutamente
necessário para o bom governo que o sufrágio fosse “o mais
largamente distribuído”. Contudo, sendo a maioria dos eleitores
constituída de "trabalhadores manuais [...] o duplo perigo de um
baixo nível de inteligência política e de uma legislação de classe
continuaria a existir em um grau considerável" (MILL, 1980, p. 92).
Para evitar esse risco que aterrorizava a todos os liberais, a
legislação dos Estados liberais manteria restrições ao acesso das
classes populares à participação eleitoral até o final do século XIX,
por meio de mecanismos como o voto censitário – já referido na
Unidade anterior e que estabelecia patamares mínimos de renda
para que os cidadãos pudessem ter acesso aos processos eleitorais,
os quais eram cada vez mais elevados conforme a importância dos
cargos eletivos – e o voto plural – que conferia peso maior ao voto
dos eleitores mais educados.

Foi somente na virada do século XIX para o XX que os


Estados liberais iriam se transformar em democracias
representativas, com a adoção do sufrágio universal
masculino. A partir de então, todo cidadão do sexo
masculino passaria a poder votar e ser votado
independentemente da sua renda, e o seu voto teria o
mesmo peso que os votos dos demais cidadãos.

Mas se o Estado liberal sobreviveu ao advento da democracia


e, contra todas as expectativas, mostrou haver compatibilidade entre
sufrágio universal e economia de mercado, ele não resistiria à crise
financeira, econômica e social que eclodiria com a quebra da Bolsa
de Nova Iorque, em 1929. A complexidade da economia e da

78 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

sociedade capitalista havia chegado a tal ponto que mesmo os mais


convictos liberais não eram mais capazes de acreditar que o
mercado fosse autorregulável, dispensando a intervenção do Estado.
A partir daquele momento, uma onda antiliberal começaria a se
espalhar pelo mundo, ainda que de forma e com intensidade
diferentes conforme a região do planeta, sendo menor nos países
onde o liberalismo havia criado raízes mais fortes na mentalidade
popular e das elites econômicas e políticas, e maior onde a sua
penetração havia sido mais limitada.

E o Brasil – Como você acredita que o País se insere nesse


quadro?

Embora o Brasil não tenha conhecido, no mesmo período,


um Estado tipicamente liberal como a Europa Ocidental e os Estados
Unidos, muitas das características daquele Estado se fizeram
presentes no Estado brasileiro. O que nos impede de classificarmos
como liberal o Estado vigente durante o Império e a Primeira
República são, basicamente, dois fatores: a escravidão, que é a
negação da liberdade e igualdade civis que caracterizam o
liberalismo, e que marcaria todo o período monárquico; e a
ausência de participação efetiva dos cidadãos no processo político
e de controle do governo pelo parlamento sob a Primeira República,
que caracterizam a liberdade política sob o Estado Liberal. Embora
o advento da República no Brasil coincida com a democratização
dos Estados liberais, o novo regime brasileiro não foi mais que um
simulacro dos regimes liberais-democráticos europeus, devendo ser
mais rigorosamente classificado como uma república oligárquica
do que como uma democracia liberal. Apesar da adoção do sufrágio
universal masculino nos processos eleitorais para a escolha dos
governantes e representantes em todas as instâncias de governo, os
resultados eleitorais eram manipulados pela oligarquia dominante
e o império da lei não era mais que aparente.

Módulo Básico
79
Estado, Governo e Mercado

O Estado brasileiro durante a Primeira República era


apenas formalmente um Estado liberal-democrático,
sendo de fato um Estado oligárquico, em que os
resultados do sufrágio universal eram manipulados
pela elite dominante que, dessa forma, se perpetuava
no poder.

Contudo, se no plano político a Primeira República não foi


nem mesmo liberal e muito menos democrática, no que se refere às
relações entre Estado e mercado no plano da regulação das relações
econômicas e sociais o Estado brasileiro foi equivalente aos estados
liberais. Percebe-se assim que, apesar das particularidades do
processo de formação e de transformação do Estado brasileiro, o
que ocorreu aqui não estava descolado do que se passava no
restante do mundo ocidental. Afinal, o Brasil sempre manteve
estreitas relações econômicas, políticas e culturais com a Europa e
os Estados Unidos. É justamente por esta razão que devemos
inicialmente examinar os processos ocorridos nas sociedades
capitalistas centrais para podermos melhor compreender as
semelhanças e diferenças do que iria se passar no Brasil. Sem a
análise histórica e comparativa, não seria possível ao gestor público
brasileiro compreender adequadamente a realidade contemporânea
e tomar decisões consequentes e orientadas para o futuro nos planos
local, regional ou nacional.

80 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

O ESTADO SOCIALISTA

Antes que ficasse claro que o Estado liberal encontrava-se


em inapelável declínio no Ocidente, surgiria na Rússia o primeiro
Estado socialista da história. Diferentemente do Estado liberal, que
emergiria de um longo processo histórico, cheio de idas e vindas, durante
o qual se produziram profundas modificações na morfologia social e
econômica dos países onde ele iria finalmente se implantar, o primeiro
*Rússia czarista – o
Estado socialista surgiria de uma revolução inspirada na doutrina
czarismo, até o início do
marxista-leninista, que pretendia subverter completamente as bases século XX, foi uma auto-
da organização social, política e econômica da Rússia czarista*, cracia absoluta. Partidos
e que, em poucos anos, conseguiu, de fato, fazê-lo. políticos, uma Constitui-
ção e um parlamento
As características do Estado socialista são facilmente
(Duma) só foram legaliza-
identificáveis, pois contrastam fortemente com as do Estado liberal. dos, a contragosto, du-
Se sob este o pêndulo social atingiria o seu ponto máximo à direita rante a chamada Revolu-
– com o mercado desempenhando historicamente o maior papel ção de 1905. Na prática,
o regime era autoritário,
na regulação das relações sociais e o Estado, o menor –, sob o
pois o czar podia dissol-
Estado socialista o pêndulo chegaria ao seu ponto máximo à ver a Duma a qualquer
esquerda com o Estado ocupando o maior papel já desempenhado momento, havia censura
na regulação da vida social e o mercado, o menor. à imprensa etc. Fonte:
< h t t p : / /
A primeira característica fundamental do Estado socialista
www2.uol.com.br/
é o controle estatal de todo o processo produtivo. Independentemente historiaviva/artigos/
da forma de propriedade – estatal, no caso de fábricas, bancos e russia_condenada_ao_
grandes estabelecimentos comerciais; ou coletiva, no caso de autoritarismo_.html>.

algumas terras (como os chamados kolkhozes, na União Soviética) Acesso em: 2 jul. 2009.

–, o fato é que todas as atividades econômicas – produção e


distribuição de bens e prestação de serviços – encontravam-se sob
rígido controle do Estado. Nessas circunstâncias, em que o espaço
para a competição e a iniciativa privada iria praticamente

Módulo Básico
81
Estado, Governo e Mercado

desaparecer, o mercado iria igualmente sucumbir sob a regulação


estatal. Consequentemente, o direito à propriedade privada e à
liberdade econômica, característicos do liberalismo, seriam valores
frontalmente negados pelo Estado socialista.
Diferentemente do Estado liberal, que se pretendia
equidistante das classes sociais e neutro em relação aos seus
interesses específicos, o Estado socialista reivindicaria a
representação dos interesses da maioria trabalhadora – dos campos
e das cidades –, antes oprimida pelos capitalistas. Essa
representação se daria por meio do Partido Comunista, único
legítimo representante dos seus interesses. Sob a ordem do Estado
socialista, toda discordância em relação à sua atuação e à direção
do partido comunista iria ser considerada desvio e traição e, como
tal, seria punida. Essas características do Estado socialista logo
iriam ser percebidas por alguns analistas e estudiosos da política,
como Hannah Arendt e Raymond Aron, que formulariam o conceito
de totalitarismo para definir o regime político vigente, inicialmente,
na União Soviética, e depois adotado por outros países socialistas
em todo o mundo.

A essência do totalitarismo estaria na intenção de


controlar todas as instâncias da vida social – a ponto
de diluir as fronteiras entre o Estado e a sociedade
civil – e na reivindicação do monopólio da verdade.

Essa pretensão monopolista é revelada no próprio nome dado


ao jornal oficial do Partido Comunista da União Soviética, “Pravda”,
que em russo significa nada menos e nada mais que “verdade”.
O conceito de totalitarismo não se restringe ao Estado socialista, mas
recobre também as formas de estado vigentes na Alemanha nazista e
na Itália fascista durante o período de entreguerras.
Com todos os recursos econômicos e sociais reunidos sob o
controle do Estado e direção do Partido Comunista, a União
Soviética pôs em prática a primeira e provavelmente mais bem-

82 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

sucedida experiência de planejamento central de Estado: os planos


quinquenais de investimento e de desenvolvimento industrial. Em
praticamente duas décadas, a União Soviética deixou de ser um
país basicamente agrário e dotado apenas de uma indústria
incipiente para se tornar uma potência industrial, capaz de enfrentar
e se tornar a força decisiva que iria derrotar militarmente o exército
do mais rico e mais bem armado país europeu: a Alemanha nazista.
O avanço militar da União Soviética sobre o território de
países até então ocupados pelos exércitos nazistas, ao final da
Segunda Guerra Mundial, levou consigo sua forma de Estado e de
governo, que foi imediatamente implantada nos territórios libertados
do controle alemão. Assim, se tornaram estados socialistas a Polônia,
a Hungria, a Tchecoslováquia, a Romênia, a Bulgária e a parte
oriental da Alemanha. Outros países iriam ainda se tornar socialistas
– não por ocupação, como esses que iriam integrar o Pacto de
Varsóvia, sob a coordenação da União Soviética –, mas por meio
de suas próprias forças de resistência à ocupação nazista – como a
Iugoslávia – ou de processos revolucionários internos, como a China
sob a liderança de Mao-Tsé-tung; a Coreia do Norte, Vietnã, Laos e
Camboja, no sudoeste da Ásia, nos anos seguintes; Cuba, no Caribe;
e Angola e Moçambique, na África. Note-se que, excetuando alguns
países que se tornaram socialistas por ocupação militar – como a
Alemanha, Tchecoslováquia e Hungria –, nenhum dos que
chegariam ao socialismo por seus próprios meios conhecia
anteriormente uma ordem liberal-democrática.
Orientados mais pelo princípio da igualdade social do que
pelo da liberdade individual, os estados socialistas conseguiram
efetivamente produzir sociedades bem mais igualitárias, do ponto
de vista do acesso dos seus cidadãos a bens e serviços, do que os
estados nas sociedades capitalistas. Em poucos anos após a
Revolução Cubana, o nível educacional e de saúde da população
de Cuba ultrapassaria em muito o de qualquer outra sociedade
latino-americana. A União Soviética faria notáveis progressos
tecnológicos, rivalizando com os Estados Unidos na corrida espacial
e conseguindo colocar o primeiro homem no espaço. E a China
chegaria ao seleto clube das potências nucleares. No entanto, em

Módulo Básico
83
Estado, Governo e Mercado

nenhum país socialista – nem mesmo nos mais ricos – a escassez


de produtos básicos de alimentação e de higiene pessoal seria
superada.

Se nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial


o padrão de consumo, saúde e educação dos
habitantes da Europa Ocidental e capitalista e da
Europa Oriental e socialista diferia pouco, com o
passar dos anos a diferença aumentaria muito em
favor dos ocidentais. Enquanto o bem-estar material
destes havia crescido incessantemente durante trinta
anos desde o fim da Segunda Guerra, o dos seus
vizinhos orientais encontrava-se estagnado já há
bastante tempo.

No final da década de 1970, o padrão de vida dos europeus


ocidentais também parou de se elevar, mas o patamar em que o
nível de consumo dos ocidentais se estagnou foi bem superior ao
dos orientais. Para retomar o processo de expansão econômica e
de crescimento da renda, alguns governos ocidentais começaram,
então, a realizar reformas orientadas para o mercado, pois, no seu
entender, era o excesso de intervenção do Estado na economia que
havia inibido a atividade econômica.

O que dizer então do que se passava do lado oriental, onde o


Estado havia ocupado todo o espaço da iniciativa privada e o
crescimento econômico estagnado bem antes?

Nesse momento de impasse foi quando surgiu, pela primeira


vez na história da União Soviética, uma iniciativa governamental
de abertura do sistema. O último presidente da União Soviética,

84 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

Mikhail Gorbatchov, propôs ao seu país


uma dupla e arrojada reforma: a glasnost, Saiba mais Mikhail Gorbatchov (1931)

que significa “transparência” e que Nasceu na Rússia. Fez carreira no


pretendia retirar os rígidos controles Partido Comunista da União Sovié-
políticos sobre os seus cidadãos, dando- tica (PCUS) e foi secretário de seu
lhes mais oportunidades de expressão; e Comitê Central. Foi nomeado secre-

a perestroika, que significa a abertura da tário-geral e fortaleceu seu poder


ao renovar a cúpula dirigente do partido. Em
economia para a introdução de alguns
1986, anunciou a perestroika (em russo,
mecanismos de mercado. A glasnost
reestruturação) na economia e a glasnost (aber-
avançou desde o início das reformas, mas
tura e transparência) na política. Foi eleito pre-
a perestroika veio a ser um rotundo fracasso.
sidente da República em 1989 e terminou com
Com a descompressão política da a Guerra Fria. Renuncia à Presidência. Desde
glasnost, a oposição e contestação ao então começou a fazer conferências e escrever
regime cresceram enormemente, tanto no para vários jornais do mundo. Fonte: <http://
interior da União Soviética, quanto nos w w w. a l g o s o b r e . c o m . b r / b i o g ra f i a s / m i k h a i l -
países do Pacto de Varsóvia. No entanto, gorbatchov-mikhail-gorbachev.html>. Acesso
com o insucesso da perestroika, o em: 2 jul. 2009.
descontentamento popular só aumentou,
comprometendo de vez a estratégia de mudança do regime por dentro.
No final dos anos de 1980, começaram a cair, um a um, os regimes
socialistas na Europa Oriental, até que no início dos anos 1990, a
própria União Soviética iria desmoronar como um castelo de cartas.
Outra tem sido a sorte das reformas de mercado introduzidas
na China e no Vietnã, onde nenhuma abertura política foi concedida
e o sistema de mercado tem avançado em regiões específicas e
delimitadas, com efeitos positivos sobre o conjunto da economia
dos países. Mas até quando a abertura dos mercados chinês e
vietnamita com adoção de pluralismo econômico poderá avançar
sem colocar em questão o controle monopolista do poder político
exercido pelos respectivos partidos comunistas é uma questão que
segue em aberto.

Deixemos agora de lado a antípoda do Estado liberal para


examinarmos aquela forma de Estado que viria a substituí-lo
no Ocidente, e que teve grande influência sobre as
transformações do Estado brasileiro.

Módulo Básico
85
Estado, Governo e Mercado

O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

A forma de Estado que começaria a se desenhar no Ocidente


após a crise econômica de 1929, e que ganharia os seus contornos
mais bem definidos após a Segunda Guerra Mundial, recebeu
diversos nomes: o sociólogo alemão Claus Offe a chamou de
Welfare state keynesiano; o seu colega francês Pierre Rosanvallon,
de Estado providência; outros ainda a designaram como Estado
assistencial, ou Estado de bem-estar social. No entanto,
independentemente dos nomes dados, todas essas denominações
fazem referência a uma forma específica de relação do Estado
com o mercado que iria suceder o Estado Liberal e que usaria a
força estatal, por meio da implementação de políticas públicas,
visando intervir nas leis de mercado e assegurar para os seus
cidadãos um patamar mínimo de igualdade social e um padrão
mínimo de bem-estar.

O Estado de bem-estar social sucede o Estado liberal,


intervindo por meio de políticas públicas no mercado
a fim de assegurar aos seus cidadãos um patamar
mínimo de igualdade social e um padrão mínimo de
bem-estar.

Assim como o caminho que levou o Estado absolutista ao


Estado liberal se revelou longo e tortuoso, o que levaria o Estado
liberal ao de bem-estar social tampouco seria um caminho reto e
inequívoco. Enfim, da mesma forma que foram necessários muitos
anos de luta contra a Lei dos Pobres para que se pudesse implantar

86 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

um sistema regulado pelo mercado na Inglaterra, não seria de uma


hora para outra que se passaria de uma ordem de livre mercado
para uma outra em que a intervenção do Estado seria constante e
crescente. Mudanças como essas supõem profundas mudanças
de cultura, que costumam ser bastante lentas, pois implicam na
revisão de todo um sistema de crenças. Tal como o Estado liberal
só pôde se implantar plenamente depois que a secular cultura de
responsabilidade das classes ricas pelas mais pobres tivesse
cedido lugar a uma outra, em que todos os indivíduos passassem
a ser vistos como cidadãos iguais, independentes e responsáveis
pelo seu próprio sustento e destino, o Estado de bem-estar social
só se firmou quando a cultura individualista, que havia se
consolidado nas sociedades liberais e que via no Estado um mal

v
necessário, cujas atribuições deveriam se restringir ao mínimo
essencial para viabilizar a vida em coletividade, cedeu lugar a
uma outra cultura mais solidária.
Essa mudança de mentalidade coletiva teve também de ser
processada no interior do campo do pensamento liberal, através Em que a igualdade
da revisão de certos paradigmas e de relações causais estabelecidas social passasse a ser

– como abordado na Unidade anterior. Até o século XIX, os liberais valorizada, e a


interferência do Estado
acreditavam que a pobreza fosse resultado da insuficiência de
nas relações sociais
desenvolvimento econômico, e que este emergiria naturalmente do vista como necessária e
mercado livre e autorregulado. No entanto, o tempo mostrou que, positiva, e não mais
apesar da liberdade de mercado, do crescimento econômico e do como um estorvo.

notável avanço industrial nas sociedades capitalistas, a pobreza


persistiu e por vezes aumentou. Esse revés da história acabou por
levar à reversão da equação liberal: ao invés de a pobreza resultar
da insuficiência de mercado, seriam as insuficiências do mercado
como instituição reguladora que levariam à reprodução da pobreza.
Assim sendo, coube ao Estado suprir essas deficiências para
promover o bem-estar nas sociedades ricas e industrialmente
desenvolvidas.
Na Europa, a Primeira Guerra Mundial colocou os estados
nacionais no papel central de organizadores e alocadores dos
recursos sociais e econômicos, abrindo assim espaço na mentalidade
coletiva para a posterior aceitação da gerência estatal no

Módulo Básico
87
Estado, Governo e Mercado

funcionamento cotidiano da sociedade. Nos Estados Unidos, foi


somente com a crise econômica de 1929 e seus efeitos catastróficos
sobre todas as classes sociais, com a destruição de fortunas do dia
para a noite e a produção de desemprego em massa, que perdurou
por anos a fio, que os americanos começaram a aceitar a intervenção
do Estado na sua vida diária. Mas não sem antes oferecer grande
resistência.
Quando o presidente Roosevelt lançou um programa de
assistência social para dirimir os efeitos deletérios do desemprego
sobre a classe trabalhadora (o Federal Emergency Relief Act, em
1932), as maiores resistências à sua iniciativa vieram justamente
dos sindicatos dos trabalhadores – e não do dos empregadores,
como poderíamos imaginar à primeira vista. Segundo declarou um
dos líderes do poderoso sindicato dos marinheiros, à época:

Às vezes é melhor deixar que os feridos morram; às vezes é


melhor deixar os velhos morrerem do que sacrificar o fogo
da luta e a habilidade de vencer batalhas. O que são esses
apelos por pensão para idosos?... por seguro-saúde? [...]
seguro-desemprego? [...] nada mais que sentimentalismos
que obstruem o caminho da verdadeira luta.
(RIMLINGER,1971, p. 84).

É notável que mesmo no auge da crise da década de 1930,


quando havia 13 milhões de desempregados nos Estados Unidos,
o movimento sindical se opusesse à criação de um seguro-
desemprego, já que nenhuma razão econômica ou política poderia
explicar tal resistência. Na Alemanha de Bismark – por exemplo –
as organizações dos trabalhadores repudiariam os seguros criados
pelo governo, não apenas por razões ideológicas, mas porque, além
dos benefícios trazidos pelos seguros sociais à produtividade do
trabalho, aquelas medidas tinham o claro intuito de enfraquecer
tanto o partido social-democrata entre os operários, quanto a ação
da burguesia liberal alemã. Já na América do Norte, a situação era
bem outra. Não só a burguesia liberal já se encontrava devidamente
representada no Estado, como as organizações operárias não

88 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

sofriam a ameaça do “perigo vermelho”, como na Alemanha. Além


de razões eminentemente ideológicas e do profundo apego dos
americanos de todas as classes aos valores liberais, o repúdio aos
seguros sociais por parte dos sindicatos poderia ainda ser, em parte,
explicado pela memória dos desastrosos efeitos produzidos pela Lei
dos Pobres na antiga metrópole. No entanto, apesar das resistências
iniciais, o avanço do Estado sobre a regulação da vida econômica
e social prosseguiu do início dos anos de 1930 até o final dos anos
de 1970, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo.

Em todo o mundo ocidental, independentemente dos


regimes políticos ou da orientação ideológica dos
partidos governantes nas democracias, o Estado iria
expandir sua ação interventora e regulatória sobre o
mercado.

Com o New Deal (literalmente, “novo acordo”), Roosevelt


colocou o Estado americano, a partir da sua posse em 1932, na
condição de promotor do desenvolvimento econômico nacional e
do bem-estar social. No Brasil, a partir da mesma década, Getúlio
Vargas – por meio de uma ditadura – começou a aparelhar o Estado
brasileiro para intervir na regulação da vida econômica e social
dos brasileiros e promover o desenvolvimento nacional. Na Europa
Ocidental, após o fim da Segunda Guerra Mundial, todos os
Estados, fossem eles governados por partidos de esquerda – como
os sociais-democratas, nos países escandinavos e na Alemanha,
ou o trabalhista, na Inglaterra – ou por partidos de direita, – como
a França e a Itália – intervieram fortemente na economia dos seus
países, por meio da regulação, estatização de empresas privadas e
criação de empresas públicas, além de desenvolver sistemas de
proteção social abrangentes, elevando substancialmente o nível de
vida dos seus habitantes.
A grande diferença entre o Estado da Europa e demais países
capitalistas desenvolvidos e o Estado de bem-estar social brasileiro,
criado durante o governo Vargas, é que, no Brasil, além da regulação

Módulo Básico
89
Estado, Governo e Mercado

do mercado e da promoção do bem-estar por meio de políticas


públicas de educação, saúde, previdência, habitação etc., o Estado
também teve o papel de promotor da industrialização do país. Se
nos países capitalistas centrais a era da industrialização coincidira
com o Estado liberal e antecedera a era das políticas sociais, trazidas
pelo Estado de bem-estar social, no Brasil as fases de
industrialização e de criação de políticas sociais foram
concomitantes e coincidentes com o Estado de bem-estar social.
Por isso, essa nova for ma de Estado foi aqui chamada,
preferencialmente, de Estado desenvolvimentista. Mas as diferenças
não pararam por aí. No Brasil, a construção do Estado
desenvolvimentista não viria apenas acompanhada de políticas
sociais e de desenvolvimento econômico, mas também de uma
importante ruptura política. A Revolução de 1930 pôs fim ao Estado
oligárquico e ao sistema de organização institucional sobre o qual
ele se baseava. Coube então ao novo Estado construir, a um só
tempo, as novas bases de desenvolvimento econômico e acumulação
capitalista e de legitimação de uma nova ordem política no país,
com a incorporação das massas no processo político.
Para compreendermos adequadamente o processo de
construção do Estado desenvolvimentista no Brasil, as categorias
desenvolvidas pela matriz marxista para explicar as relações entre
Estado e mercado no século XX – estudadas na Unidade anterior –
poderão ser bastante úteis. Façamos, então, uma análise do
surgimento, desenvolvimento e crise do Estado desenvolvimentista
no Brasil, considerando as relações entre Estado e mercado do ponto
de vista das necessidades da acumulação capitalista e da
legitimação do poder de Estado junto às classes sociais que
compunham a sociedade brasileira.
Como foi salientado, a montagem do Estado desenvolvimentista
e a implementação das políticas sociais no Brasil estavam diretamente
relacionadas ao desenvolvimento industrial do país. Ainda que as
primeiras leis sociais brasileiras datem do final do século XIX – quando
o país ainda estava longe de iniciar o seu processo de
industrialização –, aquelas seriam casuais e isoladas, não podendo
ser consideradas como pertencentes a uma política social. Seria

90 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

somente a partir de 1923, com a promulgação da Lei Eloy Chaves,


que instituiria as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), que se
notaria a emergência de uma certa preocupação, por parte do Estado,
com a questão social – antes considerada “caso de polícia”, conforme
declararia, certa vez, o presidente Washington Luís.
Os anos que precederam a Lei Eloy Chaves foram marcados
por diversos movimentos grevistas e intensa agitação operária, o
que nos leva a crer que essas tenham sido as causas que teriam
levado o Estado a dar algum tipo de resposta à questão social. Além
disso, antes de 1930, só formaram as suas CAPs os setores operários
mais organizados, ficando a maior parte da classe operária
brasileira fora desse sistema de seguro.

Assim sendo, seria difícil sustentar a interpretação de que o


surgimento das CAPs tenha sido uma resposta do Estado
brasileiro às necessidades do processo de acumulação.

Seria apenas a partir de 1930, quando se iniciou o processo


de industrialização propriamente dito do Brasil, que as políticas
sociais começaram a ter uma ligação mais estreita com o processo
mais amplo de acumulação, mas não apenas com os interesses
estritos da acumulação de capital. Se a regulação da jornada de

v
trabalho, do trabalho feminino e de menores, que data de 1932, e a
instituição do salário-mínimo, em 1940, contemplaram
inequivocamente os interesses da acumulação, não poderíamos
depreender que teriam sido esses interesses os responsáveis diretos Em relação ao salário-

pela adoção dessas medidas pelo Estado. Além disso, durante os mínimo, foi observada
uma grande resistência
primeiros anos do governo Vargas, quando começaram a ser
por parte do
implementadas as primeiras políticas sociais voltadas para a classe empresariado em aceitá-
trabalhadora, o empresariado paulista – desde então o mais lo, razão pela qual

importante do país – estava na oposição ao novo governo, tendo demoraria até 1940 para
ser decretado.
apoiado a revolução constitucionalista de 1932. Portanto, a criação
das primeiras leis sociais no Brasil não pode ser interpretada como

Módulo Básico
91
Estado, Governo e Mercado

resposta do Estado aos interesses da acumulação da burguesia


industrial brasileira, como uma análise simplista tenderia a fazer.
Tampouco se poderia creditar à pressão do movimento
operário organizado a concessão de benefícios sociais no imediato
pós-1930. Se nos anos de 1910 os patrões e o governo viram-se,
por diversas vezes, desafiados por movimentos reivindicatórios
organizados pelos sindicatos, o mesmo não aconteceu nos anos de
1920, que foram marcados pelo recesso do movimento operário e
decadência dos sindicatos anarquistas, que tiveram grande força
na década anterior. Além disso, em 1930, o setor da classe operária
mais organizado e reivindicativo – que não por coincidência
trabalhava nos ramos mais diretamente ligados à economia
exportadora, como ferroviários, marítimos e portuários – já havia
conquistado na década anterior a maior parte dos benefícios que o
Estado varguista estendeu aos demais setores do operariado por meio
da legislação social.

Se, ao que tudo indica, o empresariado brasileiro não tivesse


tomado parte na formulação das políticas sociais que atendiam
às necessidades da acumulação, nem o setor mais combativo
do operariado teria sido por elas beneficiado. Quem então as
teria impulsionado e com qual finalidade? Para responder a
esta questão, é necessário fazer uma pequena digressão sobre
as condições históricas de formação do Estado
desenvolvimentista no Brasil.

A queda do Estado oligárquico iria se dar em meio à crise


do padrão de acumulação vigente até então – baseado nas
exportações de café – e à decadência política das próprias
oligarquias e seu sistema de dominação social. Naquelas
circunstâncias, duas grandes questões iriam ser colocadas para o
conjunto da sociedade:

 Qual a forma de desenvolvimento econômico a ser


adotada pelo país a partir de então?

92 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

 Qual a forma de sustentação política e de reestruturação


do poder do Estado?

Quanto à primeira questão, parecia a todos que a


industrialização era o único caminho a ser seguido, posto que a
expansão econômica baseada na agricultura já tinha encontrado
seu limite. Caberia, portanto, ao Estado adotar uma postura distinta
da até então mantida pelo Estado oligárquico frente ao processo de
acumulação e à sua base – o trabalho fabril. No entanto, se a
questão era a mesma para todos, a resposta a ela não o seria. Cada
grupo social tenderia a respondê-la de forma diferente, baseado na
sua própria leitura da realidade e em seus interesses específicos.
O problema que então deveria ser equacionado pelo Estado seria o
da hierarquização dos diferentes interesses sociais frente à tarefa
de conduzir o processo de industrialização do país, o que dependeria
do poder de pressão dos diferentes grupos sociais sobre o Estado

v
ou da capacidade hegemônica de um grupo sobre outros, entendida
esta como hegemonia cultural, conforme o conceito de Gramsci.
Nas circunstâncias políticas do Brasil do início dos anos de 1930,
nenhum dos setores estratégicos da sociedade desfrutava de posição
hegemônica. A burguesia mercantil, que até então controlara o Rumos e metamorfoses:
Estado, encontrava-se política e economicamente enfraquecida, um estudo sobre a

além de cindida por rivalidades interiores. A burguesia industrial, constituição do Estado e


as alternativas de
dada a sua dispersão e debilidade congênita, era igualmente incapaz
industrialização no Brasil
de propor o seu projeto – se é que o tinha – para o conjunto da 1930-1960 – de Sônia
sociedade. O proletariado industrial, talvez mais que qualquer dos Draibe. Leia ao menos
outros setores, era incapaz de conformar o Estado de acordo com Introdução e Capítulo I.

os seus interesses de classe. Portanto, em meio à ausência de


hegemonia, surgiria um Estado dotado de especial autonomia em
relação às classes sociais – conforme o conceito de autonomia
relativa do Estado, de Poulantzas – que estruturaria o seu poder
levando em conta os interesses da cada grupo social, sem, no
entanto, atender a nenhum deles integralmente. Nesse contexto, a
burocracia do Estado desempenharia um papel importantíssimo na
elaboração das políticas econômicas e sociais.

Módulo Básico
93
Estado, Governo e Mercado

Assim, a partir de 1930 o Estado brasileiro passou a intervir


crescentemente e de forma decisiva no desenvolvimento econômico
e social do país por meio de um conjunto de instrumentos, criados
ao longo do tempo, com objetivos e ações próprios, mas
relacionados e coordenados. Esses instrumentos podem ser
classificados em quatro grandes grupos:

 Inovação legislativa: com a elaboração de códigos


e leis específicas.
 Inovação institucional: com a criação de conselhos,
departamentos, institutos, autarquias e empresas
públicas.
 Formulação e implementação de políticas
e c o n ô m i c a s: voltadas para a área cambial,
monetária, de crédito, comércio exterior e de seguros.
 Formulação e implementação de políticas
sociais: de regulação das relações industriais, de
previdência, assistência e proteção ao trabalhador,
saúde, educação, saneamento e habitação.

Na área econômica, entre 1930 e 1934, o Estado brasileiro


criou uma série de órgãos com o objetivo tanto de intervir nas
relações industriais quanto de coordenar as ações de controle e
estímulo aos diversos segmentos da produção industrial e agrícola.
Assim foram criados, no plano institucional, o Departamento
Nacional do Trabalho, o Departamento Nacional de Seguros
Privados e Capitalização e o Departamento Nacional de Produção
Mineral, no interior do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
assim como o Instituto Nacional do Cacau da Bahia, o Departamento
Nacional do Café e o Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool (IAA).
No plano da inovação legislativa, foram criados e promulgados os
códigos de águas, de minas, de caça e pesca e de florestas.
Na área social, a principal inovação institucional foi a
criação do Ministério da Educação e Saúde Pública dez dias após
a chegada de Vargas ao poder, além de uma série de inovações
legislativas, como: a reforma da legislação sindical de 1907, com a

94 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

separação, até então inexistente, entre sindicados de empregadores


e de empregados; a modificação da lei de férias e criação da carteira
de trabalho para os trabalhadores urbanos; a edição do código de
menores, regulação da jornada de trabalho de oito horas diárias e

v
a regulamentação do trabalho feminino. Já em 1933 foi fundado o
primeiro Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAP), o dos marítimos
(IAPM), que deu o padrão para a criação dos demais institutos que
substituíram as antigas CAPs, organizadas por empresa. Os IAPs representaram
Apesar desse progresso, as disparidades nos benefícios um significativo avanço

previdenciários e nos serviços de saúde seriam ainda consideráveis. em termos de


socialização e
As categorias mais bem aquinhoadas salarialmente, como a dos
equalização dos
bancários, usufruíam de uma assistência médica de qualidade bem benefícios prestados
superior à dos industriários. Embora o governo já tivesse, por pela assistência social,
diversas vezes, se manifestado pela unificação dos diferentes IAPs ao reunir sob um mesmo
instituto todos os
em um único instituto, isso não iria acontecer antes de 1966, devido
trabalhadores
à resistência por parte das lideranças dos trabalhadores no comando pertencentes a uma
dos institutos mais ricos (cuja gestão era tripartite, isto é, composta mesma categoria
por representantes do governo, sindicatos patronais e sindicatos profissional.

dos trabalhadores). Essa resistência derivava do poder e prestígio


que aquelas lideranças tinham junto à sua clientela, devido aos

v
serviços oferecidos.
O fortalecimento da capacidade gestora do Estado começou
com a criação do Conselho Federal do Serviço Público, em 1936, e
posterior criação do Departamento Administrativo do Serviço
Na segunda metade da
Público (DASP), em 1938, que iria formar os quadros do Estado e década de 1930 e
estruturar uma Administração Pública federal conforme os padrões primeira metade dos

mais modernos vigentes nas sociedades capitalistas avançadas, anos 1940, o


aparelhamento do
instituindo concursos públicos, estruturando carreiras e
Estado e sua intervenção
profissionalizando o serviço público. Diversas comissões e conselhos no mercado se
seriam também criados no interior do Estado tendo em vista ampliaram ainda mais.
capacitá-lo a intervir mais decididamente em outras esferas das
atividades econômicas, como o Conselho Nacional do Petróleo e o
Conselho de Imigração e Colonização (1938), a Comissão Executiva
do Plano Siderúrgico Nacional (1940), a Comissão Nacional de
Ferrovias, a Comissão Nacional de Combustíveis e Lubrificantes
(1941) e a Comissão Vale do Rio Doce (1942). Ainda no plano da

Módulo Básico
95
Estado, Governo e Mercado

inovação institucional, foram criados o Instituto Nacional do Mate


(1938), o Instituto Nacional do Pinho e o Instituto Nacional do Sal
(1941), estendendo o controle do Estado federal sobre outros
segmentos da atividade econômica regionalmente localizados.
Com base nos estudos e recomendações feitos pelos diferentes
conselhos e comissões, o Estado brasileiro deu início à sua expansão
e intervenção no mercado por meio da criação de empresas públicas,
como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e o Instituto de
Resseguros do Brasil (IRB), em 1941; o Banco de Crédito da
Borracha, em 1942; a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia
Nacional de Álcalis (para produção de minerais não ferrosos) e a
Fábrica Nacional de Motores (FNM), em 1943.
No campo das políticas sociais, nesse mesmo período seriam
criados os Institutos de Aposentadoria e Pensão dos Bancários
(IAPB), Comerciários (IAPC), Industriários (IAPI), Empregados dos
Transportes de Cargas (IAPETEC) e dos Servidores do Estado
(IPASE), além da lei do salário-mínimo, em 1940, e finalmente, a
promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943.
Esses exemplos não exaurem a produção legislativa e
institucional do Estado brasileiro durante o governo Vargas, nem a
expansão e aparelhamento do Estado brasileiro se limitaram a esse
período. Nas décadas seguintes, o Estado no Brasil – assim como no
restante do mundo – seguiria avançando seu controle sobre o
mercado. Nos anos 1950, seria criado o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE) para financiar o
desenvolvimento das empresas privadas nacionais, e no ano
seguinte iria ser fundada a Petrobras. Na segunda metade da
década, o Estado conseguiria finalmente atrair grandes empresas
automobilísticas internacionais para montar suas fábricas no Brasil
e bancaria a construção de Brasília.
Nos anos 1960, já sob o governo militar, o Estado brasileiro
voltaria a expandir a rede de políticas sociais, com a criação do
Banco Nacional da Habitação (BNH), em 1965; unificação dos
diversos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e
criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), em
1966; além do lançamento do maior e mais ambicioso projeto social
cujo objetivo era “erradicar” o analfabetismo do país, o Movimento

96 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), em 1967. Na década


seguinte, a previdência social seria finalmente levada aos
trabalhadores rurais por meio do FUNRURAL, em 1971, assim como
a previdência urbana seria estendida às empregadas domésticas, no
ano seguinte, e aos trabalhadores autônomos, em 1973.
Na área econômica, os governos militares elaborariam dois
grandes Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) com o intuito
de completar o processo de industrialização do país, equiparando
o seu parque produtivo aos das economias mais avançadas do
planeta. No bojo desses planos, foi criada uma série de novas
empresas estatais nas áreas petroquímica, aeronáutica (Embraer),
de telecomunicações (Telebrás e Embratel), de energia (Itaipu) e
agrícola (Embrapa).
No entanto, a década de 1970 coincidiria com o fim do
período de expansão das economias capitalistas em todo o mundo,
após trinta longos anos de expansão continuada. Os dois grandes
choques do petróleo da década – o primeiro em 1973, após a Guerra
do Yom Kipur, entre os países árabes e Israel, e o segundo, em 1979,
após a Revolução Islâmica no Irã – iriam multiplicar o preço do
combustível sobre o qual se baseava toda a economia mundial,
causando inflação em todo o mundo, criando desemprego e
acabando de vez com o ciclo expansivo da economia mundial.
Após um período de contínua expansão econômica e aumento do
bem-estar – que durou três décadas, na Europa, e meio século, no
Brasil – acompanhado de constante expansão do Estado, o mundo
entrou num período que foi denominado pelos economistas de
estagflação*.
Enquanto o mundo crescia sem parar e o nível de bem-estar *Estagflação – estagnação
econômica acompanha-
das pessoas, em geral, aumentava, ninguém ousaria seriamente
da de inflação. Fonte: Ela-
contestar o modelo econômico e o papel do Estado. Foi assim nos borado pelo autor.
Estados Unidos, Europa, América Latina e Ásia. Mas quando o
período de bonança acabou, as vozes contrárias ao avanço do
Estado, e pelo sucesso deste até então caladas, começaram a se
fazer ouvir. Foi então nesse momento que o liberalismo, tal como
uma fênix, renasceu das suas próprias cinzas. O pêndulo social,
tendo atingido o seu ponto máximo à esquerda, começaria então o
seu trajeto inverso rumo à liberalização do mercado.

Módulo Básico
97
Estado, Governo e Mercado

O ESTADO NEOLIBERAL

Na virada dos anos de 1970 para a década de 1980, o modelo


de desenvolvimento econômico e social até então vigente, marcado
pela forte intervenção do Estado em praticamente todas as esferas
da vida social, parecia ter-se esgotado. Nesse contexto ressurgiram,
com força, as ideias liberais até então adormecidas para reativar
as economias e colocar novamente o mundo na rota do crescimento.
O renascimento desse ideário convencionou-se chamar de
neoliberalismo e seria protagonizado no mundo pelos governos
de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979–1990), e de Ronald
Reagan, nos Estados Unidos (1981–1989).
As palavras neoliberalismo e globalização foram
insistentemente repetidas nos jornais e nos discursos políticos
durante a década de 1990, sem que, no entanto, se lhes conferisse
um conteúdo preciso. De maneira geral, a globalização foi invocada
para afirmar que o mundo havia mudado, e que não se poderia
mais interpretar a realidade social e econômica e intervir nessas
esferas da mesma forma como se havia feito até a década de 1970.
Já o substantivo neoliberalismo e o adjetivo neoliberal foram
empregados sempre que a intenção fosse atacar e destratar o
interlocutor. Em nome da adaptação ao mundo globalizado, uns
pregariam reformas nos mais diversos campos, sobretudo internas
ao Estado, e outros se poriam na defesa do Estado e dos direitos
dos menos favorecidos contra o avanço neoliberal.
Passado o tempo desse confronto, seria conveniente limpar
o terreno dos destroços que restaram da batalha ideológica e
identificar sine ira et studio (“sem ódio e sem preconceito”) as
transformações operadas nas últimas décadas nas sociedades
contemporâneas e os seus impactos sobre as relações entre Estado

98 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

e mercado. E para fazê-lo, o melhor será procurar despir as palavras


neoliberalismo e globalização das suas conotações valorativas,
tentando, na medida do possível, fazer uma análise descritiva.

A agenda neoliberal – colocada em prática, primeiro


na Inglaterra e nos Estados Unidos, e posteriormente em
diversos países do mundo, inclusive sob governos
socialistas, como o de Felipe González, na Espanha (1982–
1996) – seria baseada no tripé: desregulamentação,
privatizações e abertura dos mercados.

Os defensores dessa agenda argumentavam ser necessário


desregular os mercados porque o número excessivo de regras e
controles estatais sobre a economia inibia os investimentos privados,
comprometendo o crescimento econômico. Embora orientada para
diversas esferas das relações econômicas, a desregulamentação
focou, em especial, as relações de trabalho, pois a quantidade de
leis e de restrições trabalhistas criada pelo Estado de bem-estar
social inibiria as contratações pelas empresas, impedindo a criação
de empregos. Portanto, ao invés de proteger os trabalhadores, os
diversos direitos e garantias inscritos na legislação os estariam
condenando ao desemprego.
A favor das privatizações, alegava-se que as empresas de
*Laissez-faire – doutrina
propriedade do Estado seriam ineficientes e deficitárias, porque
que diz que os negócios
mantidas sob a proteção do poder público ao abrigo das leis do econômicos da socieda-
mercado. A consequência dessa ineficiência resultaria em crescentes de são otimizados pelas
déficits a serem cobertos pelos contribuintes. A privatização dessas decisões individuais,

empresas, com sua consequente exposição às leis do mercado, teria pelo mercado e pelo me-
canismo de preços, com
por objetivo torná-las eficientes e lucrativas, além de tirar o ônus
virtual exclusão da auto-
pela sua manutenção do Estado, liberando recursos públicos para ridade governamental.
serem aplicados em áreas em que o Estado tem obrigatoriamente Fonte: Lacombe (2004).

de investir, como educação, saúde e assistência social.


Por fim, retomando os princípios do laissez- faire*,
propugnava-se a abertura dos mercados nacionais para a
concorrência internacional, única forma de produzir uma

Módulo Básico
99
Estado, Governo e Mercado

modernização de todos os setores da atividade econômica,


conferindo-lhes eficiência e competitividade. Seguindo esse
receituário, e após os percalços inevitáveis durante a transição de
uma economia protegida e fechada para uma economia aberta e
competitiva, os investimentos certamente retornariam e a economia
voltaria a crescer de maneira sustentada, ensejando a expansão do
emprego e da renda.
Ao examinar essa agenda, percebemos que não se trata de
um mero retorno aos “velhos e bons” princípios liberais, havendo
algo de realmente novo – que justificaria o prefixo “neo” –
diferenciando-a da agenda liberal que resultaria na formação do
Estado liberal no século XIX. Afinal, no movimento pendular em
espiral entre Estado e mercado das sociedades capitalistas ao longo
da história, o pêndulo nunca volta propriamente ao mesmo lugar.

Examinemos, então, as principais diferenças entre as agendas


liberal e neoliberal para melhor compreendermos as
características do Estado que a partir desta iria se formar.

As diferenças entre o Estado liberal e o Estado neoliberal,


tratadas nos próximos parágrafos, são muito importantes. Ao se
oporem ao Estado absolutista, os liberais do passado propunham
que o Estado deixasse de intervir nas relações econômicas entre os
agentes privados para que o mercado pudesse funcionar
adequadamente como mecanismo autorregulador. A retração do
Estado não se restringiria às relações comerciais e de produção,
mas atingiria inclusive a assistência pública prestada aos mais
pobres, considerada como contrária ao princípio da
autodependência de cidadãos iguais. A única exceção admitida
foi a assistência prestada nas workhouses inglesas destinadas a
acolher àqueles que se mostrassem incapazes de prover o seu próprio
sustento, ou seja, aos excluídos e não cidadãos de fato.

100 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

Já as críticas dos neoliberais ao Estado de bem-estar social


e suas propostas para tirar as sociedades capitalistas da crise em
que se encontravam são dirigidas não à intervenção do Estado em
geral, mas à sua intervenção específica em determinadas esferas
das relações econômicas, como o mercado de trabalho, mercado
de capitais e mercado de bens e serviços. Ao contrário do que
pensavam os liberais do século XIX, esses mercados não seriam
autorreguláveis, necessitando a regulação do Estado para que
pudessem funcionar adequadamente. O problema, portanto, não
teria sido a regulação estatal em si, mas o seu excesso, que acabou
comprometendo o bom funcionamento dos mercados existentes ou
mercados potenciais – isto é, naquelas esferas das atividades
econômicas sob monopólio estatal, mas passíveis de serem
privatizadas. Quanto às políticas sociais, estas manteriam seu lugar
na agenda do Estado como direitos de cidadania e instrumentos de
promoção da equidade.
Algumas delas seriam compensatórias, temporárias e focadas
nos mais pobres e atingidos pelo processo de ajuste da economia
patrocinado pelo Estado – como as de transferência de renda para
combate da pobreza absoluta e de seguro-desemprego –, mas outras
deveriam ser universais e permanentes – como as de educação,
saúde pública e formação profissional.
Foi neste cenário que, a partir dos anos de 1980, as reformas
de inspiração neoliberal começaram a ser aplicadas em
praticamente todo o mundo capitalista onde antes existia alguma
forma de Estado de bem-estar social – com maior ou menor
profundidade e extensão e com graus variáveis de sucesso na
redinamização das economias nacionais. Apesar dessas variações
e diferenças, em todos os lugares um mesmo fenômeno iria se
produzir: o aumento das disparidades de renda entre ricos e pobres.
Além desse resultado negativo e indesejável, um outro resultado
imprevisto iria se produzir em escala planetária, mudando
definitivamente as relações entre Estado e sociedade: a globalização.

Módulo Básico
101
Estado, Governo e Mercado

A globalização iria resultar da combinação entre a


implementação das reformas neoliberais em escala
mundial e as mudanças tecnológicas trazidas pela
terceira revolução industrial já em curso nas últimas
décadas do século passado, como o desenvolvimento
da informática e das tecnologias da comunicação.

Mais do que a integração dos mercados de bens, serviços e


capitais, a globalização iria ensejar, sobretudo, a desregulamentação
e integração dos mercados bancários e financeiros das diferentes
economias nacionais do mundo capitalista. Com isso, iria se criar
um mercado financeiro internacional, altamente dinâmico e volátil,
no qual capitais oriundos dos quatro cantos da Terra seriam
aplicados nas bolsas de valores das diversas praças financeiras
espalhadas pelo mundo, deslocando-se com velocidade jamais vista
de um lado para o outro do planeta. Algumas estimativas apontavam
Esse montante era
que, em meados da década de 1990, a circulação desses capitais

v
equivalente a duas vezes
o PIB anual brasileiro da entre os diferentes mercados financeiros do mundo seria de cerca de
época, e dez mil vezes um trilhão de dólares por dia, “valor superior à soma de todas as
superior à quantidade de reservas de todos os Bancos Centrais do mundo” (FIORI, 1995, p.
dinheiro que circulava
223).
por esses mercados em
1970. Além de ter permitido a formação de um mercado
internacional de capitais, que aumentaria enormemente a
vulnerabilidade das sociedades frente à movimentação internacional
do capital, tornando Estados nacionais incapazes de controlá-lo e
oferecer uma proteção mais efetiva às economias domésticas, as
inovações tecnológicas iriam ensejar a criação de novos mercados,
a mudança nos padrões dos serviços e a reorganização dos capitais
em nível internacional. O caso das telecomunicações é emblemático.
Até os anos de 1980, os serviços de telefonia eram
monopólios estatais em quase todo o mundo. Os custos de
implantação da infraestrutura requerida eram extremamente
elevados, sendo pouco atrativos para a exploração dos serviços
pelo capital privado. Além disso, havia apenas uma tecnologia
disponível para a prestação dos serviços: telefones fixos ligados por

102 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

fios e interligados por cabos submarinos para comunicações a longa


distância. Os altos custos dos investimentos iniciais associados ao
padrão tecnológico único contribuíram para que o setor de telefonia

v
se constituísse em um monopólio natural do Estado. Somente os
países ricos conseguiam oferecer os serviços de telefonia na
residência de todos os seus cidadãos. Para se capitalizarem e poder
expandir a oferta de serviços, as companhias telefônicas brasileiras No Brasil, até a metade
iriam utilizar um subterfúgio: vincular a concessão de uma linha da década de 1990, o
telefônica ao usuário à compra de ações da companhia. Com isso, acesso a uma linha

um serviço público foi transformado em um bem privado. Essa forma telefônica era difícil e
caro.
original de alocar as linhas telefônicas aos usuários pelas empresas
estatais associada à escassez da sua oferta deu espaço ao
surgimento de um mercado paralelo. Em todas as grandes cidades
do país, surgiram bolsas de telefones, em que as linhas eram cotadas
e negociadas como se fossem bens privados, e os telefones
passaram a ser objetos de investimento e especulação. No início
dos anos de 1990, uma linha telefônica na cidade de São Paulo era
comercializada no mercado paralelo pelo preço médio de três mil
dólares, que variava conforme o bairro de prestação do serviço.
Obedecendo à lei da oferta e demanda, o custo das linhas nos bairros
mais populares, onde a sua oferta era menor, costumava ser mais
alto do que nos bairros mais bem aquinhoados da cidade e mais
bem servidos desses serviços.
As mudanças tecnológicas nas comunicações, representadas
pelo desenvolvimento de fibras óticas, da telefonia celular em
diversas bandas, da transmissão por cabo etc. permitiram, em pouco

v
tempo, que esse cenário fosse radicalmente modificado. Por meio
de uma pluralidade de tecnologias, com relativamente baixos custos
de investimentos iniciais, o monopólio natural deixou de existir,
Foi dentro deste novo
permitindo que surgisse no seu lugar um novo mercado altamente contexto econômico e
rentável para os capitais privados. tecnológico que
Mas além dos serviços de telecomunicações, outros setores, ocorreram as
privatizações do setor de
como o siderúrgico, petroquímico e elétrico também foram
telefonia no Brasil e em
privatizados no Brasil, durante os anos de 1990, levando o Estado diversos países.
a mudar drasticamente a sua relação com o conjunto dos agentes
econômicos. De produtor de insumos industriais e fornecedor de

Módulo Básico
103
Estado, Governo e Mercado

infraestrutura para o setor privado da economia, o Estado passou


a exercer o papel de agente regulador dos mercados recém-
criados. A criação de mercados onde antes havia monopólios, ainda
que compostos por mais de uma empresa estatal, foi uma
experiência nova no Brasil, assim como também nova seria a forma
escolhida de exercer a função de regulação: por meio da criação
de agências reguladoras específicas para cada mercado,
conforme o modelo adotado na Inglaterra. Portanto, a novidade
que as privatizações trouxeram para o Estado e a Administração
Pública no Brasil foi dupla: na forma (as agências) e no conteúdo
(os novos mercados recém-criados). Sendo essa experiência ainda
bastante recente, seria difícil identificar com um mínimo de precisão
as tendências e os componentes do novo padrão de relações entre
o Estado e esses setores econômicos.

No entanto, podemos afirmar com certeza que um novo


padrão de relacionamento estava em construção e que
modificações e ajustes ainda iriam se produzir.

Comparativamente à análise das formas de Estado passadas,


a do Estado neoliberal é sem dúvida a mais difícil. E isso por uma
simples razão, não temos distanciamento temporal para examinar
como dispomos em relação às demais, cujo início, auge, decadência
e fim podemos identificar com maior facilidade. Aqui se aplica
perfeitamente a célebre frase de Hegel na Filosofia do Direito – “a
coruja de Minerva alça seu voo somente com o início do
crepúsculo”, ou seja, apenas ao final dos acontecimentos (o fim do
dia) que a nossa razão (a coruja de Minerva) será capaz de
compreender tudo o que se passou. Embora a crise financeira que
se abateu inicialmente sobre os Estados Unidos, em 2008, e se
espalhou em seguida por outras partes do mundo, possa ser
entendida como um bom indicador de que o pêndulo social alcançou
novamente o seu ponto máximo à direita (o mercado), e que a partir
de então irá começar um progressivo fortalecimento do Estado (rumo

104 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

à esquerda), essa não passa de uma hipótese – ainda que bastante


forte – sujeita à comprovação.
No entanto, mesmo que essa expectativa venha a se
confirmar, a experiência histórica não nos autorizaria a imaginar
um retorno ao Estado de bem-estar social, ao Estado socialista ou
a outra forma de Estado anterior pelo simples fato de que a história
não se repete. Mas a atenção para o movimento pendular da história
e para os princípios inscritos nas duas matrizes, que até hoje
animam as discussões e projetos das sociedades ocidentais,
continuará ainda sendo a principal referência a guiar a ação dos
indivíduos e a iluminar quem queira pensar o Estado e atuar na
gestão pública.

Complementando......
Conheça mais sobre os temas aqui discutidos explorando as obras
sugeridas a seguir.

Balanço do neoliberalismo. In: Pós-neoliberalismo: as políticas sociais


e o Estado democrático – de Emir Sader. Nesta obra você vai aprender
mais sobre a emergência e o desenvolvimento do Estado neoliberal
no mundo.

A globalização e a novíssima dependência. In: Em busca do dissenso


perdido: ensaios críticos sobre a festejada crise do Estado – de José
Luís Fiori, que traz informações sobre a globalização.

Módulo Básico
105
Estado, Governo e Mercado

Resumindo
Ao encerrar o estudo dos temas desta disciplina – e
antes que você passe às atividades de sistematização e ava-
liação dos conhecimentos adquiridos –, caberia ainda algu-
mas considerações. Um objeto tão amplo e complexo como
o das relações entre Estado, governo e mercado não é passí-
vel de ser estudado exaustivamente, ficando sempre um ou
outro aspecto sem ser analisado e muitos autores sem se-
rem referidos. No entanto, a impossibilidade de se estudar
e conhecer tudo sobre um tema não nos impossibilita de
visualizarmos e compreendermos o todo. As muitas dife-
renças não examinadas entre o Estado liberal na Inglaterra e
nos Estados Unidos do início do século XX e entre o Estado
socialista na União Soviética e na China de Mao-Tsé-tung
não nos impedem de compreendermos o que havia em co-
mum nas relações entre Estado, governo e mercado em cada
par de países e nos permitem classificar os primeiros como
liberais e os segundos como comunistas. De forma análoga,
apesar de as articulações concretas entre Estado e mercado
serem absolutamente singulares em cada país, é plenamen-
te possível agrupá-los conforme padrões dominantes, como
mais mercado e menos Estado sob os estados liberais e mais
Estado e menos mercado sob os estados socialistas. Por isso,
o objetivo desta disciplina foi, precisamente, o de apresen-
tar e trabalhar conceitos, teorias e informações históricas
de forma a possibilitar a você compreender as diferentes e
sempre mutantes relações entre Estado e mercado no mun-

106 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – As Relações entre Estado, Governo e Mercado Durante o Século XX

do contemporâneo como um todo, já que é impossível co-


nhecer tudo. Com base nos conhecimentos desenvolvidos
nesta disciplina, você poderá se tornar capaz de acrescentar
ao seu repertório novas informações históricas, novos auto-
res, novas teorias e, sobretudo, compreender o mundo em
que vive e atua.

Módulo Básico
107
Estado, Governo e Mercado

Atividades de aprendizagem
Chegado o final da Unidade 2 e também da disciplina, é
hora de verificar a sua aprendizagem. Para tanto, procure
responder às questões propostas na sequência.

1. Identifique e explique três diferenças entre o Estado liberal e o


Estado neoliberal e entre o Estado de bem-estar social e o Estado
desenvolvimentista.
2. Considerando os conteúdos tratados nas duas Unidades desta dis-
ciplina, descreva as relações entre Estado, governo e mercado no
Brasil ao longo do século XX, identificando as características prin-
cipais do Estado oligárquico, Estado desenvolvimentista e Estado
neoliberal relacionando-as com as mudanças produzidas nas duas
matrizes teóricas que explicam as relações entre Estado e socie-
dade no mundo capitalista.

108 Especialização em Gestão Pública


Referências Bibliográficas

Referências
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E. (Org.)
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 3.ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
¨
ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Trad. Jorge Bastos. São Paulo:
Arx, 2005.

DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição


do Estado e as alternativas de industrialização no Brasil 1930-1960. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

FIORI, José Luís. Em busca do dissenso perdido: ensaios críticos sobre a


festejada crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight Editorial, 1995.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado


eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Ponteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

HOUAISS. Antonio. Dicionário online da língua Portuguesa. Abril de


2007. Versão 2.0a. CD-ROM. 2007.

LEITE JÚNIOR, Alcides. Brasil: a trajetória de um país forte. São Paulo:


Trevisan, 2009.

LENIN, Vladmir Ivanovitch. El imperialismo, fase superior del capitalismo.


In: LENIN, V.I. Obras Escogidas. Moscú: Editorial Progreso, [s/d].

LACOMBE, Francisco José Masset. Dicionário de administração.


São Paulo: Saraiva, 2004.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Anoar Aiex e


E. Jacy Monteiro. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).

MILL, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Trad.


Manoel Inocêncio de L. Santos Jr. Brasília: UnB, 1980. (Pensamento
Político 19).

Módulo Básico
109
Estado, Governo e Mercado

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de.


Do espírito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins
Rodrigues. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

OFFE, Claus. A democracia partidária competitiva e o welfare state


keynesiano: fatores de estabilidade e desorganização. In: Dados, revista de
ciências sociais, v. 26, n. 1, Rio de Janeiro: Campus, 1983.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio


de Janeiro: Campus, 1980.

PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. Trad. Laura


Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.

______. Estado e economia no capitalismo. Trad. Argelina Cheibub


Figueiredo e Pedro Paulo Zahluth Bastos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1995.

RIMLINGER, G. Welfare state and industrialization in Europe, América


and Russia. New York: John Wiley and Sons, 1971.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos


Machado. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).

SADER, Emir. Balanço do neoliberalismo. In: Pós-neoliberalismo: as


políticas sociais e o Estado democrático. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra,
1996.

SARTORI, Giovanni. A teoria democrática revisitada. Trad. Dinah de


Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 1994. v. 1 (O debate contemporâneo).

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
1.392 p.

WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 6. ed.


São Paulo: Ática, 1996. v. 2.

110 Especialização em Gestão Pública


Referências Bibliográficas

Módulo Básico
111
Estado, Governo e Mercado

M INICURRÍCULO
Ricardo Corrêa Coelho

Bacharel em Ciências Sociais pela Universi-


dade Federal do Rio Grande do Sul (1981), Mestre
em Ciência Política pela Universidade Estadual de
Campinas (1991) e Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (1999). É especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, do Ministério do Planejamento, e trabalha
no Ministério da Educação desde 2000. Tem experiência docente nas
áreas de Ciência Política e Administração Pública, com trabalhos nas
áreas de partidos políticos, políticas públicas, educação e formação de
quadros para a Administração Pública.

112 Especialização em Gestão Pública


Gestão Pública - 07 sessões Webconferência
Data Link
02/05/2013 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p8mvc96rsz7/
19/10/2013 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p9a9k8mwmmv/
14/11/2013 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p71stvoh8jr/
23/11/2013 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p33axmo2v0g/
14/12/2013 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p4462kjehck/
11/01/2014 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p88c54b7b41/
12/02/2014 http://webconf2.rnp.br/p2kvdfgi955/
1

RELATÓRIO DE APOIO ADMINISTRATIVO DOS CURSOS EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

 Ique NOME DO CURSO: Curso de Pós Graduação em Gestão Pública


 COORDENADOR (A): Prof. Dr. Glauco Henrique de Sousa Mendes
 MÊS DE REFERÊNCIA: Outubro a Dezembro de 2013

ATIVIDADE QUANTIDADES E DESCRIÇÃO


Atualização de dados nas planilhas GoogleDocs (compartilhadas
Elaboração e atualização de planilhas diversas com as equipes) com informações de liberações de bolsas
professores e tutores
Atendimento à coordenação de curso Auxilio a coordenação

Agendamentos de reuniões Reuniões da Coordenação, da Designer Instrucional

Atendimento telefônico Diversos ao longo do período de trabalho

Tramitações Encaminhamento de documentos com tramitação

Ofícios Encaminhamento de ofícios diversos


Organização de material para as avaliações de provas e envio de Organização do material (empacotamento e postagem das
material avaliação e livros) e envio aos polos pelo Correio.
Auxilio a Supervisora de Tutores Auxilio a nova de tutores e orientações sobre o trabalho

Auxílio à secretaria Auxílio a distribuição de materiais, viagens e orientações.


Organização de arquivo – documentações diversas (ofícios,
Arquivamento de documentação
provas, listas de presença)
Contato com os polos Contato com os Polos sobre procedimentos do curso
Auxilio a alunos do curso Atendimento e orientação dos alunos do curso – diversos
2

RELATÓRIO DE APOIO ADMINISTRATIVO DOS CURSOS EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

assuntos
Organização de planilhas – Autorização para liberação de bolsas Organização e encaminhamento a CAPE/SEaD da listagem de
CAPES aos bolsistas do curso bolsistas do curso (profs e tutores)
E-mails gerais Diversos ao longo do período de trabalho

Atualização do SisUAB Atualização de dados do curso na plataforma de suporte UAB

Envio de carteirinhas estudantis Para São Carlos, Araras, Franca, Apiaí e Balsamo.

Inclusão de dados ProgradWeb Preenchimento de dados no ProgradWeb


Acompanhamento do preenchimento dos formulários e
Formulários de viagens
encaminhamento
Suporte+%28TI%29

Núm Tipos de serviço Solicitante Atribuído a Categoria Data de Envio Atualizado Resumo Estado
2104 Suporte (TI) Felipe Pedrini – Equipe Moodle Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-02 2013-10-02 Troca de Maquina Resolvido
2105 Suporte (TI) Adriano Leite da Silva Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-02 2013-10-02 instalação do computador da Aline Resolvido
2110 Suporte (TI) Clarissa Bengtson Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-02 2013-10-02 Instalação do pacote Adobe CS5.5 Resolvido
2128 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-03 2013-10-03 SEaD/Moodle: Cadastro Tutor Presencial - EM Resolvido
2133 Suporte (TI) Silvia Maria Felicio Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Remoção de softwares 2013-10-03 2013-10-04 Instalação de software Resolvido
2126 Suporte (TI) Elaine Franco Vicente Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-03 2013-10-04 Notebook não liga Fechado
2175 Suporte (TI) Clarissa Bengtson Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-08 2013-10-08 Instalação de programas Resolvido
2180 Suporte (TI) Adriano Leite da Silva Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-08 2013-10-08 MONTAGEM EQUIPAMENTOS - CODAP Resolvido
2129 Suporte (TI) Adriano Leite da Silva Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-03 2013-10-08 INSTALAÇÃO MAQUINAS SALAS Resolvido
2228 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-10 2013-10-11 Reativação de Perfil - LDAP e Moodle Resolvido
2238 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-11 2013-10-11 Reativação de cadastro de aluno no moodle - EM Resolvido
2177 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-08 2013-10-15 Cadastro Tutores Presenciais GDE Resolvido
2305 Suporte (TI) Priscila Cristina Fiocco Bianchi Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Remoção de softwares 2013-10-16 2013-10-16 Instalação do software pdf profissional Resolvido
2292 Suporte (TI) Adriano Leite da Silva Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-16 2013-10-16 INSTALAÇÃO MAQUINA - AT3 - SALA ESPECIALIZAÇAO Resolvido
2308 Suporte (TI) Aldrei Jesus Galhardo Batista Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Remoção Office 2013-10-16 2013-10-16 Não consigo abrir um arquivo Resolvido
2267 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-14 2013-10-17 Alunos com pedido de reintegração de vaga em andamento - Pe Resolvido
2324 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-17 2013-10-17 Cadastramento de tutor presencial GDE 2013 Resolvido
2284 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-15 2013-10-17 Cadastro de Tutores Presenciais do GDE Fechado
2277 Suporte (TI) Ricardo Henrique Parra Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-15 2013-10-17 Cadastro Tutores Presenciais GDE Fechado
2388 Suporte (TI) Bruno Derisso - Equipe Moodle Ana Paula Souza do Nascimento Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-22 2013-10-23 Cadastro de tutores presenciais Resolvido
2422 Suporte (TI) Paulo Roberto Montanaro Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-23 2013-10-24 Cadastro de estagiários no LDAP e no ambiente do grupo de estudos Resolvido
2229 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-10 2013-10-24 Reativação de cadastro de aluno - EM Resolvido
2454 Suporte (TI) Rodrigo Kensan Sucomine Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-10-25 2013-10-25 Cadastrar aluna para poder adicionar no curso GDE Resolvido
2472 Suporte (TI) Manuela Marinelli Rossit Guilherme Ruggiero Formatação de computador 2013-10-29 2013-10-29 Limpeza de Cooler Resolvido
2469 Suporte (TI) Silvia Maria Felicio Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-10-29 2013-10-30 Limpeza notebook Resolvido
2525 Suporte (TI) Rodrigo Kensan Sucomine Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-01 2013-11-01 Cadastrar colaboradores no LDAP Resolvido
2526 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-01 2013-11-01 Cadastro dos usuários das Coordenações de Curso no LDAP e no Moodle 2 Resolvido
2541 Suporte (TI) Leandro Fagner Almeida Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-05 2013-11-05 Cadastro de novo Estagiario Moodle Resolvido
2558 Suporte (TI) Clarissa Bengtson Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-06 2013-11-06 Configuração de senha Resolvido
2552 Suporte (TI) Mariana Derigi Ambrózio Equipe Desenvolvimento Cadastro de Usuários no SInApSE 2013-11-05 2013-11-06 Cadastro de usuários Resolvido
2565 Suporte (TI) Jennifer Kaon Cheng Lu Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de dispositivos 2013-11-06 2013-11-06 Imagem trêmula no monitor Resolvido
2574 Suporte (TI) Mariana Derigi Ambrózio Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-07 2013-11-07 Cadastro de usuário Resolvido
2583 Suporte (TI) Clarissa Bengtson Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-08 2013-11-08 Intalação do Codec Resolvido
2577 Suporte (TI) Thiago Berto Nóbrega Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de dispositivos 2013-11-07 2013-11-11 Conexão sem fio SEaD Resolvido
2608 Suporte (TI) Daiane Oliveira Filo Guilherme Ruggiero Instalação/Manutenção/Configuração de impressora 2013-11-12 2013-11-12 Instalação de Impressora Resolvido
2612 Suporte (TI) Jessica Sayuri Nishiguchi Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-12 2013-11-12 Limpeza de Disco e Instalação Adobe Master Collection CS5 Resolvido
2671 Suporte (TI) Gisele Patrícia Pingueiros Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de impressora 2013-11-13 2013-11-13 Não estou conseguindo realizar impressões. Resolvido
2646 Suporte (TI) Clarissa Bengtson Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-13 2013-11-13 Instalação de programas. Resolvido
2621 Suporte (TI) Aparecida Ribeiro Marco Tulio Lemes Oliveira Dúvidas Gerais 2013-11-12 2013-11-14 Solicitação de um novo monitor tamanho 19 Resolvido
2730 Suporte (TI) Hérica Cristina de Miranda Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Remoção de softwares 2013-11-18 2013-11-18 Instalação do Camtasia no notebook Resolvido
2749 Suporte (TI) Ricardo Henrique Parra Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-19 2013-11-19 Cadastro de Usuarios Resolvido
2776 Suporte (TI) Daiane Oliveira Filo Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de dispositivos 2013-11-20 2013-11-21 Pimaco Resolvido
2805 Suporte (TI) Gisele Patrícia Pingueiros Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de impressora 2013-11-22 2013-11-22 Não estou conseguindo realizar impressões. Resolvido
2806 Suporte (TI) Daniel Ettore Storolli Franca Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-22 2013-11-22 PC AT3 - TS Felipe Resolvido
2789 Suporte (TI) Silvia Maria Felicio Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de impressora 2013-11-21 2013-11-22 Problemas na impressão Resolvido
2811 Suporte (TI) Felipe Pedrini – Equipe Moodle Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção de computadores 2013-11-22 2013-11-22 Erro de Drivers Resolvido
2810 Suporte (TI) Silvia Maria Felicio Marco Tulio Lemes Oliveira Formatação de computador 2013-11-22 2013-11-22 Formatação de computador Resolvido
2829 Suporte (TI) Ricardo Henrique Parra Cristian Kawakami Cadastro de Usuário(s) no LDAP 2013-11-25 2013-11-25 Cadastro no Ldap Atribuído
2830 Suporte (TI) Daniel Ettore Storolli Franca Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Configuração de dispositivos 2013-11-25 2013-11-25 Reconfigurar roteador LOA Resolvido
2848 Suporte (TI) Daiane Oliveira Filo Marco Tulio Lemes Oliveira Teste de equipamentos e software 2013-11-26 2013-11-26 Teste de TV para reunião via skype Resolvido
2858 Suporte (TI) Hérica Cristina de Miranda Marco Tulio Lemes Oliveira Instalação/Manutenção/Remoção de softwares 2013-11-26 2013-11-26 Instalação do Camtasia no CD Resolvido

Página 1
Ministério da Educação – MEC
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Diretoria de Educação a Distância – DED
Universidade Aberta do Brasil – UAB
Programa Nacional de Formação em Administração Pública – PNAP
Especialização em Gestão Pública

PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO GOVERNAMENTAL


Renato Peixoto Dagnino

2012
2ª edição
© 2012. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Todos os direitos reservados.
A responsabilidade pelo conteúdo e imagens desta obra é do(s) respectivos autor(es). O conteúdo desta obra foi licenciado temporária e
gratuitamente para utilização no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, através da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o
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A citação desta obra em trabalhos acadêmicos e/ou profissionais poderá ser feita com indicação da fonte. A cópia desta obra sem autorização
expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanções previstas no Código Penal, artigo 184, Parágrafos
1º ao 3º, sem prejuízo das sanções cíveis cabíveis à espécie.

1ª edição – 2009

D126p Dagnino, Renato Peixoto


Planejamento estratégico governamental / Renato Peixoto Dagnino. – 2. ed. reimp. –
Florianópolis : Departamento de Ciências da Administração / UFSC, 2012.
166p. : il.

Especialização – Módulo Básico


Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-61608-85-9

1. Planejamento estratégico. 2. Planejamento governamental. 3. Administração pública.


4. Educação a distância. I. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Título.

CDU: 65.012.2

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071


PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR – CAPES

DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDÁTICOS


Universidade Federal de Santa Catarina

METODOLOGIA PARA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Universidade Federal de Mato Grosso

AUTOR DO CONTEÚDO
Renato Peixoto Dagnino

EQUIPE TÉCNICA
Coordenador do Projeto – Alexandre Marino Costa

Coordenação de Produção de Recursos Didáticos – Denise Aparecida Bunn

Capa – Alexandre Noronha

Ilustração – Igor Baranenko

Projeto Gráfico e Editoração – Annye Cristiny Tessaro

Revisão Textual – Sergio Luiz Meira

Créditos da imagem da capa: extraída do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.
SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................... 9

Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Introdução...................................................................................... 21
Um Breve Histórico do Planejamento................................................ 22
O Contexto Sociopolítico em que se Deve Inserir o Planejamento Estratégico
Governamental.......................................................................................... 25
A Democratização Política e o “Estado Necessário”...................................... 29
A Construção do “Estado Necessário” e o Planejamento Estratégico Governamental... 38
O Contexto Disciplinar da Administração Pública................................................ 43
Políticas Públicas e Políticas Sociais............................................................ 44
O Gestor Público e o Administrador de Empresas......................................... 48
Administração de Empresas, Administração Geral e Administração Pública... 50
A Formação do Gestor Público...................................................................... 52

Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergên-


cia e Enfoque

Introdução..................................................................................................... 65
A Ciência Política e a Supervalorização do Político............................................ 67
A Administração Pública e a Subvalorização do Conflito..................................... 69
A Concepção Ingênua do Estado Neutro................................................. 70
Os Enfoques da Análise de Política e o Planejamento Estratégico Situacional como
Fundamentos do Planejamento Estratégico Governamental............................... 73
O Enfoque da Análise de Política......................................................................... 76
O Enfoque do Planejamento Estratégico Situacional............................................ 83

Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Introdução..................................................................................................... 91
Uma Visão Preliminar do Resultado...................................................................... 95
Agir Estratégico.......................................................................................... 98
Pressupostos para uma Ação Estratégica em Ambiente Governamental........ 98
O Conceito de Ator Social.................................................................... 99
Características do Jogo Social................................................................... 99
Os Momentos da Gestão Estratégica........................................................... 100
A Análise de Governabilidade – o Triângulo de Governo..................................... 102
A Situação-Problema como Objeto do Planejamento Estratégico Governamental... 108
Conceito de Problema (ou situação-problema)........................................... 109
Tipos de Problemas................................................................................. 110
Conformação de um Problema................................................................ 111
Como Formular um Problema?....................................................................... 112
Perguntas para Verificar se a Seleção de Problemas é Apropriada............... 113
A Descrição de um Problema....................................................................... 114
A Explicação da Situação-Problema.............................................................. 116
A Diversidade das Explicações Situacionais.................................................. 116
O Fluxograma Explicativo da Situação........................................................ 118
Seleção de Nós Críticos............................................................................ 119
Mãos à Obra................................................................................................. 122
Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

Introdução..................................................................................................... 131
Uma Visão Preliminar do Resultado...................................................................... 132
Planejar por Situações-Problema.......................................................................... 135
Operações........................................................................................................... 139
Matriz Operacional.......................................................................... 141
Ações, Atividades, Tarefas.......................................................................... 141
Etapas para a Formulação de um Plano de Ação.......................................... 144
Gestão do Plano........................................................................................ 146
Atuar sob Incerteza........................................................................... 146
Focos de Debilidade de um Plano........................................................................ 148
Componentes de um Sistema de Planejamento Estratégico Governamental.......... 149

Considerações Finais.......................................................................................... 154

Referências.................................................................................................... 160

Minicurrículo.................................................................................................... 166
Planejamento Estratégico Governamental

8 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

APRESENTAÇÃO

Caro estudante!
Esta disciplina foi concebida tendo por referência a
constatação de que os gestores públicos brasileiros, atores centrais
do espaço onde ocorre o Planejamento Estratégico Governamental
(PEG), terão de seguir por muito tempo atuando no interior de um
aparelho de “Estado Herdado” que não se encontra preparado para
atender às demandas da sociedade quanto a um estilo alternativo
de desenvolvimento mais justo, economicamente igualitário e
ambientalmente sustentável. Ao mesmo tempo, os gestores públicos
terão de transformar o “Estado Herdado” no sentido da criação do
“Estado Necessário”, entendido como um Estado capaz não apenas
de atender às demandas presentes, mas de fazer emergir e satisfazer
novas demandas embutidas nesse estilo alternativo.
Por isso, e para que fiquem claras as razões que explicam as
características que a disciplina possui, mencionaremos, em mais
de uma oportunidade ao longo das unidades deste livro, vários dos
aspectos envolvidos na transição do “Estado Herdado” para o
“Estado Necessário”. Estudaremos ainda o porquê de falarmos em
Estado Herdado e Estado Necessário. Qual a diferença entre os dois?
O recurso que utilizamos para marcar a diferença entre a
situação atual e a futura, desejada, de opor o “Estado Herdado” e
a proposta de “Estado Necessário”, tem como inspiração o
tratamento dado ao tema por Aguilar Villanueva (1996). Vários
outros autores latino-americanos, entre os quais Atrio e Piccone
(2008) e Paramio (2008), dois dos mais recentes, têm abordado,
ainda que focalizando uma “cena de chegada” um tanto distinta,
processos de transição como o que nos preocupa. Com uma

Módulo Básico
9
Planejamento Estratégico Governamental

perspectiva ideológica bem mais próxima da que adotamos aqui,


cabe citar, para ficar porém se tratando dos mais recentes, os
trabalhos de O’Donnell (2007 e 2008) e Mora-Alfaro (2009), que
atualizam sua visão sobre o Estado latino-americano e indicam
novos rumos para o debate. E ainda o trabalho de Thwaites Rey
(2008), que apresenta uma análise inovadora sobre a intermediação
que realiza o Estado na relação entre as classes dominantes latino-
americanas e o cenário globalizado, e de Brugué (2004), que
provocativamente coloca como condição de transformação do
Estado a promoção e um estilo de gestão baseado na “paciência”
e na “feminilização”.
Esta é a maneira que adotamos para referirmo-nos a uma
configuração do Estado capitalista alternativa à atualmente
existente, pela via de uma aderência e de uma condição de
viabilização de um cenário normativo em construção no âmbito de
um processo de radicalização da democracia, distinta daquela
proposta, por exemplo, por Guillermo O’Donnell – reconhecido como
um dos mais agudos analistas latino-americanos das relações
Estado-Sociedade. Num pronunciamento recente, ele mencionou
um Estado que, apesar de abrigar bolsões autoritários, é capaz de
impulsionar a expansão e consolidação das diversas cidadanias
(civil, social e cultural, além da política já estabelecida num regime
democrático) implicadas por uma democracia mais plena, e ir-se
transformando, assim, num Estado democrático (O'DONNELL,
2008). Contudo, temos de destacar nossa opção de levarmos em
conta esses aspectos para a concepção desta disciplina. E, também,
que a realização de opções distintas levaria, como é evidente, à
elaboração de uma disciplina de PEG com características distintas.
Vale ainda destacarmos, adicionalmente, e de partida, que
entendemos que ajustar o aparelho de Estado visando à alteração
e à conformação das relações Estado-Sociedade, desde que
respeitando as regras democráticas, é um direito legítimo, uma
necessidade, e um dever colocados aos governos eleitos com o
compromisso político de levar a cabo suas propostas. Portanto,
assumir explicitamente essa intenção não diferencia o governo Lula
de outros que ocuparam anteriormente o aparelho de Estado.

10 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

Não obstante, partimos também da constatação de que a


Reforma Gerencial do Estado brasileiro inaugurada na década de
1990, dado o impulso que ganhou e os laços de realimentação
sistêmica que produziu, segue em curso, o que ocorre de modo lento
e desigual, em consequência da oposição, às vezes meramente
corporativa, que vem sofrendo no âmbito da sociedade e do próprio
aparelho do Estado. E, de modo genérico, porque a correlação de
forças vigente no cenário político nacional impede que ela siga no
ritmo pretendido pelos seus partidários.
É importante reconhecermos que, mesmo de forma
fragmentada, a Reforma Gerencial continua na lista das mudanças
que estão sendo realizadas, no âmbito do aparelho de Estado, não
deixando hoje espaço para que as ações que estão conduzindo ao
“Estado Necessário” sejam colocadas na agenda governamental
com a centralidade que elas merecem.
Em consequência, estamos assistindo a um paradoxo,
extensivo a outros países latino-americanos, de governos de
esquerda democraticamente eleitos não estarem sendo capazes de
fazer avançar a democratização de seus respectivos países, já que
vários autores latino-americanos têm apontado que esses governos,
embora estejam sancionando e respaldando a cidadania política,
estão se omitindo ou se demonstrando incapazes de sancionar e
respaldar direitos emergentes de outros aspectos da cidadania
(O’Donnell, 2008), e correndo o risco de sofrer uma derrota
catastrófica por caírem na armadilha do “possibilismo” e do
tecnicismo que conduzem ao imobilismo (BORÓN, 2004).
Coutinho (2007), assumindo uma postura ainda mais crítica
e usando categorias gramscianas, considera que a época neoliberal
que vivemos no Brasil não deveria ser considerada como uma
“revolução passiva” e sim como uma “contrarreforma”. Apontando
para o fato de personalidades dos partidos democráticos de
oposição estarem se incorporando à “classe política” conservadora,
hostil à intervenção das massas populares na vida estatal, ou de
grupos radicais inteiros estarem passando ao campo moderado,
ele faz referência ao conceito de transformismo: processo em que
as classes dominantes buscam obter governabilidade em processos

Módulo Básico
11
Planejamento Estratégico Governamental

de transição “pelo alto” através da cooptação das lideranças


políticas e culturais das classes subalternas diminuindo sua
propensão à transformação social.
Frequentemente, podemos observar a implementação de algo
mais alinhado com a Reforma Gerencial do que com a proposta do
“Estado Necessário”. E isso, apesar de parecer ser este o modelo
de Estado privilegiado pelo governo Lula. Por estar num nível
claramente incipiente, o processo que irá possibilitar a transição
do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário” não pode
prescindir de conteúdos como os que esta disciplina pretende
proporcionar aos gestores públicos.
Contudo, para que esse processo se efetive, consideramos
importante e indispensável a ação dos gestores públicos –
concordam com essa ideia vários pesquisadores latino-americanos
orientados a formular recomendações para a capacitação de
gestores públicos, como Ospina (2006) e Longo (2006), além de
outros, como Echebarría Koldo (2006), preocupados em comparar
países latino-americanos em termos da relação entre o que
denominam “configuração burocrática” e “efetividade do sistema
democrático”. Contamos ainda com O’Donnell (2008), que
considera os gestores públicos como uma “âncora” indispensável
dos direitos da cidadania. O autor destaca que sem esta
“ancoragem” um regime democrático simplesmente não existe e se
converte numa caricatura em que se realizam eleições que não
satisfazem requisitos mínimos de competitividade, equidade e
institucionalização. E afirma que sem eles, os setores postergados e
discriminados, que não têm possibilidade de “fugir” do Estado
(Herdado) mediante a contratação de diversos serviços ou
benefícios privados, continuarão sendo excluídos.
Assim, podemos dizer que esta disciplina é uma condição
necessária, inclusive, para assegurar que as mudanças que venham
a ser realizadas na configuração do Estado se deem de forma
competente, criteriosa, sem comprometer os êxitos anteriormente
obtidos e com a máxima aderência aos consensos alcançados na
sociedade brasileira de respeito à participação cidadã, democrática
e republicana de todos os seus integrantes. Schmitter (2006)

12 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

encontrou, a partir de uma análise transversal para mais de cem


países, um índice de correlação significativamente alto
(aproximadamente de 0,9) entre “grau de democracia de um país”
e “capacidade de gestão do seu Estado”. Embora não seja possível
afirmar que exista uma relação de causalidade em qualquer dos
dois sentidos, a alta correlação já é suficiente para chamar a
atenção para a necessidade de que mudanças na configuração do
Estado acompanhem o ritmo do processo de democratização em
curso no País.
Seu objetivo, num plano mais específico, é contribuir para
que as atividades de gestão pública levadas a cabo nos vários níveis
e instâncias governamentais que abarca o Estado brasileiro passem
a ser realizadas em conformidade com os princípios do
Planejamento Estratégico Governamental (PEG). Entendido este,
vale repetir, como um dos instrumentos para viabilizar a transição
do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário”.
E, é por essa razão que este livro trata a questão dessa
transição nos dois capítulos que seguem de um modo que você,
seus colegas, e até alguns dos professores universitários formados
na tradição acadêmica, no contexto do “Estado Herdado”,
poderiam considerar excessivo. Ao buscar romper o que poderia
ser entendido como uma espécie de círculo vicioso que faz com
que a maioria de professores e alunos tendam a reproduzir o que
os anos de autoritarismo e neoliberalismo “naturalizaram” a respeito
das relações Estado-Sociedade, esses dois capítulos “preparam o
terreno” para que o objetivo da disciplina – desenvolver uma
ferramenta de gestão pública comprometida com a viabilização
daquela transição – seja alcançado.
Essa é a forma que escolhemos para aumentar a
probabilidade de o PEG – que trata de uma atividade ainda não
presente na gestão pública brasileira e que teria de substituir outra,
que aqui se denomina simplesmente planejamento governamental,
na atualidade visivelmente “contaminada” pelo planejamento
corporativo – vir a ser adotado.
A disciplina pode ser entendida como o resultado da
convergência de dois enfoques relacionados à gestão pública, ou

Módulo Básico
13
Planejamento Estratégico Governamental

mais especificamente ao processo de elaboração de políticas


públicas: a Análise de Políticas e o Planejamento Estratégico
Situacional.
Assim, podemos afirmar que a disciplina Planejamento
Estratégico Governamental é fruto de um processo iniciado em
meados da década de 1990, quando, no âmbito de um projeto que
visava à criação de uma Escola de Governo na Unicamp,
começaram a docência e a pesquisa resultando na implantação do
Curso de Especialização em Gestão Estratégica Pública junto ao
Grupo de Análise de Políticas de Inovação, em 2001, e do Programa
de Gestão Estratégica Pública, ligado à Pró-reitoria de Extensão e
Assuntos Comunitários da universidade.

RELAÇÃO COM AS DEMAIS DISCIPLINAS DO CURSO

Por estar focada em aspectos “operacionais” associados a


uma abordagem incremental de resolução de situações-problema
que visam à atuação e à capacitação continuada do aluno no seu
ambiente de trabalho, a disciplina não logrará a materialização dos
objetivos mencionados se não contar, por um lado, com o apoio de
metodologias que integram o arsenal do enfoque da Análise de
Políticas sumariamente apresentado adiante. E, por outro lado e
num sentido mais político, com os elementos cognitivos,
proporcionados pelas demais disciplinas. Sejam os orientados a
construir no plano analítico-conceitual uma proposta de
reorientação do Estado no sentido de aproximá-lo das
características (ou princípios) da proposta do Estado Necessário,
sejam aqueles que oferecem os balizamentos sobre o rumo a seguir
para conduzir o País na construção daquele estilo de
desenvolvimento alternativo.
O PEG deve subsidiar as ações que se realizam no contexto
maior da gestão pública; em particular aquelas que se relacionam
ao ciclo de elaboração das políticas públicas (formulação,

14 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

implementação e avaliação). O fato de o PEG poder ser considerado


como um momento recorrente desse ciclo e de ele ocorrer no interior
de um aparelho de Estado capitalista periférico, histórico e
socialmente construído ao longo de uma trajetória marcada pela
relação de forças econômicas e políticas e a dupla natureza – de
policy e de politics – das políticas públicas fazem com que esta
disciplina apresente muitos pontos de contato com as demais que
integram o Curso:

 Políticas Públicas: em função de sua relação com o


processo de elaboração das políticas públicas; em
especial ao seu momento de formulação.
 Estado, Governo e Mercado e O Público e o Privado
na Gestão Pública: porque nelas se exploram em
detalhes as particularidades e perspectivas de mudança
daquela específica conformação da relação Estado-
Sociedade que temos e que evidenciam as dificuldades
e margens de manobra caracterizando o contexto onde
o PEG deverá se desenvolver.
 Desenvolvimento e mudanças no Estado brasileiro e
O Estado e os Problemas Contemporâneos: pois se
focaliza, segundo um ponto de vista dinâmico e aberto
aos processos de construção democrática em curso, o
papel que o PEG deve desempenhar, no plano
operacional em que ele se situa, como alavancador
desses processos.
 Elaboração de Indicadores: já que apresenta algumas
das metodologias nas quais se apoia o PEG. Ao
“traduzir”, de forma passível de ser operacionalizada
pelas metodologias de elaboração de políticas públicas
e, em particular, pelo PEG, a multiplicidade de
aspectos tratados pelas disciplinas recém-nomeadas,
a elaboração de indicadores fornece uma matéria-
prima essencial para o conjunto das atividades
envolvidas com a gestão pública.

Módulo Básico
15
Planejamento Estratégico Governamental

SOBRE AS UNIDADES QUE COMPÕEM A DISCIPLINA

Para atendermos ao objetivo mais ambicioso expresso nos


parágrafos iniciais – fazer com que as atividades de gestão pública
do Estado brasileiro passem a ser realizadas em conformidade com
os princípios do PEG de modo a contribuir para viabilizar a
transição do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário” – é
necessário tratarmos em separado cada um dos elementos dessa
declaração.
A longa trajetória que visa à concretização desse objetivo
tem inicio com a Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao
Planejamento Estratégico Governamental. Seu propósito central é
examinar o contexto sociopolítico brasileiro onde deve estar inserido
o PEG, que se caracteriza pelo processo em curso de construção
do “Estado Necessário”, e o contexto disciplinar da Administração
Pública, uma vez que ambos, por se apresentarem como adversos,
precisam estar sempre presentes na ação dos atores sociais
interessados na implantação do PEG no âmbito do Estado
brasileiro.
A Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental
como convergência de enfoques – possui um propósito semelhante.
Isso porque é também importante para você, aluno, pois se espera
ter presentes as opções que conduziram à proposta de PEG com as
características que possui esta disciplina. A Unidade apresenta,
por isso, a Análise de Políticas que surgiram nos países avançados,
na década de 1970, de uma confluência entre a Ciência Política e a
Administração Pública, e o Planejamento Estratégico Situacional,
que iniciou na América Latina na mesma época como uma crítica
ao planejamento convencional.
Explicadas as razões que levaram à proposta da disciplina
aqui apresentada e estabelecidos os fundamentos teórico-
metodológicos em que ela se apoia, as duas Unidades seguintes se
concentram na apresentação das duas metodologias cujo objetivo
é a sua operacionalização: a Metodologia de Diagnóstico de
Situações (Unidade 3), concentrada na construção do fluxograma

16 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

explicativo de situações-problema, e a Metodologia de Planejamento


de Situações (Unidade 4) que, a partir deste fluxograma, permite o
detalhamento da matriz operacional (ações, atores, recursos, prazos
etc.) e completa o ciclo do PEG.
A apresentação desses quatro conteúdos – o conceito de
Planejamento Estratégico Governamental e seus princípios, o
histórico do planejamento, o contexto das relações Estado-
Sociedade e o contexto disciplinar da Administração Pública – é o
propósito da primeira Unidade da disciplina, intitulada “Conteúdos
Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental”. Dado
que esses conteúdos, em especial os dois últimos, se apoiam em
assuntos que são detalhadamente abordados em outras disciplinas
do Curso, chamaremos sua atenção, em cada caso, para as relações
que com elas se pretende estabelecer.
Por fim, nas Considerações Finais, apresentaremos os
procedimentos metodológicos a serem seguidos com vista a atingir
os objetivos que a disciplina pretende alcançar.
É conveniente ressaltarmos, neste sentido, que a ideia a qual
orientou a concepção desta disciplina (e do Curso como um todo)
é muito distinta daquela que subjaz às propostas realizadas pela
Reforma Gerencial (BRESSER-PEREIRA, 2007). Contudo, para
uma referência mais recente e menos irrealista, podemos considerar
a Carta Ibero-americana de Qualidade na Gestão Pública (2008),
que pretende ser um instrumento útil sobre o comportamento do
“bom burocrata” propondo aos gestores em vez de uma lista de
recomendações sobre a conduta, baseada na “responsabilidade
social”, na “ética”, na “qualidade” etc., um conteúdo analítico-
conceitual e metodológico que os tornem capazes de exercer sua
discricionariedade para materializar a escolha que fizeram de
melhorar a relação Estado-Sociedade.

Módulo Básico
17
UNIDADE 1
CONTEÚDOS INTRODUTÓRIOS AO
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
GOVERNAMENTAL

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Descrever os principais modelos de planejamento, no mundo e
no Brasil;
 Correlacionar o processo de redemocratização com as características
do “Estado Necessário”; e
 Compreender o PEG como instrumento de que o gestor público pode
dispor para que o Estado adquira competência para prover soluções
às demandas sociais, antigas e novas.
Planejamento Estratégico Governamental

20 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

INTRODUÇÃO

Embora o título desta Unidade possa dar a impressão de


que seu objetivo é tão somente introduzir o tema e que por isso não
merece ser entendido como um assunto importante para a sua
formação, esta seção é, de fato, uma das Unidades da disciplina.
Tal como a Unidade seguinte, ela é essencial para a compreensão
das que a seguem, orientadas à exposição das duas metodologias
mais utilizadas no PEG.
Iniciaremos com um breve histórico do planejamento de
modo a explicitar algumas características do contexto sociopolítico
em que se verificam as relações Estado-Sociedade no capitalismo
periférico. Em conjunto com as demais seções, ele permite ressaltar
o ambiente adverso no qual se pretende que o PEG seja implantado.
Vamos começar?

Módulo Básico
21
Planejamento Estratégico Governamental

UM BREVE HISTÓRICO DO
PLANEJAMENTO

Embora o planejamento possa ser considerado como uma


extensão do pensamento marxista, na medida em que estava nele
implícita a possibilidade de conferir ao Estado herdado do
capitalismo um papel destacado na organização das tarefas
associadas à transição ao socialismo, foi somente no período da
Nova Política Econômica, início dos anos de 1920, que o
planejamento se integrou ao arsenal do Estado soviético.
Na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
inspirado na experiência do exército revolucionário advinda da luta
contra a burguesia e contra os inimigos externos, e apoiado pelos
estudos que vieram a constituir a metodologia de balanço
intersetorial (matriz de insumo-produto), o planejamento logo se
afirmou como instrumento de organização da economia socialista.
A potencialidade que ele apresentava em termos de
prospectiva, simulação e organização para a consecução das metas
econômico-produtivas permitiu que em menos de um quinquênio
fosse possível atingir os níveis de produção agrícola e industrial
vigentes antes da destruição causada pela guerra, pela revolução e
pela sabotagem contrarrevolucionária.
A rápida industrialização e o crescimento da produção
agrícola da URSS permitiram que ela despontasse como uma aliada
essencial para a vitória sobre o nazismo e, já num contexto de
Guerra Fria, o planejamento passou a gerar efeitos socioeconômicos
positivos nos demais países do bloco socialista.

22 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

No âmbito dos países capitalistas, o planejamento – com a


conotação aqui adotada e fazendo referência ao âmbito global e
público, referido a um território delimitado por alguma instituição
estatal – passou a ser visto, pela esquerda, como uma possibilidade
de superar as relações sociais e técnicas de produção capitalistas
na direção de algum tipo de socialismo. E, pela direita, como uma
maneira de evitar as “falhas de mercado” e, assim, substituir,
racionalmente ainda que parcialmente, o seu papel como ente
regulador e alocador de recursos.
Em alguns desses países, governos populares adotaram
planejamentos com características socialistas, imitando a
experiência soviética. A experiência da Frente Popular, na França,
em meados da década de 1930, foi a mais significativa. No extremo
ideológico oposto, na Alemanha, os dirigentes nazistas preferiram
a racionalidade do planejamento à capacidade do mercado de
otimizar a alocação de recursos. Isso aconteceu, primeiro, no que
se relacionava à preparação para a guerra; depois, se estendeu
para toda a economia, pois o Estado alemão passou a adotar
métodos desenvolvidos no âmbito militar.
Ainda que não as possamos caracterizar propriamente como
planejamento na acepção que o termo viria a ter posteriormente,
as iniciativas implementadas durante o esforço de guerra e nos
processos de reconstrução europeia no imediato pós-guerra se
utilizaram de métodos (de planejamento) que se aproximavam
*Keynesiana – teoria eco-
daqueles usados no campo socialista.
nômica que procura re-
O sucesso dessas iniciativas foi um elemento importante para solver o problema do de-
que a ideia do planejamento ganhasse força na América Latina. semprego pelo aumento

Experiências anteriores, como as que ocorreram no início da década dos gastos públicos e
pela diminuição das ta-
de 1940 no Brasil, receberam impulso, estimuladas no pós-guerra
xas de juros, para estimu-
pela Organização das Nações Unidas (em especial da Comissão lar o consumo e
Econômica para a América Latina e o Programa das Nações Unidas desencorajar o
para o Desenvolvimento). entesouramento. Fonte:
Lacombe (2004).
No plano teórico, esse processo levou a importantes
contribuições amparadas num amplo espectro ideológico que foi
desde o materialismo histórico até o pensamento conservador,
passando pela visão keynesiana*. No plano das ações de governo,

Módulo Básico
23
Planejamento Estratégico Governamental

surgiram no Brasil, a partir dos


Saiba mais Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976) anos cinquenta, sucessivas
Nascido em Minas Gerais, foi eleito de- experiências de planejamento no
putado federal e realizou obras de re- âmbito federal. Como, por
modelação da capital. Posteriormente exemplo, a do Plano de Metas
foi governador em Minas Gerais. Venceu (1956-1961) do governo de
a eleição para presidente da República Juscelino Kubitschek, bastante
na coligação PSD-PTB com o famoso slogan
bem-sucedida a julgar pelos
“Cinquenta anos em cinco”. Um de seus principais feitos
resultados que obteve.
foi a construção de Brasília e a instituição do Distrito
A experiência brasileira de
Federal. Seu governo foi marcado por mudanças sociais
planejamento se aprofunda
e culturais. Após o término de seu mandato, foi eleito
senador de Goiás, mas foi cassado e seus direitos polí-
durante o período militar.
ticos suspensos pelo regime mi litar. Tentou organizar Sucessivos planos são formulados
uma frente pela redemocratização do País, mas não vol- e implementados a partir de 1964
tou mais ao poder. Fonte: <http://tinyurl.com/lwkaas>. seguindo o estilo autoritário,
Acesso em: 20 jul. 2009. centralizador e economicamente
concentrador que caracterizou os
governos militares. Seu projeto de Brasil-grande-potência
demandava uma mobilização a qual, ainda que em menor grau do
que havia ocorrido no âmbito dos países avançados, demandava
um significativo esforço de planejamento.
No início dos anos de 1970, a implantação de um Sistema
de Planejamento Federal deu origem a três edições do Plano
Nacional de Desenvolvimento. O último deles, com um período de
execução que coincidiu com a perda de legitimidade da ditadura
militar o qual antecedeu a abertura e a redemocratização do País,
terminando por explicitar o caráter demagógico e manipulador que
envolvido na experiência de planejamento dos militares.
Com o governo civil da Nova República, iniciado em 1985,
tentou-se sem muito sucesso retomar iniciativas de planejamento
que fossem além do plano setorial. A partir do governo Collor, com
a adoção da orientação neoliberal, iniciativas de planejamento no
sentido estrito do termo, sobretudo as que visavam a preparar o
País e a sociedade para enfrentar um futuro que já se prefigurava
como difícil, passam a ser cada vez mais escassas.

24 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO EM QUE


SE DEVE INSERIR O PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO GOVERNAMENTAL

Esta seção, assim como as duas que seguem, tem por


objetivo precisar o contexto onde ocorrerá a proposta mais
ambiciosa desta disciplina, ou seja, contribuir para que as
atividades de gestão pública levadas a cabo nos vários níveis e
instâncias governamentais abarquem o Estado brasileiro passando
a ser realizadas em conformidade com os princípios do PEG.
Nesse sentido, esclarecendo nossa opinião, já esboçada ao
longo da retrospectiva realizada na seção anterior, podemos dizer
que o contexto brasileiro atual é adverso à adoção do Planejamento
Estratégico Governamental como um instrumento de gestão pública.
Isso porque as atividades a ele correspondentes se
desenvolveram no interior de um aparelho de “Estado Herdado”,
onde o planejamento teve frequentemente um caráter demagógico
e manipulador (no período militar) ou foi praticamente “desativado”
(no período do neoliberalismo) por não estar preparado para atender
às demandas que nossa sociedade cada vez mais complexa hoje
lhe coloca. As atividades correspondentes ao PEG deverão, inclusive,
buscar sua transformação no sentido do “Estado Necessário”,
entendido como um Estado capaz não apenas de atender àquelas
demandas, mas de fazer emergir e satisfazer as demandas da maioria
da população hoje marginalizada. Um Estado que possa alavancar
o atendimento das demandas da maioria da população e projetar
o País numa rota que leve a estágios civilizatórios superiores.

Módulo Básico
25
Planejamento Estratégico Governamental

Para introduzir o tema central desta seção vamos colocar uma


pergunta: Por que a existência de uma disciplina de PEG num
Curso de Especialização deve ter como compromisso a
capacitação de gestores públicos para promover a construção
do “Estado Necessário”?

A resposta a esta pergunta será formulada em duas etapas.


Primeiramente serão identificadas as características do “Estado
Herdado”. Do processo de sua constituição, em particular do seu
Dentre os muitos
crescimento durante o período autoritário que sucedeu ao nacional-

v
trabalhos que
conceituam o desenvolvimentismo e antecedeu ao seu desmantelamento pelo
neoliberalismo e que nos neoliberalismo, Guillermo O’Donnell, pesquisando sobre as
autorizam a caracterizar particularidades de um tipo específico de Estado capitalista, o
a Reforma Gerencial que
Estado burocrático autoritário latino-americano, é provavelmente
designa o segundo
componente que o pesquisador que mais tem contribuído para o entendimento desse
conforma o que primeiro componente da matriz a qual compõe o chamado “Estado
chamamos “Estado Herdado”, proveniente do período militar. Sua expressão
Herdado” como
“corporativismo bifronte” – combinação de uma face “estatista”
neoliberal,
recomendamos pela sua
levada à “conquista” do Estado e à subordinação da sociedade
clareza e facilidade de civil com outra “privatista” que teria colocado a serviço de setores
entendimento a dominantes suas áreas institucionais próprias – é especialmente
excelente resenha feita
elucidativa (O’DONNELL, 1976).
por Diniz (2007).
Em segundo lugar, serão fornecidos elementos que levam à
constatação de que este Estado herdado por nós é duplamente
incompatível com a proposta de mudança desejada pela sociedade
brasileira, pois sua forma não corresponde ao conteúdo para o qual
deve apontar sua ação. De um lado porque a forma como se
relaciona com a sociedade impede que ele formule e implemente
políticas públicas com um conteúdo que contribua para alavancar
essa proposta. De outro lado porque o modo como se processa a
ação de governo – na sua relação com o Estado existente,
determinado pelos contornos de seu aparelho institucional, é
irreconciliável com as premissas de participação, transparência e
efetividade dessa proposta.

26 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Mas, você sabe caracterizar o "Estado Herdado"?

Além das preferências ideológicas, a combinação que o País

v
herdou do período militar (1964-1985), de um Estado que associava
patrimonialismo e autoritarismo com clientelismo, hipertrofia com
opacidade, insulamento com intervencionismo, deficitarismo com
megalomania, não atendia ao projeto das coalizões de direita e Para uma análise
detalhada deste e de
muito menos daquelas de esquerda que, a partir da
outros “ismos” que
redemocratização, iniciada em meados dos anos de 1989, poderiam caracterizam o “Estado
suceder os governos de então. Reconhecendo a existência de Herdado”
características semelhantes da relação Estado-Sociedade em outros (patrimonialismo,

países latino-americanos, Fragoso (2008) mostra como trajetórias mandonismo,


personalismo,
distintas são manifestadas no que diz respeito ao desenvolvimento
formalismo), ver Costa
do que ele denomina “nova gerência pública”. (2006).

É um princípio básico da ação humana, da atuação


das organizações, e também do PEG, o fato de que
todas as decisões têm um custo de operação e que,
se equivocadas, demandam a absorção de custos de
oportunidade econômicos e políticos.

Saiba mais Luis Carlos Bresser-Pereira


O Estado legado por mais de 20 anos de Dentre os vários tra-
autoritarismo não contemplou os recursos como balhos de sua autoria,
escassos. Os econômicos podiam ser financiados – na obra de Bresser-Pe-
interna ou externamente – com aumento da dívida reira (1998) você en-
imposta à população, os políticos eram virtualmente contra as principais
inesgotáveis, uma vez que seu aparato repressivo a características da Re-
serviço do regime militar sufocava qualquer oposição. forma Gerencial. Seu documento ofi-

A reforma gerencial desse Estado, proposta pela cial (Plano Diretor da Reforma do Apa-
relho de Estado, 1995), que pautou as
doutrina neoliberal e iniciada pelos governos civis
iniciativas governamentais neste
que sucederam à queda do militarismo, não
sentido, é uma transposição de suas
encontrou muitos opositores. O mais conhecido
ideias para uma linguagem não aca-
expoente da proposta de Reforma Gerencial do
dêmica. Fonte: Elaborado pelo autor.
Estado brasileiro é Luis Carlos Bresser-Pereira.

Módulo Básico
27
Planejamento Estratégico Governamental

Para a direita, a questão era inequívoca. Não havia por que


defender um Estado que ela considerava superinterventor,
proprietário, deficitário, “paquidérmico”, e que, ademais, se tornava
crescentemente anacrônico na cena internacional. Na verdade, já
há muito, desde o momento em que, no cumprimento de sua função
de garantir a ordem capitalista, ele havia sufocado as forças
progressistas e assegurado as condições para a acumulação de
capital, ele se tornara disfuncional.
Já para a esquerda, que tinha participado do fortalecimento
do Estado do nacional-desenvolvimentismo, a questão era bem mais
complexa. Ela o entendia como um baluarte* contra a nomeada
*Baluarte – local absolu- dominação imperialista e como uma espécie de sucedâneo de uma
tamente seguro, alicer-
burguesia incapaz, por estar já aliada com o capital internacional,
ce, base. Fonte: Houaiss
(2007).
de levar a cabo sua missão histórica de promover uma revolução
democrático-burguesa. De fato, mesmo no auge do autoritarismo,
o crescimento do Estado era visto pela esquerda como um “mal
menor”: ao mesmo tempo que denunciava o caráter de classe,
repressivo e reprodutor da desigualdade social do Estado brasileiro,
ela via este crescimento como necessário para viabilizar seu projeto
de longo prazo de reconstrução nacional. E, também, para assentar
as bases do que seria o Estado forte capaz de planejar e viabilizar
a transição ao socialismo segundo o modelo soviético ainda vigente.
A questão dividiu a esquerda. De um lado os que, frente à
ameaça de um futuro incerto, defendiam intuitivamente o passado,
e os que, defendendo interesses corporativos, mal-entendendo os
conceitos de Estado, nação e autonomia nacional, defendiam
ardorosamente o Estado que herdáramos. Já de outro lado estavam
os que entendiam que a construção do “Estado Necessário” iria
demandar algumas das providências que já estavam sendo tomadas
e que o fortalecimento de uma alternativa democrática e popular
ao neoliberalismo não privilegiava a questão; e defendiam o
controle da sociedade sobre o processo de privatização.

28 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

A DEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E
O “ESTADO NECESSÁRIO”

Com o final do regime militar, o Brasil iniciou um processo


de democratização política que possibilitou o aumento da
capacidade dos segmentos marginalizados de veicular seus
interesses levando à expressão de uma demanda crescente por
direitos de cidadania.
Na medida em que este processo avançou, foi evidente o
aumento da capacidade dos segmentos marginalizados em
veicularem seus interesses e necessidades não atendidas por bens
e serviços – alimentação, transporte, moradia, saúde, educação,
comunicação etc. – e, com isto, da demanda por políticas públicas
capazes de promover seu atendimento. É o que vem sendo chamado
de cenário tendencial da democratização.

Para satisfazer essas necessidades sociais com


eficiência, e no volume que temos em países como o
Brasil, será necessário “duplicar o tamanho” dessas
políticas para incorporar os 50% desatendidos da
população. Tarefa que, por si só, já evidencia a
importância do PEG.
Muitas contribuições, a

v
partir de uma crítica à
Se não for possível promover um processo de transformação Reforma Gerencial, têm
do “Estado Herdado” em direção ao “Estado Necessário” que apresentado elementos

busque satisfazer as necessidades sociais represadas ao longo de do que aqui enfeixamos


na proposta de “Estado
tanto tempo, o processo de democratização pode ter dificuldade ou
Necessário”. Entre as
mesmo fracassar, com enorme esterilização de energia social e mais recentes, vale citar
política. É claro que para satisfazer àquelas demandas, o ingrediente Tenório e Saravia (2006),
fundamental, que não depende diretamente do Estado, está Thwaites (2008) e Costa
(2006).
relacionado a uma ampla conscientização e mobilização política
que se espera ocorrer sem maiores custos sociais além dos que a
sociedade já vem pagando.

Módulo Básico
29
Planejamento Estratégico Governamental

Podemos, então, afirmar que é necessário que o Estado faça a


“sua parte”?

Sim, é de extrema importância que o Estado faça a “sua


parte” e é esta premissa uma das motivações desta disciplina e do
próprio Curso em que ela está inserida. Isto é, aumentar as chances
de êxito do trabalho que deve ser desenvolvido na “frente interna”
de gerar as condições cognitivas necessárias para a transformação
do Estado. Transformação a qual está sendo impulsionada na “frente
externa” do contexto social e político, pelos segmentos da sociedade
identificados com o estilo alternativo de desenvolvimento que se
desenha para o futuro.
Apesar do exposto até aqui podemos observar que a
correlação de forças políticas, que sanciona uma brutal e até agora
crescente concentração de poder econômico, muito pouco espaço
deixa para que ações internas ao Estado possam alterar a situação
de miséria observada na maioria da população.
Há que se entender a esse respeito que a configuração atual
do Estado brasileiro – o “Estado Herdado” – é uma consequência
da concentração de poder econômico e político vigente no País,
que foi estabelecendo um tipo particular de relação Estado-
Sociedade. Ela se revela na coexistência, no âmbito das políticas
públicas que implementa o Estado, de dois espaços distintos:

 um, que serve à classe proprietária, à criação da


infraestrutura econômico-produtiva e à coordenação
Concordando com o que econômica, que são relativamente preservadas e
é apresentado para a
insuladas do clientelismo seguindo um padrão de
América Latina em geral,
podemos dizer que,
eficiência e eficácia semelhante àquele que vigora no
também em geral, temos Estado de bem-estar dos países avançados.
Corroborando com este cenário O’Donnell (2004)

v
tido e seguimos tendo
um Estado que registra apresenta um esquema para entender e avaliar o
um baixo escore nessas
Estado baseado em quatro dimensões: eficácia que
quatro dimensões.
faz referência ao conjunto de burocracias que o
compõe; efetividade referente ao seu sistema legal;
credibilidade que granjeia como realizador do bem

30 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

comum da nação, ou do povo; e capacidade que é


alusiva à atuação como filtro adequado ao interesse
geral de sua população; e
 outro, que abrange os órgãos pertencentes aos
ministérios sociais os quais servem às classes
subalternas, que são objeto de repartição política entre
os partidos, estes apoiam o governo onde é usual a
prática do clientelismo, em que o padrão se situa muito
abaixo daquele exibido em países periféricos com
renda muito inferior à nossa.

Esse tipo particular de relação Estado-


Sociedade é revelado, também e por Saiba mais Década de 1950
consequência, numa segmentação do A partir dessa época se institui um
funcionalismo público em duas categorias descolamento, que viria a se aprofundar con-
distintas que convivem no interior do Estado. sideravelmente durante o governo militar,
Elas se compuseram na década de 1950, entre os “barnabés”, cujo estatuto foi esta-
quando recém se consolidava uma belecido com a criação do Departamento Ad-
administração meritocrática de tipo ministrativo do Serviço Público (DASP), por

weberiano que pretendia se impor ao modelo ocasião da reforma do Estado iniciada em 1938,

burocrático patrimonial. Com características e a “burocracia pública moderna” que, no nú-


cleo do aparelho administrativo ou nas empre-
profissionais e remuneração muito distintas,
sas estatais, passava a implementar a estraté-
elas passaram a ser responsáveis pelo
gia de desenvolvimento do capitalismo brasi-
funcionamento daqueles dois espaços de
leiro: o nacional-desenvolvimentismo. Fonte:
política pública que vêm desde então
Bresser-Pereira (2007).
contribuindo para aprofundar nossa
concentração de poder econômico e político.
A existência desses dois espaços e, consequentemente, de
dois tipos de burocracia, é também necessário que se entenda,
nunca foi vista como um problema. Como algo que devia ser
“resolvido” no sentido de modernizar o Estado tornando-o mais
próximo dos países de capitalismo avançado que se tomava como
modelos. Ao contrário, uma espécie de acordo entre a classe política
e o segmento não estatutário, mais bem pago, em geral mais bem
preparado e que teve um papel fundamental na execução dos
projetos de desenvolvimento do período militar, terminou levando

Módulo Básico
31
Planejamento Estratégico Governamental

a uma situação totalmente anômala quando comparada com a dos


países avançados, pois, no Brasil, cada vez que assume um novo
Presidente da República, abrem-se 50 mil cargos de “livre
provimento” para nomeação (BRESSER-PEREIRA, 2007).
Para aprofundarmo-nos no entendimento das dificuldades
que envolvem a transição do “Estado Herdado” para o “Estado
Necessário”, é conveniente lembrar uma passagem da obra de Claus
Offe. Ela é elucidativa para entender por que malograram as
tentativas de reforma do Estado que há mais de oitenta anos se
sucedem em nosso País, e tem sido usada por muitos autores, entre
eles Martins e Costa (2006), para criticarem a Reforma Gerencial.
Offe (1994, p. 219) afirma que:

[...] é bem possível que o desnível entre o modo de opera-


ção interno e as exigências funcionais impostas do exterior
à administração do Estado não se deva à estrutura de uma
burocracia retrógrada, e sim à estrutura de um meio
socioeconômico que [...] fixa a administração estatal em
um certo modo de operação [...] É óbvio que um desnível
desse gênero entre o esquema normativo da administração
e as exigências funcionais externas não poderia ser supera-
do através de uma reforma administrativa, mas somente
através de uma “reforma” daquelas estruturas do meio que
provocam a contradição entre estrutura administrativa e
capacidade de desempenho.

Em outras palavras, o que o autor assinala é que o desnível


entre o modo de operação (interno) do Estado e as exigências
funcionais provenientes do exterior não se deve a uma estrutura
burocrática retrógrada, e sim a um ambiente socioeconômico e
político (este sim, “retrógrado”) que condiciona a administração
estatal a um certo modo de operação. E que um desnível desse tipo
não pode ser superado através de uma reforma administrativa. Ele
demanda uma “reforma” das estruturas daquele ambiente que
provocam a contradição entre a administração e sua capacidade
de desempenho.

32 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Enquanto essa “reforma” das estruturas socioeconômicas não


ocorre, é necessário entender que a ideia tão difundida entre
nós de que “o Estado brasileiro não funciona!” deve ser
matizada por essa contribuição de Offe. Isso nos remete a uma
indagação: “será que o Estado brasileiro não funciona bem
para a classe rica?”

É fácil resumir por que isso ocorre. O Estado (capitalista)


brasileiro foi conformado mediante a sucessiva resolução de
agendas decisórias enviesadas pelos interesses e valores da classe
proprietária. E, por isso, ele “funciona”, e muito bem, para esta
classe proprietária. E só irá “funcionar” para a classe trabalhadora
se isso for funcional para a manutenção e naturalização das relações
sociais capitalistas; isto é, para a manutenção da reprodução do
capital. E, além disso, como ocorreu no Estado de bem-estar, quando
a classe trabalhadora, organizada, for capaz de pressionar para
que isso aconteça.

Mas, como se pode fazer o Estado “funcionar” para a classe


trabalhadora?

Mudar a sua conformação, entende o senso comum, implica


um “caminho de volta” e um movimento de “fora para dentro”. Isto
é, supõe alterar o contexto político, econômico e social que garante
a relação de forças que sanciona as agendas que interessam à classe
proprietária. Assim, paulatinamente, o caráter do Estado ou sua
incapacidade de “funcionar” para a classe trabalhadora seriam
alterados. Nessa perspectiva, que é apenas parcialmente correta,
“Reformar” o Estado, mudá-lo de “dentro para fora”, seria irrealista
uma vez que o Estado é um reflexo do contexto.
A visão sistêmica e a consideração da existência do grau de
autonomia relativa existente na relação Estado-Sociedade sugerem
uma problematização dessa questão. Ela permite entender que essa

Módulo Básico
33
Planejamento Estratégico Governamental

alteração prévia do contexto pode não ser suficiente. E, talvez, nem


mesmo necessária.
No que respeita à condição necessária, parece possível ir
mudando aquela conformação mesmo que a relação de forças no
contexto não se tenha ainda alterado a ponto de desencadear uma
mudança “natural” ou socialmente induzida no Estado. Se o
aparelho de Estado está sendo “ocupado” por um governo sensível
às demandas da classe trabalhadora, tenderá a haver dentro dele
uma relação favorável a essa mudança.
Então, esse governo poderá, ainda que a relação de forças
políticas e econômicas no contexto não seja a ela favorável,
pressionar para que a agenda decisória se vá aproximando da sua
agenda de governo; a qual inclui, por construção, as demandas da
classe trabalhadora. E seria justamente esse processo que,
simultaneamente, iria alterando a relação de forças políticas no
contexto e a configuração do Estado herdado por aquele governo.
Suplementarmente, teria de ocorrer, no plano interno, dos
integrantes do aparelho de Estado (burocratas), a neutralização dos
contrários ao atendimento daquelas demandas e a capacitação e
empoderamento daqueles a favor. E, no plano institucional, a
desmontagem de arranjos legais, procedimentos administrativos,
normas de funcionamento etc., que garantiriam o modo de
funcionamento que aquele governo estivesse interessado em mudar.
E, também, a criação de outros arranjos que trouxessem engatilhada
*Accountability – reme- a mudança através da adoção de metodologias de trabalho – entre
te para dimensões como as quais ressaltamos a do PEG – que permitam maior racionalidade,
prestação de contas, res- transparência, accountability* etc. no âmbito interno e, no externo,
ponsabilidade social, ve-
o favorecimento à participação crescente dos movimentos sociais
rificação da qualidade de
serviço prestado, escru-
e da classe trabalhadora.
tínio público, etc. Fonte: O primeiro caso, aquele em que a alteração prévia do
<http://tinyurl.com/ contexto pode não ser suficiente para mudar o caráter do Estado,
nhoz2r>. Acesso em: 15
remete a uma conjuntura em que o contexto, em função de um
set. 2008.
movimento de ascensão da conscientização e mobilização da classe
trabalhadora, está sendo rapidamente alterado, mas em que o
governo que “ocupa” o aparelho de Estado, embora sensível às
demandas da classe trabalhadora, não se mostra capaz de promover

34 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

as mudanças necessárias para responder à alteração do contexto


e, muito menos, para promovê-la.
A cadeia de argumentos e eventos hipotéticos indicados
anteriormente mostra por que nossa proposta de promover a
transição do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário” começa
não por um dos extremos – ambos irrealistas – de reforma do Estado
ou da reforma das estruturas do meio socioeconômico, e sim na
mobilização de um ciclo virtuoso que vai da capacitação dos
gestores públicos para a transformação das relações Estado-
Sociedade. A cadeia explica, também, por que este texto se ocupa
com tanta ênfase na explicitação detalhada do contexto em que os
conhecimentos que a disciplina oferece poderão vir a ser utilizados.
Diversos autores, de países latino-americanos, têm refletido
sobre a associação entre a reflexão desenvolvida sobre as
características da relação Estado-Sociedade, o aumento da
participação política, e a mudança da arquitetura do Estado; e, em
consequência, nas políticas públicas elaboradas nesses países.
Paramio (2008) mostra como as propostas sobre a segunda geração
de reformas, iniciada no final dos anos de 1990, combinadas com
a pressão política contra o impacto social e econômico negativo da
primeira, originam, em função das características daquela relação,
reações distintas em dois grupos de países da região. Atrio e Piccone
(2008), concordando com a ideia de que a mudança no modo de
operação da burocracia depende criticamente das exigências
impostas pela relação Estado-Sociedade, apontam recomendações
para esta mudança.
Contudo, é importante lembrarmos que à medida que a
democratização avance e a concentração de renda, que hoje asfixia
nosso desenvolvimento e penaliza a sociedade brasileira, for sendo
alterada, se amplia o espaço econômico e político para um tipo de
atuação da burocracia com ela coerente. E, nessa conjuntura, o
conhecimento que passarão a deter os gestores que se pretende
capacitar através de iniciativas como esta em que estamos
envolvidos poderá fazer toda a diferença. Isto é, talvez sejam as
ideias apresentadas nos capítulos iniciais deste texto e o
conhecimento mais operativo apresentado no seu final os

Módulo Básico
35
Planejamento Estratégico Governamental

responsáveis por se alcançar ou não a governabilidade necessária

v
A seção que analisa a
questão da para tornar sustentável o processo de mudança social em que a
governabilidade e do
sociedade está empenhada. Daí a importância de disponibilizar
Triângulo de Governo é
especialmente
conhecimentos aos gestores públicos que possam levar à melhoria
elucidativa a este das políticas, ao aumento da eficácia da sua própria “máquina”, e
respeito. à sua transformação numa direção coerente com a materialização
daquele novo estilo de desenvolvimento.
Privatização, desregulação e liberalização dos mercados têm
impedido que o Estado brasileiro se concentre em saldar a dívida
social e, enquanto Estado-nação – capitalista, por certo –, assumir
suas responsabilidades em relação à proteção aos mais fracos, à
desnacionalização da economia e à subordinação aos interesses
do capital globalizado. Assumir essas responsabilidades e
materializar os processos de democratização e redimensionamento
do Estado são desafios interdependentes e complementares que
demandam de maneira evidente os conteúdos que trata este Curso
e, no plano operacional, da implementação das ações, que não
poderão prescindir do PEG.

A redefinição das fronteiras entre o público e o privado exige


uma cuidadosa decisão, como por exemplo: Quais assuntos
podem ser desregulamentados e deixados para que as
interações entre atores privados com poder similar determinem
incrementalmente, ainda que com uma atenta monitoração e
fiscalização por parte do Estado, um ajuste socialmente aceitável?
Quais devem ser objeto da agenda pública, de um processo de
decisão racional, participativo e de uma implementação e
avaliação sob a responsabilidade direta do Estado?

Logo, podemos afirmar que a democracia é uma condição


necessária para construir um Estado que promova o bem-estar das
maiorias. Só o conjunto que ela forma com outra condição
necessária – a capacidade de gestão pública e de PEG – é suficiente.
Só a democracia aliada às quatro dimensões propostas por

36 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

O’Donnell (2004), de eficácia da burocracia, da efetividade do


sistema legal, da credibilidade, e da capacidade de atuar como filtro
adequado ao interesse geral da população, pode levar à
transformação do “Estado Necessário” no sentido que almeja a
sociedade brasileira.
Sem democracia não há participação e transparência nas
decisões, não há planejamento participativo, avaliação de políticas,
prestação de contas. Não há responsáveis, há impunidade. Mas a
democracia, se restrita a um discurso político genérico e sem
correlação com ação cotidiana de governo, pode degenerar num
assembleísmo inconsequente e irresponsável e numa situação de
descompromisso e ineficiência generalizada.
Governar num ambiente de democracia e participação e,
ao mesmo tempo, com enormes desigualdades sociais, requer
capacidades e habilidades extremamente complexas e difíceis de
conformar, sobretudo no âmbito de um Estado como o que
herdamos. E, sem a utilização das ferramentas do PEG, isso será
ainda mais difícil.

Você sabe por que tanto a direita como a esquerda perceberam


a necessidade de contar com metodologias de planejamento e
gestão que, ao mesmo tempo, promovam e deem consequência
à participação popular?

Primeiro porque já não podem manter o estado de ignorância


e subordinação do qual até agora têm lançado mão para seguir
governando. E, em segundo lugar, porque ao abandonar sua
estratégia de revolução armada que permitiria a seus quadros,
tomando o poder e através de um renovado apoio das massas, usar
o Estado para alcançar o seu cenário normativo, perceberam que a
simples mobilização política não era suficiente. De fato, ao abraçar
a via eleitoral, a participação, mais do que a mobilização política,
é a garantia que têm para dar consequência e para, assim, manter
o apoio popular que foram capazes de conquistar.

Módulo Básico
37
Planejamento Estratégico Governamental

A CONSTRUÇÃO DO “ESTADO
NECESSÁRIO” E O PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO GOVERNAMENTAL

Esta seção se inicia com a apresentação do argumento de


que o trânsito do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário”,
aquele que possa servir como um instrumento para implementar
aquela proposta de mudança, demanda:

 a capacitação de seus quadros; e


 a formação de gestores que aliem dois tipos de
capacidades ou habilidades básicas.

 A primeira é dominar os aspectos teóricos e práticos do


processo de elaboração de políticas públicas a ponto
de serem capazes de utilizá-los como ferramentas da
mudança social, econômica e política.

 A segunda capacidade diz respeito à atuação de maneira


eficiente no seu dia a dia a ponto de fazerem com que
a estrutura que corporificam – o Estado – seja cada vez
mais eficaz no uso dos recursos que a sociedade lhe
faculta e que produza impactos crescentemente efetivos.

A democratização política está levando a um crescimento


exponencial da agenda de governo; à erupção de uma infinidade
de problemas que, em geral, demandam soluções específicas e
criativas, muito mais complexas do que aquelas que o estilo
tradicional de elaboração de políticas públicas e de planejamento

38 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

governamental – homogeneizador, uniformizador, centralizador,


tecnocrático, típico do Estado que herdamos – pode absorver.
No Brasil, a maneira como tradicionalmente se definiam e
caracterizavam os problemas que o Estado deveria tratar ficava
restrita ao que a orientação ideológica e o pensamento político
conservador dominante eram capazes de visualizar. No que respeita
ao Planejamento Governamental, vale destacarmos que a
explicação dos problemas públicos estava constrangida por um
modelo explicativo que, de um lado, tendia à quase
monocausalidade e, de outro, a soluções genéricas, universais. Esse
procedimento levou à adoção de um padrão único do tipo causa-
problema-solução no qual, embora fosse percebida uma certa
especificidade nos problemas enfrentados, o fato de que, segundo
o modelo explicativo adotado, sua causa básica era a mesma,
terminava conduzindo à proposição de uma mesma solução global.
O governo não apenas filtrava as demandas da sociedade
com um viés conservador e elitista. Ele adotava uma maneira *Tecnoburocrática – novo
tecnoburocrática* para tratá-las que levava à sua uniformização, vilão da história, como

ao seu enquadramento num formato genérico que facilitava uma classe necessaria-
mente autoritária que
tratamento administrativo. Ao fazê-lo, escondia sob um manto de
frustrou as esperanças
aparente equidade os procedimentos de controle político e no socialismo. Isto é ser
assegurava a docilidade do povo, desprotegido e desprovido de vítima da ideologia bur-
cidadania, frente ao burocratismo onipotente do Estado. Era na guesa. Fonte: Bresser-
Pereira (2007).
fila do INPS que este povo aprendia o que era a democracia.
As características do “Estado Herdado”
faziam com que as demandas da população se Saiba mais Burocratismo
tornassem assuntos genéricos, nacionais, a Para uma excelente retrospectiva de
serem resolvidos mediante a distribuição dos como se deu ao longo do nosso proces-
recursos arrecadados de forma centralizada. so de desenvolvimento socioeconômico
Assim, sem nenhuma preocupação com a a relação entre o Estado e os interesses
elaboração de políticas apropriadas e com a das classes dirigentes e subordinadas.
adoção de ferramentas como as propostas pelo (BRESSER-PEREIRA, 2007).
PEG, os recursos fluíam através de uma
complexa rede de influências e favores até os lideres políticos locais
que, discricionariamente e seguindo os procedimentos sancionados
pelo patrimonialismo e pelos outros “ismos” que ele desencadeou

Módulo Básico
39
Planejamento Estratégico Governamental

no nosso ambiente (COSTA, 2006), os transformavam em benesses


com que atendiam a suas clientelas urbanas e aos seus “currais”
São muitos os trabalhos do interior do País.

v
de pesquisadores
descrevendo as
Esta situação perpetuava e retroalimentava um modelo de
características as quais planejamento governamental e de elaboração de políticas que era
foram impregnando a não apenas injusto e genérico. Era também inócuo, uma vez que as
gestão pública latino- verdadeiras causas ou não eram visualizadas ou não podiam ser
americana, que
enfrentadas. Este modelo consolidado – objetivos, instrumentos,
configuram o que
denominamos “Estado procedimentos, agentes, tempos –, além de incremental,
Herdado” e apontam assistemático e pouco racional, tendia a gerar políticas que eram
propostas para sua facilmente capturadas pelos interesses das elites.
modificação. Entre eles,
As demandas que o processo de democratização política
recomendamos Oszlak
(1999), Evans (2003) e cada vez mais coloca, e que serão filtradas com um viés progressista
Waissbluth (2002 e por uma estrutura que deve rapidamente se aproximar do “Estado
2003). Necessário”, originarão outro tipo de agenda política. Serão muito
distintos os problemas que a integrarão e terão de ser processados
por este Estado em transformação. Eles não serão mais abstratos e
genéricos, serão concretos e específicos, conforme sejam apontados
pela população que os sente, de acordo com sua própria percepção
da realidade, com seu repertório cultural, com sua experiência de
vida, frequentemente de muito sofrimento e justa revolta.
Logo, podemos afirmar que construir o “Estado Necessário”
não é somente difícil. É uma tarefa que, para ser bem-sucedida,
deveria contar a priori com algo que já deveria estar disponível,
mas que é, ao mesmo tempo, seu objetivo criar. Isto é, as
capacidades e habilidades extremamente complexas necessárias
para transformar o Estado Herdado.
Assim colocado, o problema pode nos parecer não ter
solução. Mas, não obstante, ela existe. E existe porque já há a
consciência do problema que é a construção do “Estado Necessário”.
E quando existe esta consciência é porque a solução já é vislumbrada
por uma parte dos atores envolvidos com o problema.
De acordo com o exposto até aqui, podemos afirmar que a
decisão de criar o Curso no qual se insere esta disciplina já nos
remete a uma consciência por parte desses atores de que a
emergência da forma institucional “Estado Necessário”, aquela que

40 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

corresponde ao conteúdo das políticas que cabe a ele implementar,


depende de uma preocupação sistemática com a capacitação do
conjunto de seus funcionários. Ou seja, a criação do Curso
representa uma demonstração de que o primeiro, indispensável e
corajoso passo está sendo dado. Ele revela a percepção de que
rotinas administrativas que dão margem ao clientelismo, à
iniquidade, à injustiça, à corrupção e à ineficiência, que restringem
os resultados obtidos com a ação de governo, que frustram a
população e solapam a base de apoio político dificultando a
governabilidade, não podem ser toleradas. E que, para que isto
ocorra, não bastam o compromisso com a democracia e com um
futuro mais justo, o ativismo e a militância.

Este passo denota a percepção de que, para criar


condições favoráveis para que seu corpo de
funcionários materialize esse compromisso, é
imprescindível que um novo tipo de conhecimento
teórico e prático acerca de como governar (para a
população e em conjunto com ela) seja urgentemente
disponibilizado. E que é através dele que uma nova
cultura institucional será criada e alavancará a
construção do “Estado Necessário”.

Do ponto de vista cognitivo, esta nova situação demanda


do gestor público um marco de referência analítico-conceitual,
metodologias de trabalho, e procedimentos qualitativamente muito
diferentes daqueles que se encontram disponíveis no meio em que
ele atua. O conteúdo a ser incorporado às políticas, fruto de um
viés não mais conservador e sim progressista, transformador, irá
demandar um processo sistemático de capacitação.
Para darmos uma ideia do desafio cognitivo que isto significa,
vale introduzirmos um dos elementos-chave do PEG: a forma como
se dá a determinação do que são problemas e o que são soluções, o
que são causas e o que são efeitos, o que são riscos e o que são
oportunidades. Isso porque, em muitos casos, ela terá de ser invertida.

Módulo Básico
41
Planejamento Estratégico Governamental

Estamos vivendo um momento, da democratização política,


em que as duas pontas da gestão pública e do processo de
elaboração de políticas estão sofrendo uma rápida transformação.
Na sua ponta inicial – a veiculação da demanda – há claramente
maior probabilidade de que assuntos “submersos” e de grande
importância para a população passem a integrar a agenda de
decisão política. Na sua ponta terminal – a decisão de onde alocar
recursos – existe igualmente uma grande probabilidade de que
problemas originais passem a ter sua solução viabilizada:

 Como tratar essas novas demandas até transformá-las


em problemas que efetivamente entrem na agenda
decisória?
 Como fazer com que o momento da implementação da
política (que se segue ao da formulação) possa contar
com um plano para sua operacionalização eficaz, que
maximize o impacto favorável dos recursos cuja
alocação pode ser agora localmente decidida de forma
rápida, mediante instrumentos inovadores e
transformadores, como é o caso do Orçamento
Participativo?

Contudo vale ressaltarmos que o PEG é um dos instrumentos


através dos quais novas inter-relações, sobredeterminações, pontos
críticos para a implementação de políticas etc. terão de ser
identificados, definidos e processados. Só assim os novos problemas
poderão ser equacionados mediante políticas específicas; por
exemplo, através de redes de poder locais, com a alocação de
recursos sendo decidida localmente.

Mas, cabe a você, estudante, ao final, avaliar a potencialidade


deste instrumento, pois não é nossa intenção apresentar o PEG
como a panaceia que irá resolver todos os problemas e enfrentar
todos os desafios que estamos comentando nesta parte
introdutória.

42 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

O CONTEXTO DISCIPLINAR DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Esta seção, como as duas anteriores, focaliza o contexto no


qual o objetivo mais ambicioso desta disciplina – contribuir para
que as atividades de gestão pública levadas a cabo nos vários níveis
e instâncias governamentais que abarca o Estado brasileiro passem
a ser realizadas em conformidade com os princípios do PEG – terá
que ocorrer.
Ela irá tratar de questões associadas ao marco analítico-
conceitual do PEG introduzidas a partir de uma postura crítica em
relação à “Administração Geral”, derivada da Administração de
Empresas e utilizada na conformação dos conteúdos da
Administração Pública; os quais marcam aquele contexto e o tornam
inadequado para a consecução daquele objetivo.

Você sabe por que se usa nesta disciplina o termo Gestão


Pública e não Administração Pública?

A literatura anglófona de Administração (que mantém uma


perspectiva que, apesar de alegadamente genérica, aquela da
“Administração Geral”, se refere às empresas) costuma utilizar o
termo management para referir-se ao mundo privado.

 O termo administration tem um significado mais amplo,


buscando um status “universal” capaz de abarcar todos
os âmbitos de atividade humana, inclusive o mundo

Módulo Básico
43
Planejamento Estratégico Governamental

público; ou aquilo que em seguida se designa como


“Administração Geral”. O primeiro ter mo –
administration – tem sido traduzido para o português
como gestão e o segundo – management – como
administração.
 A mesma literatura usando o “prefixo” public enfatiza
o que tem sido traduzido como administração pública
para referir ao ambiente público, de governo.

No Brasil, atualmente, é utilizado o termo gestão pública


para fazer referência às atividades que têm lugar no ambiente
público ou aos conhecimentos que nele são aplicados.

Então, qual deveria ser o marco analítico-conceitual do PEG


no âmbito de uma Gestão Pública coerente com os
balizamentos expostos nas seções anteriores?

A indagação sobre a adequação do marco analítico-


conceitual da “Administração Geral” – que tem orientado as
experiências brasileiras de planejamento governamental – se inicia
pela caracterização da área de atuação conhecida como “Políticas
Sociais”, que é aquela na qual se desenvolvem boa parte das ações
de PEG.

POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS SOCIAIS

Embora não devesse ser assim e não seja esta a nossa visão,
a expressão Gestão Pública tem sido frequentemente utilizada no
meio acadêmico para designar um corpo de conhecimentos
associado à elaboração das políticas orientadas ao atendimento
de demandas sociais, as Políticas Sociais. A individualização das
Políticas Sociais no âmbito das Políticas Públicas revela uma

44 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

concepção de desenvolvimento que entende como separáveis e, por


isso, passíveis de serem tratados em separado, os aspectos relativos
ao econômico e ao social.
Ao escamotearmos essa relação, os partidários dessa
concepção reforçam a ideia que é útil aos seus interesses de que o
desenvolvimento econômico e suas políticas e instituições devem
tratar do crescimento econômico, da competitividade e do avanço
tecnológico etc., e que as atinentes ao desenvolvimento social
deveriam compensar seus eventuais efeitos colaterais negativos. Essa
separação entre duas esferas de políticas, por estar solidamente
ancorada na hegemonia (ideológica) construída pela classe
dominante, não precisa ser revestida de um aparato legal. Ao
conformar o modelo cognitivo que impregna a ação do Estado, ela
a naturaliza e materializa a condição subordinada, residual e

v
acessória que possui a Política Social.
Situação distinta pode ser verificada em relação a outras
áreas de política pública (econômica, agrícola, industrial, financeira
etc.) em que os conteúdos atinentes à gestão são oferecidos pelos
Uma das obras mais
segmentos acadêmicos e a elas diretamente associados. Uma exceção completas e conhecidas
que valeria a pena analisar é a área de saúde, na qual têm ocorrido (com mais de dez
significativas iniciativas de produzir e difundir conhecimento no campo edições) publicadas no

da saúde preventiva (ou da saúde pública). Por isso é importante Brasil sobre o tema é a
de Faleiros (2000). Nela
entendermos o que significam as chamadas Políticas Sociais.
nos baseamos para
realizar os comentários
feitos aqui.
Os serviços educacionais, de orientação social, de
assistência médica, de ajuda jurídica e outros providos
pelas Políticas Sociais, mesmo que garantidos por lei,
geralmente aparecem como favores à população
sendo implantados em conjunturas políticas mais ou
menos específicas e cambiantes.

No passado, o Código Civil obrigava que o trabalhador fosse


sustentado por seus filhos quando ficasse velho. Isso não é mais
assim. No regime salarial da economia capitalista, é o indivíduo
que é contratado para o trabalho, e não o grupo familiar, como

Módulo Básico
45
Planejamento Estratégico Governamental

chegou a ocorrer no passado; e as formas de produção atuais


destruíram a família extensa que se organizava em torno da
economia de subsistência.

É claro que a intervenção do Estado na garantia de benefícios


e serviços não substituiu a família. E mais, sua ação parece
pautar-se no modelo familiar. Mas, de que modo? Você sabe?

As Políticas Sociais são organizadas em nome da


solidariedade social: os jovens trabalhadores contribuem para a
aposentadoria dos idosos e para o cuidado e a educação das
crianças; os sãos para o tratamento dos doentes; os empregados
para os desempregados; os ativos para os inativos; os solteiros para
os casados (salário-família) etc. Logo, a razão de existência das
políticas sociais seria, então, fazer com que a sociedade, assimilada
a uma grande família, viva em harmonia e paz social, uns
colaborando com os outros.

A articulação do econômico e do político através das políticas


sociais é um processo complexo que se relaciona com a
produção, com o consumo e com o capital financeiro. Por quê?

Porque as políticas sociais (talvez em menor grau do que as


demais políticas públicas, mas ainda assim de forma majoritária)
não costumam ser implementadas diretamente pelo Estado, mas
por meio de convênios e contratos com empresas privadas, ONGs
e empresas envolvidas com atividades de responsabilidade social
empresarial, que passam a oferecer os serviços financiados pelo
Estado. Conheça alguns exemplos:

 hospitais particulares atendem a clientes da Previdência


ou da Assistência Social e cobram do Estado pelo
serviço, não raro com margem de lucro;

46 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

 escolas particulares recebem subsídios e bolsas para


certo número de estudantes; e
 bancos que servem de intermediários para vários
serviços aos beneficiários, como, por exemplo,
pagamentos e cobranças previdenciárias,
evidentemente cobrando por eles.

Assim, e de modo que pode parecer paradoxal, essas


organizações mantêm seu processo de acumulação de riqueza
através da implementação de políticas sociais. Na realidade, cabe
ao Estado, por exemplo, a compra de equipamentos sofisticados e
intensivos em tecnologia para oferecer os serviços mais caros e
menos lucrativos; a manutenção das faculdades mais caras, como
as de Medicina e Odontologia, por exemplo, enquanto os cursos
menos dispendiosos e mais lucrativos são mantidos por empresas
privadas; e os subsídios de diversas naturezas, alguns indefensáveis
e escusos, que têm sido dados a instituições deste tipo por governos
não comprometidos com a qualidade do ensino.
Outro bom exemplo é o caso das políticas orientadas para o
trabalhador. Trabalhadores desempregados, doentes, acidentados
ou velhos são atendidos através de uma articulação do econômico
e do político (as políticas sociais) que possibilita um ganho para o
setor privado capaz de compensar o prejuízo causado pelo fato de
eles e outros segmentos não produtivos não estarem inseridos na
produção de mercadorias.
Contudo, podemos afirmar que essas políticas servem
também para “retirar” do âmbito da fábrica conflitos e Estes órgãos tratam cada

reivindicações, que são encaminhados e tratados por órgãos “caso” através da


perícia, relegando-o ao
governamentais (hospitais, repartições públicas ou tribunais) que
saber e ao sabor de
os despolitizam, transformando-os em assuntos individuais. As especialistas que
vítimas de eventos negativos ligados ao processo produtivo (acidentes, examinam
doenças, incapacitação e invalidez), cuja origem está no próprio individualmente a

v
vítima, e não as
processo produtivo, são responsabilizadas pela sua ocorrência.
condições de produção e
Os órgãos de atendimento ao trabalhador que implementam de trabalho.
essas políticas não questionam as origens dos problemas dos
assalariados, o ambiente que os condiciona, nem as relações que

Módulo Básico
47
Planejamento Estratégico Governamental

os produzem. Por essas e outras razões, as políticas sociais são


vistas por alguns críticos como algo incompatível com aquele modelo
familiar. Apesar de aparecerem como compensações, elas
constituiriam um sistema político de mediações entre capital e
trabalho que visa à articulação de diferentes formas de reprodução
das relações de exploração e dominação da força de trabalho entre
si, com o processo de acumulação e com a correlação de forças
políticas e econômicas.
Devido a suas características, as políticas sociais costumam
ter, sobretudo em países periféricos como o nosso, seu conteúdo
definido, em boa medida, no momento da implementação. E não
apenas no momento da sua formulação, como é o caso clássico em
que os momentos de formulação, implementação e avaliação que
integram o processo de elaboração da política estão mais claramente
definidos.
Diferentemente de outras políticas públicas que, por estarem
destinadas a orientar ou subsidiar as atividades empresariais,
possuem “lógica” e “racionalidade” facilmente operacionalizáveis
pelos profissionais da administração de empresas, as políticas
sociais demandam, não apenas para sua formulação, mas também
para a sua implementação, um tipo específico de gestor. A formação
desse tipo de gestor demanda a veiculação de um conhecimento
distinto daquele oferecido pelas profissões tradicionais que são
adequadas para a elaboração de políticas voltadas ao bom
funcionamento da economia capitalista e às quais as Políticas
Sociais devem em muitos casos se opor.

O GESTOR PÚBLICO E O ADMINISTRADOR DE EMPRESAS

De modo a tratar sobre o tipo de formação ideal do gestor


público para, desta maneira, avançar na caracterização do marco
analítico-conceitual do PEG, é necessário precisar o que
entendemos por ele.

48 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Por diferenciação, o concebemos como aquele profissional


cuja especificidade consiste fundamentalmente na sua capacidade
de traduzir, interpretar ou “decodificar” para uma “lógica” e
“racionalidade” empresariais o conteúdo e a for ma de
implementação das políticas públicas. Sua atuação deve estar
orientada para as políticas sociais e, também, para o conjunto de
políticas que possuem um caráter mais propriamente empresarial
na medida em que se referem a atividades desempenhadas pelo
aparelho de Estado na interface com o âmbito privado. Esse tipo
de atuação, em que costumam estar envolvidos administradores de
empresa, engenheiros etc., demanda para sua adequada realização
a complementação de sua formação mediante programas de
capacitação em gestão pública. Coisa que, apesar de óbvia, tem
sido frequentemente desconsiderada.
Conceber o processo de capacitação de um profissional que
seja capaz de atuar na elaboração de políticas públicas é um grande
desafio. Pela primeira vez, em função das mudanças de orientação
que vêm ocorrendo nos Estados de uma região conhecida como a
mais desigual do planeta e cujos governos estão a privilegiar o
atendimento de demandas sociais de grandes proporções, se coloca
na América Latina a necessidade de abreviar um processo lento e que
estava sendo efetivado de forma mais ou menos autodidata de formação
de gestores públicos interessados na consolidação dessas mudanças.

v
Mais que em outros países da região, o Brasil conta com um
superávit de vagas universitárias visando à capacitação de
administradores de empresa. Isso, associado ao fato de que o gestor
social, além de ter que trabalhar na empresa privada como Existiriam no Brasil mil e
implementador das políticas sociais (e, de certa forma, devido às quinhentos cursos de
características, também como o seu formulador), deverá atuar Administração
reconhecidos pelo
igualmente na sua elaboração no âmbito do Estado, o que o obriga
Conselho Federal de
a uma difícil inflexão. Educação. Fonte: Fischer
Difícil, entre outras coisas porque, por razões históricas e (2004).
pela conhecida formação multidisciplinar e “multipropósito” do
administrador de empresa, têm surgido nos espaços destinados à
sua formação as iniciativas de capacitação de gestores públicos e
de gestores sociais (à semelhança do que ocorreu no passado com

Módulo Básico
49
Planejamento Estratégico Governamental

a formação dos administradores públicos). Um “distanciamento


crítico” em relação ao que é entendido como a formação do
administrador de empresa parece essencial. Ele deve começar pelo
questionamento do caráter “universal” conferido ao conceito de
Administração, entendido como um corpo de conhecimento
aplicável em qualquer ambiente (público ou privado), e explicitado
nas conceituações usualmente propostas e empregadas em nosso
meio e que têm servido para informar a criação de cursos de
Administração Pública.

ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS,
ADMINISTRAÇÃO GERAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Embora as teorias da administração estejam divididas em


várias correntes ou abordagens, cada abordagem está associada a
uma maneira específica de encarar a tarefa e as características do
trabalho de administração. Vamos alinhar brevemente algumas
características da “Administração Geral”.
O conceito contemporâneo entende que administrar é dirigir
uma organização (grupo de indivíduos com um objetivo comum,
associados mediante uma entidade pública ou privada) utilizando
técnicas de gestão para que alcance seus objetivos de forma eficiente,
eficaz e com responsabilidade social e ambiental. Segundo Lacombe
(2003), a essência do trabalho do administrador é obter resultados
por meio das pessoas que ele coordena. Já de acordo com Drucker
(1998), administrar consiste em manter as organizações coesas,
fazendo-as funcionar.

A Administração Geral é subdividida segundo o tipo de


organização à qual ela é aplicada. Logo a administração
que se aplica a uma empresa privada é diferente
daquela aplicada às instituições governamentais ou,
ainda, daquela de um setor social sem fins lucrativos.

50 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Uma organização seria uma combinação de esforços


individuais que tem por finalidade realizar propósitos coletivos. Por
meio de uma organização torna-se possível perseguir e alcançar
objetivos que seriam inatingíveis para uma pessoa. Uma grande
empresa ou uma pequena oficina, um laboratório ou o corpo de
bombeiros, um hospital ou uma escola são todos exemplos de
organizações (MAXIMIANO, 1992).
Uma organização seria formada pela soma de pessoas,
máquinas e outros equipamentos, recursos financeiros e outros;
seria o resultado da combinação de todos estes elementos
orientados a um objetivo comum; uma entidade social,
conscientemente coordenada, gozando de fronteiras delimitadas que
funcionam numa base relativamente contínua, tendo em vista a
realização de objetivos comuns, exige grupos de duas ou mais
pessoas, que estabelecem entre eles relações de cooperação, ações
formalmente coordenadas e funções hierarquicamente diferenciadas
(BILHIM, 1997).

Administrar uma organização (ou organizar) supõe


atribuir responsabilidades às pessoas e atividades aos
órgãos (unidades administrativas).

A pessoa encarregada do ato de administrar ou organizar, o


administrador, embora investido de um poder dentro de uma
hierarquia predefinida, deve possuir uma capacitação intelectual e
moral para exercê-lo que o diferencie dos demais membros da
organização e atuar como um líder.
A atividade principal de um líder consiste em influenciar um
determinado grupo de pessoas a fim de que elas façam o que se
deseja. Porém, esta influência não deve ser coercitiva e por meio
do poder de um cargo nem tão-pouco obrigando as pessoas a
fazerem o que é necessário. Esta influência deve ocorrer, por
exemplo, através da disponibilização de um meio de trabalho
propício para que todos os colaboradores desenvolvam suas
atividades por vontade própria.

Módulo Básico
51
Planejamento Estratégico Governamental

Você deve estar se perguntando: quando apareceu a figura do


líder?

Foi com a Teoria das Relações Humanas que o campo de


preocupações da Administração de Empresas ganhou a figura do
líder. Este profissional veio como uma alternativa à do administrador
clássico em sua face coercitiva e autoritária. A liderança passou a
ser um assunto recorrente.
A liderança vem assumindo um papel central na
Administração. Segundo a visão contemporânea, todo líder deve
ser um servidor para seus funcionários, deve possuir amor por seus
comandados. Este amor não é apoiado em sentimento e sim em
comportamentos, como cuidar, ajudar, elogiar, entre outros.
Isso acontece, em particular, no campo da Administração
Pública, uma vez que nele coerção, autoritarismo e até mesmo
hierarquia são dificilmente obteníveis. E o seu exercício muitas vezes
não implica num benefício material.

A FORMAÇÃO DO GESTOR PÚBLICO

No Brasil e em muitos outros países, a consolidação da


Administração Pública como um curso superior é posterior àquela
do de Administração de Empresas. Até a sua criação, eram os
administradores de empresas, juntamente com outros tipos de
profissionais, que compunham o quadro da burocracia. A crescente
complexidade do aparelho de Estado passou a exigir um tipo de
capacitação que não era oferecido pelas escolas de Administração
de Empresas. Foi só então, para enfrentar o desafio de formar
gestores públicos, que se buscou identificar dentre os conteúdos
que constituem a “Administração Geral” quais poderiam ser
aplicados no ambiente público.

52 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Mas, diferentemente do que seria desejável, esse movimento


não esteve suficientemente aberto ao aporte de outras abordagens
disciplinares mais afeitas ao tratamento das questões sociais e
políticas que inevitavelmente se fazem presentes na interface entre
o Estado e a sociedade e mesmo no interior do próprio aparelho de
Estado. Ele foi marcado por um processo que, em vez de estar
guiado por um objetivo de fusão interdisciplinar (ou, pelo menos,
multidisciplinar), se manteve basicamente orientado pela tentativa
de conformar, por eliminação ou exclusão do que se entendia como
Administração de Empresas, o que viria a ser conhecido como
“Administração Geral”. A qual, então, passou a constituir a espinha
dorsal dos cursos de Administração Pública.
Em consequência, o currículo dos cursos de Administração
Pública foi sendo conformado através da adaptação de conteúdos
previamente existentes naquele dos cursos de Administração de
Empresas e pela adição de outras disciplinas. Frequentemente, e
isso não apenas no Brasil, o quadro de professores dos cursos de
Administração Pública é formado por professores de cursos de
Administração de Empresas (em muitos casos oferecidos na mesma
instituição) e por professores de disciplinas que provêm de áreas como
Direito, Ciências Contábeis, Sociologia, Economia e Ciência Política.
Embora com o correr do tempo sucessivas gerações de
formandos de Administração Pública tenham sido absorvidos como
professores desses cursos, as disciplinas provenientes das áreas
anteriormente citadas continuaram a ser ministradas por
profissionais nelas formados. O resultado foi a permanência de uma
espécie de apartheid* disciplinar muito distinto daquilo que seria
*Apartheid – política de
necessário para propiciar uma fusão (supondo que ela fosse possível)
completa segregação ra-
entre a “Administração Geral” (supondo que ela efetivamente cial. Fonte: Lacombe
existisse e que fosse capaz de ser conformada por exclusão ou (2004).

eliminação de conteúdos previamente enfeixados na Administração


de Empresas) e aquelas disciplinas.
Contudo, os administradores públicos, formados, no melhor
dos casos, numa tensão disciplinar entre conteúdos de
Administração de Empresas e disciplinas que frequentemente se
orientavam a produzir argumentos para questionar as ideias de

Módulo Básico
53
Planejamento Estratégico Governamental

propriedade privada dos meios de produção, venda da força de


trabalho, lucro etc. – pressupostos e razão de existência da
Administração de Empresas –, dificilmente seriam capazes de
autonomamente produzir uma síntese interdisciplinar como a que
sua atuação demandava.
Esta situação foi ainda agravada pelo fato de que, com muita
frequência, os conteúdos das disciplinas como Sociologia e Ciência
Política, que mais subsídios forneceram a um correto diagnóstico
dos problemas que o administrador público enfrenta e para o seu
equacionamento de modo coerente com os direitos democráticos e
de cidadania, eram vistos como de escassa importância à sua
formação. Dificilmente modelizáveis e aplicáveis em conjunto com
os conteúdos que provinham da Administração de Empresas, com
os quais por “defeito de construção” não tinham como dialogar,
mas que eram, estes sim, modelizáveis, operacionalizáveis e
aparentemente dotados de um potencial de equacionamento de
problemas muito valorizado por quem se preocupa em “resolver
problemas”, eles eram, de fato, quase inúteis.

v
Aqueles que ocorrem O resultado dessa situação era, então, que os problemas
na interface entre a públicos ainda que fossem, na melhor das hipóteses, diagnosticados
sociedade e o Estado (momento descritivo: foto) e explicados (momento explicativo: filme
ou no seu interior.
retrospectivo) através daquelas disciplinas, eram resolvidos
(momento normativo: construção do futuro) mediante a aplicação
do conhecimento que provinha da Administração de Empresas.
Mas, a tensão entre aquelas disciplinas e a “Administração
*Benchmarking – técnica
Geral” não se situou apenas no plano dos conteúdos. Ela se estendeu
de fazer comparações e
imitar organizações –
para os planos da abordagem cognitiva (dedutiva vs. indutiva,
concorrentes ou não, do respectivamente); do enfoque da situação-problema (contextualizado
mesmo ramo de negóci- vs. autocontido); do tratamento metodológico (análise globalizante
os ou de outros, que rea-
do mais frequente ou provável vs. estudo de cases sobre o mais
lizem determinadas ativi-
exitoso ainda que atípico e não generalizável); do objetivo
dades com excelência e
sejam reconhecidas intermediário (produzir tendências e fatos estilizados vs. assinalar
como líderes. Fonte: best practices e, para seguir utilizando o jargão anglófono da área,
Lacombe (2004).
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
possibilitar o benchmarking*); e do objetivo final (equacionar
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

problemas estruturais de modo racional visando a resultados


positivos sistêmicos e de longo prazo vs. atacar problemas pontuais

54 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

passíveis de solução imediata de modo incremental, visando a


resultados localizados e de alto impacto a curto prazo).
Ainda no campo cognitivo ou, mais especificamente,
pedagógico, a “Administração Geral” permaneceu baseada na ideia
de que o administrador é a pessoa que se destaca das demais por
atributos inatos, mas que podem até certo ponto ser adquiridos
pela via da capacitação formal, a pessoa responsável por “fazer as
coisas acontecerem”. Característica que, como é compreensível,
contagia o processo de formação, seja do administrador tradicional
seja do líder, com um ethos de diferenciação, de elitismo
meritocrático e, no limite, de prepotência; ainda que entendido como
um “mal menor” face ao imperativo tradicional de “apreender para
saber mandar” ou ao contemporâneo “apreender para saber
liderar”. Tudo isso marcando atributos de competição e rivalidade
tanto o processo formativo quanto o comportamento profissional.
Apesar de precária, essa breve caracterização permite
apontar a inadequação da “Administração Geral” como plataforma
cognitiva para a concepção de um curso de gestão (ou
administração) pública; e, também, do processo até agora seguido.
Mesmo que consideremos a empresa privada como um ambiente
em que “pessoas tendo em vista a realização de objetivos comuns

v
Ambiente onde interesses
políticos, econômicos e de
estabelecem relações de cooperação”, o que é muito questionável,
outra natureza não
não há como negar que o ambiente em que atua o gestor público – apenas se expressam
o aparelho de Estado – é politizado. como devem, numa
sociedade democrática,
fazê-lo.

Se isso é assim, a Administração de Empresas, por muitos


entendida como um conjunto de conhecimentos cujo objetivo
é, senão eliminar, manter os conflitos entre capital e trabalho
num nível que não inviabilize a produção, numa sociedade
em que o uso da força é monopólio do Estado, não poderia
ser a plataforma cognitiva de um curso de Gestão Pública,
você concorda?

Módulo Básico
55
Planejamento Estratégico Governamental

Logo, o papel central que vem assumindo o líder na


“Administração Geral”, e por extensão na Administração Pública,
tem de ser repensado tendo em vista a proposta do “Estado
Necessário”. Ainda que a figura do líder pareça ser mais coerente
com ela do que a do administrador tradicional, originalmente
concebido para substituir o proprietário no campo da gestão da
empresa (assim como o engenheiro, concebido para substituí-lo no
campo da produção), parece legítimo indagar sobre sua pertinência
para o ambiente público e, mais especificamente, no âmbito dos
gestores que levam a cabo a gestão pública. Sobretudo aquele cuja
função é a elaboração das Políticas Sociais, que cada vez mais
substituem pelo cooperativismo, autogestão e solidariedade as
práticas do empreendedorismo, da competição.

Busque currículos dos cursos de Administração Pública para


fazer uma análise. Ou, simplesmente, faça uma consulta do
seu currículo. Observe a relação dele com a ideia da
“Administração Geral”.

Podemos evidenciar, mesmo numa análise superficial do


currículo dos cursos de Administração Pública, inclusive dos mais
recentes, a adoção de existência de uma “Administração Geral” –
entendida como neutra e capaz de atender tanto as empresas quanto
o Estado – como diretriz para a sua concepção. Em vários cursos,
as disciplinas iniciais, denominadas Introdução à Administração,
Teoria da Administração etc., são de fato um conjunto de ideias e
princípios, que, embora derivados ou “destilados” da Administração
de Empresas, são apresentados como portadores de um conteúdo
Envolve as parcerias universal. Já aqui, nesta análise, é comum identificarmos a
existência de disciplinas com forte caráter empresarial, como por

v
público-privadas,
projetos com o Terceiro exemplo, administração da produção, gestão da qualidade total etc.,
Setor, Responsabilidade
e outras disciplinas que buscam implementar a denominada “nova
Social, Empresa etc.
gestão pública”.

56 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

Observamos, também, que disciplinas cujos nomes aludem


a conteúdos próprios da gestão pública são ministradas mediante
a utilização de bibliografia orientada para a administração de
empresas que tende a dar aos alunos a falsa impressão de que os
conceitos e relações nelas tratados são aplicáveis ao ambiente
público.
Uma das exceções mais
interessantes no quadro aqui traçado Saiba mais Reginaldo Souza Santos

é o movimento em torno do conceito Graduado em Administração


de Administração Política liderado pelo Pública pela Escola de Adminis-
professor Reginaldo Souza Santos. tração da Universidade Federal
Esse movimento foi ainda influenciado da Bahia em 1977. Mestre em Ad-
pela leitura dos clássicos do campo da ministração Pública pela Esco-
Administração a partir da perspectiva la Brasileira de Administração

oferecida por economistas marxistas. Pública e Empresarial (EBAPE)


da Fundação Getúlio Vargas (1982) e doutor em
Em que pese a radicalidade que se faz
economia pela Universidade Estadual de Campi-
à ideia do que aqui denominamos
nas (1991) e pós-doutorado pela Instituto Superi-
Administração Geral por muitos dos
or de Economia e Gestão, da Universidade Técnica
autores que integram a coletânea
de Lisboa (1997/98). Atualmente é professor do De-
organizada pelo professor Reginaldo, e
partamento de Finanças e Políticas Públicas da
pelo caráter seminal que o movimento Escola de Administração da Universidade Federal
pode vir a representar num processo de da Bahia e na mesma instituição exerce o cargo
renovação como o que aqui de Diretor. É autor de livros, artigos em periódi-
defendemos, consideramos que ele está cos, jornais e anais de congressos. Fonte: <http://
ainda marcado por uma visão de www.reginaldosouza.com.br/apres.html>.
neutralidade que é hoje criticada,
inclusive, na esfera das ciências consideradas duras (DAGNINO,
2008).
Tal visão, que apesar de contrariar até mesmo a visão
marxista convencional (para não falar daquela liberal), é
crescentemente aceita, pois até mesmo elas seriam influenciadas
de modo quase irreversível pelos valores e interesses predominantes

v
Chamado também
no ambiente (e no próprio momento) em que ocorre a sua produção.
Adequação Sociotécnica
Dessa forma, a menos que um processo de desconstrução e por Dagnino (2008).
reconstrução seja efetivado, o conhecimento científico desenvolvido
segundo a lógica da apropriação privada do excedente econômico

Módulo Básico
57
Planejamento Estratégico Governamental

não poderia ser utilizado em empreendimentos pautados por outra


lógica, como a imposta pela propriedade coletiva dos meios de
produção.
De fato, mesmo a visão de França Filho (2004), que nos
parece ser mais próxima àquela apresentada em Dagnino (2008),
não consegue abandonar a ideia de que existiria um conteúdo capaz
de ser aplicado indistintamente a organizações públicas e privadas.
França Filho (2004) dá preferência ao subcampo dos Estudos
Organizacionais (integrariam o conjunto outros dois subcampos:
as Técnicas Gerenciais e as Áreas Funcionais) e considera
seriamente a opção de que a Administração deva ser considerada
como ideologia (e não como arte ou ciência), o que é sem dúvida
uma postura promissora. Contudo, não obstante, a orientar sua
reflexão para a controvérsia acerca de qual deveria ser o objeto da
Administração (a gestão ou a organização). E, talvez angustiado
em apresentar uma solução de compromisso capaz de debilitar o
viés privado que apresentaria a Administração, o autor não penetra
no espaço de politização que nos parece conveniente para alcançar
seu propósito.

De acordo com o que vimos até aqui, você consegue identificar


um marco análico-conceitual adequado à gestão pública?

Com base na breve apresentação desta seção, argumentos


centrais deste livro, parece-nos faltar um marco analítico-conceitual
específico e adequado à gestão pública. O qual, diga-se de
passagem, tem a sua elaboração dificultada pela Reforma Gerencial
do Estado brasileiro que se iniciou em meados da década de 1990,
marcada pela proposição de que a lógica e os métodos de
administração empresarial deveriam ser adotados para promovê-
la. Não surpreende, portanto, que o currículo dos cursos de
Administração Pública reflita essas duas orientações: a da
“Administração Geral” e a da Reforma Gerencial. E tenda, por isso,
a formar gestores públicos que as aceitem acriticamente e,

58 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

paradoxalmente, dificultem o processo de transformação do Estado


Herdado para o Estado Necessário que se discutiu anteriormente.
Como tantas outras controvérsias que se manifestam no
campo do conhecimento e da educação, esta, pelo seu conteúdo
ideológico, tende a permanecer e se reproduzir quando novos
argumentos são incorporados ao debate. Passado o auge do
pensamento neoliberal, quando a Nova Gerência Pública divulgada
pelos professores universitários dos países centrais penetrou na
universidade brasileira, e como mostra o movimento da
Administração Política, antes comentado, voltou-se a discutir a
questão de como orientar a formação do gestor público.

Ao evidenciar o caráter falacioso e predatório, muitos


autores brasileiros e latino-americanos, alguns dos
quais serão intensamente discutidos neste Curso,
inauguraram um novo período em que se busca um
novo arranjo.

O que não quer dizer que novos argumentos não surjam e


devam ser analisados. Entre outros, aqueles que afirmam que a
controvérsia estaria perdendo sentido porque “um gestor pode, sem
sair da mesma organização, passar da condição de funcionário
público para a de empregado, como as privatizações mostraram”
(FISCHER, 2004, p. 168). Ou que o gestor social – entendido como
aquele profissional (de crescente importância) que no âmbito do
Estado, da empresa ou do “terceiro setor” se envolve diretamente
com as políticas sociais – deveria ter uma formação tão eclética
que as distinções a que aquela controvérsia alude estariam perdendo
sentido. E que, portanto, na sua formação não teria porque, mesmo
no campo analítico-conceitual, contemplar as diferenças, no nosso
entender muito importantes, existentes entre a gestão de empresas
e a gestão pública.

Módulo Básico
59
Planejamento Estratégico Governamental

Resumindo
Inicialmente vimos, nesta Unidade, um breve históri-
co do planejamento de modo a explicitar alguns aspectos
do contexto sociopolítico em que se verificam as relações
Estado-Sociedade no capitalismo periférico. Na sequência,
e também com o objetivo de fundamentar nossa proposta
de Planejamento Estratégico Governamental (PEG), obser-
vamos que nunca houve muito empenho em nosso País para
a adoção de ferramentas de gestão pública semelhantes.
Embora o quadro atual seja menos adverso do que o que
vigorou até o início deste século, não existe ainda um ambi-
ente receptivo para esse tipo de instrumento de gestão pú-
blica. Suas características e as atividades a ele correspon-
dentes parecem ser, entretanto, essenciais para fundamen-
tar e subsidiar o processo de transformação do “Estado Her-
dado” – da ditadura militar e da Reforma Gerencial de corte
neoliberal – no “Estado Necessário”. Aquele Estado capaz
não apenas de atender às demandas da maioria da popula-
ção hoje marginalizada, mas de fazer emergir e satisfazer
aquelas da cidadania política, social, econômica e ambiental.
A democratização política, que se inicia com o final do
regime militar, trouxe o aumento da capacidade dos seg-
mentos marginalizados de veicular seus interesses. Do pon-
to de vista cognitivo, a situação atual demanda do gestor
público um marco de referência analítico-conceitual,
metodologias de trabalho e procedimentos qualitativamen-

60 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

te muito diferentes daqueles que se encontram disponíveis


no meio em que ele atua.
Por fim observamos que, embora não devesse ser as-
sim, a expressão Gestão Pública tem sido frequentemente
utilizada no meio acadêmico para fazer referência ao aten-
dimento de demandas sociais: as Políticas Sociais. A
individualização das Políticas Sociais no âmbito das Políticas
Públicas nos revela uma concepção de desenvolvimento que
entende como separáveis e, por isso, passíveis de serem
tratados em separado os aspectos relativos ao econômico e
ao social. O PEG se opõe no plano metodológico a essa con-
cepção. E, também, àquela que entende a Administração
Pública como uma derivação ou particularização da “Admi-
nistração Geral”. Parece por isso um instrumento adequado
para que o gestor público interessado na transformação rumo
ao Estado Necessário possa atuar em consonância com sua
opção.

Módulo Básico
61
Planejamento Estratégico Governamental

Atividades de aprendizagem
Ao final desta Unidade 1, procure responder às questões
propostas a seguir. E lembre-se que, em caso de dúvidas,
você deve fazer uma releitura cuidadosa dos conceitos
ainda não entendidos e, se necessário, entrar em contato
com seu tutor.

1. Quais são as principais características que contrapõem o “Estado


Necessário” ao “Estado Herdado”?
2. De que forma o Planejamento Estratégico Governamental auxilia
na transformação rumo ao Estado Necessário?
3. Por que o conceito de “Administração Geral” é entendido pelo
autor como inadequado ao tratamento da gestão pública?
4. Qual a diferença entre o termo Gestão Pública e Administração
Pública?

62 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Conteúdos Introdutórios ao Planejamento Estratégico Governamental

UNIDADE 2
O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
GOVERNAMENTAL COMO
CONVERGÊNCIA E ENFOQUE

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade você deverá ser capaz de:
 Reunir elementos para criticar a concepção do Estado Neutro;
 Compreender a importância do campo da “Análise de Políticas”
e do “Planejamento Estratégico Situacional”; e
 Entender a contribuição desses dois campos de estudo para a
fundamentação do Planejamento Estratégico Situacional.

Módulo Básico
Planejamento Estratégico Governamental

64 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

INTRODUÇÃO

Na Unidade anterior traçamos de forma esquemática, mas


suficiente para nosso propósito, o contexto em que se devem inserir
as atividades de PEG do Estado brasileiro e apontamos a dimensão
do desafio cognitivo que a construção do “Estado Necessário”
coloca para a realização dessas atividades.
Nesta Unidade vamos ver o processo de constituição dos
fundamentos do PEG e mostrar por que consideramos que esta
disciplina pode ajudar na sua superação. Para tanto, analisaremos
a contribuição de dois enfoques relacionados à gestão pública, ou
mais especificamente ao processo de elaboração de políticas públicas
que constituem o fundamento da disciplina de PEG. São eles:

 Análise de Políticas; e
 Planejamento Estratégico Situacional.

Dentre o conjunto das Ciências Sociais aplicadas, as


disciplinas de Ciência Política e de Administração Pública eram,
até há bem pouco tempo, praticamente as únicas que forneciam
subsídios especificamente orientados para a análise das questões
públicas objeto da intervenção dos governos. Embora tenham
ocorrido, tanto nos países centrais como nos da América Latina,
importantes movimentos recentes de crítica, renovação, ampliação
e fusão multidisciplinares, essas duas matrizes de conhecimento
teórico e aplicado são ainda as mais amplamente disponíveis,
difundidas e utilizadas para a análise da interface entre o Estado e
a sociedade – Ciência Política – e para a execução do planejamento
governamental – Administração Pública.

Módulo Básico
65
Planejamento Estratégico Governamental

Por essa razão, mais precisamente porque a quase totalidade


das iniciativas de formação de gestores públicos existentes na região
adota, ao contrário do que aqui se propõe, essas matrizes de
conhecimento – em especial a da Administração Pública –, é que
se apresenta a seguir uma crítica a estas. Posteriormente, na seção
que segue, se apresentam dois de seus recentes desdobramentos –
a Análise de Política e o Planejamento Estratégico Situacional –
considerados como as abordagens mais adequadas para conformar
o fundamento do PEG.

66 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

A CIÊNCIA POLÍTICA E A
SUPERVALORIZAÇÃO DO POLÍTICO

O processo de governo ou, mais precisamente, os processos


de tomada de decisão (a formulação das políticas públicas) e de
sua implementação não ocupam um papel central no horizonte de
preocupações da Ciência Política. Suas principais teorias, modelos
cognitivos ou visões que tratam a relação entre a sociedade e o
Estado (marxista, pluralista, sistêmica, elitista) explicam as decisões
de governo – tomadas no interior do aparelho de Estado – através
da consideração de elementos a ele externos.
Essa afirmação pode ser corroborada por um exame, ainda
que superficial, das suas duas visões extremas:

 visão pluralista, que percebe o resultado do processo


decisório – o conteúdo da política – como algo quase
indefinido, posto que fruto de um ajuste incremental das
preferências de uma infinidade de atores indiferenciados
do ponto de vista de seu poder político; e
 visão marxista, a qual entende aquele resultado – o
conteúdo da política – como algo quase que
inteiramente predeterminado pela estrutura
econômica, posto que resultante da ação de um ator.

Para os pluralistas, era como se o Estado fosse dirigido por


um contexto político, econômico e social homogêneo, sem
assimetrias e diferenças de poder. Para os marxistas do século XIX
e início do século XX, era como se ele estivesse inteiramente

Módulo Básico
67
Planejamento Estratégico Governamental

submetido aos interesses da classe proprietária, mais do que


dominante, hegemônica. No pós-Segunda Guerra, o Estado
capitalista começou a ser entendido pelos marxistas como dotado
de um certo poder de autodeterminação e de “autonomia relativa”.
Passou-se então a entender como os instrumentos colocados à
disposição das burocracias dos Estados contemporâneos terminam
gerando uma elite com interesses próprios e até certo ponto
independentes das demais.
Era natural, por tanto, que os cientistas políticos se
concentrassem no estudo deste contexto para entender as implicações
sociais, econômicas etc. do exercício do poder; as quais, de certa
forma, apenas fluiriam através do Estado, sem ser por ele
determinadas. O problema da Ciência Política seria de tipo
investigativo: indicar as razões contextuais que explicam o caráter
do que foi decidido. Seu foco seria, portanto, a política (politics) e
não as políticas (policies), o sistema e o processo político (political
process) e não o processo de elaboração de políticas (policy process).

68 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A
SUBVALORIZAÇÃO DO CONFLITO

A Administração Pública tem como premissa a separação


entre o político (politics) e o administrativo; o mundo da política
(politics) e o das organizações; a tomada de decisão e a
implementação. O primeiro termo desta dicotomia era entendido
como caracterizado pelo conflito de interesses e o dissenso político
que se manifesta na sociedade e, o segundo, pelo consenso técnico
em torno de um interesse comum que se expressa no interior do
aparelho de Estado: implementar eficientemente o que foi, não
interessa como nem por que, decidido. É como se o primeiro fosse
o ponto cego do segundo; e, o segundo, uma simples decorrência e
consequência, inclusive temporal, do primeiro.
Diferentemente da Ciência Política, o problema da
Administração Pública pode ser entendido, para marcar a diferença
entre elas, como de tipo operacional. O objetivo precípuo da
Administração Pública era executar da melhor forma possível,
segundo critérios de otimização, autocontidos, incrementais e que
não ensejavam questionamentos de tipo político ou socioeconômico
mais amplos, as decisões tomadas pelos governos. As quais eram
frequentemente e, poderíamos dizer até hipocritamente, entendidas
como a expressão do desejo da maioria, numa estrutura político-
social percebida como uma poliarquia. O estudo do processo de
tomada de decisão e da natureza conflitiva de sua implementação
era, por isto, flagrantemente subestimado.

Módulo Básico
69
Planejamento Estratégico Governamental

A CONCEPÇÃO INGÊNUA DO
ESTADO NEUTRO

Na visão simplista de certos setores da esquerda latino-


americana, a perspectiva da administração era “de direita”, uma
vez que o que buscava era a otimização das condições de
reprodução do capital e, portanto, o aumento da exploração da
classe trabalhadora. As tímidas incursões que se fazia, utilizando a
abordagem sistêmica (rejeitada pelo marxismo e pela esquerda),
para entender o que se encontrava a montante do território que
dominava – da simples implementação das decisões tomadas – no
sentido da compreensão do processo de elaboração da política,
eram vistas como mais uma tentativa do capital para
instrumentalizar este processo em seu benefício.

A Ciência Política, ao contrário, era entendida como


uma perspectiva “de esquerda”, na medida em que
iluminava as contradições de classe e permitia
discernir a dominação e a exploração.

Era como se a Ciência Política fosse a encarregada de


condenar o caráter antissocial, repressivo, demagógico do Estado
capitalista periférico através de análises e pesquisas, realizadas, é
claro, fora do aparelho de Estado. E a Administração Pública fosse
a encarregada de “tocar” o estilo tradicional de planejamento
governamental e de elaboração de políticas públicas –

70 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

homogeneizador, uniformizador, centralizador, tecnocrático – típico


do Estado burocrático e autoritário que herdamos.
Na verdade, o fato de que nem a Ciência Política nem a
Administração Pública tenham considerado o processo de
elaboração de políticas como problemático levou à superação do
desafio cognitivo colocado pela construção do “Estado Necessário”
como especialmente difícil. A (inevitável) adoção privilegiada da
Administração Pública no âmbito do aparelho de Estado foi
conformando uma concepção ingênua: a do Estado neutro.

Contraditoriamente com a orientação da Ciência


Política, a Administração Pública é hoje dominante.

Na atual conjuntura, em que quadros dirigentes da esquerda


chegam a ser governo em muitos países da América Latina (em sua
bem-sucedida trajetória de aceitação da via pacífica e eleitoral para
a transformação da sociedade capitalista), a concepção dominante,
aquela que privilegia a perspectiva da Administração Pública, tem
se mostrado especialmente disfuncional e, por isto, desastrosa.
Mas, para a Ciência Política, o caráter do processo de
elaboração de políticas e o seu resultado (o conteúdo da política)
são uma simples decorrência das relações de poder existentes no
contexto externo ao Estado. É uma concepção que pode ser
entendida, no limite, como mecanicista; uma espécie de
determinismo social do processo de elaboração da política e do

v
conteúdo da política. Como se existisse uma relação de causalidade
linear e estrita entre as relações de poder vigentes no contexto que
envolve o aparelho de Estado e o conteúdo das políticas que dele
Como se todo o processo
emanam. Algo como se Estado fosse um elemento semelhante a um se orientasse
dispositivo transdutor, eletrônico ou pneumático, que ao receber automaticamente de
um impulso externo de entrada gera um outro, de saída, cujas acordo com as
características do bloco
características dependem apenas da intensidade e “sinal” do
dominante de poder.
impulso de entrada.

Módulo Básico
71
Planejamento Estratégico Governamental

Mas a suposição de que numa sociedade de classes a


“ocupação” do Estado pela classe dominante leva inexoravelmente
a políticas que mantêm e reproduzem a dominação desta sobre as
demais classes não é tão mecanicista como a sua recíproca.
A concepção ingênua do Estado neutro, que supõe que uma mudança
na correlação de forças na sociedade num grau o qual permita o
controle do seu aparelho por forças progressistas originaria,
automaticamente, políticas capazes de alavancar a desconcentração
de poder e a equidade social, esta sim pode ter consequências
desastrosas.
A concepção de que o aparelho de Estado seja um simples
instrumento neutro capaz de, de uma hora para outra, operar de
forma a implementar políticas contrarias às premissas de
manutenção e naturalização das relações sociais de produção
capitalistas que o geraram pode levar a uma postura voluntarista
que tende a minimizar as dificuldades as quais enfrentam os
governos de esquerda.

O preço do equívoco em que eles têm frequentemente


incorrido, de subestimar as relações entre forma e
conteúdo, é proibitivo e não pode mais ser tolerado.

72 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

OS ENFOQUES DA ANÁLISE DE POLÍTICA


E O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
SITUACIONAL COMO FUNDAMENTOS
DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
GOVERNAMENTAL

Vimos no início desta Unidade que são dois os


desdobramentos relativamente recentes – a Análise de Política e o
Planejamento Estratégico Situacional – das matrizes de
conhecimento. Elas são consideradas como as abordagens mais
adequadas para a formação de gestores capazes de realizar as
atividades de PEG demandadas pela construção do “Estado
Necessário”.
No “Estado Herdado”, os marcos de referência cognitivos
dos gestores eram em geral originários de uma daquelas duas *Ad hoc – expressão lati-
matrizes que conformavam o repertório de conhecimento “formal” na que significa “somen-
disponível no âmbito do aparelho de Estado (e também fora dele) te para este fim específi-

para o tratamento das questões de governo. Um outro corpo de co que está sendo consi-
derado”. Fonte: Lacombe
conhecimento – informal, intuitivo, específico, assistemático, e
(2004).
gerado de forma ad hoc*, indutiva, on the job* – fazia parte da
*On the job – realizado na
sua formação. Era ele que de alguma forma, ao adicionar-se a esses
própria execução do tra-
dois enfoques, permitia sua combinação preenchendo os vazios balho. Fonte: Lacombe
cognitivos e amenizando o “desvio ingênuo” a que se fez referência. (2004).

O fato de que este outro corpo de conhecimentos, apesar da


sua fundamental importância para o exercício de governar, não

Módulo Básico
73
Planejamento Estratégico Governamental

era ensinado, mas sim, a duras penas, e só por alguns, apreendido,


não passou despercebido aos pesquisadores acadêmicos nem aos
gestores que, tanto nos países centrais como na América Latina, se
interessavam ou estavam envolvidos com assuntos de governo. Este
fato, aliado a outros tipos de preocupação, entre as quais as de
natureza ideológica e política são as mais relevantes, originou
movimentos de crítica e fusão multidisciplinar entre essas duas
matrizes de conhecimento e delas com outras disciplinas das
Ciências Sociais.
Esses movimentos foram penetrando na “caixa-preta” do
processo (ou sistema) de elaboração de políticas – aquilo que era
até então interpretado como um transdutor – por um de seus dois
extremos (inputs e outputs), ou de seus dois principais momentos
(formulação e implementação).
A Administração Pública, a partir da constatação de que os
hiatos entre o produto (output do sistema) obtido e o previsto
mediante o planejamento governamental (déficit de implementação)
não eram simplesmente um sintoma de má administração. Ou seja,
eles poderiam dever-se a problemas anteriores à fase de
implementação propriamente dita. Isto é, ao momento de
formulação da política que envolve processos decisórios em que
atores políticos defendem seus interesses e valores.
Com a constatação de que a formação da agenda decisória,
que ocorria no âmbito do processo de formulação das políticas,
influenciava muito significativamente o conteúdo da política, entra
na “caixa-preta” a Ciência Política pelo lado dos inputs. Como a
agenda decisória era determinada pelas forças políticas que se
expressavam no contexto econômico-social que envolvia a interface
público-privado, a Ciência Política não poderia se manter à margem
da análise das políticas públicas.

Mas qual a implicação imediata desse envolvimento?

74 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

Uma das consequências imediatas foi a constatação de que


as determinações políticas, econômicas e sociais não eram um
simples insumo (input) do processo de formulação das políticas, e
sim algo que seguia atuando ao longo do processo da elaboração
das políticas, abarcando todos os seus momentos: formulação,
implementação e avaliação.
Algumas perguntas fundacionais, como as que seguem,
orientaram esse movimento e estão na base da insatisfação com o
planejamento governamental tradicional que veio a desembocar na
proposta do PEG. São elas:

 Quais são os grupos que realmente conformam a


agenda de decisão (agendum = algo sobre o qual se
deve atuar) mediante sua capacidade de transformar
(ou travestir) seus problemas privados em assuntos
públicos, em questões de interesse do Estado, sobre
os quais ele deve atuar?
 E, mais do que isto, como fazem para impedir que
outros assuntos de outros grupos sociais não sejam
incorporados à agenda fazendo com que ela fique
restrita a assuntos sobre os quais têm controle?
 Que procedimentos usam e de que mecanismos do
próprio aparelho de Estado – legítimo e a eles
acessíveis por direito – se utilizam para fazer com que
os assuntos que logram colocar na agenda sejam
decididos e implementados de acordo com seus
interesses?

Módulo Básico
75
Planejamento Estratégico Governamental

O ENFOQUE DA ANÁLISE DE POLÍTICA

Este é o primeiro dos enfoques verdadeiramente inovadores


e multidisciplinares que vamos analisar. Visto que ele foi conformado
a partir da confluência entre a Administração Pública, ou mais
precisamente da problematização que começara a fazer acerca da
implementação das políticas públicas, de um lado, e da Ciência
Política, e mais especificamente da problematização da formação
da agenda e do processo decisório, por outro.
Sua importância para formar os fundamentos em que se
apoia a proposta do PEG está relacionada à capacidade de enfocar
a interface entre a sociedade e o Estado e o seu próprio
funcionamento de um modo mais revelador do que até então fazia
a Ciência Política. Além de enfocar a questão da elaboração dos
planos e da sua execução, da alocação de recursos etc., com maior
sutileza e realismo do que fazia a Administração Pública.

Diante do exposto, faça uma reflexão sobre a relevância da


Análise de Políticas para a Administração Pública.

Em alguns casos, a Análise de Política nasce como área de


pesquisa nos círculos ligados à disciplina de Administração Pública.
Como, nos EUA, nos anos 60, eles estavam focalizados na análise
organizacional, nos métodos quantitativos etc. e não enfatizavam
a questão dos valores e interesses que a Análise de Política
argumentava que era essencial para a Administração Pública, essa
relação foi muitas vezes complicada. Em outros casos, a Análise de
Política se estabelece por diferenciação/exclusão em relação à

76 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

Ciência Política, em círculos a ela ligados. Como resultado ocorreu


uma inflexão*. Sua perspectiva passou a incorporar a análise das
organizações e das estruturas de governo, deslocando um pouco o *Inflexão – mudança da

foco da análise do institucional para o comportamental. direção ou da posição


normal – desvio. Fonte:
Apesar das contribuições que desde há muito tempo têm sido Houaiss (2007).
realizadas por cientistas sociais para questões como essas, o que é
novo é a escala em que elas passam a ocorrer a partir dos anos de

v
1970 nos países capitalistas centrais, e o ambiente mais receptivo
que passa a existir por parte dos governos. Esses movimentos
recentes se caracterizaram por oferecerem uma nova abordagem e
tentarem superar problemas atinentes às perspectivas que tomaram
No que tange aos
por modelo áreas da Administração Pública ou ainda por dar pesquisadores muitos já
excessiva ênfase a métodos quantitativos combinados à análise tinham se interessado
organizacional. por questões ligadas à
atuação do governo e às
Embora várias definições tenham sido cunhadas pelos
políticas públicas.
autores que primeiro trataram o tema, vamos iniciar citando
Bardach (1998), que considera a Análise de Políticas como um
conjunto de conhecimentos proporcionado por diversas disciplinas
das ciências humanas utilizado para analisar ou buscar resolver
problemas concretos relacionados à política (policy) pública.
Para Wildavsky (1979), a Análise de Política recorre a
contribuições de uma série de disciplinas diferentes a fim de
interpretar as causas e consequências da ação do governo, em
particular, do processo de elaboração de políticas. Ele considera,
ademais, que Análise de Política é uma subárea aplicada, cujo
conteúdo não pode ser determinado por fronteiras disciplinares,
mas sim por uma abordagem que pareça apropriada às
circunstâncias do tempo e à natureza do problema. Segundo
Lasswell (1951), essa abordagem vai além das especializações
acadêmicas existentes.
Já segundo Dye (1976), fazer análise de Política implica em
descobrir o que os governos fazem, por que fazem e que diferença
isto faz. Para ele, Análise de Política é a descrição e explicação das
causas e consequências da ação do governo. Numa primeira leitura,
essa definição parece descrever o objeto da Ciência Política, tanto
quanto o da Análise de Política. No entanto, ao procurar explicar

Módulo Básico
77
Planejamento Estratégico Governamental

as causas e consequências da ação governamental, os pesquisadores


cientistas políticos têm-se concentrado nas instituições e nas
estruturas de governo, só há pouco registrando-se o deslocamento
para um enfoque comportamental que caracteriza a Análise de
Política.
Ham e Hill (1993) ressaltam que só recentemente a política
pública tornou-se um objeto importante para os cientistas políticos.
E o que a distingue da Ciência Política é a preocupação de como o
governo a faz.
Assim, podemos afirmar que as políticas públicas a vida de
todos os envolvidos por problemas de esferas públicas e política
(politics), que os processos e resultados de políticas sempre
envolvem vários grupos sociais, e as políticas públicas se constituem
em objeto específico e qualificado de disputa entre os diferentes
agrupamentos políticos com algum grau de interesse pelas questões
que têm no aparelho de Estado um lócus privilegiado de expressão,
vem tornando a Análise de Política um campo de trabalho cada vez
mais importante.

Você deve estar se perguntando: Análise de Política e


Administração Pública, o que as distingue?

Segundo os pesquisadores que fundam o campo, é na Análise


de Política, em seu caráter normativo (no sentido de explicitamente
portador de valores), que é revelada a preocupação acerca de como
as ideias que emergem da análise podem ser aplicadas no sentido
de alavancar um projeto social alternativo. Neste caso, podemos
afirmar que a melhoria do processo político através das políticas
públicas que promovem a democratização do processo decisório é
assumida como um viés normativo. Mas, os mesmos pesquisadores
apontam ainda a Análise de Política também como um problem-
oriented, o que demanda e suscita a interdisciplinariedade.

78 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

A Análise de Política se caracteriza pela sua orientação


aplicada, socialmente relevante, multidisciplinar,
integradora e direcionada à solução de problemas.
Além de sua natureza ser ao mesmo tempo descritiva
e normativa.

Na opinião de alguns pesquisadores de Análise de Política,


o analista das políticas públicas deve situar-se fora do mundo do
dia a dia da política (politics) de maneira a poder indagar acerca
de algumas das grandes questões relacionadas à função do Estado
na sociedade contemporânea e à distribuição de poder entre
diferentes grupos sociais.
Para uma análise adequada, é necessário explorar três níveis.
Níveis que podem ser entendidos, ao mesmo tempo, como aqueles
em que se dão realmente as relações políticas (policy e politics) e
como categorias analíticas, isto é, como níveis em que estas relações
devem ser analisadas. São eles:

 Funcionamento da estrutura administrativa


(institucional): nível superficial, descritivo, que
explora as ligações e redes intra e interagências,
determinadas por fluxos de recursos e de autoridade
etc. É o que podemos denominar nível da aparência
ou superficial;
 Processo de decisão: nível em que se manifestam
os interesses presentes no âmbito da estrutura
administrativa, isto é, dos grupos de pressão que
atuam no seu interior e que influenciam o conteúdo
das decisões tomadas. Dado que os grupos existentes
no interior de uma instituição respondem a demandas
de grupos situados em outras instituições públicas e
em organizações privadas, as características e o
funcionamento desta não podem ser adequadamente
entendidos, a não ser em função das relações de poder

Módulo Básico
79
Planejamento Estratégico Governamental

que se manifestam entre esses grupos. É o que podemos


chamar de nível dos interesses dos atores; e
 Relações entre estado e sociedade: referentes ao
nível da estrutura de poder e das regras de sua
formação, o da “infraestrutura econômico-material”.
É o determinado pelas funções do Estado que
asseguram a reprodução econômica e a normatização
das relações entre os grupos sociais. É o que explica,
em última instância, a conformação dos outros dois
níveis, quando pensados como níveis da realidade, ou
as características que assumem as relações a serem
investigadas, quando pensadas como categorias
analíticas. Este nível de análise trata da função das
agências estatais que é, em última instância, o que
assegura o processo de acumulação de capital e a sua
legitimação perante a sociedade. É o que podemos
denominar nível da essência ou estrutural.

A análise deve ser desenvolvida de forma reiterada (em ciclos


de retroalimentação) do primeiro para o terceiro nível e vice-versa,
buscando responder às questões suscitadas pela pesquisa em cada
nível. Como indicado, é no terceiro nível em que as razões últimas
destas questões tendem a ser encontradas, uma vez que é ele o
responsável pela manutenção da estabilidade política e pela
legitimidade do processo de elaboração de políticas.
No momento de formulação, através da filtragem das
demandas, seleção dos temas e controle da agenda mediante um
processo cujo grau de explicitação é bastante variável, ele vai desde
uma situação de conflito explícito, na qual há uma seleção “positiva”
das demandas que se referem às funções que são necessárias para
manutenção de formas de dominação na organização econômica,
como suporte à acumulação de capital e resolução de conflitos
abertos, até uma “não decisão”, que opera no nível “negativo” da
exclusão dos temas que não interessam à estrutura capitalista (como
a propriedade privada, ou a reforma agrária), selecionando os que

80 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

entram ou não na agenda através de mecanismos que filtram


ideologicamente os temas e os problemas.

Nos momentos da implementação e da avaliação,


outros mecanismos de controle político se
estabelecem tendo por cenário os dois primeiros
níveis e, com âmbito maior e mais complexo de
determinação, o terceiro.

Através do trânsito entre estes três níveis, depois de várias


reiterações, é possível conhecermos o comportamento da
“comunidade política” existente numa área qualquer de política
pública, e desta maneira chegarmos a identificar as características
mais essenciais de uma política. Este processo envolve examinar a
estrutura de relações de interesses políticos construídos pelos atores
envolvidos; explicar a relação entre o primeiro nível superficial das
instituições e o terceiro nível mais profundo da estrutura econômica.

Vimos que são três os níveis distintos da análise de uma política.


Você sabe descrever em que implica cada um destes níveis?

Podemos dizer que com a análise de uma política é possível


primeiramente identificarmos as organizações (instituições públicas)
com ela envolvidas e os atores que nestas se encontram em posição
de maior evidência. Em seguida, e ainda no primeiro nível
(institucional) de análise, identificarmos as relações institucionais
(isto é, aquelas sancionadas pela legislação) que elas e seus
respectivos atores-chave mantêm entre si.
Passando a um segundo nível, a pesquisa ocorre sobre as
relações estabelecidas entre esses atores-chave que representam os
grupos de interesse existentes no interior de uma instituição e de
grupos externos, situados em outras instituições públicas e em
organizações privadas. As relações de poder, coalizões de interesse,

Módulo Básico
81
Planejamento Estratégico Governamental

formação de grupos de pressão, cooptação, subordinação etc. devem


ser cuidadosamente examinadas de maneira a explicar o
funcionamento da instituição e as características da política.
A determinação de existência de padrões de atuação recorrente de
determinados atores-chave e sua identificação com os de outros
atores, instituições, grupos econômicos, partidos políticos etc., de
modo a conhecer os interesses dos atores, são o objetivo a ser
perseguido neste nível de análise.
Já no terceiro nível e último nível de análise, mediante uma
tentativa sistemática de comparar a situação observada com o
padrão (estrutura de poder e das regras de sua formação)
conformado pelo modo de produção capitalista – sua “infraestrutura
econômico-material” e sua “superestrutura ideológica” – é que
ocorre a explicação. Ou seja, é nesta etapa, em que através do
estabelecimento de relações entre a situação específica que está sendo
analisada e o que tipicamente tende a ocorrer no capitalismo avançado
(ou periférico, no caso latino-americano), que podemos chegar a
entender a essência, isto é, entender como as relações se estabelecem
entre as várias porções do Estado e destas com a sociedade.
Assim, podemos dizer que o percurso descrito é uma tentativa
sistemática de percorrer este “caminho de ida e volta” apoiando-
nos sempre no “mapa” que este terceiro nível de análise proporciona.

82 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

O ENFOQUE DO PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO SITUACIONAL

Ao contrário do enfoque da análise de política, este enfoque


não será tratado aqui de modo detalhado, pois os capítulos
que seguem, os quais apresentam as duas metodologias
integrantes do arsenal do PEG, já o fazem. Vamos começar?

O Planejamento Estratégico
Situacional, método PES, surgiu em Saiba mais Carlos Matus

meados da década de 1970 como resultado Ministro do Governo Allende


da busca de uma ferramenta de suporte ao (1973) e consultor do ILPES/
mesmo tempo científica e política para o CEPAL, falecido em dezembro

trabalho cotidiano de dirigentes públicos e de 1998, ministrou vários cur-

outros profissionais em situação de sos no Brasil nos anos noven-


ta (Escolas Sindicais, IPEA,
governo. Seu criador foi o ex-ministro de
Ministérios, Governos Estaduais e Munici-
Planejamento chileno do governo Allende,
pais). Criou a Fundação Altadir com sede na
Carlos Matus. Nas suas próprias palavras,
Venezuela para difundir o método e capacitar
o método PES nasceu de um longo
dirigentes. Introduzido no Brasil a partir do
processo de reflexão ocorrido no período
final dos anos oitenta, o PES foi disseminado
em que ele ficou preso em função do golpe e adaptado amplamente nos locais onde foi
militar, o qual levou à morte o presidente utilizado, particularmente no setor público.
Allende, em setembro de 1973. Essa reflexão Fonte: <http://www.espacoacademico.com.br/
o levou a formular uma crítica ao 032/32ctoni.htm#_ftn2>.
planejamento governamental tradicional e
propor um método alternativo levando em conta o caráter
situacional (situação do ator que planeja) e estratégico o qual deveria

Módulo Básico
83
Planejamento Estratégico Governamental

possuir o planejamento, em especial aquele necessário para lidar


com as particularidades do Estado latino-americano.
A leitura de qualquer um dos vários livros escritos por Matus
revela que essa crítica tem como pressupostos muitos dos conteúdos
abordados pelo enfoque da Análise de Políticas. Aspecto ainda mais
patente para os que tiveram a oportunidade de serem alunos do
professor Matus.

Baseado em pressupostos muito semelhantes aos da


Análise de Política, o método PES é uma alternativa
ao planejamento tradicional.

De acordo com os pressupostos apresentados até aqui e


também pelo fato de ter sido concebido através do aprendizado
proporcionado por sucessivas experiências de planejamento
governamental em países periféricos, o método PES foi escolhido
como um dos fundamentos desta disciplina de PEG. O Planejamento
Estratégico Governamental conta ainda com um repertório de
instrumentos e metodologias que adicionam à reflexão sobre Análise
de Políticas preocupações mais realistas e próximas do contexto
latino-americano. Para tanto, destacamos a seguir alguns pontos que
a tornam apropriada para servir de fundamento à disciplina de PEG:

 a crítica radical que faz ao planejamento tradicional


“normativo” (não no sentido de prescritivo, mas sim
de voluntarista, escassamente apoiado em análise
metodologicamente coerente – e autoritário – baseado
em “acordos de gabinete” sem participação) e à sua
própria epistemologia, de caráter positivista e
comportamentalista;
 o uso do termo estratégico, empregado na sua dupla
conotação de movimento visando à solução de uma
situação que se configura como um problema para o
ator que planeja e de movimento em que este ator
enfrenta ou vai ser enfrentado por um adversário o

84 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

qual também se move, inclusive em resposta às suas


ações. Aquelas ações que irão construir o cenário
normativo: aquele cujo conteúdo interessa ao ator que
planeja. Estratégico, ademais, por ter seu foco nos
projetos de longo prazo de maturação, mais do que
em simples manobras táticas (de curto prazo);
 a clara distinção que coloca entre o planejamento
estratégico corporativo ou empresarial, do qual
lamentavelmente se originam muitas das propostas que
são “contrabandeadas” para o território
governamental, e a proposta que faz de tratar os
problemas públicos, situados na interface Estado-
Sociedade, de modo coerente com as demandas do
conjunto desta sociedade e não com as de um grupo
econômica e politicamente favorecido; e
 o esforço de construção de um método para
compreender o jogo social, a relação entre os homens,
e atingir resultados relevantes apesar da incerteza
sempre presente, a partir de categorias como ator
social, teoria da ação social, produção social e
conceitos como o de situação e o de momento.

O método PES se coloca, por sua vez, como uma


“contraproposta epistemológica” ao planejamento de tipo
economicista (que, por operar sobre variáveis quantitativas,
frequentemente de natureza econômica, dá a enganosa impressão
de exatidão e racionalidade) ao:

 negar a possibilidade de um único diagnóstico da


realidade, por enfatizar que os vários atores “explicam”
ou fazem “recortes” interessados da realidade, a partir
de suas situações particulares e sempre voltados para
a ação. Não é possível, nunca, um conhecimento
“fechado”, uma verdade acabada sobre a realidade;
 reconhecer que os atores em situação de governo nunca
têm o controle total dos recursos exigidos por seus

Módulo Básico
85
Planejamento Estratégico Governamental

projetos e, por isto, nunca há certeza de que suas ações


alcançarão os resultados esperados. Os recursos
escassos não são só os econômicos, mas os de poder,
de conhecimento e de capacidade de organização e
gestão, entre outros;
 aceitar que a ação humana é intencional e nunca
inteiramente previsível, como fazem supor os
comportamentalistas; e
 aceitar que o jogo social é sempre de “final aberto”.

Nesta medida, apesar da incerteza, da incapacidade de


controlar os recursos, do abandono de qualquer posição
determinística, há sempre espaço para a ação humana intencional,
para se “fazer história”, para se “construir sujeitos” individuais e
coletivos e para se lutar contra a improvisação, construindo um
caminho possível que se aproxime do rumo desejado.

86 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

Resumindo
Nesta segunda Unidade investigamos a contribuição
de dois enfoques relacionados à gestão pública. Um de aná-
lise do processo de elaboração de políticas públicas, a Aná-
lise de Políticas (a Policy Analysis); e outro conhecido na
América Latina como o “método PES do Carlos Matus”. Eles
constituem o fundamento daquilo que nesta disciplina de-
nominamos PEG.
Vimos ainda que o que acontece “dentro” do Estado –
a elaboração de políticas públicas – não ocupa um papel cen-
tral no espectro de preocupações da Ciência Política. E que a
Administração Pública tende a desprezar o conhecimento
que ela ceticamente proporciona sobre a interface Estado-
Sociedade. Por separar o mundo da politics e o da policy, a
Administração Pública pode reduzir o político (politics) a um
mero aspecto técnico-operacional, administrativo.
É a partir da contribuição desses dois enfoques, a Aná-
lise de Políticas e o Planejamento Estratégico Situacional,
que se delineou o conceito de PEG que se “suleou” (em vez
de norteou) a concepção desta disciplina.

Módulo Básico
87
Planejamento Estratégico Governamental

Atividades de aprendizagem
Para verificar seu entendimento propomos algumas
atividades de aprendizagem. Procure respondê-las e em
caso de dúvida não hesite em conversar com o seu tutor.

1. Quais as principais diferenças entre os enfoques da Ciência Políti-


ca, da Administração Pública e da Análise de Política?
2. Por que a Análise de Política e o Planejamento Estratégico
Situacional são considerados abordagens adequadas para a pro-
posta feita nesta disciplina para o tratamento do planejamento
estratégico? E por que essa proposta seria apropriada para os
gestores interessados na construção do “Estado Necessário”?
3. Qual a diferença entre Planejamento Estratégico Situacional e o
Planejamento tradicional? Aponte as características principais de
cada um.

88 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – O Planejamento Estratégico Governamental como Convergência e Enfoque

UNIDADE 3
METODOLOGIA DE
DIAGNÓSTICO DE SITUAÇÕES

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Compreender como se pode gerar coletivamente um mapa
cognitivo relativo a uma situação-problema, e como construir o
seu fluxograma explicativo;
 Captar os condicionantes da ação de governo a partir de conceitos
como projeto de governo, governabilidade, capacidade de
governo, tempo e oportunidade; e
 Aplicar a Metodologia de Diagnóstico de Situações e saber
relacioná-la com o processo de transição do “Estado Herdado”
para o “Estado Necessário”.

Módulo Básico
89
Planejamento Estratégico Governamental

90 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

INTRODUÇÃO

v
Esta Unidade trata de uma metodologia que tem como
objetivo dar um passo importante para lograr a aproximação ao
nosso propósito de subsidiar a transição do “Estado Herdado” para
Este texto é resultado de
o “Estado Necessário”. Como já vimos, na Unidade 1, as uma revisão, ampliação
características do Estado Herdado decorrem do fato de que nossa e adaptação do capítulo
proposta a esse respeito é distinta daquela postada numa “cena de sobre a Metodologia de
Diagnóstico de
chegada” – uma configuração de Estado democrático
Situações, de Dagnino e
(O’DONNELL, 2008) coerente com um cenário normativo a ser outros (2002).
construído pela via da observância das cidadanias que estão além
da cidadania política – que, por oposição, se diferencia da “cena
inicial”. Tal proposta, por não explicitar a natureza da “trajetória”
que as separa, coloca o “Estado Necessário” como uma espécie de
“farol” situado num cenário futuro. Ele seria o responsável para
guiar a transição.
Acreditamos que para materializar a intenção de gerar uma
configuração de Estado com atributos previamente especificados
(consolidar as cidadanias que estão além da cidadania política),
devido à escassa possibilidade que temos de detalhar a cena de
chegada, às incertezas associadas ao processo e à necessidade de
que o processo esteja sempre submetido à vontade de coletivos
participativos com alto poder de decisão, é necessário outro tipo
de abordagem metodológica. Usando a analogia náutica, podemos
dizer que uma “bússola”, a qual não se encontra disponível, possui
baixa probabilidade de alcançar um resultado coerente com os
valores e interesses do conjunto de atores que, por sua vez, são os
mais envolvidos com esse processo.

Módulo Básico
91
Planejamento Estratégico Governamental

Com certeza você sabe o que é uma bússola, mas para que ela
serve? Qual sua relação com nossa disciplina?

A bússola é um instrumento que nos permite navegar mesmo


quando as condições de visibilidade não nos possibilitem enxergar
o farol. Especialmente quando:

 ao estarmos numa embarcação à vela, é inconveniente


manter um rumo fixo;
 é necessário aproveitar uma lufada de vento forte que
nos permite avançar mais rápido, mesmo sabendo que
temos que bordejar depois para recuperar a direção
em que estávamos; afinal velejar é aproveitar a força
do vento e da maré;
 percebemos que não é conveniente tentar manter o rumo
para chegar a um ponto rigidamente predeterminado
(farol); e
 o mais importante, naquela conjuntura, é chegar logo
à costa, ainda que num ponto distinto do que se havia
programado, de maneira segura e aproveitando as
condições que se apresentarem.

A bússola é o que nos permitirá, inclusive, saber o


quanto nos estamos afastando daquele ponto e quais
os inconvenientes que isto nos poderá causar.

Gerar um produto adequado num cenário postulado como


desejável (farol), mas numa situação em que o contexto
socioeconômico e político é cambiante, assim como são os
interesses e projetos políticos dos atores que se quer favorecer,
sobretudo quando é difícil visualizar sua provável evolução, não é

92 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

o mais sensato. O que não quer dizer, é claro, que devamos deixar
o barco à deriva.
Nossa bússola é, justamente, a metodologia que
apresentamos nesta Unidade. Ela é mais eficaz do que qualquer
“farol” que a priori possamos divisar, pois trabalha com situações-
problema que derivam do ambiente socioeconômico e político em
que estamos “velejando” e que também são definidas no âmbito
dos atores que nos interessa promover e, sendo assim, trazem
embutidos seus valores e interesses.
Ela começa com a construção de um mapa cognitivo de uma
determinada situação-problema. Este mapa pode ser considerado,
para todos os efeitos, como um modelo descritivo de uma realidade
complexa sobre a qual, num momento normativo posterior, com o
emprego da Metodologia de Planejamento de Situações (MPS),
elaborar-se-ão estratégias especificamente voltadas a alterar a
configuração atual descrita.
A Metodologia de Diagnóstico de Situações (MDS) busca
viabilizar uma primeira aproximação aos conceitos adotados para
o PEG e ao conjunto de procedimentos necessários para iniciar
um processo dessa natureza numa instituição pública, de governo.
Do ponto de vista mais formal e enfatizando seu caráter pedagógico
mais do que o de ferramenta de trabalho que ela possui, a MDS
pode ser considerada como uma variação da metodologia do estudo
de caso ou do “método do caso”, amplamente utilizada desde o
início do século XX nas Escolas de Direito e de Administração Kliksberg (1992), Costa e
Barroso (1992) e Aragão
(pública e de empresas) em todo o mundo. Sem pretender comparar

v
e Sango (2003), entre
esse método de ensino com a MDS, mesmo porque esta possui um outros, sistematizaram
caráter que almeja transcender em muito esta condição, ou criticar algumas dessas críticas
a forma como foi concebido ou tem sido utilizado, cabe enfatizar de modo bastante
acertado e que se
que os esforços iniciais para a sua concepção e utilização, realizados
mostraram úteis para a
por Carlos Matus, se dão em ambientes de governo para resolver concepção das melhorias
problemas concretos e não para a “construção” ou idealização de que fomos ao longo do
casos úteis para o ensino de Administração. tempo introduzindo na
MDS.
Buscando um maior aproveitamento e entendimento
dividimos esta Unidade 3 em quatro partes distintas. São elas:

Módulo Básico
93
Planejamento Estratégico Governamental

 primeira, que engloba as duas primeiras seções, nas


quais apresentaremos conceitos como Ator Social e
Jogo Social, como também as diretrizes para a ação
estratégica;
 segunda, em que apresentaremos uma visão sobre os
condicionantes da ação de governo a partir de alguns
conceitos como: projeto de governo, governabilidade,
capacidade para governar, tempo e oportunidade.
Daremos destaque ao Triângulo de Governo como
ferramenta para a análise de Governabilidade;
 terceira, momento em que mostraremos a maneira
como se dá o tratamento de problemas no âmbito da
metodologia. Apresentaremos o conceito de problema
(em tudo análogo ao de situação-problema) e
exemplificaremos os procedimentos adotados para sua
identificação e formulação adequada; e
 quarta, e última, na qual traremos os procedimentos
para a construção do fluxograma explicativo da
situação, deixando evidente a relação que essa
metodologia possui com a Metodologia de Mapas
Cognitivos e com os trabalhos sobre Planejamento
Estratégico Situacional, desenvolvidos pelo Professor
Carlos Matus. O diagnóstico de uma situação é a base
para a definição das ações em um plano estratégico,
assunto desenvolvido na Unidade que segue, referente
à Metodologia de Planejamento Situacional.

94 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

UMA VISÃO PRELIMINAR DO


RESULTADO

Uma visão preliminar do resultado da aplicação da MDS


pode ser obtida através de um exemplo bem simples, ainda que
sofrido pelos Palmeirenses, o qual mostra os problemas identificados
por um ator – o time do Palmeiras – no âmbito de uma situação-
problema, a sua derrota frente ao Corinthians.
Frente à derrota, o presidente do Palmeiras reuniu os
jogadores para entender por que o time foi derrotado e buscar
soluções. Iniciou a reunião perguntando a cada jogador qual foi a
causa da derrota, e pediu que cada um escrevesse numa ficha esta
causa. Pediu também que os jogadores respondessem usando uma
ficha para cada problema com uma frase objetiva, curta, direta,
com poucas palavras, ressaltando que não colocassem mais de um
problema na mesma folha; se quisessem indicar mais de um
problema, deveriam usar outra ficha. E, ainda, de preferência, que
a frase não começasse com “falta...”, pois, se fosse assim, o
enunciado do problema já estaria dizendo a sua solução –
providenciar o que está faltando –, e isso deveria ser evitado para
que se pudesse ter uma visão mais adequada da situação-problema
como um todo. Finalmente, pediu que evitassem o ruído do tipo 1:
eu falo x e o outro entende y e, também, o do tipo 2: eu acho que
falei m mas, na realidade, falei n. Vejamos, de acordo com a Figura
1, o que eles conseguiram:

Módulo Básico
95
Planejamento Estratégico Governamental

Figura 1: Situação-problema
Fonte: Elaborada pelo autor

Em seguida, eles tentaram ordenar os problemas identificados


colocando as causas mais determinantes à esquerda. Observe o
resultado na Figura 2:

Figura 2: Ordenamento dos problemas identificados


Fonte: Elaborada pelo autor

Depois, eles organizaram os problemas classificando as


causas segundo a capacidade que tinham de agir sobre elas
(governabilidade), para tentar entender quais eram as “relações de
causalidade” que existiam entre si, e chegaram ao que na
terminologia da MDS conhecemos por fluxograma explicativo da
situação-problema, conforme exemplificado na Figura 3. Ou o que,
de forma mais genérica, conhecemos por um mapa cognitivo de

96 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

como os jogadores do Palmeiras explicam a sua derrota, ou ainda,


utilizando o jargão da Análise de Sistemas, um modelo de sistema
complexo (a derrota).

Figura 3: Fluxograma explicativo para a situação-problema


Fonte: Elaborada pelo autor

Módulo Básico
97
Planejamento Estratégico Governamental

AGIR ESTRATÉGICO

Apresentada essa visão preliminar do resultado da aplicação


da MDS, podemos iniciar o detalhamento dos conceitos e relações
que ela compreende.
O foco da ação estratégica é tornar possível, no futuro, o
que hoje parece impossível ou improvável, e manter atenção sobre
o que é mais importante fazer para atingir os objetivos traçados.
Nossa concepção de planejamento implica, portanto, enfrentar
problemas planejando para construir viabilidade.

PRESSUPOSTOS PARA UMA AÇÃO ESTRATÉGICA EM


AMBIENTE GOVERNAMENTAL

Para uma mesma situação-problema podemos construir


diferentes explicações ou diagnósticos válidos. Cada ator social tem
a sua visão da realidade, dos resultados que deve e pode alcançar
e da ação que deve empreender. No entanto, é preciso avançar na
percepção sobre o conceito de Diagnóstico, incorporando a ideia
mais apurada de análise de situações e compreender que é
necessário saber interagir com outros atores para ganhar sua
colaboração ou vencer suas resistências.
Partimos da hipótese realista e minimalista de que o ator
que planeja está inserido no objeto planejado e não tem controle
sobre o contexto socioeconômico e político no qual vai agir. O PEG
supõe que o ator que planeja, atua em um ambiente marcado por
incerteza, em que surpresas podem ocorrer a todo o momento e

98 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

que a possibilidade do insucesso está sempre presente e deve ser


incorporada no cálculo político.

O CONCEITO DE ATOR SOCIAL

Ator social é uma pessoa, grupo ou organização que participa


de algum “jogo social”, que possui um projeto político, controla
algum recurso relevante, tem, acumula (ou desacomoda) forças no
seu decorrer e possui, portanto, capacidade de produzir fatos
capazes de viabilizar seu projeto (MATUS, 1996).
Todo ator social (com projeto e capacidade de produzir fatos
no jogo) é capaz de fazer pressão para alcançar seus objetivos,
podendo acumular força, gerando e mudando estratégias para
converter-se num centro criativo de acumulação de poder.
O diagnóstico inicial de problemas que conformam uma
situação-problema a ser enfrentada por um ator pode ser visto como
o resultado do jogo realizado por um conjunto de atores num
momento pretérito.

CARACTERÍSTICAS DO JOGO SOCIAL

É possível caracterizar o agir social como um jogo que pode


ser de natureza cooperativa ou conflitiva. Num jogo social, diferentes
jogadores têm perspectivas que podem ser comuns ou divergentes
e controlam recursos que estão distribuídos entre os jogadores
segundo suas histórias de acumulação de forças em jogos
anteriores. Um conjunto de jogos sociais conforma um contexto
que pode ser entendido como um sistema social. Mas, diferentemente
de jogos esportivos, por exemplo, no jogo social, ou no jogo político
que tipicamente ocorre nas atividades de PEG, as regras do jogo
podem alterar-se em função de jogadas e de acumulações dos
jogadores.

Módulo Básico
99
Planejamento Estratégico Governamental

OS MOMENTOS DA GESTÃO ESTRATÉGICA

A Gestão estratégica pode ser entendida como uma


composição de quatro momentos principais.

O que você entende por momentos?

Segundo Matus (1996, p. 577), momento é uma instância


repetitiva, pela qual passa um processo encadeado e contínuo, que
não tem princípio nem fim. O conceito não tem uma característica
meramente cronológica e indica instância, ocasião, circunstância
ou conjuntura, pela qual passa um processo contínuo ou em cadeia,
sem começo nem fim bem definidos. Observe a Figura 4:

Figura 4: Momentos
Fonte: Elaborada pelo autor

100 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Adotamos aqui a nomenclatura “momento”, conforme


proposta por Matus, como crítica à concepção de planejamento
convencional como composto por um conjunto de etapas ou de fases
separadas e estanques. Os momentos indicados no diagrama e as
atividades que implicam podem ser caracterizados em:

 Diagnóstico: explicar a realidade sobre a qual se quer


atuar e mudar; foi, é e tende a ser.
 Formulação: expressar a situação futura desejada ou
o plano; o que deve ser.
 Estratégia: verificar a viabilidade do projeto formulado
e conceber a forma de executá-lo; é possível? como
fazer?
 Operação: agir sobre a realidade; fazer, implementar,
monitorar, avaliar.

Módulo Básico
101
Planejamento Estratégico Governamental

A ANÁLISE DE GOVERNABILIDADE –
O TRIÂNGULO DE GOVERNO

O conceito de Governabilidade pode ser entendido através


de uma ferramenta simples e muito útil para a análise de viabilidade
política de projetos e de ações de governo: o Triângulo de Governo.
Esse modelo é formado por três variáveis interdependentes e cada
uma dessas variáveis se encontra em um dos vértices do Triângulo.
Correndo o risco da simplicidade excessiva, podemos dizer que
Governar é controlar de forma adequada essas três variáveis.
O Triângulo de Governo que expressa o balanço entre elas pode
ser esquematicamente concebido como a área da figura.
Um grupo político que pretende governar formula um Projeto
de Governo, que pode ser entendido como o conjunto dos objetivos

v
que ele possui e que expressam os desejos da parte da população
que o elegeu, conferindo assim, Apoio Político ao governo eleito.
É intuitiva a ideia de que o Apoio Político, em qualquer mandato
Este Projeto de Governo de um governo eleito, começa alto e tende a diminuir. Assim como
foi posteriormente a de que um Projeto de Governo que não pretende mudar a situação
transformado num previamente existente – um projeto meramente “administrativo” –
conjunto de planos,
não irá requerer uma alta governabilidade, pois não existirão muitos
dando origem à GEP.
obstáculos à sua ação. Ao contrário, um Projeto de Governo
“transformador”, que expressa uma grande ambição do ator social
de mudar a situação previamente existente, exigirá alta
governabilidade. Então, o grau de Governabilidade que um ator
social precisa para governar é inversamente proporcional ao Projeto
de Governo, entendido este como a ambição de mudar a situação
previamente existente. Veja na Figura 5:

102 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Figura 5: Balanço de governabilidade


Fonte: Elaborada pelo autor

O sistema em que está inserido o Projeto de Governo não é


passivo. As resistências e os apoios indicam uma relação de forças
que expressam a maior ou a menor sustentação política do que o
ator social que governa possui para implementar seu projeto político.
Esse “Apoio Político” que a sociedade confere ao governante e ao
seu Plano de Governo pode ser entendido também como a força
(que o ator possui) para “fazer acontecer”, e está representado no
vértice esquerdo do Triângulo. É também intuitiva a ideia de que a
Governabilidade é diretamente proporcional ao Apoio Político com
que conta o ator social.
A equipe dirigente deve analisar, para cada projeto ou
proposta de governo, qual é o efetivo apoio / rejeição / desinteresse
de atores políticos. No caso de um governo municipal, eles serão o
Prefeito, secretariado, movimentos sociais e sindicais, apoio
partidário, opinião pública, legislativo, meios de comunicação,
formadores de opinião etc.
O controle dos aspectos que integram o sistema depende da
capacidade que o dirigente possui para implementar seu projeto,

Módulo Básico
103
Planejamento Estratégico Governamental

construindo resultados, mudando a realidade e ampliando, assim,


sua Governabilidade.

v
Mas a análise deve informar, também, para cada projeto ou
proposta de governo, qual é a capacidade de governar da equipe
dirigente, sua experiência de gestão, seus métodos de trabalho, sua
organização interna, suas habilidades pessoais, seu controle de
Representada na Figura 5
meios para empreender o projeto, e seu controle de recursos (tempo,
pela vértice direita do
conhecimento, financeiros, pessoal capacitado, capacidade para
triângulo.
formar opinião, para gerenciar ou para coordenar processos de
trabalho, para gerar legislação ou regulamentações, comunicação,
mobilização de apoio).

A Capacidade de Governo (ou governança) é o recurso


cognitivo (saber governar) com o qual conta a equipe
de governo e deriva desse conjunto de fatores.

Essa capacidade de análise de viabilidade é essencial para


a Governabilidade, que é diretamente proporcional à Capacidade
de Governo. Ela é uma avaliação sistemática sobre a força (ou
Apoio Político) necessária para implementar ações de governo e a
Capacidade de Governo. A Governabilidade depende, a cada
momento, e para um dado projeto, das situações específicas
proporcionadas pela ação sob análise. Dois fatores importantes que
afetam a Governabilidade são o tempo, entendido como o recurso
mais escasso do governante, e a oportunidade política para
empreender uma dada ação de governo.
Em termos mais formais, podemos escrever que g = f (a, c, 1/p).
Onde:
g – Governabilidade;
a – Apoio Político;
c – Capacidade de Governo; e
p – Ambição do Projeto de Governo.

104 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Para deixar o conceito de Governabilidade ainda mais claro,


vamos analisar dois casos tendo como referência gráficos em
que o Apoio Político e a Capacidade de Governo estão
indicados no eixo vertical e o tempo de governo no eixo
horizontal. Vamos lá?

A curva da Capacidade de Governo se inicia baixa e


negativa, indicando que a equipe do governo eleito, em geral, não
sabe governar. E só o faz, de fato, quando ela atravessa o eixo
horizontal. A curva do Apoio Político se inicia positiva e alta,
indicando que a equipe do governo eleito conta sempre, no início,
com muita aprovação da população.
No primeiro caso, se a equipe dirigente não possui suficiente
Capacidade de Governo, ela demorará para começar a governar
de fato. E por isso, o Apoio Político, que em geral tende a diminuir,
se verá reduzido pela incapacidade da equipe de satisfazer ao
interesse da população. Nesta situação, o governo terminará de fato
antes do encerramento previsto. Ou então, para manter a
Governabilidade, a equipe terá de reduzir o seu Projeto de Governo,
isto é, a ambição de mudar a situação previamente existente. Ele
terá de ser sacrificado de modo a obter apoio político das forças
conservadoras. Veja na Figura 6:

Figura 6: Apoio político reduzido


Fonte: Elaborada pelo autor

Módulo Básico
105
Planejamento Estratégico Governamental

No segundo caso, a equipe dirigente consegue adquirir


Capacidade de Governo mais rapidamente e, em consequência, o
período efetivo de governo começa mais cedo e seu projeto poderá
ser mantido até o fim. Isso significa que o governante não irá ser
obrigado a diminuir sua expectativa de mudar a realidade. Essa
equipe, por começar a governar com uma capacidade de governo
maior, pode fazer com que o apoio político aumente em vez de
reduzir, contribuindo para que seja promotora do perfil de sua
sucessora a qual terá a mesma linha política de projeto bem-
sucedido e que tenha o apoio da população. A equipe, por saber
governar, faz com que o resultado que alcança promova uma
ampliação do mandato previsto. Todavia, para que isso ocorra é
necessária a capacidade de governo. Quem não der a devida
atenção à capacidade de governo (que é um dos recursos mais
importantes para se governar), não conseguirá governar. Poderá
até pensar que está governando, ou mesmo governar durante certo
tempo, porém a partir de um dado momento não irá mais fazê-lo.

Antes das eleições, a população pode votar num candidato


porque acha que ele sabe governar, por ele falar bem, ser
simpático, defender uma parte importante da população etc.
Contudo, o apoio político inicialmente não depende da
capacidade de governo. Você concorda?

Todavia, no momento posterior, depois se assumir o mandato,


o apoio político não será um mero reflexo da plataforma política
ou da simpatia da população pelas ideias da equipe que governa.
Depois que o governo está em execução, a simpatia não é tão
importante como era quando da eleição. A partir desse momento, o
apoio político se torna proporcional à capacidade de governo.
E, neste segundo caso, como se pode ver no gráfico, a partir de um
determinado momento, a curva de apoio político começa a subir.
Para manter a Governabilidade, a equipe não precisará sacrificar
o Projeto de Governo (ambição de mudar a situação existente). Ele

106 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

poderá ser mantido até o fim e o governo acabará depois do término


previsto. Ou seja, a equipe poderá fazer a sua sucessora. Observe
a Figura 7.

Figura 7: Apoio político proporcional à capacidade de governo


Fonte: Elaborada pelo autor

Dessas evidências surge o argumento de que o tempo que a


equipe de governo demora a adquirir capacidade de governo é uma
variável crítica. Tempo este que, na realidade, não pode ser
considerado como um tempo de governo. Enquanto a equipe está
adquirindo capacidade de governo, enquanto a curva não ultrapassa
a linha horizontal mostrada no gráfico, alguém, que não ela, está
de fato governando. É um tempo durante o qual a tendência é de
perda de apoio político.

Módulo Básico
107
Planejamento Estratégico Governamental

A SITUAÇÃO-PROBLEMA COMO OBJETO


DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
GOVERNAMENTAL

Introduzido o conceito de Governabilidade, podemos


aprofundar o entendimento do conceito de situação-problema e o
papel que ela desempenha no PEG. Esta seção parte da ideia de
que qualquer situação pode ser entendida pelo ator com ela
envolvido como o resultado, o “placar” de um jogo, e que esta
situação pode ser por ele encarada como um problema a resolver.
Ou seja, o êxito em um jogo será a solução de um problema ou a
mudança do placar.

Situação, problema e situação-problema são, para


todos os efeitos, sinônimos.

Podemos entender a realidade social como um grande jogo


integrado por muitos jogos parciais e que possuem suas próprias
regras, em que atores se veem envolvidos ou procuram se envolver.
Em todos os jogos há alguns jogadores e alguns espectadores:
nenhum ator social participa de todos os jogos. O governante, o
ator que planeja ou o encarregado da gestão de uma situação podem
ser vistos como jogadores que, com suas ações, produzem
acumulações procurando alterar o resultado do jogo. É com base
nessas acumulações que eles podem ampliar, ou reduzir, sua
capacidade de produzir novas jogadas e alterar a situação inicial.

108 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Este é o mecanismo básico através do qual se acumula ou se


desacumula poder e se produz, ou não, mudanças significativas
sobre uma dada situação-problema.
Observar a ação de governo, que gera acúmulos de poder e
resultados socialmente valorizados, é uma atividade-chave do PEG.
Essa observação exige:

 identificação dos jogos e dos problemas em que o ator


que planeja está envolvido;
 determinação de sua relação com outros problemas e
jogadores;
 identificação de suas manifestações sobre a realidade
ou das evidências que permitam verificar se o
problema está se agravando ou sendo solucionado pela
ação de governo; e
 diferenciação entre as causas e as consequências dos
vários jogos parciais.

CONCEITO DE PROBLEMA (OU SITUAÇÃO-PROBLEMA)

O elemento central do momento de Diagnóstico, mostrado


no esquema que segue, é a produção de um quadro que identifique
e relacione entre si os problemas mais relevantes associados a uma
dada situação (instituição etc.) em um determinado momento. Por
exemplo, de um problema, ou de uma situação-problema, podemos
destacar o resultado de um jogo. O problema pode ser:

 Estruturado: quando é possível enumerar todas as


variáveis que o compõem; precisar todas as relações
entre as variáveis, fazer com que todos os jogadores
reconheçam como tal a solução proposta.
 Quase estruturado: quando se podem enumerar
apenas algumas das variáveis que o compõem, precisar

Módulo Básico
109
Planejamento Estratégico Governamental

apenas algumas das relações entre as variáveis,


entender suas soluções como, necessariamente,
situacionais, isto é, aceitáveis para um ator e vistas
com restrições por outros.

Os problemas produzidos pelos jogos sociais e por inclusão


os que são alvo do PEG são quase estruturados. Um problema quase
estruturado pode conter, como elementos parciais, problemas
estruturados, isto é, os problemas estruturados não existem na
realidade social, salvo como aspectos ou como partes de problemas
quase estruturados.

TIPOS DE PROBLEMAS

No jogo social são produzidos três tipos de problema.


Adotando como referencial o tempo, o significado e a natureza do
seu resultado para um determinado ator, o problema pode ser:

 uma ameaça, isto é, um perigo potencial de perder


algo conquistado ou agravar uma situação;
 uma oportunidade, ou seja, a possibilidade de que o
jogo social abra e sobre a qual o ator pode agir para
aproveitá-la com eficácia ou desperdiçá-la; ou
 um obstáculo, isto é, uma deficiência passível de ser
atacada através da adequada observação e
qualificação do jogo em curso.

Podemos também classificar os problemas quanto:

 ao tempo fazendo referência se estes são atuais ou


potenciais;
 à governabilidade no que se refere ao controle, podendo
ser total, baixo e fora de controle;

110 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

 à abrangência fazendo menção se este é no âmbito


nacional, local, específico, estadual ou municipal; e
 à estruturação, já que os problemas podem ser
estruturados ou quase estruturados.

O enfrentamento de problemas já criados ou presentes é um


ato reativo. O enfrentamento das ameaças e das oportunidades é
um ato propositivo. A ação de caráter propositivo é um objetivo a
ser perseguido permanentemente pelo ator que busca melhores
resultados e mais possibilidades de êxito. Tais possibilidades, no
entanto, não estão usualmente sob controle dos dirigentes públicos.
Ao assumir a frente de uma organização ou instância de
governo, a escala e a gravidade dos problemas já detectados exigem
soluções imediatas que costumam ser tão abrangentes, que a ação
do governante tende a ser de caráter reativo. Simultaneamente,
entretanto, é necessário vislumbrar as novas ameaças e
oportunidades, procurando evitar o agravamento da situação (ação
de caráter propositivo).

CONFORMAÇÃO DE UM PROBLEMA

Um problema só existe quando uma situação adversa se


torna foco de interesse de um ator social. Isto ocorre devido ao
mal-estar claramente percebido que produz o resultado de algum
jogo em que ele está envolvido. Ou, em menor medida, à
identificação de que o jogo contém oportunidades cujo resultado
pode beneficiá-lo. Antes que isso ocorra, o resultado deste jogo é,
para o ator, um mal-estar impreciso ou uma mera necessidade sem
demanda política. O diagnóstico da situação supõe:

 listar os problemas declarados pelos diversos atores


sociais relevantes;
 avaliar os problemas segundo a perspectiva desses atores;

Módulo Básico
111
Planejamento Estratégico Governamental

 situar os problemas no tempo e no espaço;


 verificar se existe complementaridade ou contradição
entre os problemas declarados;
 identificar fatos que evidenciam e precisam a existência
de problemas;
 levantar suas causas e consequências; e
 selecionar as causas críticas que podem ser objeto de
intervenção.

COMO FORMULAR UM PROBLEMA?

A formulação correta de um problema é condição essencial


para seu equacionamento. Um problema mal formulado pode levar
a uma visão distorcida da situação e à tomada de decisões
equivocadas, que podem debilitar o ator.
Um problema pode ser uma situação ou um estado negativo,
uma má utilização de recursos, uma ameaça ou uma intenção de
não perder uma oportunidade.
É necessário identificar e precisar problemas atuais ou
realmente potenciais, e evitar exercícios de futurologia e de
imaginação dispersiva; um problema não é a “ausência de uma
solução”. Exemplos de como formular os problemas imersos numa
situação podem ser observados a partir da Figura 8:

112 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Figura 8: Problemas imersos


Fonte: Elaborada pelo autor

É conveniente evitar a indicação de temas gerais como


problemas. Exemplo: saúde, transporte etc. É também conveniente
evitar listar objetivos, como atingir 50% de imunização, concluir a
estrada entre A e B.

PERGUNTAS PARA VERIFICAR SE A SELEÇÃO DE


PROBLEMAS É APROPRIADA

Partimos do princípio de que a ação de um governo pode


ser pior, mas nunca superior à seleção de problemas efetuada pelo
dirigente e sua equipe. Os critérios de seleção enunciados não devem
ser aplicados problema por problema, mas, sim, na avaliação do
conjunto de problemas selecionados.
Convém verificarmos a seleção do conjunto de problemas,
respondendo às seguintes perguntas:

Módulo Básico
113
Planejamento Estratégico Governamental

 Qual é o valor político dos problemas selecionados


versus o valor dos problemas postergados?
 Há concentração ou dispersão de esforços para
enfrentá-los?
 Qual é a proporção de problemas que exigem
continuidade frente aos que exigem inovação?
 Qual é a proporção de problemas cujos resultados irão
amadurecer dentro do período de gestão ou mandato?
 Qual é o balanço entre os recursos necessários para o
enfrentamento dos problemas selecionados em relação
aos recursos disponíveis?
 Algum dos problemas selecionados pode dissolver-se
num problema maior que o compreende?

A DESCRIÇÃO DE UM PROBLEMA

Um problema deve ser descrito por intermédio de fatos


verificáveis através dos quais ele se manifesta como tal em relação
ao ator que o declara. Esses fatos devem ter sua existência
amplamente aceita para que possam ser validados.
A descrição de um problema é relativa ao ator que o declara:
o resultado de um jogo pode ser um problema para um ator, uma
ameaça para um segundo, um êxito para um terceiro e uma
oportunidade para um quarto.
A descrição de um problema deve precisar seu significado e
torná-lo verificável mediante os fatos que o evidenciam. Para tanto
ela precisa:

 reunir suas distintas interpretações possíveis em um


só significado;

114 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

 precisar o que deve ser explicado: definir seu significado


em termos de quantidade e de qualidade, de tempo e
de localização;
 evidenciar o problema de uma forma monitorável, isto
é, que permita o acompanhamento de sua evolução; e
 permitir que sejam previstas ou definidas fontes de
verificação para a descrição construída.

Para você entender melhor a descrição de Problemas,


elaboramos o Quadro 1 para lhe auxiliar.

Quadro 1: Descrição de problemas


Fonte: Elaborado pelo autor

Módulo Básico
115
Planejamento Estratégico Governamental

A EXPLICAÇÃO DA SITUAÇÃO-PROBLEMA

O conceito de diagnóstico aqui adotado está referido à forma


como os atores participantes de um jogo social observam e, portanto,
explicam a realidade em que estão inseridos. Toda explicação
pressupõe reflexão. É ela que permite ao ator perceber possibilidades
para transformar ou para manter uma dada situação.
Para explicar um problema, é necessário fazer uma distinção
entre:

 causas (o problema se deve a);


 descrição (o problema se verifica através de); e
 consequências (o problema produz um impacto em).

As causas imediatas da decisão de um jogo são as jogadas


(fluxos ou movimentos). Para produzir jogadas, é necessário ter
capacidade de “produção” (acumulações ou potenciais que os
jogadores possuem ou utilizam). Mas as jogadas válidas são aquelas
permitidas pelas regras estabelecidas para cada jogo.

v
Assim, podemos afirmar que explicar uma situação ou um
problema consiste em construirmos um modelo explicativo de sua
geração e de suas tendências. Logo, é necessário precisar as causas
diferenciando-as e indicando se são fluxos (jogadas), acumulações
O modelo explicativo se
completa quando as (capacidades ou incapacidades) ou regras.
causas são inter-
relacionadas.

A DIVERSIDADE DAS EXPLICAÇÕES SITUACIONAIS

Uma mesma realidade pode dar margem a diversas


explicações. A carga de subjetividade que anima o diagnóstico de
situações implica em distintas:

 respostas para uma mesma pergunta;

116 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

 perguntas sobre uma mesma situação (as perguntas


relevantes são distintas para os distintos jogadores); e
 seleção do foco de atenção sobre a realidade.

Logo, para explicarmos uma realidade precisamos distinguir


suas explicações. Para explicar uma situação que me afeta, preciso
compreender a explicação do outro, incluindo o que ele pensa sobre
minha explicação. Quanto maior for a nossa capacidade de
entender a explicação do outro, maior será a probabilidade de êxito
de nossas jogadas, além de ser mais potente nossa ação.

Módulo Básico
117
Planejamento Estratégico Governamental

O FLUXOGRAMA EXPLICATIVO
DA SITUAÇÃO

A visualização gráfica do resultado da aplicação da


Metodologia de Diagnóstico de Situações é a mesma proposta por
Matus (1993) para o seu fluxograma explicativo situacional.
O fluxograma é um mapa cognitivo que busca sintetizar a
discussão realizada por uma equipe sobre uma determinada
situação-problema. A sua estruturação é baseada no
estabelecimento de relações de causa e de efeito entre as variáveis
que a conformam.

Mas, qual o objetivo de um fluxograma? Você sabe defini-lo?

Considere, por exemplo, um fluxograma situacional como o


apresentado no início desta Unidade, referente à derrota do
Palmeiras. Este modelo específico permitiu-nos uma rápida
interação entre a equipe que realiza o trabalho de análise de
problemas e o tomador de decisões que a solicitou. Ele mostra,
num golpe de vista, as características da situação-problema.
A elaboração, por uma equipe, de um modelo explicativo do
problema que vá além de um mero mapa cognitivo, faz com que ela
construa uma síntese rigorosa, seletiva e precisa, com base em nós
explicativos concisos e monitoráveis. O que facilita a permanente
adaptação da explicação à mudança da situação, facilita também
a compreensão, restringindo a possibilidade de ambiguidades devido
ao uso de uma simbologia simples e uniforme.

118 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

SELEÇÃO DE NÓS CRÍTICOS

O PEG exige o compromisso de atuar sobre problemas e


situações como algo preciso e operacional. De outra maneira, a
reflexão como suporte à tomada de decisões não leva à ação efetiva
nem se revela prática.

Você pode estar se perguntando: como elaborar um fluxograma


claro e conciso?

Um fluxograma bem elaborado deve pelo menos atender às


seguintes perguntas:

 Como e onde atuar para mudar a descrição de um


problema?
 A mudança provocada será suficiente para alcançar
os objetivos perseguidos?

Os “nós explicativos” de um fluxograma (encadeamento de


causas ou cadeias causais da situação-problema) sobre os quais
podemos atuar com eficácia prática são denominados “Nós
Críticos”.

Critérios para Seleção de Nós Críticos

Agora que sabemos o que são “Nós Críticos”, vamos ver


que estes têm algumas condições a cumprir. São elas:

 ser centros práticos de ação, isto é, o ator que declara


o problema pode atuar prática, efetiva e diretamente
sobre eles sem precisar atuar sobre suas causas;
 ser nós explicativos que, se resolvidos ou “desatados”,
terão alto impacto sobre o problema declarado; e

Módulo Básico
119
Planejamento Estratégico Governamental

 ser centros oportunos de ação política, ou seja, seu


ataque deve ser politicamente viável durante o período
definido pelo ator como relevante e a ação possui uma
relação custo-benefício favorável.

Para melhor precisar um Nó Crítico, devemos descrevê-lo


de forma a torná-lo monitorável e restringir a ambiguidade possível
nas interpretações a ele referidas. Com a seleção dos Nós Críticos
de uma cadeia explicativa do problema (ou situação), o diagnóstico
está concluído.
Um último conceito importante da MDS é a árvore de
problemas. Esta é formada pelo conjunto de Nós Críticos e o
resultado do problema, e indica onde o ator deve concentrar a
atenção. Observe na Figura 9.

Figura 9: Problemas críticos selecionados


Fonte: Elaborada pelo autor

No exemplo do jogo de futebol, a árvore de problemas se


apresenta conforme a Figura 9. Para ver se você entendeu bem o
conceito de Nó Crítico, observe que o nó “poucas jogadas com
oportunidade de gol” não é crítico (e, portanto, não pertence à árvore
de problemas). A ação de melhorar a pontaria poderia resolver o
problema – “treinar chutes a gol” – mas, como o time permaneceria
desmotivado e com má preparação, o resultado do jogo não
mudaria.

120 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Os Nós Críticos escolhidos indicam os centros onde se deve

v
dar a ação de gestão sobre a situação. A definição dessas ações é
realizada através da aplicação da Metodologia de Planejamento de
Situações.
Abordaremos este tema
na Unidade seguinte.
Para você entender melhor o Fluxograma Explicativo
preparamos, veja a Figura 10, um exemplo real. Após analisar
este exemplo, busque verificar se a escolha dos Nós Críticos
(assinalados no fluxograma com NC) estão de acordo com a
sua opinião acerca da situação-problema diagnosticada.

Figura 10: Fluxograma explicativo


Fonte: Adaptada de Bento e Ferroz (2005)

Módulo Básico
121
Planejamento Estratégico Governamental

MÃOS À OBRA

Com base no exemplo do jogo de futebol apresentado na


seção “Uma visão preliminar do resultado”, preparamos a seguir
um roteiro composto de uma série de passos e observações a serem
seguidos para aplicar a metodologia. Isso é feito tomando um
exemplo concebido a partir de uma situação-problema bastante
geral, mas relacionada ao tema do curso.
Observando o fluxograma obtido, podemos constatar que
há, neste exemplo, somente duas cadeias causais. A primeira delas
se bifurca e a segunda se une com a primeira no final do fluxograma,
quando elas convergem para o problema a fim de explicá-lo.
Se propuséssemos a um grupo uma situação-problema para
praticar a aplicação da MDS, perguntaríamos:

 Você considera que a Gestão Pública brasileira está


perdendo algum “jogo”?; ou
 Você acha que a relação Estado-Sociedade está
perdendo algum “jogo”?

E, em seguida, solicitaríamos a cada um dos alunos do grupo


que escrevesse, numa folha tamanho carta, com um pincel atômico
e com letras bem grandes (elas serão coladas na parede com fita-
crepe à vista de todos), uma causa da derrota com uma afirmação
de conteúdo negativo, alertando para as recomendações que
seguem:

 Para cada causa do problema: uma frase objetiva, direta;


com poucas palavras; mas, completa (sujeito, verbo
etc.); que, de preferência, não comece com “falta ...”;

122 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

não escreva o que você considera ser a causa anterior


ou o resultado posterior, só o problema!; Se quiser,
escreva em outra folha o que você considera ser a
causa ou consequência daquela que já escreveu.
 Cuidado com o ruído do tipo 1: eu falo x e o outro
entende y. E do tipo 2: eu acho que falei m, mas, na
realidade, falei n.

Depois de “colar” as frases (causas da situação-problema)


na parede, lê-las e entendê-las, podemos solicitar que os alunos,
em equipes de 4 ou 5, aplicando a metodologia, elaborem um
fluxograma que explique a situação-problema. E que, utilizando um

v
programa apropriado para a confecção de mapas cognitivos, como
o Visio da Microsoft, apresentem o fluxograma na próxima seção.
Para elaborar o fluxograma, as equipes devem observar as
Aplicativo para
seguintes recomendações: diagramas técnicos e
profissionais, com
 formar nuvens de problemas (ou causas); imagens vetoriais, que
podem ser ampliadas e
 descartar causas apontadas em aula, mas que a equipe
manipuladas com
considere irrelevantes, e adicionar outras; facilidade.

 respeitar a ordem da esquerda para a direita;


 colocar a causa que parece ser a última consequência
das demais bem à direita;
 ela é o problema a ser explicado!;
 no topo da folha, indicar: o âmbito do problema (jogo
de futebol); o problema (derrota do time); e quem o
declara (o time derrotado);
 tentar reduzir o tamanho das frases e colocá-las na
ordem direta;
 mostrar claramente as cadeias causais (todas deverão
começar à esquerda);
 as setas não poderão indicar dupla causalidade;
 as setas não poderão apontar para a esquerda;

Módulo Básico
123
Planejamento Estratégico Governamental

 tentar ficar com menos de 20 causas;


 lembrar que este é o momento descritivo-explicativo; e
 as soluções para os problemas virão no momento
normativo ou prescritivo.

O resultado obtido será um mapa cognitivo coletivo com


características especiais. Será um fluxograma, isto é, um modelo
de uma realidade complexa, a situação-problema. Pode-se entender
o processo ou a operação de modelização realizada através da
Figura 11:

Figura 11: Sistemas e modelos


Fonte: Elaborada pelo autor

No fluxograma, cada “caixinha” é uma variável do modelo


que representa um aspecto importante da realidade ou sistema
observado (situação-problema). Cada “setinha” indica uma relação
de causalidade que se considera existir na realidade. Ela representa
uma “teoria” que se formula sobre a realidade.
O processo de modelização permite que a partir de um
sistema (caracterizado por alta complexidade, infinitos aspectos e
relações de causalidade desconhecidas) idealizemos um modelo
(caracterizado pela simplicidade, número finito de variáveis e

124 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

relações de causalidade imputadas) que nunca está a salvo de um


conjunto de valores morais, interesses econômicos, crenças e visões
dominantes. Esse conjunto é o que permite explicar a realidade
através do modelo. É a “teoria” que se formula a respeito da
realidade.
Visando a preparar a apresentação do fluxograma, é
importante alertarmos as equipes para observar algumas
recomendações. São elas:

 usar letras de fonte 14 ou maior;


 iniciar apresentando a cadeia causal superior;
 ir até o ponto em que ela se “junta” com a segunda
etc.;
 ler, mas sem explicar o que está escrito;
 o fluxograma deve ser autoexplicativo: se for necessário
explicar é porque não está bem explicado; e
 dar a noção do conjunto: se preocupe que seja
entendido o “bosque e não as árvores”.

Finalmente, para verificarmos se o fluxograma é plausível,


uma vez que já salientamos que a perspectiva situacional não
admite os conceitos de certo ou errado, sugerimos as seguintes
perguntas:

 As variáveis (“caixinhas” do fluxograma) correspondem


a aspectos importantes da realidade?
 As relações de causalidade (“setinhas” do fluxograma)
associam, de fato, as variáveis?
 O sentido delas corresponde à relação de causalidade
imputada?
 Está claro e plausível o encadeamento lógico no interior
de cada cadeia causal?
 E no fluxograma como um todo?

Módulo Básico
125
Planejamento Estratégico Governamental

Resumindo
Esta Unidade avança nossa proposta de fornecer ele-
mentos para a transição do “Estado Herdado” para o “Estado
Necessário”. Diante deste propósito, vimos uma ferramen-
ta importante de trabalho – a Metodologia de Diagnóstico
de Situações. A MDS, a qual se baseia no fato (aliás, óbvio)
de que cada ator social, em função da sua visão de mundo,
dos resultados que quer e pode alcançar, formula um diag-
nóstico particular da realidade, da “sua” situação-problema.
Falamos ainda sobre a Governabilidade mostrando que
ela é proporcional – diretamente – à Capacidade de Gover-
no e ao Apoio Político e – inversamente – à ambição de mu-
dança do Projeto Político do governante.
Por fim, mostramos a importância, para o PEG, do flu-
xograma explicativo situacional de uma situação-problema,
baseada no estabelecimento de relações de causa e efeito
entre as variáveis que conformam o seu modelo.

126 Especialização em Gestão Pública


Unidade 3 – Metodologia de Diagnóstico de Situações

Atividades de aprendizagem
Antes de prosseguir, vamos verificar se você entendeu tudo
até aqui! Para saber, procure, então, responder às atividades
a seguir. Caso tenha dúvidas, faça uma releitura cuidadosa
dos conceitos ou resultados ainda não entendidos.

1. O que é um ator social e um jogo social? Dê exemplos.


2. Entre os três aspectos que influenciam a Governabilidade, qual é
o que esta disciplina procura apoiar?
3. Escolha (ou imagine) uma situação-problema que preocupa um
gestor e utilize a Metodologia de Diagnóstico de Situações para
elaborar o seu fluxograma explicativo.

Módulo Básico
127
UNIDADE 4
METODOLOGIA DE PLANEJAMENTO
DE S ITUAÇÕES

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Compreender os conceitos da Metodologia de Planejamento de
Situações;
 Entender sua relação com a Metodologia de Diagnóstico de
Situações;
 Diferenciar o momento descritivo (Metodologia de Diagnóstico
de Situações) do momento normativo (Metodologia de
Planejamento de Situações); e
 Saber atuar no momento oportuno e com eficácia a partir da
concepção de ações que levem em conta as estratégias de outros
atores e eventuais mudanças de contexto.
Planejamento Estratégico Governamental

130 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

INTRODUÇÃO

v
Esta Unidade sintetiza os elementos e conceitos da
Metodologia de Planejamento de Situações (MPS) necessários para
apoiar o trabalho a ser desenvolvido pelos alunos. Retomando a
Este texto é resultado de
analogia náutica que traçamos na Unidade anterior, ela uma revisão, ampliação
corresponderia às ações que o gestor (velejador) teria de tomar para, e adaptação do capítulo
utilizando a informação proporcionada pela MDS (bússola) e sobre a Metodologia de
Planejamento de
aproveitando a governabilidade propiciada pelas condições do
Situações, de Dagnino e
contexto político e socioeconômico (vento, maré etc.), engendrar outros (2002).
situações que permitam atingir seu objetivo (alcançar um ponto da
costa o mais próximo possível daquele que havia inicialmente
programado).
A MPS se baseia nos resultados alcançados com a aplicação
da MDS apresentada na Unidade anterior, em especial, no
fluxograma explicativo da situação. É sobre esta base que o trabalho
de análise e de planejamento de situações tem início. Reflexões
suscitadas em outras disciplinas são também essenciais, como
também o são no caso da MDS, para colocar “carne” no processo
de aplicação da MPS. São elas que irão complementar e criar
melhores condições para a formulação de ações, a fixação de
recursos a utilizar e de resultados a atingir.
Da mesma forma que a MDS se dedica a elucidar os
momentos descritivo e explicativo do tratamento de uma situação-
problema, a MPS o faz em relação ao momento normativo.

Módulo Básico
131
Planejamento Estratégico Governamental

UMA VISÃO PRELIMINAR DO RESULTADO


Você lembra do nosso exemplo sobre a derrota do Palmeiras
frente ao Corinthians, citado na Unidade anterior? Caso
você não lembre, faça uma releitura antes de dar
continuidade nesta seção.

Com base neste exemplo temos uma visão preliminar do


resultado da aplicação da MPS. Observe que depois de terem
selecionado os Nós Críticos e elaborado a árvore de problemas, os
jogadores formularam, para cada Nó Crítico, ações para atacá-los.
Eles chegaram à formulação apresentada na Figura 12.

Figura 12: Nós Críticos e suas ações


Fonte: Elaborada pelo autor

Em seguida, os jogadores definiram, para cada ação de cada


um dos três Nós Críticos, os atores envolvidos. Eles chegaram, então,
aos resultados mostrados nas Figuras 13, 14 e 15, que são o ponto
de partida para o detalhamento das ações seguintes da MPS.

132 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

Figura 13: Atraso nos salários do Palmeiras


Fonte: Elaborada pelo autor

Figura 14: Palmeiras com má preparação física


Fonte: Elaborada pelo autor

Módulo Básico
133
Planejamento Estratégico Governamental

Figura 15: Palmeiras pouco motivado


Fonte: Elaborada pelo autor

134 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

PLANEJAR POR SITUAÇÕES-PROBLEMA


Sabemos que o dirigente público necessita de capacitação
para jogar o jogo social e institucional. Mas, o que significa
“jogar bem”?

Jogar bem depende de quatro capacidades (habilidades e


conhecimentos) para o tratamento de problemas em âmbito público:

 explicar a situação-problema que afeta uma instituição;


 formular propostas de ação para resolver problemas
sob incerteza;
 conceber estratégias que levem em conta outros atores
e eventuais mudanças de contexto; e
 atuar no momento oportuno e com eficácia,
recalculando e completando um Plano de Ação. Apresentada na Unidade

v
3. Se você tiver alguma
Explicar a situação em que uma instituição ou um ator está dúvida sobre este tema
ou pretende estar envolvido foi o assunto tratado pela Metodologia busque fazer uma

de Diagnóstico de Situações. A Metodologia de Planejamento de releitura cuidadosa da


Unidade.
Situações proporciona conceitos para os outros três pontos acima
indicados, a partir de uma estrutura lógica que centra a ação de
governo na resolução de problemas.
A decisão de buscar soluções para um problema identificado
permite:

 administrar o problema em um espaço menor;


 enfrentá-lo no espaço originalmente declarado; e
 dissolvê-lo em um espaço maior.

Módulo Básico
135
Planejamento Estratégico Governamental

Para você entender melhor, preparamos um exemplo


relacionado ao aumento do número de crimes cometidos por
adolescentes. Veja o Quadro 2:

ESPAÇO PROBLEMA
Administrar o problema num Ação: Ação sobre os adolescentes infratores.
espaço menor. Espaço: Punição a delitos.
Enfrentar o problema no Ação: Ampliação da cobertura da assistência
espaço originalmente decla- a crianças e a adolescentes.
rado. Espaço: Prevenção dos delitos.
Dissolver o problema num Ação: Reforma do Sistema Educacional.
espaço maior. Espaço: Garantia de direitos básicos que ten-
derá a evitar delitos.

Quadro 2: Aumento do número de crimes cometidos


Fonte: Elaborado pelo autor

A escolha entre estes três tipos de ação vai definir a estratégia


geral, os contornos e a abrangência dos resultados que serão obtidos
mediante a implementação de um conjunto de operações
consignado num Plano de Ação.

As principais categorias analíticas, tais como ator


social, ação ou momento no processo de planejamento
devem ser definidas em função do conceito de
situação-problema.

O dirigente público, ao atuar em contextos sujeitos a


constante mudança, pode ser representado como um ator que se
movimenta num jogo social. Todo ator social pode desempenhar
um papel de protagonista e não de simples observador, mas para
isto precisa compreender a realidade em transformação.
Como já destacado, cada “realidade” é percebida de modo
distinto dependendo do ponto de observação (valores, interesses,
experiências prévias etc.) do ator que planeja (ou, simplesmente,
observa). Uma mesma realidade pode ser percebida de modo
diferente dependendo de como está situado um observador

136 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

específico; quais são seus interesses e seus objetivos. Dessa forma,


a análise de uma determinada situação é uma apreciação da
realidade que enfrenta um determinado ator a partir da sua visão.
A explicação situacional resultante é autorreferenciada, ou seja,
ela é condicionada pelo ponto de vista do ator. E, por isso,
influenciada pelo tipo de inserção na realidade que possui o ator
que planeja.
Uma explicação formulada por um ator social sobre um
aspecto da realidade pode ser verificada ou refutada apenas em
função da maior ou menor capacidade de sua cadeia de argumentos
em sustentar seus questionamentos. Portanto, sempre haverá mais
de uma visão acerca da realidade, os ideais de objetividade e as
distinções entre verdadeiro e falso perdem força no trabalho do
analista e na reflexão voltada para a ação que caracteriza o PEG.
Apresentamos a seguir, na Figura 16, um esquema que
sintetiza a metodologia de planejamento baseado na análise de
situações-problema, que é a que adotamos como eixo de nossa proposta
de PEG.

Figura 16: Esquema geral para planejamento estratégico governamental


Fonte: Matus (1994)

Módulo Básico
137
Planejamento Estratégico Governamental

Na situação inicial, o ator declara sua insatisfação sobre


uma dada realidade em um determinado momento e, por isto, tem
demandas a viabilizar, necessidades a satisfazer e problemas a
resolver. Esse ator constrói uma explicação que serve de base para
*Plano – é uma constru-
a definição fundamentada de uma situação-objetivo. Ela envolve a
ção que implica em uma
estratégia e um conjunto explicitação de um conjunto de resultados que se espera atingir ao
de táticas a implementar, final de um determinado tempo e que resolverão os problemas
e que demanda gente em iniciais formulados ou atenderão às demandas e às necessidades
condições de realizar e
identificadas.
de coordenar as ações a
serem executadas. Fon- O esquema destaca a confiabilidade do plano* elaborado
e o contexto em que ele será desenvolvido como elementos essenciais

v
te: Elaborado pelo autor.
para a obtenção dos resultados desejados. Nesse sentido, um plano
só se completa na ação, e este agir implica em permanente avaliação
e revisão do que foi planejado. Para obter confiabilidade é
Os módulos de ação necessário verificarmos a todo o momento a qualidade da proposta,
previstos em um plano a sua consistência e fundamentação, como, também, garantir a boa
são denominados de
coordenação da formulação e da implementação.
operações.
O monitoramento das alterações verificadas na situação-
problema e o acompanhamento do contexto em que elas se inserem
são fundamentais, já que atingir uma determinada situação-objetivo
não depende apenas da vontade do ator que planeja. Mas, também
das ações e dos resultados que são obtidos, pois influenciam
mudanças no contexto a ocorrência de surpresas e, principalmente,
os planos e as ações de outros atores sociais.

Planejar implica em identificar e disponibilizar os meios


necessários para a ação, os diversos recursos
necessários, poder político, conhecimento,
capacidades organizativas, equipamentos e tecnologia
e também, mas nem sempre, recursos econômico-
financeiros.

138 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

OPERAÇÕES

As operações podem ser entendidas como os grandes passos


(conjunto de ações), ou como o conjunto de condições que deve
ser criado para a viabilização do plano, e elas são elaboradas como
a solução de cada Nó Crítico identificado num fluxograma
explicativo. Solução essa a ser alcançada no âmbito deste problema
no prazo do plano. O conjunto deve ser suficiente para assegurar o
cumprimento do plano.
As Operações podem também ser entendidas como atos
linguísticos enunciados no espaço das declarações de compromissos
visando à mudança da realidade. Sua formulação deve iniciar por
“Comprometo-me a ... (fazer algo)”. Para tanto as operações
precisam ser:

 bem estruturadas (operações de resolução normalizada,


sem deliberação);
 de risco calculado (operações com uma probabilidade
precisa de êxito); e
 apostas operacionais (operações quase estruturadas
sob incerteza).

Além disso, é necessário que o compromisso visado à ação


deve ser diferenciado de:

 uma recomendação (seria bom que...);


 um critério (deve-se...);
 um enunciado de um objetivo (devemos alcançar...);
 uma proposta de política (enunciado geral); e

Módulo Básico
139
Planejamento Estratégico Governamental

 uma declaração de prioridade.

Cada uma das operações formuladas para enfrentar uma


situação-problema determinada deve ser detalhada para viabilizar
sua implementação.

Na seção a seguir, você vai conhecer os principais


componentes deste detalhamento.

140 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

MATRIZ OPERACIONAL

A Matriz Operacional detalha o conjunto de procedimentos


através do qual devem ser atingidos os resultados esperados nas
operações. Cada ação poderá ser dividida em atividades que, por
sua vez, podem ser detalhadas em tarefas, dependendo da
complexidade da operação ou da ação e das características do
cenário que pretende construir o ator que planeja. De qualquer
forma, o enunciado das ações, das atividades e/ou das tarefas na
Matriz Operacional deve vir acompanhado pelos respectivos
produtos, resultados esperados, datas (início/fim), responsáveis,
apoios e recursos necessários.

AÇÕES, ATIVIDADES, TAREFAS

As ações, as atividades e as tarefas são as unidades de


implementação de um plano. Seu detalhamento deve ser feito até o
nível necessário para uma compreensão clara da operacionalização
de um plano ou projeto. Se for preciso, até mesmo as tarefas podem
ser subdivididas de acordo com o interesse ou a necessidade do
ator que planeja.
O detalhamento das tarefas deve ser refeito periodicamente,
em função das necessidades. A somatória das ações e tarefas,
verificáveis em forma de produtos, deve garantir que se alcancem
os resultados.

Módulo Básico
141
Planejamento Estratégico Governamental

Resultados

São os impactos sobre as manifestações concretas do


problema que está sendo atacado (avaliado pelos seus descritores);
a mudança na realidade observada. A definição dos resultados
possibilita uma avaliação do plano, assim como a condução precisa
das ações no sentido da estratégia geral.

Produtos

São parâmetros concretos – quantidade, qualidade, tempo


e lugar – que auxiliam na execução das atividades planejadas. Se
os produtos estão sendo obtidos e os problemas identificados
persistem é porque os resultados esperados não estão ocorrendo.
Há, então, necessidade de rever as operações e as ações projetadas.

Recursos

Recurso é tudo aquilo que um ator pode mobilizar para


viabilizar a consecução dos seus objetivos. A execução de um plano
implica no gerenciamento de múltiplos recursos escassos.
Para o processo de planejamento que aqui propomos, é
necessário trabalhar com um conceito bastante amplo de recurso.
O Quadro 3 indica os recursos que podem ser utilizados para a
viabilização de ações planejadas.

RECURSOS CAPACIDADES
cognitivos para formar opinião
políticos para gerar legislação ou regulamentações
financeiros para agenciar pessoas e organizações
organizacionais para gerenciar ou coordenar processos de
trabalho
pessoal capacitado ou tempo para gerar capacidade de mobilização

Quadro 3: Recursos para viabilização de ações planejadas


Fonte: Elaborado pelo autor

142 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

Para cada ação prevista, devemos detalhar quais recursos


de diferentes tipos serão necessários, ajustar a utilização dos recursos
à sua disponibilidade e especificar os custos para cada ação/tarefa.
A partir desta informação será possível uma alocação realista dos
recursos. Para tanto é fundamental avaliarmos em que medida as
atividades previstas em um plano necessitam consumir os diferentes
tipos de recursos para avaliar sua eficiência.

Prazos

O tempo talvez seja o recurso mais escasso com os quais


lidam os dirigentes públicos e os seus planos de governo. A
determinação dos prazos das operações e das ações marca a
trajetória do plano, com os pré-requisitos, as concomitâncias, os
intervalos ou os pontos predeterminados de confluência (datas
simbólicas etc.).
A indicação de prazos é indispensável para o acompanhamento
e a avaliação do plano, e indica o compromisso do responsável com a
execução das ações. Os prazos estão relacionados à data limite para
a finalização da ação (para ser mais preciso, ao intervalo entre o
início e o fim da ação).

Responsáveis

Envolve todos os coordenadores e os articuladores de tarefas


a serem desenvolvidas no plano. As responsabilidades devem ser
nominais ou no mínimo por função, evitando a diluição de
responsabilidades.

Quando todos são responsáveis por tudo, ninguém é


responsável por nada.

Módulo Básico
143
Planejamento Estratégico Governamental

É também importante distinguirmos entre o responsável


(aquelas pessoas que estão comprometidas diretamente com a
realização da ação) e eventuais apoios (pessoas que contribuem
para a realização da ação).

ETAPAS PARA A FORMULAÇÃO DE UM PLANO DE AÇÃO

Buscando auxiliar você, estudante, preparamos um resumo


de elementos fundamentais para formulação de um plano. São eles:

 identificação do ator que planeja;


 descrição da situação-problema em que se quer atuar;
 problemas precisos a enfrentar;
 objetivos bem definidos;
 identificação de interessados e de beneficiários;
 nome do plano (aspecto comunicacional);
 principais ações a realizar, trajetória, encadeamento;
 definição de responsáveis, rede de ajuda e parceiros;
 previsão de recursos necessários, produtos e resultados
esperados;
 indicação do prazo de maturação dos resultados;
 indicadores para verificação do andamento dos
trabalhos, produtos, uso de recursos, contexto e
resultados;
 clareza ao atuar em relação a aliados e a oponentes;
 clareza ao atuar em relação a mudanças no contexto;
 previsão de procedimentos para acompanhamento das
ações, cobrança e prestação de contas; e

144 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

 previsão de procedimentos para avaliação e para


revisão durante a execução do que foi planejado.

Como complemento, a partir da análise do balanço entre


apoios e oposições previsíveis a um plano de ação formulado, cabe
identificarmos um tipo especial de operação a ser planejada.
Um tipo de operação que apresenta um caráter mais político do
que operacional. Aquele que tem como objetivo construir viabilidade
para a implementação de um projeto através do apoio ou da
contraposição à resistência percebida. Esta modalidade de análise
estratégica leva em conta o estudo de motivações e de interesses de
atores envolvidos com os problemas que a equipe dirigente pretende
enfrentar.

Módulo Básico
145
Planejamento Estratégico Governamental

GESTÃO DO PLANO

O plano só se completa na ação, nunca antes. E a ação de


governo frequentemente exige adaptações de último momento que
completam e viabilizam o plano. Essas adaptações são uma forma
de improvisação necessária e quase inexorável.
Contudo, a questão consiste, no momento da ação, se o
domínio será da improvisação sobre o plano ou do plano sobre a
improvisação. Não obstante, temos de reconhecer que as equipes
dirigentes podem escolher os problemas, formular seus planos para
solucioná-los e o momento de fazê-lo, mas não podem escolher as
circunstâncias do contexto em que deverão agir.

ATUAR SOB INCERTEZA

O plano formulado mediante simples cálculo determinista


inviabiliza, no limite, a avaliação do seu cumprimento e do
compromisso com as responsabilidades assumidas. Isso porque é
impossível valorarmos o significado dos resultados frente a metas
previstas e se são verificadas mudanças significativas no contexto
em que ele deve ser implementado.
Considerando que surpresas sempre ocorrem e podem gerar
alto impacto sobre o plano e os resultados esperados, podemos
afirmar que o plano é um conjunto de condições fora do controle
do ator que planeja. Ele influencia o desenvolvimento e os resultados
finais do plano.

146 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

De acordo com essa concepção, resumimos que planejar sob


incerteza significa:

 não congelar o cálculo sobre o futuro; refazê-lo


constantemente;
 utilizar recursos de cálculo como previsão, reação rápida
diante da mudança imprevista, aprendizado com o
passado recente;
 trabalhar com diferentes cenários, com visões
alternativas sobre o futuro;
 estar preparado para enfrentar surpresas;
 dispor de sistema de manejo de crises; e
 afastar a incerteza evitável mediante ações preventivas.

Assim, planejar significa enfrentar as incertezas e as


dificuldades impostas pela realidade, alcançando os objetivos a que
o plano se propõe.
Outro aspecto que precisamos destacar faz referência aos
cálculos realizados quando da elaboração do plano, que precisam
ser refeitos permanentemente a partir da análise sobre:

 desenvolvimento dos fatos concretos;


 evolução do plano; e
 avanço da elaboração individual e coletiva na
instituição.

Módulo Básico
147
Planejamento Estratégico Governamental

FOCOS DE DEBILIDADE DE UM PLANO

Concluindo a apresentação da MPS, preparamos um


conjunto de pontos (uma check list) para a verificação da qualidade
de um plano de ação. São preocupações enunciadas de forma
negativa, mas consideradas importantes para o planejamento e
acompanhamento das operações, avaliação e replanejamento de
um plano de ação. São elas:

 eleição de problemas inadequada ou desfocada;


 compreensão precária sobre a situação problemática
a ser enfrentada: diagnóstico de situações mal
formulado;
 má qualidade do projeto de ação elaborado;
 projeção mal formulada para resultados esperados;
 despreparo ou não previsão para ocorrência de
surpresas ou mudanças no contexto;
 deficiente análise estratégica; e
 suposições gerenciais otimistas.

148 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

COMPONENTES DE UM SISTEMA DE
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
GOVERNAMENTAL

Para o ator que planeja, a informação é o meio que lhe


permite conhecer a realidade na qual atua e verificar o resultado
causado por sua ação. Disso depende sua capacidade para alterar
oportunamente suas decisões, quando as metas alcançadas se
distanciam das propostas. Sem informação oportuna, confiável e

v
relevante, não se identificam bem os problemas, não se pode atacá-
los a tempo e posterga-se a ação corretiva.
O monitoramento, no PEG, responde ao princípio elementar
de que não se pode atuar com eficácia se os dirigentes não conhecem Condicionante da
de maneira contínua, e o mais objetiva possível, os sinais vitais do eficácia das operações

governo que lideram e das situações sobre as quais intervêm. Um induzindo para que os
resultados previstos não
sistema de informação casuístico, parcial, assistemático, atrasado,
sejam alcançados.
inseguro e sobrecarregado de dados primários irrelevantes é um
a p a r a t o s e n s o r i a l defeituoso que limita severamente a
capacidade de uma equipe dirigente de se sintonizar com as
situações que busca enfrentar, de identificar os problemas atuais e
potenciais, de avaliar os resultados de sua ação e de corrigir
oportunamente os desvios com relação aos objetivos traçados.
O sistema de PEG é constituído por três componentes que
garantem um acompanhamento e um processamento adequado dos
fluxos de informação que alimentam as decisões de uma equipe
dirigente. Conheça-os a seguir:

Módulo Básico
149
Planejamento Estratégico Governamental

 Sistema de Constituição da Agenda: no qual se


decide o uso do tempo e o foco de atenção dos
dirigentes, o que, em síntese, constitui o menu de
decisões. Nesse sistema, o fluxo contínuo de
informações estabelece a luta entre a improvisação e
o planejamento.
 Sistema de Cobrança e Prestação de Contas:
em que se torna efetiva a responsabilidade de cada
membro da unidade organizacional sobre as missões
assumidas como compromissos. Com este sistema,
conforma-se um processo de trabalho com base na
responsabilidade. Ele não pode ser estruturado sem
que informações confiáveis e oportunas estejam
disponíveis.
 Sistema de Gestão Operacional: no qual é
viabilizada a ação diária num processo em que se
enfrentam a rotina e a criatividade. Na gestão
predomina a ação sujeita a diretrizes, mas elas devem
deixar um amplo campo à criatividade, à iniciativa e
à inovação.

Esses três sistemas e alguns de seus subsistemas necessários


para a criação de uma estrutura garantem a efetividade do PEG,
como os de Gestão de Crises e de Comunicação Governamental, e
são objetos de outros trabalhos sobre o tema.

150 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

Resumindo
Chegamos à última Unidade deste livro, destinada à
Metodologia de Planejamento de Situações!
Aqui você aprendeu a “Planejar por Situações-Proble-
ma”. Isto é, a executar as Etapas para a formulação de um
Plano de Ação (conceber Operações e Ações, avaliar a força
dos atores com ele envolvidos, alocar recursos, definir pra-
zos e responsabilidades etc.) a partir do Fluxograma
Explicativo da Situação-Problema resultante da aplicação da
Metodologia de Diagnóstico de Situações.
Aprendeu também como fazer a Gestão do Plano,
mediante a consideração de seus focos de debilidade e das
dificuldades inerentes ao PEG associadas ao fato de que
sempre estamos atuando “sob incerteza”.
O “pano de fundo” delineado nas duas primeiras Uni-
dade e as categorias analíticas, tais como ator social, jogo
social, situação-problema, e procedimentos de modelização
apresentados na terceira, foram aqui “aterrissados” no cam-
po mais estrito onde se dá o processo de planejamento pro-
priamente dito.
Agora você está apto a fazer com realismo e eficácia a
alocação de recursos, a determinação dos prazos das opera-
ções e das ações, a delinear a trajetória do plano, a avaliar
os pré-requisitos, concomitâncias, intervalos, os pontos de
confluência, a especificar os recursos necessários (e ajustá-
los à sua disponibilidade) para cada ação.

Módulo Básico
151
Planejamento Estratégico Governamental

Mantendo a ideia de que nossa metodologia privile-


gia aspectos situacionais e estratégicos, vimos que o plano
só se completa na ação, nunca antes. E, que ele deve ser
refeito permanentemente a partir da análise sobre o de-
senvolvimento dos fatos concretos, a evolução do plano, o
avanço da capacidade de elaboração individual, coletiva e
da instituição.
Depois deste tempo e espaço virtual em que de algu-
ma estranha maneira estivemos ligados por esta disciplina,
só resta desejar a você sucesso. E esperar que a motivação
que nos levou a propô-la, de proporcionar elementos teóri-
co-práticos para que você possa participar do desafio que
representa para o País a transformação do “Estado Herdado”
no “Estado Necessário”, seja também sua.

152 Especialização em Gestão Pública


Unidade 4 – Metodologia de Planejamento de Situações

Atividades de aprendizagem
Vamos verificar como foi seu entendimento até aqui? Uma
forma simples de fazer isso é você realizar as atividades
propostas a seguir.

1. Aplique os conteúdos da Metodologia de Planejamento de Situa-


ções em uma situação-problema tratada por você através da
Metodologia de Diagnóstico de Situações apresentada na Unida-
de anterior.
2. Tendo como referência o seu Fluxograma Explicativo e após a iden-
tificação dos nós críticos, explique por que são estas, e não ou-
tras, as causas escolhidas.
3. Tendo como referência a sua Árvore de Problemas, apresente
detalhadamente cada uma das etapas para a formulação de seu
Plano de Ação (operações, Matriz Operacional etc.).
4. Identifique possíveis focos de debilidade de seu Plano de Ação.

Módulo Básico
153
Planejamento Estratégico Governamental

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À GUISA DE CONCLUSÃO

Esta conclusão retoma aspectos relativos à função que a


disciplina de PEG deve desempenhar no âmbito do Curso e, a partir
deles, mostrar a forma como se espera que você se aproprie dos
conteúdos analítico-conceituais tratados nas Unidades 2 e 3, e dos
de natureza operacional apresentado na Unidade 4. Sugere,
também, a relação que tais conteúdos poderão fazer com os
conteúdos apresentados nas demais disciplinas visando a aproveitá-
los no desenvolvimento dos momentos descritivo (com a aplicação
da MDS) e normativo (com a aplicação da MPS) do PEG.
Com relação aos Conteúdos Introdutórios ao PEG,
esperamos que você tenha presente as condições adversas que as
atividades a ele relacionadas terão que ser por ele realizadas, isto
é, tanto em termos da perspectiva histórica de longo prazo quanto
em termos do contexto sociopolítico e institucional que ainda
sustenta o “Estado Herdado” e dificulta o trânsito ao “Estado
Necessário” pela via do momentum da Reforma Gerencial, e do
contexto disciplinar da Administração Pública que não tem estimulado
a incorporação dos conteúdos de Análise de Políticas e de Planejamento
Estratégico Situacional à formação dos gestores públicos.
Com relação à Unidade que mostra como esta disciplina de
PEG foi conformada mediante a combinação dos enfoques de
Análise de Políticas (que por sua vez é uma convergência que se
inicia na década de 1960, nos países avançados, da Ciência Política
e da Administração Pública) e Planejamento Estratégico Situacional

154 Especialização em Gestão Pública


Considerações Finais

(criado um pouco depois na América Latina como uma tentativa


de sanar os defeitos e lacunas que apresentava o planejamento
convencional, especialmente em relação às características do Estado
latino-americano), a intenção é possibilitar que o aluno contraste a
opção que escolhemos com outras maneiras de entender o PEG, e
também, de revisar as trajetórias daquelas disciplinas.
O conteúdo das Unidades 4 e 5, de natureza metodológica e
instrumental, depende para sua aplicação de forma proveitosa, não
apenas das duas Unidades anteriores mas, também, dos conteúdos
abordados em outras disciplinas do Curso.
A Unidade 4, que apresenta a MDS, tem como objetivo
possibilitar ao aluno a capacidade de realizar um diagnóstico da
situação-problema por ele escolhida. Essa atividade deverá servir
como um espaço de experimentação e aplicação dos conteúdos
apresentados nas demais disciplinas, uma vez que a ideia é que ele
“pendure-os” nesse primeiro diagnóstico. Isto é, que os utilize para
melhor desenvolver este primeiro momento, de caráter descritivo-
explicativo, do PEG.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

No que se refere à metodologia de aprendizado, a disciplina


parte da ideia de que é importante para um aluno de um Curso
como o que estamos tratando produzir documentos que representem
os resultados que alcançou. No caso de uma disciplina cujo objetivo
é fornecer elementos teórico-práticos orientados a aumentar a sua
capacidade para a atividade de PEG, consideramos que esse
documento deve registrar de forma sistemática os resultados que
ele irá obter através da aplicação das duas metodologias
fundamentais que a integram: a Metodologia de Diagnóstico de
Situações e a Metodologia de Planejamento de Situações.
O documento será construído paulatinamente em torno de uma
situação-problema escolhida e enunciada pelo aluno. Este enunciado

Módulo Básico
155
Planejamento Estratégico Governamental

deverá tomar como ponto de partida, preferencialmente, um dos


problemas enfrentados pelo aluno em seu ambiente de trabalho.
A metodologia de aprendizado adotada está baseada na
identificação e no “processamento” da situação-problema enunciada
e tem como elemento aglutinador a elaboração do documento.
O documento será então elaborado mediante a aplicação
dos conceitos, metodologias e demais conteúdos apresentados nesta
disciplina, e nas outras que ele estiver cursando ou já tiver cursado,
com vistas a “processar” a situação-problema.
A ênfase do trabalho deverá recair inicialmente sobre o
“momento descritivo” e o “momento explicativo”, dedicado a
explicar como e por que se chegou à situação-problema descrita
mediante a aplicação da Metodologia de Diagnóstico de Situações.
O “momento normativo” será operacionalizado mediante a
Metodologia de Planejamento de Situações. Este terceiro momento
tem por objetivo que o aluno se concentre na transformação da
situação-problema mediante a aplicação dessa metodologia, dos
demais instrumentos, dos conteúdos adquiridos durante o Curso, e
de acordo com sua visão de mundo, suas opções políticas, culturais,
de gênero etc.
Esperamos que esse documento possa ser útil para o aluno,
pois, à medida que ocorra a sua progressão, passará a ser
interessante “repassar” (para si ou para alguém), melhorar, criticar
os conteúdos, conceitos, códigos, marcos de referência analíticos,
modelos, metodologias de trabalho etc., que então irá utilizar.

OBJETIVOS A SEREM ATINGIDOS PELO ALUNO

Esperamos que os conhecimentos adquiridos e as habilidades


desenvolvidas por você, aluno, estejam materializadas num
documento que deverá atender aos seguintes procedimentos para
a sua elaboração:

156 Especialização em Gestão Pública


Considerações Finais

 Identificar um problema relevante para seu trabalho


cotidiano que o seu grupo deseje trabalhar. Deverá
ser evitada uma ênfase excessiva a apresentação e
descrição de propostas, atividades, programas,
processos de formulação, implementação e avaliação,
aspectos institucionais, resultados já obtidos etc.,
relativos à situação-problema escolhida.
 Realizar um diagnóstico da situação-problema e que
merece o envolvimento do aluno como “ator que
declara” e como ator disposto a atuar. A aplicação da
Metodologia de Diagnóstico de Situações (MDS) é o
primeiro marco do processo de elaboração do
documento, uma vez que permite a obtenção de uma
clara identificação das variáveis e relações de
causalidade que compõem a modelização do sistema
sobre o qual se desenvolverá o trabalho até o final da
disciplina.
 Elaborar uma lista preliminar dos indicadores disponíveis
acerca da situação-problema aparentemente
adequados para o seu processamento.
 Identificar os atores sociais que atuam no âmbito da
situação-problema e descrever a forma como atuam
no sentido de mantê-la ou alterá-la.
 Descrever o processo decisório em que intervêm os
atores identificados mediante o qual a situação-
problema foi gerada. Destacar os processos de
definição e priorização da agenda. Identificar o
processo de conformação da agenda política
protagonizado pelos atores indicando eventuais
conflitos abertos, encobertos e latentes que podem ser
associados a ela e a conveniência da transformação
destes em conflitos abertos.

Módulo Básico
157
Planejamento Estratégico Governamental

 Apontar os descritores de situação-objetivo (ou


resultados esperados) com a resolução ou a superação
da situação-problema escolhida.
 Descrever as restrições identificadas no balanço
expresso no Triângulo de Governo relacionando à
ambição de mudança do projeto político do “ator que
declara”, à disponibilidade de apoio político e à
capacidade de governo.
 Revisar a lista de indicadores da situação-problema
de modo a eliminar os desnecessários ou inadequados
e incorporar os que decorrem das análises realizadas
nos quatro itens anteriormente citados.

CONCLUSÃO

É urgente a necessidade de capacitar o gestor público para


levar a cabo as tarefas colocadas pela atual conformação das
relações Estado-Sociedade e pelo cenário a ser construído. Fazê-lo
através de um Curso de Especialização como este, parece ser
essencial para permitir que essas relações sejam capazes de
promover o país mais justo, igualitário e ambientalmente sustentável
que todos desejamos.
Ajustar o aparelho de Estado visando a alterar essas relações
Estado-Sociedade, desde que respeitando as regras democráticas,
é um direito legítimo de governos eleitos com o compromisso de
levar a cabo suas propostas. Assumir explicitamente essa intenção
não diferencia o atual governo de outros que ocuparam
anteriormente o aparelho de Estado. O que sim o faz é o fato de
que ela esteja sendo buscada através de um significativo esforço
por aumentar quantitativa e qualitativamente a capacidade do
corpo de funcionários públicos para implementar as suas propostas.

158 Especialização em Gestão Pública


Considerações Finais

Um Curso de Gestão Pública como o que aqui se discute,


parece ser uma condição necessária, inclusive, para assegurar que
as mudanças sejam realizadas de forma competente, criteriosa, sem
comprometer os êxitos anteriormente obtidos e com a máxima
aderência aos consensos que alcançou a sociedade brasileira de
respeito à participação cidadã, democrática e republicana de todos
os seus integrantes.

Módulo Básico
159
Planejamento Estratégico Governamental

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160 Especialização em Gestão Pública


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164 Especialização em Gestão Pública


Referências Bibliográficas

Módulo Básico
165
Planejamento Estratégico Governamental

M INICURRÍCULO
Renato Peixoto Dagnino

Professor titular no Departamento de Política


Científica e Tecnológica da UNICAMP, tem atuado
como professor convidado em várias universidades
no Brasil e no exterior. Graduou-se em Engenharia
em Porto Alegre e estudou Economia no Chile e no Brasil, onde fez o
mestrado e o doutorado. Sua Livre Docência na UNICAMP e seu Pós-
Doutorado na Universidade de Sussex foram na área de Estudos Soci-
ais da Ciência e Tecnologia. Incorporou-se à UNICAMP em 1977, onde
colaborou com o Prof. Rogério Cerqueira Leite na criação da primeira
incubadora de empresas latino-americanas – a Companhia de Desen-
volvimento Tecnológico – e, a partir de 1979, com o Prof. Amilcar
Herrera na criação do Instituto de Geociências e da área de Política
Científica e Tecnológica daquela universidade. Alcançou reconheci-
mento internacional na década de 1980 pelos seus trabalhos sobre
economia de defesa e sobre a P&D e produção militares latino-ameri-
canas. Desde então tem se dedicado ao estudo das relações Ciência-
Tecnologia-Sociedade na América Latina. Mais especificamente, à aná-
lise da política relativa ao complexo público da pesquisa e da educa-
ção superior, à gestão estratégica da inovação, à adequação
sociotécnica, à construção de um estilo de Política de C&T aderente ao
cenário de democratização latino-americano e ao estudo do debate
sobre o determinismo tecnológico e a neutralidade da ciência. Entre
as ferramentas e metodologias que mais utiliza estão: análise de sis-
temas, análise estrutural, construção de modelos, policy analysis, cons-
trução de cenários, prospectiva e planejamento estratégico.

166 Especialização em Gestão Pública


Ministério da Educação – MEC
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Diretoria de Educação a Distância – DED
Universidade Aberta do Brasil – UAB
Programa Nacional de Formação em Administração Pública – PNAP
Especialização em Gestão Pública

O PÚBLICO E O PRIVADO NA GESTÃO PÚBLICA

Ricardo Corrêa Coelho

2012
2ª edição
© 2012. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Todos os direitos reservados.
A responsabilidade pelo conteúdo e imagens desta obra é do(s) respectivos autor(es). O conteúdo desta obra foi licenciado temporária e
gratuitamente para utilização no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, através da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o
conteúdo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reprodução e distribuição ficarão limitadas ao âmbito interno dos cursos.
A citação desta obra em trabalhos acadêmicos e/ou profissionais poderá ser feita com indicação da fonte. A cópia desta obra sem autorização
expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanções previstas no Código Penal, artigo 184, Parágrafos
1º ao 3º, sem prejuízo das sanções cíveis cabíveis à espécie.

1ª edição – 2009

C672p Coelho, Ricardo Corrêa


O público e o privado na gestão pública / Ricardo Corrêa Coelho. – 2. ed. reimp. –
Florianópolis : Departamento de Ciências da Administração / UFSC, 2012.
76p. : il.

Especialização – Módulo Básico


Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-61608-82-8

1. Administração pública. 2. Direito administrativo. 3. Poder público. 4. Terceiro setor.


5. Educação a distância. I. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Título.

CDU: 35

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071


PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR – CAPES

DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDÁTICOS


Universidade Federal de Santa Catarina

METODOLOGIA PARA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Universidade Federal de Mato Grosso

AUTOR DO CONTEÚDO
Ricardo Corrêa Coelho

EQUIPE TÉCNICA
Coordenador do Projeto – Alexandre Marino Costa

Coordenação de Produção de Recursos Didáticos – Denise Aparecida Bunn

Capa – Alexandre Noronha

Ilustração – Igor Baranenko

Projeto Gráfico e Editoração – Annye Cristiny Tessaro

Revisão Textual – Sergio Luiz Meira

Créditos da imagem da capa: extraída do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.
SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................... 7

Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

Introdução...................................................................................... 11
A Dicotomia Público/Privado................................................................. 12
As Prerrogativas do Poder Público sobre os Agentes Privados.............................. 28
O Estado e o Servidor Público.................................................................. 36

Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o


Setor Privado

Introdução..................................................................................................... 49
Os Cinco Princípios Orientadores da Administração Pública............................... 50
Poderes e Deveres do Gestor Público............................................................. 58
Os Contratos do Setor Público com os Agentes Privados............................... 63
O Público e o Privado e a Emergência do Terceiro Setor....................................... 68

Referências.................................................................................................... 74

Minicurrículo.................................................................................................... 76
O Público e o Privado na Gestão Pública

6 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

APRESENTAÇÃO

Prezado estudante!
Uma das questões mais importantes para o gestor público é
a da relação que ele, como agente investido do poder do Estado,
estabelecerá com o setor privado no exercício da sua função. Essa
relação será mais ou menos frequente, dependendo da área de
intervenção do Estado, mas será sempre delicada e sensível, pois
está balizada por uma série de mediações processuais rigidamente
estabelecidas pela lei. O conjunto de normas que regem as relações
do poder público com o setor privado não foi criado pelo legislador
para dificultar a ação do gestor público, mas para garantir a
primazia do interesse público nas relações que o Estado estabelece
com os agentes privados e que são custeadas com o dinheiro do
contribuinte.
O gestor público não necessita conhecer em profundidade
os Direitos Constitucional e Administrativo – para isso ele deve
contar com assessoria jurídica –, mas precisa conhecer os seus
princípios gerais. Sem esse conhecimento, correrá o grande risco
de, involuntariamente, cometer ilegalidades, ter seus atos
questionados pelos tribunais de contas e ver-se envolvido em
processos administrativos e penais, ainda que tenha agido com a
maior das boas intenções e imbuído unicamente de espírito público.
Esta disciplina tem por objetivo levar você – gestor público
já em exercício ou em formação – a conhecer os princípios que
regem o funcionamento da Administração Pública, orientam as suas
relações com o setor privado e disciplinam a ação dos servidores
públicos em todas as esferas de governo – do quadro permanente
do Estado, ocupantes de cargos em comissão ou eleitos prefeitos
municipais, governadores de Estado ou presidente da República.

Módulo Básico
7
O Público e o Privado na Gestão Pública

A reflexão sobre as relações entre o público e o privado


remonta ao Direito Romano e se tornaria objeto tanto da Filosofia
do Direito quanto do Direito Administrativo. Nesta disciplina, as
fronteiras que demarcam os espaços da esfera pública e da esfera
privada, dos interesses privados e dos interesses coletivos, dos
direitos do cidadão e dos poderes e deveres do Estado, serão tratadas
a partir das contribuições da Filosofia e do Direito – o que é
inescapável –, mas sempre de forma contextualizada e por meio de
exemplos representativos de situações do dia a dia do gestor público.
Ao longo da leitura deste texto, você entrará em contato com
uma série de conhecimentos do Direito Administrativo que,
certamente, lhe permitirão discernir, com clareza, a diferença entre
a Administração de Empresas e a Administração Pública, entre
aquilo que é permitido em uma esfera e vetado ou obrigatório na
outra. Assim, você estará mais bem preparado para interagir com
o setor privado e compreender seu papel, funções, poderes e
responsabilidades como agente público.
Por isso, a disciplina O Público e o Privado na Gestão Pública
foi organizada em duas Unidades.
Unidade 1 – vamos discutir a dicotomia público-privado, as
prerrogativas do poder público sobre os agentes privados e a relação
do Estado com o servidor público.
Unidade 2 – abordaremos uma diversidade de temas
complementares: os cinco princípios orientadores da administração
pública; os poderes e os deveres do gestor público; os contratos do
setor público com os agentes privados; e, finalmente, a emergência
do Terceiro Setor.
E para melhor acompanhar e avaliar o desempenho e a
aprendizagem, você encontrará, no decorrer de cada Unidade,
atividades e exercícios a serem desenvolvidos e registrados por escrito.
Agora que já sabe, em linhas gerais, do que irá tratar a
disciplina O Público e o Privado na Gestão Pública e a importância
dela no seu curso de especialização, vamos iniciar esse estudo?
Agora é com você.

Professor Ricardo Corrêa Coelho

8 Especialização em Gestão Pública


Apresentação

UNIDADE 1
ESFERA PÚBLICA E ESFERA PRIVADA
NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Diferenciar Administração Pública de Administração de Empresas;
 Conhecer as prerrogativas do Poder público sobre os agentes
privados e compreender suas razões e seu significado; e
 Compreender a relação entre o Estado e os servidores públicos como
distinta da relação entre empregadores e empregados no setor
privado.

Módulo Básico
9
O Público e o Privado na Gestão Pública

10 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

INTRODUÇÃO

A extensão dos poderes do Estado e o papel da


Administração Pública na sociedade são temas que suscitam
grandes controvérsias e em torno dos quais não se pode,
rigorosamente, falar de consenso ou da existência de uma posição
dominante. Por se tratar de questões que emanam do âmago da
reflexão e da prática políticas, as formulações que venham a ser
produzidas a respeito carregarão, sempre, um forte viés ideológico,
alimentadas por diferentes visões de mundo, concepções e valores
dos quais todos os indivíduos das sociedades são portadores.
O reconhecimento desses vieses não nos deve desencorajar a
enfrentar a questão nem tampouco nos autoriza a fazer qualquer
tipo de formulação, numa espécie de “vale-tudo”. Ao longo de
séculos, a civilização ocidental veio recorrentemente colocando-se
questões relativas ao Estado, ao exercício do poder e às relações
entre Estado e sociedade, e essa reflexão socialmente acumulada
deve nos servir de base para refletirmos sobre o papel dos gestores
públicos na administração do Estado brasileiro em todas as suas
esferas: municipais, estaduais e federal.
Da tradição ocidental deriva uma dicotomia que remonta
ao Direito Romano, que ganharia novos contornos com o
desenvolvimento do Estado moderno, tal como o conhecemos
contemporaneamente, e que é central para o desenvolvimento do
nosso tema: a dicotomia entre público e privado, da qual todos os
outros temas a serem tratados nesta disciplina decorrem
logicamente.

Módulo Básico
11
O Público e o Privado na Gestão Pública

A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO

Toda dicotomia carrega um elevado grau de arbitrariedade


na medida em que pretende dar conta de todo o universo de
possibilidades. No caso da dicotomia público/privado, significa que
aquilo que está na esfera pública deve necessariamente estar fora
da esfera privada, e tudo o que não se situar na esfera pública deve
estar obrigatoriamente contido na esfera privada. De acordo com
essa lógica de ferro, um termo exclui necessariamente o outro, e
ambos recobrem a totalidade do existente e do imaginável.
No entanto, no mundo real, as definições nem sempre são tão claras
quanto no mundo dos conceitos.
Certamente você deve estar associando, sem dificuldade, o
Estado à esfera pública e a empresa capitalista à esfera privada.
No entanto, à medida que vamos nos distanciando dos casos
extremos, a classificação vai se tornando menos óbvia.

Por exemplo, em que esfera você situaria a empresa pública?


E os partidos políticos? E as Organizações Não Governamentais
(ONGs)? Antes de respondermos a essas perguntas, vamos
examinar os componentes de cada um dos termos, tentando
identificar o que é fundamental em um e em outro?

A definição da esfera pública é uma construção, ao mesmo


tempo, intelectual e coletiva. Isso quer dizer que na substância ou
na materialidade das coisas não há nada que nos permita situar,
inequivocamente, um bem ou um serviço nela. A construção da
esfera pública é, na verdade, resultado de uma convenção social

12 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

específica. Assim sendo, irá integrar a esfera pública aquilo que


toda coletividade, e não apenas uma parte dela, pactuar, explícita
ou implicitamente, ser de interesse comum.

Tudo o que a coletividade chamada povo convencionar,


em um determinado momento de sua história, ser de
interesse ou de propriedade comum, integrará a esfera
pública, ficando todo o restante adstrito à esfera
privada.

Disso se conclui logicamente que não há nada que seja


intrinsecamente público nem intrinsecamente privado, já que a
definição de ambos resulta de convenção coletiva.
Definidos os conceitos desta forma, você logo irá perceber
que o público tem precedência sobre o privado, pois a delimitação
da esfera pública irá anteceder, temporal e logicamente, a
circunscrição da esfera privada. Isso quer dizer que o espaço
público, e tudo o que nele se inserir, será sempre explicitado
positivamente, ao passo que o espaço privado será delimitado de forma
residual, cabendo nele tudo aquilo que ficar de fora da esfera pública.
A construção da esfera pública será também sempre
historicamente delimitada. Aquilo que em um determinado momento
histórico é considerado como indubitavelmente público pode não
o ser em outro. Para explicitarmos esse ponto relevante, vamos ver
alguns exemplos.

Exemplo 1

Contemporaneamente, consideramos que a defesa da


coletividade das agressões externas, um bem claramente público, é
encargo de uma instituição igualmente pública – o exército nacional,
ou mais genericamente, as forças armadas nacionais, regulares e
profissionais. No entanto, nem sempre foi assim. Durante a maior
parte da história do Ocidente, essa função foi delegada a exércitos

Módulo Básico
13
O Público e o Privado na Gestão Pública

de mercenários; por tanto, a grupos privados contratados


pontualmente pelos governantes para a defesa dos seus territórios
e populações.

Exemplo 2

A coleta de impostos é, hoje, considerada uma função


eminentemente pública, que deve ser executada por agentes
públicos. No entanto, durante a Idade Média, os impostos eram
cobrados por particulares daqueles que utilizavam as estradas ou
pontes situadas em terras sob o seu domínio.

Exemplo 3

Nas sociedades ocidentais contemporâneas – sejam elas


repúblicas, como o Brasil e Portugal, ou monarquias constitucionais,
como o Reino Unido e a Espanha – o patrimônio e o orçamento
públicos estão inteiramente separados do patrimônio e do
rendimento dos governantes. No entanto, antes da formação do
Estado moderno, essa separação não existia, assim como continua
não existindo em outras localidades como o Sultanato de Brunei,
na Ásia, onde o patrimônio do Estado é contabilizado como de
propriedade do sultão, o que faz do monarca de tão diminuto país
o indivíduo mais rico do mundo.

A esfera pública é, por


Ficou mais claro agora?

v
excelência, a esfera de
ação do Estado,
enquanto a esfera Pois bem, a clara separação entre esfera pública e esfera
privada é a de ação dos
privada é a marca distintiva das sociedades capitalistas e
indivíduos na sociedade
democráticas contemporâneas em relação às demais. Dessa
civil.
separação fundamental decorrem todas as outras diferenciações
relevantes no interior dessas sociedades, como a existente entre
um Direito Público e um Direito Privado; entre Estado e sociedade
civil; e entre poderes do Estado e direitos do cidadão. Outra

14 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

diferença importante entre essas


sociedades e as demais encontra-se na Saiba mais Maximillian Carl Emil Weber (1864–1920)

forma de administrar o Estado. Sociólogo, historiador e político alemão


De acordo com o sociólogo que, junto com Karl Marx e Émile

alemão Max Weber, nas sociedades Durkheim, é considerado um dos funda-

tradicionais – ou seja, antes que o dores da Sociologia e dos estudos com-


parados sobre cultura e religião. Para
capitalismo tivesse se desenvolvido
Weber, o núcleo da análise social con-
plenamente nas sociedades ocidentais
sistia na interdependência entre reli-
– predominava a administração
gião, economia e sociedade. Fonte: <http://
patrimonial, caracterizada por uma
w w w. n et s a b e r. c o m . b r / b i o g ra f i a s /
forma de gestão dos negócios públicos
ver_biografia_c_1166.html>. Acesso em: 2 jul. 2009.
como se estes fossem assuntos
privados dos governantes.
Seria apenas com o desenvolvimento do capitalismo, com a
formação do Estado moderno que o acompanharia e, finalmente,
com a democratização dos Estados liberais – que você já estudou
na disciplina Estado, Governo e Mercado – que iria se desenvolver
e se impor a administração burocrática, caracterizada por uma série
de procedimentos administrativos, baseados na legalidade dos atos,
na impessoalidade das decisões, no profissionalismo dos agentes
públicos e na previsibilidade da ação estatal. Essa nova forma de
administração foi estudada à exaustão por Weber.
Na esfera pública, os indivíduos são sempre concebidos
como cidadãos, seja na posição de agentes do poder público, isto
é, de servidores do Estado, seja na condição de simples usuários
dos serviços públicos ou sujeitos submetidos às leis e normas
impostas pelo Estado.
Já na esfera privada, os indivíduos são concebidos como
pessoas físicas à procura da satisfação de seus interesses
particulares, podendo se associar e constituir pessoas jurídicas com
a finalidade de perseguir os mais diferentes objetivos – econômicos,
políticos, religiosos, culturais etc. Mas, preste bem atenção:
a personalidade coletiva resultante dessa associação segue, no
entanto, sendo privada, e não se confunde, em momento nenhum,
com a associação e coletividade públicas.

Módulo Básico
15
O Público e o Privado na Gestão Pública

Mas, por que certas associações têm caráter público e outras


privado? Para responder a essa pergunta, vamos analisar, a
seguir, a diferença entre organização e instituição, que é
fundamental para a devida compreensão das diferenças
existentes entre esfera pública e esfera privada nas sociedades
contemporâneas.

Chamamos de organização as associações do setor privado.


Sua natureza, características e dinâmica foram, e são,
exaustivamente estudadas pela teoria das organizações, disciplina
central da administração de empresas.

Que características são essas?

A principal delas é a de que as organizações possuem


*Missão – o mesmo que missão* e objetivos* que são autoatribuídos pelos seus membros.
objetivos principais. Fon-
Nada obriga uma organização a continuar perseguindo os mesmos
te: Lacombe (2004).
objetivos – e nem mesmo a continuar existindo – a não ser a vontade
*Objetivo – um propósito,
dos seus próprios membros. Estes possuem inteira autonomia –
em geral permanente, a
respeitados os limites e imposições legais – para definir e redefinir
ser atingido por uma or-
ganização. Fonte: a sua missão, estabelecer e modificar os seus objetivos, decidir por
Lacombe (2004). sua expansão ou retração, diversificação e reorientação de
atividades ou mesmo pela sua completa dissolução.
Essas características das organizações privadas, existentes
na sociedade civil, não encontram qualquer paralelo nas
organizações estatais, que, por serem instituídas pelo Estado para
desempenhar funções de interesse público, são mais frequentemente
chamadas de instituições. Já as organizações públicas encontram-
se subordinadas ao Estado e têm sua missão e seus objetivos
determinados legalmente e não autonomamente, como nas
organizações privadas.
Isso, no entanto, não quer dizer que organizações públicas
não possam gozar de cer ta autonomia. Por exemplo, na

16 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

Administração Pública brasileira, os órgãos que integram a


administração indireta, como autarquias e fundações, estão
legalmente investidos de autonomia patrimonial, financeira e
administrativa em relação aos órgãos centrais do governo, aos quais
se encontram formalmente vinculados. Mesmo os órgãos que
compõem a administração direta federal possuem a prerrogativa
de planejar as suas atividades e estabelecer suas metas anuais. No
entanto, essa autonomia nunca será mais que relativa.
Acabamos de mencionar que as organizações do Estado
podem ser classificadas em duas categorias: as que compõem a
Administração direta; e as que integram a Administração indireta.
No Quadro 1 podemos melhor visualizar as diferenças entre
essas duas categorias de Instituições Públicas.

DENOMINAÇÃO DESCRIÇÃO
Serviços integrados na estrutura administrativa da
Presidência da República e dos Ministérios (no caso
Administração direta
da administração federal) e dos governos e secre-
tarias (nos casos das administrações estaduais,
municipais e do Distrito Federal).
Organizações dotadas de personalidade jurídica e
patrimônio próprio, que gozam de autonomia ad-
Administração indireta ministrativa e financeira e se encontram vincula-
das aos ministérios ou secretarias.

Quadro 1: Tipos de instituições públicas


Fonte: Elaborado pelo autor

As organizações que integram a Administração indireta são


de diferentes tipos. No Quadro 2 você encontrará uma breve
descrição e alguns exemplos dos tipos de organizações da
Administração indireta.

Módulo Básico
17
O Público e o Privado na Gestão Pública

DENOMINAÇÃO DESCRIÇÃO EXEMPLOS


Pessoas jurídicas de direito público, Banco Central
criadas por lei, incumbidas de serviço Inmetro – Instituto
Autarquias público típico exercido de forma des- Nacional de
centralizada, cujo pessoal se encon- Metrologia, Nor-
tra regido pelo regime jurídico previs- malização e Quali-
to pela lei da entidade-matriz. dade Industrial
Pessoas jurídicas de direito público, Universidades Pú-
criadas por lei, destinadas a realizar blicas
atividades não lucrativas e atípicas do Fundação de Am-
Fundações setor público, mas de interesse paro ao Trabalha-
coletivo, cujo pessoal pode tanto ser dor Preso de São
regido pelo regime jurídico previsto Paulo
pela lei da entidade-matriz, quanto
pela CLT.
Pessoas jurídicas de direito privado, Caixa Econômica
criadas por lei, de patrimônio públi- Federal
Empresas co, destinadas a realizar obras e ser- BNDES
públicas viços de interesse público, cujos em-
pregados têm suas relações de traba-
lho regidas pela CLT.
Pessoas jurídicas de direito privado, Petrobras
com participação do poder público e Banco do Brasil
de particulares no seu capital e na sua
Sociedades administração, que realizam
de economia atividades econômicas outorgadas
mista pelo poder público e cujos emprega-
dos têm suas relações de trabalho
regidas pela CLT.

Quadro 2: Tipos de organizações da Administração indireta


Fonte: Elaborado pelo autor

Contrariamente às organizações – que são


autorreferenciadas, tendo interesses próprios e objetivos variáveis
com o tempo –, as instituições têm objetivos permanentes a serem
Organizações
perseguidos em favor de toda a coletividade e não dos membros

v
estruturam-se para
realizar ou defender que a integram.
interesses parciais, em
As organizações agem e mudam conforme a lógica e
colaboração ou
dinâmica do mercado, seja para sobreviver e se adaptar às novas
competição com outras
organizações no condições de concorrência, seja para dessas tirar o maior proveito
mercado. privado. Já as instituições não agem para sobreviver ou se expandir,
aproveitando as condições de mercado, mas para influenciar,

18 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

regular ou mesmo substituir o mercado. Para evidenciar as funções


das organizações, veja a seguir alguns exemplos.

Exemplo 4

As instituições públicas de ensino atuam em uma área


constitucionalmente aberta à iniciativa privada. Sua existência em
um mercado concorrencial, como o educacional, por exemplo, só
se justifica se:

 influenciar positivamente a qualidade da educação


em geral, por meio da oferta de um ensino público de
qualidade elevada, de forma a levar o setor privado
a ofertar um serviço com qualidade equivalente a fim
de poder concorrer com o setor público – como no
caso da educação superior; ou
 garantir o acesso de toda população a um serviço
considerado essencial e obrigatório, cuja universalização
não seria alcançada por meio do mercado – como é o
caso da educação básica pública e gratuita.

Exemplo 5

As agências regulatórias, que têm por finalidade regular


diretamente as condições de concorrência e de oferta de serviços
em um determinado mercado, visando o benefício de toda a
coletividade.

Exemplo 6

As organizações que exercem suas funções de forma


monopolista, como:

 a Casa da Moeda, encarregada de emitir o meio


circulante;
 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE),
encarregado da produção de estatísticas oficiais;

Módulo Básico
19
O Público e o Privado na Gestão Pública

 a Polícia Federal e polícias civis dos Estados, a quem


cabe a investigação de crimes e ilícitos; e
 os ministérios públicos, federal e dos Estados,
incumbidos de propor ações penais.

Apesar das diferenças que podemos identificar entre as


organizações privadas e as instituições públicas, entre ambas existe
uma área de diálogo e de influências mútuas, que é precisamente a
de gestão organizacional.
Observe que da mesma forma que a administração
burocrática surgiria no seio do Estado como forma de organização,
estruturação e gestão das atividades públicas e posteriormente iria
ser adotada pelas grandes organizações privadas, como sindicatos,
partidos políticos e empresas capitalistas, muitas das inovações
organizacionais e de gestão ocorridas no interior das empresas
privadas e sistematizadas pela teoria das organizações iriam ser
adotadas pela Administração Pública.

Entre a administração de empresas e a administração


pública existe, no mínimo, o substantivo administração
em comum, o que indica que ambas não devam ser
consideradas como campos de reflexão e ação
inteiramente apartados.

No entanto os adjetivos público e privado (de empresa) não


podem ser simplesmente considerados como variações da mesma
disciplina, pois no caso específico da Administração Pública, o
adjetivo se constitui na sua parte estruturante. Não é por outra razão
nem por mero efeito estilístico que, já no nome desta disciplina,
público e privado ocupam o lugar de substantivos.
De tudo o que foi tratado até aqui, decorre, logicamente, a
primazia do público sobre o privado.
O Estado e suas instituições são as únicas instâncias que
representam o todo em uma determinada sociedade, sendo todas

20 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

as demais organizações representantes de partes. A relação entre


Estado e sociedade civil é, portanto, uma relação entre desiguais,
em que a última se encontra subordinada ao primeiro. Isso não
quer dizer que o Estado possa, a todo momento, e sob qualquer
pretexto, intervir na sociedade civil, pois sua primazia significa
assimetria respaldada pelo Direito, e não arbitrariedade.
Como você já viu nesta Unidade, a primazia do público sobre
o privado revela-se também na precedência que o público tem sobre
o privado. Em primeiro lugar, porque é o Estado, no exercício de
sua função legislativa, que irá determinar a esfera de atuação do
poder público. Em segundo lugar, porque é somente depois, por
exclusão e residualmente, que será determinada a esfera privada.
Assim, a primazia e precedência do público sobre o privado terão
efeitos diretos e decisivos sobre a lógica interna que rege os sistemas
normativos afetos a uma ou outra esfera: o Direito Público e o
Direito Privado.
Na sequência examinaremos mais essa distinção – entre o
Direito Público e o Direito Privado – que é fundamental para
compreendermos as especificidades da gestão das instituições
públicas em relação à gestão das organizações da sociedade civil,
tenham elas finalidade lucrativa ou não. Uma vez que a lei tenha
delimitado o espaço público e, por exclusão, definido também a
extensão da esfera privada, os particulares que nesta se encontrarem
– sejam eles simples indivíduos, associações civis ou empresas –
poderão fazer tudo aquilo que a lei não proibir e deixar de fazer
aquilo que a lei não os obrigar. A essa liberdade e autonomia de ação
da sociedade civil convencionou-se chamar de liberdade negativa.

Você deve estar se perguntando: Por que liberdade negativa?


Essa esfera de liberdade não parece suficientemente ampla
para ser vista positivamente?

Simplesmente porque essa esfera de liberdade – de fato,


bastante extensa – é claramente delimitada por dois “não”:

Módulo Básico
21
O Público e o Privado na Gestão Pública

 pode-se fazer o que a lei não proibir; e


 pode-se deixar de fazer o que a lei não obrigar.

Essa é a regra geral que orienta todo o direito privado – isto


é, aquele que regula as relações entre os entes privados na
sociedade, como os direitos Civil, Comercial, Penal etc.

Essa regra elementar não é, entretanto, aplicável ao Direito


Público, que regula o funcionamento interno do Estado e as suas
relações externas com os agentes privados – como os Direitos
Constitucional e Administrativo. Você sabe por que não?

Exatamente porque, se gozasse de liberdade negativa, o


Estado, suas instituições e seus agentes poderiam se tornar tirânicos
com os cidadãos. Pois se para os indivíduos – que isoladamente
detêm pouca força – a liberdade negativa pouca ou nenhuma
ameaça representa para a coletividade, para o Estado – que detém
o monopólio do uso legítimo da força – a liberdade negativa
equivaleria à tirania e ao completo cerceamento da liberdade dos
cidadãos.

Ficou mais claro agora por que razão o Estado e os agentes


públicos não gozam rigorosamente de liberdade de ação?

Por isso – e para assegurar que por meio da ação estatal o


interesse público seja atingido e a liberdade individual assegurada –
o princípio que irá orientar o Direito Público será o de que o Estado:

 será obrigado a fazer exatamente aquilo que a lei


mandar; e
 só poderá fazer o que a lei expressamente autorizar.

22 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

A compreensão da diferença entre liberdade negativa e


direito positivo é de fundamental importância para o gestor público.

A liberdade negativa delimita a esfera de liberdade


dos indivíduos na sociedade civil, enquanto o direito
positivo determina a esfera de poder do Estado sobre
a sociedade.

A capacidade de buscar e encontrar “brechas na lei”, para


poder fazer aquilo que a organização quer e necessita, é
característica valorizada e desejada nos administradores de
organizações e empresas privadas, que agem na esfera em que
impera o princípio da liberdade negativa. Porém, essa capacidade
não é, de modo algum, aceitável para um gestor público que terá
todos os seus atos avaliados e julgados pela conformidade com o
que a lei obriga ou expressamente autoriza.

Preste bem atenção! Normativamente, a primazia do


público sobre o privado está fundamentada na
contraposição entre interesse coletivo e interesse
individual. O bem comum não resulta da soma dos bens
individuais, razão pela qual os interesses individuais
(privados) devem ser subordinados aos interesses
coletivos (o bem público).

Logo, a primazia e precedência do público sobre o privado


vão fazer com que as fronteiras entre um e outro sejam sempre
móveis: ora o Estado avançando sobre a esfera privada, ora
recuando, tal como no movimento pendular estudado na disciplina
Estado, Governo e Mercado. Existem, porém, algumas atividades
que atualmente estão consagradas como exclusivas do poder

Módulo Básico
23
O Público e o Privado na Gestão Pública

público; outras em torno das quais não existe qualquer consenso; e


outras ainda que suscitam os mais vivos embates.

Você saberia listar algumas das atividades exclusivas do poder


público?

Pois bem, entre as ações consensualmente consideradas


como exclusivas do Estado, talvez você tenha mencionado as
atividades legislativas, judiciárias e das forças armadas e policiais.
Não seria imaginável que a elaboração de leis, que
determinarão as obrigações e delimitarão a esfera de liberdade de
todos, fosse conferida a mãos privadas. Por isso, a elaboração
legislativa é normalmente conferida a corpos coletivos em que se
encontram representados todos os interesses da sociedade, de tal
forma que as leis por eles produzidas venham representar a vontade
coletiva – ou, no mínimo, a vontade da maioria. Tampouco seria
admissível que a função de dirimir os conflitos entre as partes fosse
conferida a uma organização privada. Por isso, a atividade judiciária
é também conferida a tribunais, compostos por magistrados com
formação jurídica adequada e situados acima dos interesses das
partes, garantindo a imparcialidade.
Também não contestamos que a defesa das agressões
externas deva caber às forças armadas nacionais e que a segurança
e manutenção da ordem pública internas devam ser asseguradas
pelas forças policiais. Por fim, tampouco questionamos que a
representação dos interesses de um Estado no exterior deva ser
encargo de diplomatas profissionais, mas se por uma razão qualquer
um Estado não contar com representação diplomática própria em
outro país, é admitido que os seus interesses sejam representados
por terceiros. Mas a partir desses pontos, os consensos começarão
a desaparecer e as divergências, a emergir e se tornar mais claras.
A coleta de impostos é considerada, no Brasil, como uma
atividade eminentemente pública e executada por servidores
públicos. No entanto, na Argentina chegou-se a considerar a

24 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

possibilidade de terceirização do recolhimento de


Saiba mais Margaret Thatcher
impostos como forma de aumentar a arrecadação
para o Tesouro do País. No Brasil, o sistema Baronesa Thatcher, ex-

penitenciário é público e administrado por política britânica, nasci-


da em 1925. Foi primei-
servidores públicos, mas sob o governo da
ra-ministra de seu país,
primeira-ministra Margaret Thatcher, no Reino
de 1979 a 1990. Seus pos-
Unido, a administração penitenciária iria ser
tulados principais foram
privatizada por meio de licitações.
o liberalismo e o
Há ainda outras atividades que são monetarismo estritos. Conseguiu re-
consideradas de interesse público, mas que não duzir a inflação, mas diminuiu a pro-
devem ou necessitam ser providas exclusivamente dução industrial, gerando desempre-
pelo poder público. Entre essas, se encontra a go e a quebra de empresas e bancos.
maior parte dos serviços sociais, como os de Thatcher recusou a união social e po-
educação – já referidos nesta Unidade – e de lítica do Reino Unido com a Europa e
saúde, que são oferecidos tanto por instituições criou o imposto regressivo, o poll tax,
públicas como privadas. o qual sofreu uma violenta e vitoriosa

Nas sociedades capitalistas, considera-se que resistência popular e a levou a perder


o apoio de seu próprio partido. Fonte:
as atividades produtivas sejam, eminentemente,
<http://www.margaretthatcher.org />.
atribuição dos agentes privados. Em princípio, a
Acesso em: 06 jul. 2009.
decisão de produzir um determinado produto para
comercialização no mercado seria exclusiva de
quem se propusesse a produzi-lo e, como tal, independente do Estado,
assim como também seria privativa do consumidor a decisão de
adquirir ou não um determinado produto ofertado no mercado.
No entanto, considerações orientadas pelo interesse coletivo
acabariam levando o Estado a intervir também nessa esfera
tipicamente privada, acabando com a rígida delimitação das esferas
de atividade humana entre tipicamente públicas e tipicamente
privadas.
Durante o século XX, até mais ou menos a década de 1970,
a expansão da ação do Estado sobre áreas até então consideradas
privativas da sociedade civil seria notável. Essa intervenção do
Estado iria se dar fundamentalmente sob três formas:

 regulação pública de relações sociais até então


consideradas exclusivas da esfera privada;

Módulo Básico
25
O Público e o Privado na Gestão Pública

 prestação de serviços sociais; e


 produção de bens considerados essenciais ou de
interesse coletivo.

Vejamos, resumidamente, cada uma delas.


A r e g u l a ç ã o d a s r e l a ç õ e s d e t r a b a l h o entre
empregadores e empregados pelo Estado seria, possivelmente, a
intervenção do Estado que maior impacto causaria nas sociedades
ocidentais do início do século XX, até então culturalmente orientadas
pelo liberalismo, já estudado por você na disciplina Estado, governo
e mercado. Essa doutrina considerava que as relações econômicas,
entre as quais se encontram as relações de trabalho, situavam-se
no âmbito exclusivamente privado.
Com a organização do movimento operário e intensificação
da ação sindical e das lutas sociais na Europa, alimentadas pelas
ideologias socialistas e comunistas do século XIX, a rigidez liberal
gradualmente abriria espaço à intervenção do Estado, até o
estabelecimento do que se convencionaria chamar de Estado de
Bem-Estar Social. Após a grave crise econômica de 1929 e o período
de depressão que seguiria, os Estados passariam também a intervir
na regulação de outras esferas das atividades econômicas, de forma
a evitar outros períodos de crises econômicas e sociais tão
profundas.
Já a prestação de serviços sociais pelo Estado seria,
ainda, outro componente importante da agenda do Estado de Bem-
Estar Social. Até então, os serviços sociais, hoje considerados de
interesse público, como saúde, educação e assistência social, eram
prestados por organizações privadas, geralmente, por instituições
filantrópicas, confessionais ou laicas, com a notável exceção da
oferta de educação primária, já provida por escolas públicas desde
o século XIX. Ao longo do século XX, outros serviços sociais
passariam ainda a ser oferecidos pelo poder público, como
transporte, habitação e lazer.
A intervenção direta do Estado na produção de bens seria
outro componente importante do avanço da esfera pública sobre a

26 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

privada, sobretudo em sociedades da periferia do sistema capitalista,


que começaram a industrializar-se tardiamente, como o Brasil.
Partindo do pressuposto de que os capitais nacionais privados não
eram suficientes para os investimentos produtivos necessários à
industrialização do País, e sendo esta considerada um bem comum
e única via de desenvolvimento nacional, o Estado brasileiro passou
a atuar como produtor de bens em áreas consideradas estratégicas,
como siderurgia, mineração, produção de motores, de energia e de
combustíveis, além do financiamento das atividades produtivas
privadas. São exemplos disso a criação da(o):

 Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941;


 Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), em 1942;
 Fábrica Nacional de Motores (FNM), em 1943;
 Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em 1945;
 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDE), em 1952, posteriormente transformado em
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES); e
 Petrobras, em 1953.

Em tempos recentes, a participação do Estado na regulação


das relações sociais, prestação de serviços e produção de bens iria
refluir, no Brasil e no mundo, como tratado na disciplina Estado,
Governo e Mercado.
Para efeito desta disciplina, o importante é estarmos
conscientes de que a fronteira entre o público e o privado é sempre
flexível, mutável no tempo e no espaço, de acordo com o que uma
determinada coletividade nacional julga ser de interesse coletivo,
ou não. Conforme Rousseau (1987, p. 50) sintetizaria, no Contrato
Social, a questão dos limites entre o público e o privado: “[...]
perguntar até onde se estendem os direitos respectivos do soberano e
dos cidadãos é perguntar até que ponto estes podem comprometer-se
consigo mesmos, cada um perante todos e todos perante cada um”.

Módulo Básico
27
O Público e o Privado na Gestão Pública

AS PRERROGATIVAS DO PODER PÚBLICO


SOBRE OS AGENTES PRIVADOS

Vimos, no tópico anterior, que as instituições públicas gozam


de diversas prerrogativas em relação aos agentes privados, que
derivam logicamente da assimetria existente entre Estado e
sociedade civil. De acordo com o Direito Constitucional, existe toda
uma hierarquia de prerrogativas, que, exercidas pelos agentes
legalmente incumbidos, vão do poder soberano, que tudo pode, ao
poder limitado em diferentes graus.
O exercício do poder soberano ocorre em momentos muito
específicos, geralmente em períodos de elaboração constitucional,
quando são definidas as regras básicas que irão reger
permanentemente as relações entre os agentes privados entre si e
entre estes e o Estado em uma determinada sociedade. Uma vez
elaborada e aprovada a constituição de um país, a amplitude da
capacidade de mudar aquela relação passa a ser reduzida.
No exercício do poder soberano, os constituintes brasileiros
que elaboraram a Constituição de 1988 previram alguns
mecanismos para a alteração das relações entre Estado e sociedade.
No Ato das Disposições Transitórias, a Constituição de 1988
determinaria a realização de um plebiscito para que os eleitores
pudessem decidir sobre a forma de Estado e de governo sob a qual
desejariam viver: República ou Monarquia; presidencialismo ou
parlamentarismo. Em 1993, na data prevista pela Constituição, a
maioria dos brasileiros acabaria se manifestando pela manutenção
da República e do regime presidencial vigentes no País.

28 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

No entanto, nos regimes democráticos contemporâneos,


como o brasileiro, decisões por participação popular direta têm mais
valor simbólico do que importância e poder efetivos.
Constitucionalmente, plebiscitos e referendos são mecanismos
concebidos para a população decidir diretamente sobre questões
bem específicas e previamente delegadas pelo parlamento ao
eleitorado, sejam elas de ordem propriamente constitucional – como
o plebiscito sobre a forma de Estado e de governo, realizado em
1993 – ou simplesmente de ordem legal – como o referendo sobre a
Lei do Desarmamento, realizado em 2005.
Na verdade, tão ou mais importante e frequentes que os
mecanismos de democracia direta para alterar as relações entre
público e privado são as Emendas Constitucionais. Por meio delas,
os representantes do povo no Congresso Nacional podem quase
tudo, exceto pretender abolir:

 a forma federativa de Estado;


 o voto direito, secreto, universal e periódico;
 a separação dos Poderes; e
 os direitos e garantias individuais.

As Propostas de Emenda Constitucional (PECs) podem ser


aprovadas por maioria qualificada, isto é, de 3/5 dos deputados
federais e 3/5 dos senadores, em votações realizadas em dois turnos
em cada uma das casas do Congresso Nacional. Para a elaboração
e alteração das Leis Complementares, previstas pela Constituição,
é requerida a aprovação da maioria absoluta dos representantes
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ou seja, 50% mais
um de todos os seus membros. Já a aprovação de Leis Ordinárias
requer apenas maioria simples, quer dizer, de 50% mais um dos
presentes, em cada casa, nas sessões com quórum (50% mais um
de todos os representantes).
Aqui é importante destacarmos que nos regimes
democráticos, as mudanças que alteram fundamentalmente as
relações entre público e privado – aquelas que criam obrigações
para os cidadãos – são incumbência exclusiva do Poder Legislativo.

Módulo Básico
29
O Público e o Privado na Gestão Pública

Este pode restituir ao povo que elegeu os seus membros a


*Prebiscito – manifesta- prerrogativa de decidi-las diretamente, por meio de plebiscitos*
ção da vontade popular, ou referendos*, mas não poderá delegá-la ao Poder Executivo.
ou da opinião do povo,
Em nenhuma hipótese, os agentes do governo podem impor
expressa por meio de vo-
tação, acerca de assunto obrigações e restrições aos cidadãos que já não estejam previstas
de grande interesse polí- em lei. Excetuando as decisões direitas pelo voto popular – que é o
tico ou social. Fonte: poder legislativo originário – que se dão sempre por maioria simples,
Houaiss (2007).
as decisões tomadas pelas instituições legislativas requerem maiorias
*Referendo – manifesta- diferenciadas conforme o seu grau de importância, como detalhado
ção de um grupo mais ou
no parágrafo anterior.
menos considerável de
pessoas, por meio de vo- As prerrogativas de criar normas infralegais – aquelas que
tação, sobre questão derivam das leis existentes e não criam novas obrigações para os
submetida à sua opinião. particulares – são do Poder Executivo. O presidente da República,
Fonte: Houaiss (2007).
os governadores de Estado e os prefeitos municipais têm o poder
de emitir Decretos, regulamentando as disposições legais. Os
Conselhos, criados por Lei, podem normatizar por Resolução. E os
ministros e secretários de Estado, por sua vez, podem exercer seu
poder normativo com efeitos externos, isto é, sobre a sociedade,
por meio de Portarias. Até o fim da linha hierárquica, o servidor
público, na qualidade de agente do Estado, irá exercer um conjunto
de poderes com efeitos sociais, que serão objeto de análise
detalhada ainda nesta Unidade.
Ao Estado são ainda garantidas certas prerrogativas mesmo
quando estabelece contratos com os agentes privados – embora
conceptualmente um contrato seja uma relação estabelecida entre
iguais. O Estado pode, por exemplo, alterar ou rescindir
unilateralmente os seus contratos, se assim requerer o interesse
público. Em contrapartida, o poder público fica obrigado a
compensar o agente privado pelo prejuízo que a alteração contratual
imposta vier a lhe causar, resguardado o equilíbrio financeiro da
parte contratada.

O Estado pode agir unilateralmente porque ele –


somente ele – age no interesse público, atuando os
demais agentes privados – lícita e legalmente – na
defesa dos seus interesses privados.

30 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

Por essa razão, os contratos celebrados pelo Estado com os


particulares são regidos pelo Direito Administrativo. Na sociedade
civil, os contratos estabelecidos entre partes juridicamente iguais
são regidos pelo Direito Civil e só podem ser alterados mediante a
vontade expressa de ambas as partes contratantes. E não poderia
ser diferente. Como cada qual defende, legitimamente, seus interesses
privados, nenhum contrato pode ser alterado ou rescindido
unilateralmente.
O Estado tem ainda a prerrogativa de interferir num dos
direitos mais caros às sociedades liberais e capitalistas, que é o
direito à propriedade. O Estado pode, sem cometer qualquer
arbitrariedade, operar a transferência compulsória de um bem de
um indivíduo ou de uma empresa particular para o domínio público,
em caráter temporário ou permanente, conforme o caso, sempre
que houver um motivo de interesse público legalmente sustentado.
Essa intervenção do poder público na propriedade privada é imposta
de forma discricionária, mas sempre com ônus para o Estado, que
deve indenizar a pessoa – física ou jurídica – que tiver o seu
patrimônio expropriado.
A lei faculta ao Estado desapropriar um particular quando
houver:

 Necessidade pública, isto é, quando a Administração


Pública se defrontar com situações de emergência que,
para serem satisfatoriamente resolvidas, exigem a
transferência urgente de bens de terceiros para o seu
domínio e uso imediatos.
 Utilidade pública, quando a transferência de bens
de terceiros para a Administração for conveniente,
embora não imprescindível, como no caso de
expropriação de terras, urbanas ou rurais, para a
construção de vias públicas.
 Interesse social, quando as circunstâncias impuserem
a distribuição ou o condicionamento da propriedade
para o seu melhor aproveitamento, utilização ou
produtividade em benefício da coletividade ou de

Módulo Básico
31
O Público e o Privado na Gestão Pública

categorias sociais que forem objeto do amparo


específico do poder público, como nos casos de reforma
agrária.

Como podemos observar, as prerrogativas do Estado são


muitas, mas todas exercidas dentro da estrita legalidade e sempre
em benefício público. Em caso contrário, não caberia falar de
prerrogativas, mas de arbítrio, que seria o abuso do poder público.
Além disso, na arquitetura institucional dos Estados democráticos
contemporâneos não se encontram previstas apenas prerrogativas
para a ação do Estado, mas também deveres para este e direitos
para o cidadão. É dentro dessa perspectiva que são concebidos os
serviços públicos. Observe, no Quadro 3, uma das possíveis formas
de classificarmos os serviços públicos.

CRITÉRIO TIPO DESCRIÇÃO EXEMPLOS


T ipicamente Imprescindíveis à soci- Polícia e
público edade e que não são defesa nacional
Quanto ao passíveis de delegação
prestador Essenciais, mas passí-
De interesse Transportes e comu-
público veis de delegação a ter- nicações
ceiros
Geral ou uni- Não passíveis de apro- Iluminação e pavi-
Quanto ao versal priação individual mentação públicas
usuário
Particular ou Passíveis de apropria- Atenção à saúde e
individual ção individual seguro-desemprego

Quadro 3: Classificação dos serviços públicos


Fonte: Elaborado pelo autor

Em um Estado de Direito, os serviços prestados pela


Administração Pública decorrem das funções constitucionais e legais
do poder público, não sendo nunca serviços voluntariamente
ofertados por decisão autocrática dos governantes ou por iniciativa
dos funcionários do Estado. Na verdade, a prestação voluntária de
serviços é proibida na Administração Pública e aos servidores
públicos, a não ser nos casos previstos por lei, e restrita à esfera
privada.

32 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

É norma do Direito Público, derivada da assimetria


entre Estado e sociedade civil, que ao Estado só cabe
fazer aquilo que a lei mandar, ou expressamente
autorizar. Portanto, somente à lei caberá determinar
quais serviços serão prestados e quem terá ou não
acesso a eles. Assim, o princípio contemporâneo de
cidadania determina que qualquer serviço oferecido pelo
Estado – seja ele gratuito ou pago – deva ser
conscientemente executado pelo prestador como um dever
e usufruído e percebido pelo usuário como um direito.

Nas sociedades com pouca experiência democrática – e,


consequentemente, limitada cultura de cidadania – confunde-se,
com frequência, gratuidade com caridade ou filantropia, assim como
serviços públicos com serviços gratuitos e serviços pagos com
serviços privados. Essas noções não só são equivocadas como são
conflitantes com o conceito de cidadania e o seu desenvolvimento
na cultura política de uma sociedade, pois tanto o setor privado
pode oferecer serviços gratuitos, sem que isso os torne serviços
públicos, quanto o setor público cobrar pelos serviços que oferece,
sem que isso faça deles serviços privados. Por isso é necessário
esclarecer devidamente essas diferenças.
O funcionamento dos serviços privados e pagos é o mais
facilmente compreensível: são pagos por quem deles usufrui para
aqueles que os prestam – e que arcam com os seus custos
operacionais. Assim funcionam os consultórios médicos particulares,
em que o paciente paga ao médico; as escolas privadas que não
recebem nenhum subsídio, em que os pais dos alunos pagam pela
educação que os seus filhos recebem; todas as empresas privadas de
prestação de serviços, em que o cliente paga ao fornecedor.
Já o funcionamento dos serviços gratuitos não é tão fácil de
ser compreendido, pois nem sempre fica claro para o usuário quem
arca com os seus custos operacionais: se o Estado por meio de
impostos, como no caso do fornecimento de título de eleitor; se o

Módulo Básico
33
O Público e o Privado na Gestão Pública

setor privado, como no caso dos serviços assistenciais prestados


por instituições particulares de caridade; se ambos, como é o caso
de diversas Organizações Não Governamentais (ONGs), que
recebem dinheiro tanto do Estado quanto do setor privado para
custear os seus serviços; ou ainda, se por uma composição de
recursos advindos do Tesouro e de contribuições sociais, como os
que compõem o orçamento da Seguridade Social, que é uma das
fontes de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Existem ainda serviços que são parcialmente pagos pelo
usuário e oferecidos pelo setor público, que arca com os demais
custos não cobertos pelas taxas cobradas, como os exames
vestibulares e as matrículas nas universidades públicas. E existem
também serviços públicos inteiramente pagos, como os de inspeção
feitos pelas diferentes agências reguladoras nas empresas e
instituições reguladas pelo Estado.

Então, podemos afirmar que não existe qualquer relação entre


gratuidade e serviços públicos?

Se respondeu que sim, acertou, pois temos serviços privados


que podem ser gratuitos e serviços públicos que podem ser pagos.
Logo, o que faz com que o poder público decida oferecer um
determinado serviço gratuitamente é a conveniência do poder
público ou a necessidade social. Por exemplo, é conveniente ao
Estado oferecer gratuitamente iluminação pública, já que seria
praticamente impossível cobrar com justiça dos usuários a
iluminação que beneficia a cada um. O mesmo vale para os serviços
Conheça o ProUni
de segurança pública e defesa de fronteiras. Já como bom exemplo

v
através do site <http://
prouni- de gratuidade por necessidade social figura o Programa
inscricao.mec.gov.br/ Universidade para Todos (ProUni), do Ministério da Educação. Aos
inscricao/>. Acesso em: estudantes cuja renda familiar per capita fique abaixo de uma
10 ago. 2009.
determinada quantia, considerada insuficiente para arcar com os
custos de uma mensalidade em um curso superior oferecido por
instituições privadas, são oferecidas bolsas de estudo integrais –

34 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

portanto, há gratuidade –; e aos que têm renda em um determinado


patamar que lhes permita arcar com parte dos custos das
mensalidades, são oferecidas bolsas parciais.
A distinção entre o público e o privado, a delimitação da
fronteira entre uma e outra esfera e a extensão dos poderes e das
prerrogativas do poder público sobre os agentes privados são
derivadas da contradição existente entre interesse privado e interesse
público nas sociedades contemporâneas. Se esses interesses fossem
coincidentes, como foram na Pré-História da humanidade, e ainda
são em algumas sociedades tribais existentes pelo mundo, inclusive
no Brasil, não haveria Estado, Administração Pública, Direito
Público nem Direito Privado.

Até aqui, examinamos as complexas relações que se


estabelecem entre público e privado nas sociedades capitalistas
contemporâneas. A partir de agora, para aprofundar o
conhecimento do funcionamento da esfera pública, faz-se
necessário analisarmos em detalhes a relação que se estabelece
no interior do Estado entre poder público e servidor público.
Vamos lá?

Módulo Básico
35
O Público e o Privado na Gestão Pública

O ESTADO E O SERVIDOR PÚBLICO

A relação que o Estado estabelece com os seus servidores –


seja na esfera federal, estadual ou municipal – é de natureza
inteiramente distinta da relação que se estabelece entre
empregadores e empregados no setor privado. Para o gestor público,
conhecer essa especificidade é fundamental, e a melhor maneira
de explicitá-la é contrastando as relações de trabalho na esfera
pública com as da esfera privada. Como vimos ao comparar as
instituições públicas com as organizações privadas, nestas, o
empregador – que tanto pode ser um indivíduo, quanto uma
empresa capitalista ou uma associação sem fins lucrativos –
estabelecerá autonomamente os fins que irá perseguir, e para pôr
sua organização em funcionamento, contratará livremente no
mercado de trabalho os indivíduos que bem entender, atribuindo-
lhes as funções que lhe aprouver. Respeitados os limites impostos
pela lei, empregados e empregadores encontram-se na plenitude
do exercício da sua liberdade negativa.

Agora para compreendermos melhor a amplitude da liberdade


negativa exercida pelos agentes privados e, por oposição, os
limites impostos ao Estado na gestão das suas instituições e
no trato com os seus servidores, imaginemos uma situação no
limite do absurdo.

36 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

Suponha que um empresário qualquer decida lançar no


mercado um novo produto, como água de torneira engarrafada. Se
observar e cumprir as normas estabelecidas pelos poderes públicos
competentes, como as da Agência de Vigilância Sanitária e da
Secretaria Estadual de Saúde, esse empresário poderá, legítima e
legalmente, lançar-se no seu empreendimento. Para tanto, ele poderá
contratar quem quiser. Desde que respeite as determinações da
legislação trabalhista, esse empresário poderá, se quiser, empregar
apenas mulheres negras, idosas e portadoras de deficiência física,
não necessitando justificar esse critério perante ninguém, por se
tratar de uma ação afirmativa que não contraria a lei. Poderá ainda
organizar a produção e comercialização do seu produto da forma
que julgar mais conveniente, criando um departamento comercial
voltado para o mercado da região do semiárido nordestino e outro
departamento de exportação voltado para os países do Saara. Se
nesses mercados o empresário imaginário encontrar compradores
para o seu produto, auferirá lucros, sendo o seu empreendimento
revestido de pleno sucesso. Se após algum tempo, ele quiser se
desfazer do seu empreendimento e mudar de ramo de atividades,
ninguém poderá impedi-lo. E se ao contrário, após ter acumulado
prejuízos e dilapidado o seu patrimônio pessoal, resolver encerrar
o empreendimento, poderá fazê-lo livremente, demitindo todos os
seus empregados mediante o pagamento do que a lei exigir.

Você pode estar se perguntando: o que queremos enfatizar com


este exemplo?

Sobretudo que a liberdade de empreendimento, de


contratação e de demissão de empregados desse empresário
imaginário é uma prerrogativa exclusiva do setor privado e
inexistente no setor público. Tipicamente, no setor privado,
empregadores e empregados estabelecem entre si relações
contratuais no pleno exercício de sua liberdade negativa. No setor
público, a relação que se estabelece entre Estado e servidor é a de

Módulo Básico
37
O Público e o Privado na Gestão Pública

representação, não sendo o servidor outra coisa senão agente do


poder público.

Neste ponto, você irá provavelmente perguntar: o que quer


dizer servidor como representante do Estado e agente do poder
público?

São agentes do poder público todas aquelas pessoas físicas


incumbidas de exercer as funções administrativas que cabem ao
Estado e que ocupam cargos ou funções na Administração Pública.

E o que vêm a ser cargos?

Os cargos ou funções pertencem ao Estado, e não aos agentes


que os exercem, razão pela qual o Estado pode, discricionariamente,
suprimi-los ou alterá-los. Os cargos são os lugares criados por lei
na estrutura da Administração Pública para serem providos por
agentes, que exercerão suas funções na forma da lei. É o cargo que
integra o órgão, enquanto o agente, como pessoa física, o ocupa
na condição de titular. A função é o encargo legalmente atribuído
aos órgãos, cargos e seus agentes.
Por tanto, órgãos, cargos e funções, existentes na
Administração Pública, são criações legais que se encarnam nos
agentes, que são pessoas físicas. Na estruturação do serviço público,
o Estado cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz
provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens, e
delimita deveres e direitos para os servidores:

Cargo público é o lugar instituído na organização do servi-


ço público, com denominação própria, atribuições e res-
ponsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para
ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida
em lei. Função é a atribuição ou o conjunto de atribuições

38 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

que a administração confere a cada categoria profissional


ou comete individualmente a determinados servidores para
a execução de serviços eventuais [...].

Os cargos são apenas os lugares criados no órgão para serem


providos por agentes que exercerão as suas funções na forma legal.
O cargo é lotado no órgão e o agente é investido no cargo. Por aí,
se vê que o cargo integra o órgão, ao passo que o agente, como ser
humano, unicamente titulariza o cargo para servir ao órgão. Órgão,
função e cargo são criações abstratas da lei; agente é a pessoa
humana, real, que infunde vida, vontade e ação a essas abstrações
legais (MEIRELLES, 2008).
Assim como na Administração Privada, aos diferentes cargos
são atribuídas diferentes funções, e o acesso a esses cargos se dá
por diferentes formas de investidura. Estas derivam da natureza
distinta das funções públicas a serem exercidas por cada agente.
A investidura política dá-se por eleição. No Brasil, esta é a
forma de investidura para todos os cargos políticos no Poder
Legislativo, ou seja, para os cargos de representação popular, e
não para os postos administrativos, e para os mais altos cargos do
Poder Executivo em suas diferentes esferas – federal, estadual e
municipal. Nas democracias, os cargos de maior poder têm essa
forma de investidura, que pode ser por eleição direta ou indireta.
No Brasil, a partir da vigência da Constituição de 1988, todas as
eleições passaram a ser diretas, isto é, os cidadãos escolhem
diretamente, através do voto, os ocupantes dos cargos de presidente,
governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual
ou distrital e vereador, cujos mandatos são temporários e
rigidamente determinados.
No entanto, existem democracias em que o acesso a alguns
cargos ocorre por eleição indireta, ou seja, por intermédio de um
colégio eleitoral no qual os eleitores não são os cidadãos, mas seus
representantes, como nas eleições para o Senado na França e a
escolha dos primeiros-ministros nos regimes parlamentaristas. Em
outras democracias, há ainda alguns cargos de senador vitalício,
como na Itália, no Chile e no Peru.

Módulo Básico
39
O Público e o Privado na Gestão Pública

Aos agentes políticos do Poder Executivo cabe,


legitimamente, a definição das diretrizes e das políticas de governo
a serem observadas por toda a Administração Pública. Os agentes
eleitos, assim como os agentes por eles nomeados nos primeiro e
segundo escalões da Administração Pública, estão democrática e
legitimamente investidos do poder de reorientar a ação do poder
público para a direção que lhes aprouver, respeitados os limites
das leis e da Constituição. Aos escalões inferiores da Administração,
cabe a observância das diretrizes e orientações de governo, não
devendo opor resistência a estas orientações.

Como cidadão, o funcionário público, em qualquer


nível, pode votar em quem bem entender nas eleições,
mas, na condição de agente do poder público, ele
deverá cumprir com exação as determinações
superiores, sempre – é claro – que essas forem legais.

A maioria dos agentes, investida pelas demais formas, não


tem seu exercício nos cargos delimitado temporalmente, sendo a
forma mais comum de investidura originária o concurso público.
Os agentes assim investidos, após o cumprimento e aprovação no
estágio probatório, tornam-se agentes efetivos, adquirindo
estabilidade no serviço público. Vulgarmente considerada como um
privilégio do serviço público, já que inexistente no setor privado, a
estabilidade é, na verdade, uma forma de proteção do servidor de
possíveis pressões de governantes temporários e de compensação
de alguns deveres e restrições que recaem exclusivamente sobre os
servidores públicos, e não sobre os empregados do setor privado.
Além de estabilidade, a investidura em alguns cargos é
vitalícia, como nos casos de juízes, promotores e procuradores. Mais
uma vez, não se trata aqui de privilégio, mas de garantia de
independência dos ocupantes dessas funções de pressões oriundas

40 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

dos agentes políticos, que poderiam comprometer a imparcialidade


com que devem desempenhar suas funções.
Existe ainda a investidura por comissão, que é sempre de
natureza transitória, para provimento de cargos de direção, chefia
e assessoramento. Os agentes investidos em cargo em comissão
podem ser exonerados a qualquer momento, já que são cargos de
livre nomeação e da confiança dos agentes públicos
hierarquicamente superiores.
Diferentemente do setor privado, em que os cargos são
criados e as funções definidas discricionariamente pelo empregador,
assim como a admissão e demissão dos indivíduos se dá em bases
estritamente contratuais, no setor público, os cargos e suas formas
de investidura serão sempre criteriosamente determinados por lei
tendo em vista resguardar o interesse público.
Outra grande diferença entre os cargos no setor público e os
empregos na iniciativa privada é que o Estado confere aos seus
servidores efetivos uma série de garantias inexistentes no mercado
– como a estabilidade e a irredutibilidade dos vencimentos. Apesar
dessas garantias, o poder público se reserva algumas prerrogativas,
sem as quais não poderia ajustar a Administração Pública às
mudanças da sociedade e dos interesses coletivos ao longo do tempo.
Por exemplo, se por um lado o Estado não pode demitir um
servidor estável, por outro pode transformar ou extinguir o cargo
em que ele se encontra investido. No caso de extinção, o servidor
será posto em disponibilidade, recebendo remuneração proporcional
ao seu tempo de serviço, sem trabalhar, até que a Administração o
reaproveite em outro cargo.
Na reforma do Estado, iniciada em 1995, no plano federal,
uma série de cargos foi extinta da estrutura administrativa, passando
os seus agentes efetivos a ocupar cargos em extinção, sem
perspectivas de ascensão funcional e salarial. Naquele momento,
os mentores da reforma administrativa julgaram que os cargos
extintos – como os de motoristas, ascensoristas, estatísticos,
arquitetos e tantos outros – não eram típicos de Estado, não
devendo, por isso, mais existirem enquanto cargos públicos.

Módulo Básico
41
O Público e o Privado na Gestão Pública

Essa decisão discricionária não foi, entretanto, arbitrária, posto que


aprovada pelo Poder Legislativo por meio de Emenda à Constituição.
Em outros casos menos drásticos, os servidores podem ainda
ser transferidos ex officio – isto é, compulsoriamente, no interesse
da Administração Pública, de uma localidade para outra – ou ter
sua lotação transferida de um órgão público para outro, se assim
for do interesse da Administração.
Embora o serviço público e o emprego privado sejam de
naturezas inteiramente distintas, como demonstrado até aqui, os
direitos e benefícios usufruídos pelos servidores públicos e pelos
empregados no setor privado passariam, com o tempo, a ser cada
vez mais convergentes.
Vejamos algumas situações para ilustrar isso.

 Há algumas décadas, apenas os empregados do setor


privado tinham direito a receber um 13º salário anual.
Atualmente, benefício equivalente é concedido aos
servidores públicos federais sob o nome de gratificação
natalina.
 Até bem pouco tempo atrás, os servidores públicos
estáveis da União podiam incorporar permanentemente,
e em cascata, aos seus vencimentos a remuneração
auferida por terem ocupado cargos em comissão por
um determinado tempo, privilégio desconhecido no
setor privado e excluído, em 1997, da lei que dispõe
sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis
da União.

Apesar dessas convergências, para uns e outros seguem


existindo ordenamentos jurídicos distintos: o Regime Jurídico Único
(RJU), para os servidores da União, e uma série de outros regimes
jurídicos, não regidos por contrato, que dispõe sobre as relações dos
Estados e dos municípios com os seus servidores titulares de cargos
públicos; e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para os
trabalhadores do setor privado e ocupantes de empregos públicos. Vamos
examinar algumas das principais diferenças entre o RJU e a CLT.

42 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

A Constituição e o RJU garantem ao servidor federal que tenha


passado pelo período de estágio probatório estabilidade na função
pública, obrigando-o a ela se dedicar integralmente e lhe impondo
limites de remuneração. Por outro lado, a CLT não garante estabilidade
ao trabalhador no emprego, mas lhe assegura um Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS), alimentado por contribuição patronal
e a ser sacado pelo trabalhador no momento da sua aposentadoria,
em caso de demissão sem justa causa e em alguns outros casos
especiais previstos em lei, e não lhe impõe limites de remuneração.
Sobre a adequação e justiça das diferenças entre o RJU e a
CLT, não existe qualquer consenso, sendo elas frequentemente
questionadas pelos mais variados segmentos da sociedade:
imprensa, associações profissionais, sindicatos patronais, de
trabalhadores e servidores e pelos sucessivos governos.
Independentemente das divergências, o que importa aqui precisar
é que diferenças jurídicas, conceituais e funcionalmente sustentadas
não devem ser confundidas com privilégios. Estes podem e devem
ser combatidos e eliminados, uma vez que conflitam com o princípio
básico e fundamental de uma República, que é o da igualdade entre
os seus cidadãos. Já as diferenças de direitos justificam-se
plenamente, sem contradizer os princípios republicanos, sempre e
quando forem embasadas em diferenças funcionais, legal e
legitimamente estabelecidas pelo poder público, porque consideradas
necessárias à defesa e consecução do interesse público.

Não fosse assim, não haveria qualquer sentido em delimitar


conceitual e legalmente os espaços e os limites entre o público
e o privado, como foi feito ao longo desta Unidade.

Complementando......
Amplie seus conhecimentos sobre o Estado burocrático através da obra
indicada a seguir:

Economia e sociedade – de Max Weber. v. 1. 3. ed. Brasília: UnB,


1994, p. 142-147.

Módulo Básico
43
O Público e o Privado na Gestão Pública

Resumindo
Nesta unidade, você estudou uma série de temas que
dizem respeito às relações entre público e privado na admi-
nistração pública e que são fundamentais para a sua forma-
ção de especialista em Gestão Pública.
Ao final desta unidade, você deve:

 ter uma visão mais clara e articulada sobre as rela-


ções complexas que se estabelecem entre o se-
tor público e o setor privado nas sociedades de-
mocráticas contemporâneas, em geral, e no Bra-
sil, em particular;

 ser capaz de diferenciar organizações de instituições;


 compreender por que o público tem primazia so-
bre o privado;

 conhecer as prerrogativas do Estado sobre os agen-


tes privados;

 entender o papel do servidor público como agen-


te do Estado e conhecer as suas diferentes for-
mas de investidura; e

 ser capaz de identificar e compreender as diferen-


ças existentes entre as relações entre Estado e ser-
vidor público e empregadores e empregados.
Se você tem clareza sobre essas questões, então já
está capacitado para iniciar o estudo da próxima unidade.
Mas se você ainda tem dúvidas a respeito de alguns desses
temas, deve procurar esclarecê-las com o seu tutor antes de
avançar no estudo desta disciplina.

44 Especialização em Gestão Pública


Unidade 1 – Esfera Pública e Esfera Privada no Mundo Contemporâneo

Atividades de aprendizagem
Acabamos de tratar de assuntos ligados à esfera pública e
privada. Você ficou com alguma dúvida? Caso tenha ficado,
retorne ao texto e reveja o que ainda não está claro. Lembre-
se que você não está sozinho nessa caminhada. Se precisar,
nos procure!

1. Identifique três diferenças entre:


a) setor público e setor privado;
b) patrões e empregados; e
c) Estado e servidores públicos.
2. Explique as razões das diferenças encontradas no item anterior.

Módulo Básico
45
UNIDADE 2
OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E SUAS RELAÇÕES
COM O S ETOR PRIVADO

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao finalizar esta Unidade, você deverá ser capaz de:
 Conhecer e compreender os cinco princípios constitucionais que
regem a Administração Pública;
 Entender as relações entre poderes e deveres do servidor
público;
 Diferenciar os contratos que o setor público estabelece com
agentes privados dos contratos celebrados entre particulares; e
 Compreender as mudanças operadas nas relações entre público
e privado e os desafios colocados à Administração Pública com a
emergência do terceiro setor.
O Público e o Privado na Gestão Pública

48 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

INTRODUÇÃO

Em economias de mercado, o Estado não age sozinho, mas


frequentemente associado ao setor privado. Essa associação se faz
sob a forma de contratos. No entanto, os contratos que o Estado
estabelece com os agentes privados não são contratos entre partes
iguais – como os estabelecidos entre dois agentes privados e regidos
pelo Direito Comercial –, mas entre entes assimétricos e, por essa
razão, são regidos pelo Direito Administrativo e chamados de
contratos administrativos.
Como visto na Unidade anterior, as relações do poder público
com os indivíduos e organizações de particulares são disciplinadas
pelo Direito Constitucional e pelo Direito Administrativo, cuja
função é a de garantir que o Estado venha a estabelecer relações
justas, racionais e equitativas com os mais diferentes agentes com
que entra cotidianamente em interação no exercício das suas
funções. Para assegurar a coerência da ação do Estado, exercida
por uma pluralidade de instituições estatais – que desempenham
funções específicas e interagem com os mais diversos públicos – é
que o Direito iria estabelecer alguns princípios básicos para orientar
todos os atos da Administração Pública em todas e quaisquer
circunstâncias.

Módulo Básico
49
O Público e o Privado na Gestão Pública

OS CINCO PRINCÍPIOS ORIENTADORES


DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Os princípios que regem a Administração Pública brasileira,


em todas as suas esferas, encontram-se consagrados pelo Direito
Público em quase todo o mundo. São eles a:

 legalidade;
 impessoalidade;
 moralidade; e
 publicidade.
Em 1998, por meio da Emenda Constitucional n. 19, iria ser
acrescentado à Constituição brasileira mais um princípio:

 eficiência.

Pois o princípio da eficiênica não se encontra consagrado


no mundo todo.

Vamos examinar como a observância desses cinco princípios


condiciona as ações dos servidores públicos no interior da
Administração Pública?

O princípio da legalidade é o que estabelece a supremacia


da lei escrita, condição sem a qual não poderia existir o Estado
Democrático de Direito. O objetivo principal desse princípio é evitar
o arbítrio dos governantes. Como já vimos, o Estado concentra um

50 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

enorme poder nas mãos dos governantes


Saiba mais Jean Jacques Rousseau (1712–1778)
e de seus funcionários, e não fosse o claro
estabelecimento desse princípio Sua proposta tem interesse tan-

constitucional, certamente o poder to pedagógico quanto político e,


nesse sentido, propunha tanto
exercido pela Administração Pública
uma “pedagogia da política”
sobre os cidadãos seria exorbitante. De
quanto uma “política da peda-
acordo com o princípio da legalidade,
gogia”. Um dos instrumentos es-
toda ação estatal deverá,
senciais de sua pedagogia é o da educação na-
necessariamente, estar respaldada em lei,
tural: voltar a unir natureza e humanidade. A
e esta, por sua vez, tem de estar ancorada família, vista como um reflexo do Estado, é ou-
no texto constitucional. Além disso, a tro dos elementos centrais de sua pedagogia.
garantia de legalidade na ação do poder Entre suas obras destacam-se: Discurso sobre a
público depende ainda da qualidade das origem da desigualdade entre os homens; Do contra-
leis, que devem ser elaboradas de acordo to social, e Emílio ou Da Educação (1762). Fonte:
com as normas e técnicas legislativas < h t t p : / / w w w. c e n t r o r e f e d u c a c i o n a l . c o m . b r /
consagradas pelo Direito. rousseau.html>. Acesso em: 10 ago. 2009.

No Direito Positivo, que é o direito


de origem romana, vigente no Brasil, toda lei é escrita, porém nem
tudo que está escrito e imposto pelo Estado configura uma lei. Para
que um ordenamento escrito seja uma lei, ele deverá apresentar as
seguintes características: a autoaplicabilidade, a generalidade, a
abstração e o caráter coercitivo.

A autoaplicabilidade, a generalidade, a abstração e o


caráter coercitivo são características indispensáveis
das leis.

A autoaplicabilidade significa que a lei não necessita de nenhum


outro ato para ser aplicada, excetuando aqueles casos expressamente
previstos no seu texto, como são os das leis que preveem a edição de
decretos para a sua regulamentação antes de entrarem em vigor.
Quanto à generalidade, Rousseau iria argumentar de forma
irrefutável, no Livro do Contrato Social, que a lei é sempre um ato
geral, não podendo jamais incidir sobre um objeto particular. Assim

Módulo Básico
51
O Público e o Privado na Gestão Pública

sendo, uma lei pode incidir sobre uma categoria de indivíduos, de


mercadorias ou de entidades públicas, como os municípios ou as
fundações públicas, mas deve ser sempre genérica, não podendo
nunca apontar o indivíduo X, o fabricante Y de uma determinada
mercadoria, ou o município Z como o seu objeto.
Paralelamente à generalidade, a lei também deve ser sempre
abstrata, não tratando jamais de casos
concretos. O caráter abstrato da lei é aquele
Saiba mais Thomas Hobbes (1588–1679)
que designa uma qualidade separada do objeto
Nascido na Inglaterra. Descobriu os “Ele- que a possui. Por exemplo, a lei, na sua função
mentos”, de Euclides, e a geometria, que reguladora, pode estabelecer modelos e padrões
o ajudaram a clarear suas ideias sobre a de condutas para os administradores públicos
filosofia. Com a ideia de que a causa de
ou para os condutores de veículos no trânsito,
tudo está na diversidade do
mas não descreverá nenhum caso concreto de
movimento, escreveu seu pri-
conduta.
meiro livro filosófico, Uma
Por fim, o caráter coercitivo é o que torna
Curta Abordagem a Respeito dos
Primeiros Princípios. Em 1651,
a aplicação da lei compulsória sobre o objeto
publicou sua obra-prima, o Leviatã. Fon- da legislação. Por isso, uma lei difere de uma
te: <http://educacao.uol.com.br/biografi- recomendação, que pode ou não ser aceita.
as/ult1789u395.jhtm>. Acesso em: 24 jul. A lei deve sempre ser acatada, ficando os
2009. infratores submetidos às sanções
correspondentes. A este propósito, Hobbes, no
Leviatã, iria escrever de forma lapidar que as convenções humanas
sem a força da espada não passam de palavras (“covenants, without
the sword, are but words”).
Como as leis estão destinadas a regular um universo
extremamente amplo de situações ao longo do tempo, isto é, aquelas
nas quais pareça ao Poder Público necessário a sua intervenção, a
produção legislativa deverá levar sempre em conta a necessidade
de manutenção da coerência e harmonia no texto legal.
Internamente, as leis não devem apresentar contradições lógicas,
nem incongruências, quanto aos seus princípios e objetivos; e
externamente, elas devem guardar conformidade com a Constituição
e com as demais leis vigentes.

52 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Para que o Estado e seus servidores não abusem do poder


com que estão investidos, o princípio da legalidade requer ainda
precisão e clareza na redação da lei, evitando formulações confusas
e obscuras, de forma a permitir que qualquer pessoa identifique,
sem dificuldade, o conteúdo, o sentido e as implicações da lei a
que se encontra submetida. Além disso, subjacente e
complementarmente ao princípio da legalidade, existem o princípio
da necessidade e o requisito de um fundamento objetivo para a
criação de leis. Isso quer dizer que, ao se elaborar novas leis, é
necessário sempre demonstrar racionalmente a sua necessidade,
evitando o estabelecimento de restrições supérfluas ou de obrigações
desnecessárias, o que feriria a presunção de liberdade subjacente
ao Estado Democrático de Direito, que pressupõe um regime legal
mínimo, de forma a reservar ao cidadão uma esfera – o quanto
maior possível – de liberdade negativa.
O princípio da legalidade é fundamental para a defesa do
Estado democrático de Direto; entretanto, não garante, a
legitimidade e justiça das normas. Leis tecnicamente perfeitas
podem ser ilegítimas se não emanarem do poder legitimamente
constituído para legislar. É bastante comum, após golpes de Estado,
a edição de leis em substituição às vigentes durante o regime
derrubado. Essas novas leis podem até ser elaboradas em
conformidade com a melhor técnica do Direito, mas jamais serão
leis legítimas, porque editadas por um indivíduo ou grupo de
indivíduos que usurparam o poder legislativo legítimo. Por outro
lado, as leis podem ser legais e legítimas, mas causarem injustiças
sociais, como o aumento da diferença entre ricos e pobres ou a
redução dos serviços sociais para os mais necessitados. Portanto,
legalidade, legitimidade e justiça são conceitos que não devem ser
confundidos.

Neste ponto, você pode estar se perguntando: por que é


necessário ao gestor público conhecer todos esses requisitos
das leis se a ele não cabe legislar, mas administrar?

Módulo Básico
53
O Público e o Privado na Gestão Pública

Simplesmente porque o princípio da legalidade e todas as


suas derivações também devem necessariamente ser contemplados
em todos os atos da administração – isto é, em todos os atos
infralegais, normativos ou não – em conformidade com aquilo que
é requerido das normas que lhe são superiores.
É por isso que na Administração Pública existem os
memorandos e ofícios – que são os instrumentos de comunicação
oficial internos e externos ao órgão, respectivamente –, os quais
devem ser redigidos com objetividade, concisão e clareza – tal como
as leis – para que o seu conteúdo seja adequadamente
compreendido e executado. No entanto, também é claro que o abuso
ao recurso da emissão de ofícios e memorandos irá constituir uma
disfunção, gerando uma papelada desnecessária que sobrecarrega
o fluxo de documentos nas organizações públicas, provocando
lentidão nos serviços prestados com evidentes prejuízos para os
seus usuários.
Essa disfunção, que é sempre nociva ao interesse público,
deve ser combatida pelos gestores públicos sempre que for
identificada, cabendo-lhes reorganizar os fluxos administrativos e
reorientar o trabalho dos seus subordinados, de forma a conferir
racionalidade ao serviço, sem comprometer – é claro – a legalidade
dos atos administrativos, cujo único objetivo é a defesa e o
cumprimento do interesse público.

O princípio da impessoalidade é decorrente direto da


legalidade com que os atos administrativos devem estar
revestidos. Você sabe por quê?

Porque o servidor público, enquanto tal e em qualquer nível


hierárquico, não age em nome próprio, mas em nome do poder
público a partir do cargo que ocupa na Administração, seja esse
cargo eletivo, comissionado ou efetivo. O autor de todos os atos
públicos serão sempre o Estado e o servidor que o executa, o seu
agente.

54 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Assim, os atos administrativos serão sempre impessoais em


um duplo sentido: no de quem age – que é o Estado e não a pessoa
do agente; e no do objetivo da ação – que é o interesse público e
não o interesse das pessoas particulares atingidas pela ação estatal.
A impessoalidade dos diferentes atos administrativos
encontra-se expressa na forma pela qual são editados. Por exemplo,
as leis federais iniciam-se sempre com a seguinte frase: “O
Presidente da República. Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:”, ao que segue o texto da lei,
encerrando-se o ato com a assinatura do presidente seguida da
do(s) ministro(s) da(s) área(s) envolvida(s). Nessa formalidade,
revela-se o princípio da impessoalidade, pois é sempre o Congresso
Nacional quem decreta (e não os deputados e senadores tais e quais)
e o presidente da República quem sanciona as leis, figurando o(s)

v
nome(s) do(s) agente(s) que a assina(m) apenas no fim do ato.
O mesmo ocorre com os decretos, resoluções e portarias.
Não apenas nos atos externos da Administração, mas Amplie seus
também nos internos, a impessoalidade deve ser observada. É por conhecimentos sobre a
linguagem utilizada nas
isso que nos memorandos só figuram os cargos de quem os expede
comunicações oficiais,
e de quem os recebe. através do Manual de
Redação da Presidência
da República no seguinte

Vamos ver agora o princípio da moralidade? site <http://


www.planalto.gov.br/
ccivil_03/manual/
index.htm>. Acesso em:
O princípio da m o r a l i d a d e, contrariamente ao da 10 jul. 2009.
impessoalidade, que é decorrência da legalidade, é atributo direto
do agente público. Para que a Administração Pública aja de acordo
com esse princípio, é essencial que os servidores, seus agentes,
apresentem no seu comportamento as virtudes morais socialmente
consideradas necessárias pela sociedade.
A moral refere-se a um conjunto de comportamentos que a
sociedade convencionou serem desejáveis ou necessários para o
adequado funcionamento e convívio sociais. Enquanto convenção,
a moral é mutável ao longo do tempo e variável de acordo com as
diferentes culturas. Embora próximas, moral e ética não se

Módulo Básico
55
O Público e o Privado na Gestão Pública

confundem. A ética refere-se ao comportamento esperado dos


Você pode consultar o
indivíduos enquanto membros de uma determinada organização,

v
código de ética
profissional do servidor
instituição ou categoria profissional, e encontra-se normalmente
civil do poder executivo estabelecida em códigos; já a moral diz respeito ao comportamento
federal no endereço a esperado de qualquer indivíduo e não se encontra necessariamente
seguir: <http:// escrita.
www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/
De acordo com o princípio da moralidade, exige-se dos
D1171.htm>. Acesso em: agentes da Administração Pública probidade e honestidade de
10 ago. 2009. conduta, não só enquanto servidores, mas também enquanto
cidadãos. Exige-se também lealdade à instituição que servem e
cumprimento das normas e regulamentos, além das ordens
superiores, sempre – é claro – que estas não forem ilegais, pois
ninguém está obrigado a cumprir uma ordem ilegal. Considera-se
imoral o abuso do poder assim como o seu uso em benefício próprio
ou de terceiros; a aceitação de propinas, a prática da usura, a
malversação e desvio dos recursos do patrimônio público.
A lista de comportamentos morais esperáveis do servidor é
extensa, e não cabe aqui reproduzi-la. No entanto, podemos afirmar,
sem corrermos o risco de cair em simplificações, que a observância
do princípio da moralidade implica na consideração do interesse
público nas ações do servidor, ao passo que a imoralidade implica
no uso do poder do Estado com fins privados.

Conheça agora o que nos aponta o princípio da publicidade.

O princípio da publicidade aponta essencialmente para a


clareza e visibilidade social que devem envolver os atos da
Administração. Os atos do Estado devem ser públicos em múltiplos
sentidos, porque:

 emanados do poder público;


 no interesse público;
 para o público; e
 de conhecimento público.

56 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

É desse último sentido que deriva a essência do princípio da


publicidade. Excetuando algumas decisões, que para terem eficácia
necessitam de sigilo, e alguns processos, que para serem levados a
bom termo requerem sessões reservadas, os atos públicos, em geral,
pressupõem a publicidade, isto é, devem ser tornados públicos.
Contudo, tanto a publicidade quanto o sigilo em certas circunstâncias
derivam sempre da mesma motivação: garantir que as decisões que
envolvem os interesses dos cidadãos sejam tomadas em condições
favoráveis à realização do interesse público, evitando sua captura
pelos interesses privados.
A necessidade de que todos os atos administrativos sejam
escritos deriva, também, do princípio da publicidade. Devendo ser
redigido de acordo com as normas e procedimentos decorrentes da
aplicação do princípio da legalidade, tal como tratado
anteriormente, a constância escrita é que permite a clareza e
publicidade necessárias aos atos públicos. As manifestações orais,
como os discursos, são importantes meios de comunicação política,
mas não são capazes de assegurar a explicitação do interesse
público nelas contidas. As palavras vão-se com o vento, além de
serem passíveis de manipulação através da oratória.
A exigência de publicação dos editais de licitação em veículos
da imprensa local de grande circulação tem por finalidade garantir
a publicidade, da mesma forma que todos os atos do poder público
só entram em vigor a partir da sua publicação no Diário Oficial,
isto é, a partir do momento em que se tornam acessíveis ao
conhecimento público.

Chegamos ao último dos princípios orientadores da


Administração Pública: o da eficiência. Vamos entender
melhor este princípio?

O princípio da eficiência aponta para a racionalidade


econômica do funcionamento da Administração Pública. É do
interesse público que os tributos pagos pelos cidadãos, e utilizados

Módulo Básico
57
O Público e o Privado na Gestão Pública

para custear as funções administrativas, não apenas sejam


utilizados de forma legal, impessoal, moral e pública, como também
de forma eficiente, isto é, apresentando a melhor relação custo-
benefício. Não é possível imaginar que a Administração Pública
seja eficiente se também não forem eficientes os processos por ela
utilizados e os agentes que a compõem.
Por isso, a eficiência da Administração é, fundamentalmente,
fator da eficiência dos seus gestores e servidores.

Até aqui você estudou os princípios orientadores da Administração


Pública. Agora é chegado o momento de conhecer sobre os
poderes e deveres do gestor público. Vamos lá?

PODERES E DEVERES DO GESTOR PÚBLICO

O gestor público e todos os servidores que lhes são


subordinados exercem sempre um conjunto de poderes, que serão
também sempre proporcionais e compatíveis com o seu respectivo
nível hierárquico. A todo poder exercido pela Administração Pública
corresponde um conjunto de deveres, e essa correspondência não é
aleatória, mas logicamente derivada dos seus princípios orientadores
que acabamos de examinar. Se ao poder exercido pelo agente
investido em um cargo público não correspondesse certos deveres,
estaríamos diante de um privilégio concedido a um indivíduo, e
não de uma função do Estado a ser exercida no interesse público.
O Estado exerce um conjunto de poderes que têm efeito sobre
a sociedade civil e outro que tem efeito sobre a Administração
Pública. Compõem o primeiro o poder de polícia e o poder
discricionário, e o segundo, o poder hierárquico e o poder disciplinar.
O poder hierárquico é aquele de que dispõe o titular do Poder
Executivo para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos,
ordenar e rever a atuação de seus agentes. É o poder de reorganizar

58 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

a Administração Pública de acordo com o que cada governo julgar


ser a estrutura mais conveniente para:

 a sua forma particular de administrar, que pode ser


centralizada, descentralizada, participativa etc.;
 acomodar os diferentes integrantes da sua equipe de
governo, como partidos e outros grupos de apoio
considerados relevantes e necessários à sua gestão; e
 atingir os objetivos propostos.

O poder disciplinar também é exercido para dentro do


Estado e destina-se a punir as infrações funcionais cometidas pelos
servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos da
Administração. O poder disciplinar visa garantir, por meio da
coerção – que vai da advertência à demissão – que os servidores
da Administração Pública mantenham uma conduta compatível
com os interesses do Estado, isto é, com o interesse público.

O poder de polícia é exercido pela Administração


Pública com a finalidade de conter os abusos de
indivíduos e grupos na sociedade civil no exercício da
sua liberdade negativa.

O exercício desse poder fundamenta-se na supremacia que


o Estado exerce sobre o conjunto da sociedade e justifica-se sempre
pelo interesse social. Sua finalidade é defesa do interesse público
no seu sentido mais amplo. O poder de polícia é exercido sobre
todas as atividades particulares que afetam ou possam afetar os
interesses coletivos, colocando em risco a segurança dos cidadãos
ou a segurança nacional. Através do exercício desse poder, a
Administração Pública regulamenta, controla ou contém as
atividades dos particulares. A esfera de exercício do poder de polícia
é delimitada, por um lado, pelo interesse social na intervenção do

Módulo Básico
59
O Público e o Privado na Gestão Pública

Estado em determinada área e, por outro, pelos direitos


fundamentais do indivíduo assegurados pela Constituição.
O poder de polícia possui alguns atributos que lhe conferem
efetividade. São eles:

 Discricionariedade: só cabe ao Estado determinar


a oportunidade e a conveniência de exercê-lo.
 Autoexecutoriedade: a decisão, para ser executada,
não requer a intervenção do Judiciário.
 Coercibilidade: é o respaldo da força para as medidas
adotadas pela Administração.

Quanto à sua aplicação temporal, o poder de polícia pode


ser tanto exercido de forma preventiva quanto a posteriori.
Preventivamente, o poder de política exerce-se por meio de ordens,
proibições, ratificações e restrições; e posteriormente pela aplicação
de multas, interdição de atividades, fechamento de
estabelecimentos, embargo administrativo de obras, demolição de
construções irregulares, destruição de objetos etc.
O poder discricionário é derivado do poder de polícia e confere
à Administração Pública a liberdade de escolher a conveniência,
oportunidade e conteúdo de sua intervenção. A discricionariedade é
a liberdade de ação administrativa dentro dos limites estabelecidos
pela lei e, portanto, não se confunde com a arbitrariedade. O ato
discricionário desenvolve-se dentro das margens de liberdade
conferidas pela lei, sendo, portanto, um ato legal. Já o ato arbitrário,
contrariamente, extrapola os limites da lei, sendo, consequentemente,
ilegal. Tomemos como exemplo: uma delegacia de ensino exerce poder
discricionário ao decidir os critérios de seleção dos estabelecimentos
de ensino a serem inspecionados (os que têm maior número de
alunos; os que consomem mais recursos ou os que têm pior
desempenho); o momento de realização das inspeções (no início,
durante ou no fim do período letivo); e o objeto da inspeção (o
cumprimento do programa de ensino, a frequência dos professores, a
conservação e uso dos equipamentos, a forma de gestão escolar etc.).

60 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Como a Administração Pública só age por intermédio de


seus servidores, conclui-se, logicamente, que são estes que, de fato,
exercem os poderes de polícia e discricionário do Estado. Investidos
desses poderes, os agentes públicos encontram-se igualmente
submetidos a alguns deveres, sem os quais seus poderes seriam
abusivos, tais como:

 o dever de agir;
 o dever de prestar contas;
 o dever de eficiência; e
 o dever de probidade.

Dada a importância desses deveres, em seguida você irá


encontrar uma breve explicação sobre cada um deles.

O dever de agir do servidor público é derivado da dicotomia


Direito Público/Direito Privado e é consoante com o princípio da
legalidade. Como estudamos, na primeira Unidade desta disciplina,
o Estado e seus agentes só podem e devem fazer aquilo que a lei
obrigar ou expressamente autorizar. Consequentemente, não agir
quando a lei assim determina constitui omissão, o que no Direito
Penal recebe o nome de prevaricação, definida como crime
praticado por funcionário público contra a Administração em geral.
Portanto, agir quando a lei determina não é uma prerrogativa do
servidor, mas sua obrigação. Da mesma forma, protelar ou usar de
delongas para agir constitui procrastinação, ato expressamente
vetado ao servidor público federal pelo seu código de ética.
Já o dever de prestar contas é derivado da aplicação do
princípio constitucional da publicidade e da responsabilidade de
todo servidor público por seus atos administrativos. Não basta ao
servidor agir, conforme mandam a lei, os regulamentos e os
superiores hierárquicos aos quais ele se encontra submetido, mas é
também necessário que o agente público se responsabilize por seus

Módulo Básico
61
O Público e o Privado na Gestão Pública

atos e que estes sejam publicamente sustentáveis. O servidor tem o dever


de prestar contas a diferentes autoridades e em diversos níveis:

 ao seu chefe imediato, que, por sua vez, é o responsável


pelos atos dos seus subordinados perante os seus
superiores;
 aos órgãos de controle instituídos, como corregedorias,
controladorias internas, tribunal de contas e Judiciário; e
 ao público em geral, constituído pelo conjunto de
cidadãos que, direta ou indiretamente, sofrem os efeitos
da Administração Pública e pagam os tributos com
que as atividades do Estado são mantidas.

A responsabilidade, para uns, ou a responsabilização, para


outros – que traduz com suficiente precisão o termo inglês
accountability –, nada mais é do que o dever do Estado e,
consequentemente, de todos os servidores públicos enquanto seus
agentes, de prestar contas de seus atos à sociedade. Afinal, os
poderes com que todos os atos administrativos se encontram
revestidos são derivados da sociedade sobre a qual eles se exercem.
O dever de eficiência deriva do princípio com o mesmo
nome, que se tornaria imperativo nas sociedades contemporâneas.
A modificação e a modernização das estruturas produtivas e
econômicas das sociedades capitalistas ao longo dos anos
passariam a exigir as correspondentes transformação e
modernização dos procedimentos de gestão utilizados pela
Administração Pública. A eficiência, termo nascido no campo da
economia de mercado, chegaria assim ao Estado fazendo o percurso
contrário do termo administração, que, nascido no Estado,
designando os procedimentos de ação do poder público,
posteriormente ganharia o mercado com a denominação
administração de empresas. Atualmente, não mais se contesta que
a eficiência seja um princípio de interesse público tão importante
quanto são os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade
e publicidade.

62 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Por fim, o dever de probidade iria derivar do princípio da


moralidade, definido na legislação pelo seu oposto, que é a
improbidade administrativa, extensamente tratada pela Lei
nº 8.429, de 02 de junho de 1992, que é aplicável a todos os agentes
públicos, servidores ou não, de todos os poderes e de todas as esferas
da federação.
Constitui improbidade administrativa uma série de atos que
importam em enriquecimento ilícito, causam prejuízo ao erário e
atentam contra os princípios da Administração Pública. Não cabe
aqui listarmos as situações que configuram improbidade

v
administrativa, uma vez que, como exigem os princípios da
legalidade e publicidade, a legislação é suficientemente clara a
respeito e disponível a todos. No entanto, cabe destacar que o Conheça a lei a que
extenso e detalhado rol de situações de improbidade administrativa estão submetidos todos

é indicador, por um lado, da importância atribuída pelo legislador os agentes públicos do


Brasil consultando o
à conduta do administrador público e, por outro, da diversidade de
endereço: <http://
situações que podem propiciar ao servidor incorrer em atos que www.planalto.gov.br/
atentem contra o interesse público. Porque o Estado exerce um ccivil_03/Leis/
enorme poder que lhe foi conferido pela sociedade, ele e seus L8429.htm>. Acesso em:
10 jul. 2009.
servidores são, ao mesmo tempo, e na mesma medida, repositórios
tanto de esperança quanto de desconfiança populares. Por isso, do
Estado espera-se tudo, ou quase, e dele e de seus servidores,
desconfia-se de tudo, ou de quase tudo.

OS CONTRATOS DO SETOR PÚBLICO COM


OS AGENTES PRIVADOS

Como mencionado na introdução desta Unidade, o Estado


frequentemente recorre à iniciativa privada para adquirir os bens e
obter os serviços necessários ao desempenho de suas funções. Para
garantir que os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade
e publicidade sejam observados nas relações que a Administração

Módulo Básico
63
O Público e o Privado na Gestão Pública

estabelece com os agentes privados, foi elaborada uma extensa e


detalhada lei, composta de 126 artigos, instituindo normas para
toda a Administração Pública, a qual foi votada pelo Congresso
Nacional e promulgada em 1993.
A Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, estabeleceu os
princípios e normas gerais sobre licitações e contratos
administrativos referentes a obras e serviços – inclusive de
publicidade –, compras, alienações, concessões, permissões e
locações no âmbito de todos os Poderes da União, Estados, Distrito
Federal e municípios, extensivos aos seus fundos especiais,
autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades
de economia mista controladas direta ou indiretamente por qualquer
dos entes da Federação.
A fim de assegurar a isonomia no tratamento dos
fornecedores e prestadores de serviços e garantir a contratação da
proposta mais vantajosa para a Administração, os contratos com
terceiros são necessariamente precedidos de licitações, excetuando
alguns casos previstos na lei. Diferentes modalidades de licitação
são previstas de acordo com o tipo e valor dos bens e serviços
adquiridos, contratados ou vendidos.
Por exemplo, o leilão passou a ser a modalidade de licitação
para a Administração vender a particulares bens móveis inservíveis
ou produtos legalmente apreendidos ou penhorados, assim como
para a alienação de bens imóveis a quem oferecer o maior lance,
desde que igual ou superior ao valor da avaliação obrigatoriamente
realizada antes do certame. Já o concurso tornou-se a modalidade
para escolha de trabalhos técnicos, científicos ou artísticos.
Três outras modalidades de licitação foram detalhadas para
a contratação de obras e serviços de engenharia, aquisição de bens
e contratação de outros serviços:

 convite;
 tomada de preços; e
 concorrência.

64 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Quando o preço dos bens a serem adquiridos ou dos serviços


a contratar não ultrapassarem um determinado valor, a licitação
torna-se dispensável. O limite de dispensa de licitação é de
R$ 15.000,00 para a contratação de obras e serviços de engenharia,
e de R$ 8.000,00 para a aquisição de bens e contratação de outros
serviços. Esses limites foram determinados em 1998, continuam
vigentes até hoje, e correspondem a 10% do limite máximo permitido
para a utilização da modalidade convite.
Convite é a modalidade de licitação por meio da qual uma
unidade administrativa envia cartas convite a no mínimo três
empresas do ramo, solicitando a compra de bens ou a prestação de
serviços. A utilização dessa modalidade é permitida para a
contratação de obras e serviços de engenharia com valor estimado
até R$ 150.000,00, e para a compra e contratação de outros serviços
até o valor de R$ 80.000,00.
A tomada de preços passa a ser exigida quando os limites
de valor permitidos na modalidade convite tenham sido
ultrapassados, sendo permitida para a contratação de obras e
serviços de engenharia com valor estimado em até R$ 1.500.000,00,
e para a compra e contratação de outros serviços até o valor de até
R$ 650.000,00. Essa modalidade consiste na licitação entre
interessados devidamente cadastrados no sistema de fornecedores
e prestadores de serviço do órgão público, envolvendo, portanto,
um número bem maior de potenciais fornecedores ou prestadores.
Já a concorrência é uma modalidade aberta à participação
de todos os que comprovem possuir os requisitos mínimos de
qualificação exigidos no edital para execução de seu objeto,
tornando-se obrigatória para a contratação de obras e serviços de
engenharia cujo valor estimado seja superior a R$ 1.500.000,00, e
para a compra e contratação de outros serviços que ultrapassem o
valor de R$ 650.000,00.
A lógica que orienta a dispensa de licitação e a exigência de
cada modalidade é simples: quanto maior for o valor da contratação,
mais ampla deve ser a competição, assim como mais longo e
cuidadoso deva ser o processo licitatório, tendo em vista assegurar

Módulo Básico
65
O Público e o Privado na Gestão Pública

o interesse público, e não beneficiar um agente privado em


detrimento dos outros que se encontram no mercado. E quanto mais
baixos forem os valores envolvidos, mais ágil deve ser o mecanismo
de aquisição de bens e contratação de serviços para não emperrar
o funcionamento da Administração e lhe impor procedimentos de
seleção longos e caros. Trata-se, portanto, do princípio da
razoabilidade a orientar tanto a aplicação de cada modalidade de
licitação quanto a sua dispensa.
Conforme esse princípio, modalidades de licitação que em
tempos normais seriam obrigatórias passam a ser dispensáveis em
momentos especiais, como em situações de emergência ou
calamidade pública. Também são dispensados processos licitatórios
para a aquisição ou locação de imóveis para uso da Administração,
desde que esta demonstre que na região onde os seus serviços devem
ser executados não existem outros imóveis à venda ou para locação
com as características requeridas. Caso contrário, os particulares
que se sentirem lesados pela escolha da Administração poderão
contestar judicialmente a não realização de licitação. Procurando
Você pode ter acesso à
contemplar outros casos relevantes em que os processos licitatórios

v
Lei n. 8.666, de 21 de devem ser dispensados no interesse público, sem ferir a isonomia
junho de 1993, no com que a Administração deve tratar os agentes privados, a Lei
endereço: <http:// das Licitações, como é também conhecida a Lei n. 8.666, prevê
www.planalto.gov.br/
toda uma outra série de exceções que não cabem aqui ser citadas.
ccivil_03/Leis/
L8666compilado.htm>. Ao gestor público não é necessário conhecer em
Acesso em: 10 ago 2009. profundidade e detalhadamente a Lei das Licitações, que rege as
contratações sob sua responsabilidade, pois, para isso – como foi
indicado na introdução desta disciplina – ele deve contar com uma
assessoria jurídica especializada para orientá-lo em suas ações.
No entanto, ele deve necessariamente estar ciente dos seus princípios
gerais, diretrizes e exigências mínimas para tomar decisões
esclarecidas e compatíveis com os princípios que regem a
Administração Pública.

66 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Antes de passarmos para o próximo e último item desta


Unidade, que tratará das relações do poder público com o
chamado terceiro setor, cabem algumas referências às
inovações introduzidas nas relações entre público e privado
posteriores à Lei das Licitações, de 1993. Vamos a elas!

 A Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que


disciplina a concessão e permissão de prestação de
serviços públicos a agentes privados, e que fornece o
quadro legal para as privatizações feitas durante o
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
 A Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que
estabelece as normas gerais para a licitação e
contratação de Parcerias Público-Privadas (PPPs),
mediante as quais a Administração Pública, em todas
as esferas, passa a contratar empresas privadas para
a realização de obras e prestação de serviços que
envolvam um montante superior a R$ 20 milhões,
transferindo-lhe recursos públicos para a manutenção
dos serviços e garantia do seu equilíbrio financeiro
somente após a realização das obras contratadas.

Essas inovações são indicações suficientes do quanto o


Estado brasileiro tem procurado o setor privado como parceiro para
realizar obras e prestar serviços de interesse público.

Você certamente compreendeu as relações que envolvem os


contratos do setor público com os agentes privados, tratados
até aqui. Pois bem, na última seção desta Unidade você vai
estudar as relações entre o público e o privado com a
emergência do terceiro setor. Vamos, então, conversar um
pouco sobre isso?

Módulo Básico
67
O Público e o Privado na Gestão Pública

O PÚBLICO E O PRIVADO E A
EMERGÊNCIA DO TERCEIRO SETOR

Embora o Direito brasileiro só reconheça organizações de


Direito Público e de Direito Privado, de acordo com a dicotomia
público/privado estudada no início desta disciplina, no Brasil e no
mundo passaram a surgir organizações que reivindicam uma função
e uma identidade distintas das entidades estatais e das organizações
Para mais informações
privadas. Por toda parte, essas organizações passariam a se

v
sobre as características
e funções das ONGs, identificar e a serem identificadas como Organizações Não
acesse o site <http:// Governamentais (ONGs).
www.sebraemg.com.br/ Embora de Direito Privado, as ONGs estruturam-se como
culturadacooperacao/
associações civis sem fins lucrativos – o que as distingue das
oscip/02.htm>. Acesso
em: 10 jul. 2009. empresas privadas, cujo objetivo é o lucro – que têm como objetivo
o desenvolvimento de atividades de interesse público. Nessa
condição, as ONGs operam de acordo com as regras do Direito
privado e, por desempenharem funções de interesse público,
passaram também a reivindicar recursos públicos para
desempenhar suas atividades, além dos recursos oriundos da
iniciativa privada, que desde o seu surgimento vinham garantindo
o seu funcionamento.
Para regular a relação do poder público com essas novas
organizações, iriam ser criadas novas leis. Em 1998, seria
promulgada a Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1998, qualificando
como Organizações Sociais (OSs) as pessoas jurídicas de direito
privado sem fins lucrativos, cujas atividades fossem dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à
proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde.

68 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

No ano seguinte, a Lei n. 9.790, de 23 de março de 1999,


iria ainda qualificar pessoas jurídicas de direito privado sem fins
lucrativos como Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIPs), habilitando-as a receber recursos públicos com
a finalidade de promover:

 assistência social;
 cultura;
 defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
 educação e saúde gratuitas;
 segurança alimentar e nutricional;
 defesa, preservação, conservação do meio ambiente e
promoção do desenvolvimento sustentável; e também
 estudos e pesquisas, entre uma série de outras
atividades de interesse público.

A qualificação de OSs e OSCIPs e a sua utilização para a


prestação de serviços de interesse público são maiores em alguns
Estados da Federação e menores em outros, embora em todos sejam
a forma minoritária de prestação de serviços para o público. A grande
vantagem imaginada pelo Estado, quando essas figuras legais foram
criadas, era a maior flexibilidade e agilidade com que organizações
de Direito Privado poderiam prestar serviços públicos. De fato, OSs
e OSCIPs gozam de maior flexibilidade na contratação de pessoal e
celebração de contratos com empresas comparativamente às
entidades públicas, embora a utilização dos recursos públicos que
lhes forem passados pelo Estado deva também obedecer aos
procedimentos licitatórios da Lei n. 8.666, de 21 de julho de 1993.
Todas essas iniciativas do Estado, sempre devidamente
respaldadas na lei em busca de cooperação e parceria com o setor
privado, são fortes indicativos de que a ação estatal direta não tem
se mostrado suficiente para satisfazer às necessidades públicas. Em
sociedades complexas, como a brasileira, em que o capitalismo se
encontra bastante desenvolvido, as atividades econômicas
diversificadas em vários segmentos e a democracia consolidada,

Módulo Básico
69
O Público e o Privado na Gestão Pública

as relações entre esfera pública e esfera privada tendem a se tornar,


paradoxalmente, mais tensas e mais próximas. Como forma de
superar esse impasse, alguns autores procuraram identificar um
terceiro tipo de espaço organizacional situado entre a esfera
tipicamente pública e a tipicamente privada, denominando-o público
não estatal.
No entanto, e apesar desses esforços, a velha e tradicional
dicotomia público/privado não parece estar se aproximando do
colapso ou da solução e superação. Como bem mostrou Mintzberg
(1998) ao identificar no mundo contemporâneo duas outras formas
de propriedade além da privada e da estatal – a propriedade
cooperativa (como as de seguro mútuo) e as organizações sem
proprietários (como a Cruz Vermelha e o Greenpeace), localizadas
em uma posição intermediária entre a propriedade estatal, à
esquerda, e a propriedade privada, à direita –, essas novas formas
de propriedade se encontrariam, paradoxalmente, mais afastadas
dos extremos do que estes entre si, tal como uma ferradura, conforme
a Figura 1:

Figura 1: Formas de propriedade nas sociedades capitalistas contemporâneas


Fonte: Elaborada pelo autor

70 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

De acordo com Mintzberg (1998, p. 150),

[...] o salto da propriedade estatal para a privada é mais


fácil de realizar do que fazer a mudança para a proprieda-
de cooperativa ou para as organizações sem proprietários.
Talvez seja isso que explique porque nossa atenção se fixou
na polarização, nacionalização versus privatização. O sal-
to é muito mais simples: basta comprar o outro lado, mu-
dar os diretores e tocar em frente; o sistema interno de
controles permanece intacto (o mesmo). Na Rússia atual,
em muitos setores, estes saltos foram fáceis demais.
O controle estatal deu lugar ao controle privado, sem se
modificar.

Diante dessas dificuldades, o que mais realistamente se pode


esperar é que as relações entre esfera pública e esfera privada
continuem a se modificar, sem comprometimento da dicotomia
público/privado.
Numa economia capitalista e sob o Estado democrático de
direito, o desafio posto aos gestores públicos é o de criar e recriar
constantemente os mecanismos adequados para assegurar um
equilíbrio mínimo entre as forças e princípios opostos existentes na
sociedade, de forma a maximizar o bem-estar coletivo e resguardar
e promover a liberdade e autonomia dos seus cidadãos, conforme
os cinco princípios que regem a Administração Pública inscritos
na Constituição brasileira.

Complementando......
Para saber mais sobre esse tema leia:

Entre o Estado e o mercado: o público não estatal – de Luiz Carlos


Bresser-Pereira e Nuria Cunill Grau. Disponível em: <http://
www.bresserpereira.org.br/papers/1998/
84PublicoNaoEstataRefEst.p.pg.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2009.

Módulo Básico
71
O Público e o Privado na Gestão Pública

Resumindo
Nesta unidade, que encerra o seu estudo da disciplina
O público e o privado na gestão pública, você estudou os
princípios que regem a Administração Pública brasileira, os
poderes e deveres dos agentes públicos e as relações
estabelecidas entre setor público e setor privado no mundo
contemporâneo. Vimos também as relações estabelecidas
entre as organizações não governamentais, mais conheci-
das como ONGs, com o poder público e as tentativas e difi-
culdades enfrentadas pelos teóricos da Administração para
superar a dicotomia público-privado a fim de melhorar a pres-
tação de serviços públicos à sociedade.
Se você ainda tem alguma dúvida em relação a essas
questões, retorne aos pontos deste texto nos quais elas são
tratadas ou procure esclarecimentos complementares com
o seu tutor antes de passar às atividades de avaliação de
aprendizagem, a seguir.

72 Especialização em Gestão Pública


Unidade 2 – Os Princípios da Administração Pública e suas Relações com o Setor Privado

Atividades de aprendizagem
Para conferir se você teve um bom entendimento até aqui,
preparamos algumas atividades.

1. Relacione os poderes e deveres dos agentes públicos e pelo me-


nos três princípios que regem a Administração Pública. Depois
aponte duas razões das mudanças que se produziram entre o Es-
tado e o setor privado nos últimos tempos.
2. Considerando os conteúdos estudados nas duas Unidades desta
disciplina, estabeleça as relações existentes entre as
especificidades da esfera pública, tratadas na primeira Unidade,
e os princípios que regem a Administração Pública, estudados na
segunda parte.

Módulo Básico
73
O Público e o Privado na Gestão Pública

Referências
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos ; GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e
o mercado: o público não estatal. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos;
GRAU, Nuria Cunill. (Org.). O Público Não Estatal na Reforma do Estado.
¨
Rio de Janeiro: FGV, 1999.

HOUAISS. Antônio. Dicionário on-line da língua Portuguesa. Abril de


2007. Versão 2.0a. CD-ROM. 2007.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. São


Paulo: Malheiros Editores, 2008.

MINTZBERG, Henry. Administrando governos, governando


administrações. Trad. Carlos Antonio Morales. In: Revista do Setor
Público, ano 49, n. 4, out-dez, 1998.

ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito Administrativo: licitação, contratos


administrativos e outros temas. São Paulo: Saraiva, 2009. (Sinopses
Jurídicas n. 20).

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos


Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).

WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe


Barbosa. 3. ed. Brasília: UnB, 1994. v. 1.

74 Especialização em Gestão Pública


Referências Bibliográficas

Módulo Básico
75
O Público e o Privado na Gestão Pública

M INICURRÍCULO
Ricardo Corrêa Coelho

Bacharel em Ciências Sociais pela Universi-


dade Federal do Rio Grande do Sul (1981), Mestre
em Ciência Política pela Universidade Estadual de
Campinas (1991) e Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (1999). É especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, do Ministério do Planejamento, e trabalha
no Ministério da Educação desde 2000. Tem experiência docente nas
áreas de Ciência Política e Administração Pública, com trabalhos nas
áreas de partidos políticos, políticas públicas, educação e formação de
quadros para a Administração Pública.

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Gestão Pública
Usuário: avaexterno Senha: AvaExt12
Curso Professor

O estado e os Problemas Conteporâneos - Turma 1 Luciano Mitidieri Bento Garcia


Indicadores Socioeconômicos na Gestão Pública - Turma 1 Hildo Meireles de Souza Filho
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