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06

“Yount, o Rastejador, agora cego


é lançado entre paredes levantadas nas terras dos homens.
Suas três línguas bifurcadas sibilam blasfêmias
e destilam veneno no coração dos vingativos e injustos.”
-- Livro do Profeta, capitulo vi

— Quando eu disser: faz aquilo. Você entra cortando tudo com o machado —
Dreany afastava sem tirar os olhos de Deref que agora estava irreconhecível com a pele
coberta por manchas roxas como hematomas.
— E desde quando você decidiu isso? — Anker não conseguia acreditar no que
estava acontecendo.
Bruma densa começou a surgir vinda das profundezas da floresta, mais a frente as
madeiras que formavam a cabana do velho tornavam-se apodrecidas e cobertas por lodo.
Dreany deu as costas e disparou mata adentro, Anker deu um passo para seguir a garota,
mas foi impedido pela forma monstruosa que antes era o velho Deref, que segurou seu
braço com os longos dedos retorcidos.
— Onde pensa que vai? — a bruxa perguntou com uma voz aguda e rasgada. O
hálito da criatura o fez sentir tudo que tinha comido no dia anterior queria voltar pelo
estômago.
Segurando firme o machado com a mão livre o lenhador desferiu um ataque
cravando o aço na face da bruxa que logo em seguida soltou seu braço direito. Ela deu um
grito estridente e agarrou o cabo do machado para retirar a lâmina presa no lado direito da
testa. Anker aproveitou para seguir na direção em que Dreany havia corrido.
Desviando de troncos e saltando sobre raízes altas, Anker apenas corria sem se
importar onde iria chegar, só queria ficar o mais longe possível da criatura. O esforço fez a
dor no braço ferido voltar e ele diminuiu a intensidade da corrida. Uma mão rápida agarrou
seu pulso e puxou-o.
— Venha — Dreany disse escondida segurando o homem.
— O que foi aquilo? — falou Anker em um sussurro alto. — Pensei que só
existissem bruxas no Bosque Longanoite.
— Elas deviam estar procurando alguma coisa nessas terras e ouviram o harmonus
de morte que usei nos seus amigos.
— Então pra variar a culpa é sua.
— Desculpe, por um momento pensei que você ferido não pudesse dar conta dos
três sozinho — os dois se encararam como se pudessem desferir socos um no outro
apenas com os olhos. — De qualquer forma já caímos na armadilha delas e…
— Delas? — ele disse surpreso. — Então são mais de uma.
— Provavelmente.
— Maldição. Então quer dizer que tudo até aqui foi uma ilusão criada por elas?
— Basicamente sim — ela começou a caminhar e Anker a seguiu. — Os harmonus,
que são o que alguns estudiosos da Torre dos Cem se dedicam é diferente da bruxaria e
antes que pergunte nem todos os membros da Torre são magos, na verdade a maioria mal
consegue passar da parte teórica do que vocês chamam de “magia harmônica”.
— Isso sempre me parece algo relacionado a música — Anker falou observando as
brumas que cobriam os pés dos dois.
— Em parte é. Manipular os harmonus é manipular a estrutura da realidade. Falando
de uma forma que você entenda é como dizer que um menestrel não cria os sons, todas as
notas já existem , o que ele faz é reorganiza-las da maneira que achar melhor usando as
cordas do alaúde.
Anker baixou os olhos para a garota, mesmo depois dos últimos acontecimentos ela
mantinha-se calma como se tivesse total controle da situação, enquanto ele mal sabia em
que parte da floresta estavam.
— Então as palavras mágicas só servem de instrumento para fazer esse
harmonum?
— Harmonus — ela corrigiu. — E não. As palavras servem de guia para conectar
mente e espírito, os estudiosos usam geralmente frases na língua antiga por ser mais
“musical”, mas já ouvi sobre alguns conseguiam alcançar coisas inacreditáveis sem dizer ao
menos uma palavra — o tom de voz dela aumentou em empolgação.
A dor no ombro aliviou sem que Anker percebesse. A explicação de Dreany ainda
fazia pouco sentido para ele, mas ele sempre soube que magia era algo extremamente
complexo e até conhecer a garota não tinha visto nem mesmo um Alto Sábio usar qualquer
forma de harmonus. Lembrou do que a jovem Teceversos fez em seu casebre, as palavras
assustadoras que pareciam ter saído da boca dos mais perversos demônios.
— Aquilo que fez com os capangas de Sparg, bem… Não pareceu muito musical
para mim.
— Era a língua de Somara, um reino ao sul das terras do antigo Império Sur’Tak.
Aquilo que fiz é o que chamam de “magia verdadeira” e não cabe nesta conversa.
Anker percebeu que fala sobre aquilo a incomodou e continuou calado até perceber
a névoa se adensar e ficar mais alta alcançando seus joelhos e cobrindo a cintura de
Dreany. O desconforto começou a aumentar e ele resolveu retomar a conversa.
— Então os harmonus conectam a mente e o espírito do homem com o universo —
Dreany olhou surpresa para Anker, mas ele só estava repetindo algo que havia escutado do
Alto Sábio Barish anos atrás. Agora as palavras do velho faziam um pouco de sentido. — E
a bruxaria o que é? Disse que era diferente.
A Teceversos parou abruptamente, a névoa dispersou-se enquanto ela olhava para
o chão um pouco mais a frente. Anker seguiu o olhar da garota e viu as densas brumas se
tornarem um fino véu cinzento cobrindo um grande volume irregular que tomava todo o
centro da clareira onde eles haviam chegado. Os dois permaneceram observando
assustados o que estava sendo revelado pela névoa, enquanto tímidos raios de sol
passavam entre as folhas das copas das árvores dali. Anker sentiu um arrepio escalar
lentamente sua espinha e imaginou que aquilo fosse um pesadelo.
— Ossos — as palavras saíram da sua boca sem que ele tomasse controle delas.
Um grande círculo desenhado com ossos, alguns ainda cobertos de carne morta.
Grandes, pequenos, podres, roídos e outros recentemente retirados dos corpos. Eram de
várias espécies diferentes de animais, quadrúpedes, pássaros e peixes. Pedaços humanos
ainda vestiam partes de armadura como cota e grevas, tecido de tûnicas e mantos. Outros
ossos pequenos deveriam ser de crianças de oito a doze anos.
O ossário estava disposto em forma de círculo com alguns símbolos cruzes dentro
transformando a clareira em um santuário mórbido. A podridão invadiu as narinas de Anker
que logo cobriu o rosto com o braço.
— Essa é a diferença, Anker — Dreany disse — O poder das bruxas vem dos
demônios no estômago de Ur. Por isso elas são corrompidas e começam a se tornar
demônios também.
Anker teve a impressão de ouvir vozes vindas do ossário, gritos baixos de uma
multidão que se expressava com gemidos incompreensíveis. Dreany parecia não partilhar
do mesmo tormento em sua cabeça ou pelo menos escondia muito bem o incomodo.
— Vamos sair daqui — ele disse.
Sons vieram detrás deles.
Galhos quebrados e folhas pisadas.
Quando os dois olharam viraram o rosto na direção da agitação que aproximava-se
viram a criatura que horas atras era apenas um velho recluso na cabana da floresta e agora
um ser irreconhecível. A bruxa corria curvada sobre as pernas esqueléticas e pés de dedos
retorcidos, no rosto um grande ferimento aberto, causado pelo golpe de machado dado por
Anker. O homem andou de costas até tropeçar na ossada e cair dentro do círculo de
carcaças enquanto levantava-se pensou ter ouvido uma voz vinda dos ossos falando
diretamente com ele. “Mate-a”, ouviu. “Vingança”, disse outra.
Anker sentiu o braço ser puxado para o meio das ossadas, seus dedos reviraram
terra, folhas e partes de esqueletos, guiados por uma força sobrenatural. Dreany continuava
parada aguardando a bruxa que mesmo com um corpo tão decrépito corria como um animal
selvagem. Crânios que rolavam pareciam espiá-lo com suas órbitas vazias e quanto mais
ouvi as vozes mais era empurrado, até que sua mão alcançou algo que ele julgou ser o
objeto do qual as vozes falavam. Fechou o punho em volta do que sentiu ser o cabo de
alguma arma e a puxou para fora do amontoado de ossos como se trouxesse um daqueles
moribundos de volta à vida.
O homem segurou com as duas mãos o punho da pesada arma. A espada longa
tinha a lâmina envelhecida, mas ainda assim era uma arma assustadora, então Anker
colocou-se de pé com o aço empunhado. As vozes antes falando uma infinidade de frases
desconexas agora unia-se em coro para dar uma única ordem.
“Mate-a.”
A bruxa saltou sobre Dreany que rolou por baixo da velha demoníaca, Anker investiu
contra e com um golpe horizontal abriu um grande talho entre as costelas da criatura que
logo em seguida virou na direção dele murmurando maldições. Uma esfera de névoa negra
surgiu entre os dedos da bruxa enquanto ela falava:
— Maldito seja por ter nascido homem, criatura — a voz rouca da velha bruxa
começava a assumir um tom mais grave. — Farei serpentes te devorarem por dentro e
entre os vermes caminhará. Eu…
A esfera de energia profana que levitava entre as mãos da bruxa começou a
dispersar-se até não restar nenhum vestígio da névoa escura. Anker olhou por sobre o
ombro da velha e viu Dreany sussurrando de cenho franzido concentrada na criatura.
Anker aproveitou a distração da bruxa para tentar um ataque no pescoço dela, mas
a velha esquivou-se com facilidade. A criatura novamente mudou de algo e atacou Dreany
estava anulando seus feitiços, os dedos da bruxa envolveram os ombros da garota que
começou a recitar uma nova sequência de frases na língua antiga. As palavras de Dreany
soaram melodicamente como se acompanhasse a melodia de uma canção, a bruxa então
afrouxou os dedos antes firmes, suas pernas esqueléticas tremeram e ela deu um passo
para trás cambaleando.
— Agora, Anker — Teceversos gritou. — Ela estava fraca.
A bruxa lutava para aguentar o peso do próprio corpo, respirava fundo puxando o
máximo de ar que seus pulmões suportavam. Tentou falar algo e atacar Dreany, mas sentia
como se os braços estivessem amarrados a grandes bolas de ferro.
Anker em uma estocada com a espada longa atravessou o peito da velha bruxa. A
ponta da lâmina brotou do tronco da criatura lacerando carne e ossos, sangue escuro e
grosso banhou a ponta da espada e escorreu pela tûnica rasgada dela. Dreany usou a capa
para proteger-se dos respingos de sangue pobre.
— Não… — a bruxa falou engasgada com o sangue que subia-lhe pela garganta. —
Vadia maldita… Como pode…
Anker apoiou o pé esquerdo nas costas da criatura e puxou a espada que saiu do
corpo da bruxa causando ainda mais estrago. A velha caiu morta no chão por sobre os
ossos de antigas presas que serviram-lhe de sacrifícios para seus rituais macabros.
“Deite-se conosco”, Anker ouviu as vozes em sua mente. “Não resta nada”, as vozes
dirigiam-se ao cadáver deitado de bruços com um grande ferimento nas costas.
“Durma conosco, abrace-nos em nosso sono.”
“Para conosco viver o pesadelo eterno.”
Um calafrio revirou a espinha de Anker e comprimiu seu estômago. Aos poucos as
vozes silenciaram e ele pôde recobrar a consciência.
— Vamos — Dreany apareceu ao lado dele. — Temos que continuar.
Ele olhou para a garota esperando que em algum momento fosse acordar, mas não
aconteceu.
— Temos que voltar, a estrada fica para lá — apontou na direção de por onde eles
vieram.
— Eu só consegui desfazer parte da ilusão — ela explicou. — Ainda estamos presos
aqui e a outra não pretende nos deixar ir.
— Quer dizer que tem outra?
— Foi o que acabei de dizer.
— E como vamos encontrá-la?
— Não se preocupe ela virá.
— É isso que me preocupa.

***
Os passos pesados do homem e da garota afundavam na lama deixando pegadas
profundas no chão enlameado da floresta. O ar ganhava um aroma putrefato atraindo
moscas e toda sorte de comedores de carniça que voavam sobre a copa das árvores a
procura de alimento. A medida que a tarde caia e a dupla aprofundava-se na parte mais
densa da floresta, o ambiente antes ameno e iluminado agora adotava uma penumbra
sobrenatural.
— Como vai chamá-la? — Dreany falou procurando o sol entre as frestas nas folhas.
— O que? — Anker disse sem entender.
— Sua espada — explicou. — Grandes guerreiros nomeiam suas armas.
— Não sou um grande guerreiro, nem mesmo um pequeno — colocou a espada
longa diante dos olhos e a analisou. — E essa arma não é minha.
— Então deixa que eu escolho o nome — a garota parou na frente de Anker e
colocou a mão no queixo franzindo a testa. — Já sei. O que você acha de “Desalento”?
Anker observou a lâmina do cabo envolto em couro até a ponta suja e velha,
lembrou de quando retirou a arma de dentro o ossário e disse:
— O nome condiz com ela.
— Perfeita para você, que parece sempre melancólico — Dreany disse retomando a
caminhada.
Anker apoiou Desalento no ombro e seguiu a garota.
Algumas horas de caminhada depois, a noite começava a cair, a fome tornara-se
uma companhia insuportável e a escuridão aumentava o perigo.
— Precisamos parar — sugeriu Anker já usando a espada como bengala.
— Estamos perto — Dreany responder dando passos aparentemente sem rumo —
Consigo senti-la.
— Você diz isso desde que saímos do monte de ossos.
— Mas dessa vez é sério.
— E nas outras vezes você estava mentindo? — disse irritado.
— Não adianta parar-mos — ela olhou sobre o ombro mais a escuridão da floresta
iluminada somente pela luz da lua entre as folhas impedia que Anker visse pouco além da
silhueta da garota. — É isso que ela quer: nos derrotar com cansaço, frio e fome.
— Incrível como o plano está se saindo bem.
Dreany ficou em silêncio. Nunca fugia de uma discussão, mas estava cansada
demais para pensar em algo não fosse resolver o problema atual da bruxa que os caçava,
sentia a presença da criatura em volta deles sem se mover no entanto nem atacava nem
fugia. Não era uma ilusão, pois a Teceversos já teria desfeito com o harmonus da lei que
usou em Deref. Lembrou do ossário e da forma que ele estava disposto, “uma invocação”,
pensou. No céu os abutres grasnavam ainda aguardando seu banquete, voavam em
círculos pacientes e vigilantes. “Claro ela está…”
— Você consegue fazer fogo? — Anker perguntou.
— Não.
— Consegue matar um homem com o olhar, mas não consegue fazer uma tocha?
— Exatamente — ela disse ríspida. — Não é que eu não consiga, é que eu não sei.
— Pensei que os magos da Torre soubessem fazer qualquer coisa.
— E mais uma vez você está errado, Anker de Perenir. Focamos nossos estudos em
uma área para sermos os melhores naquilo, é perca de tempo aprender tudo porque no fim
não terá profundidade no que sabe. Eu por exemplo sou uma linguista e sem querer me
gabar, a melhor da Torre, sou fluente na língua antiga do império, em shakar e merk do País
de Areia, em iazenis do reino detrás da Coluna da Serpente, em…
— Nenhuma dessas coisas é importante no momento e pensei que você boa com os
harmonus.
— Alguns sim — ela explicou. — Como eu disse antes, os harmonus são
extremamente complexos. Estudar e compreender os todos os sete é algo que levaria uma
vida inteira e talvez não conseguisse.
— Ótimo.
Um gemido veio das sombras, seguido por outro e mais outro.
Formas humanoides erguiam-se da lama banhados pelo manto branco de densas
brumas vindas de todas as direções. As silhuetas colocaram-se de pé e deram passos
trôpegos na direção da dupla que ficou acuada um de costas para o outro.
— Não me diga que… — Anker falou assustado pondo Desalento diante dele
esperando que a arma lhe servisse de proteção.
— Sim, são mortos-vivos — a garota respondeu.
Como Dreany imaginava a bruxa estava preparando terreno, transformando a
floresta em um pântano para facilitar a invocação das criaturas. Almas perdidas agora
residem naqueles corpos moribundos, obcecados por vingança, ódio ou qualquer motivo
que os impede de descansar nos salões de Ôerir. Os corpos cobertos de lama caminham
lentamente murmurando frases incompreensíveis que não significam nada além de ecos
provindos dos espíritos perturbados.
O primeiro morto-vivo atirou-se em cima de Anker que ergueu a espada
atravessando o peito do cadáver e logo em seguida arremessou-o longe, mas o moribundo
levantou como se nunca tivesse sido atingido e retomou a lenta investida acompanhado do
bando defuntos.
— O que faremos agora? — Anker perguntou olhando para os mortos-vivos que
vinham de todos os lados, a escuridão impedia-o de contar quantos haviam ao todo, mas
podia visualizar pelo menos dez corpos de pé diante deles.
— Nunca vi coisas como essas antes — Dreany disse. — Mas precisamos de fogo
para acabar com eles.
— Fogo que você não sabe fazer, acredito.
— Seu senso de humor em momentos assim é cativante, Anker.
Um morto-vivo atacou Dreany agarrando-a pelos braços e abrindo a boca para uma
mordida. A garota chutou o defunto que continuou preso em sua capa, outros se juntaram e
cercados eles estavam impossibilitados de fugir.
Anker cravou a ponta de Desalento na face do inimigo que segurava Dreany e a
criatura a libertou. Um outro golpe destinado ao morto-vivo a sua frente encontrou seu alvo
separando a cabeça do corpo, destruindo o pescoço e parte do ombro. Teceversos
começou a recitar um feitiço na mesma língua em que tinha falado no casebre para matar
os capangas de Sparg. O homem balançou a espada jogando o peso de um lado para o
outro decepando o braço podre de um defunto e depois abrindo o estômago de outro,
espalhando vísceras com um cheiro insuportável pelo chão. Ele sentia mais medo das
palavras de Dreany do que do bando de mortos.
A voz da garota ecoava pela negritude da floresta, cada palavra soava como uma
ofensa aos deuses. Misturado aos gemidos dos mortos-vivos, o som era como o anúncio de
uma desgraça. Anker continuava golpeando inimigos tentando afastá-los de Dreany, mas
ele mesmo não queria estar próximo dela enquanto o feitiço era recitado.
A última palavra foi dita. Grave e sibilante encerrou-se abruptamente como uma
canção interrompida.
Os defuntos continuaram atacando incansáveis, Dreany caiu de joelhos e foi coberta
pelas criaturas que a arranhavam e mordiam. Anker agarrou alguns pelas vestes e os jogou
para trás também sendo atacado por todas as direções, o sangue dele misturava-se aos
dos mortos e escorria pelos braços e pelo dorso. Perfurou as costas de um moribundo, que
prendia os cabelos da garota entre os dedos, e após retirar a lâmina decepou a mão
libertando a cabeça de Dreany ainda segurada pelos braços e pela capa.
— Não aconteceu nada — Anker disse desesperado segurando o grito enquanto um
morto-vivo cravava os dentes em suas costelas.
A garota abatida mal tinha forças para responder algo ou mesmo reagir aos ataques.
— O que você fez…
Um grito diabólico veio de detrás do bando de mortos.
Os defuntos pararam de atacar.
Um outro urro de dor atravessou a floresta, desta vez tão alto que Anker não soube
de qual direção vinha. O homem paralisou com o terceiro grito mais baixo, mas ainda
expressando tortura genuína. Lembrou da agonia da falecida esposa no momento do parto
que acarretou em sua morte.
Os defuntos agora inertes começaram a tombar um a um, retomando seu estado
natural de morte do qual nunca deveriam ter saído. Após o último corpo ceder, um par de
línguas de fogo azulado surgiram na escuridão, à medida que aproximaram-se, Anker pode
ver os contornos a quem pertenciam aqueles dois olhos azuis flamejantes. A luz da lua de
Zóry revelava traços humanos vestindo um vestido vermelho desbotado com bordados
amarelos e verdes, uma cabeleira negra volumosa coroava a cabeça de traços demoníacos.
Dentes tortos saindo da bocarra desproporcional ao crânio, orelhas pontudas e pele grossa
como couro curtido. “A bruxa”, Anker pensou. Das narinas, ouvidos e boca da criatura
sangue derramava como se o líquido estivesse por conta própria abandonando o corpo
abominável da bruxa de olhos de fogo azul.
— Pelos deuses o que você fez? — ele sussurrou para Dreany que estava sentada
no chão em um estado de semiconsciência.
A bruxa deu um passo e caiu sobre o joelho, com uma expressão assustadora de
dor na face ela tentava falar algo, mas a tarefa se tornou algo quase impossível.
— Enfraquecimento verdadeiro — Dreany falou em um tom tão baixo que Anker mal
notou.
— O que? — ele disse nervoso.
— Acaba com ela… Antes que o efeito acabe.
Anker olhou para a bruxa que esforçava-se para ficar em pé novamente.
— NÃO! — gritou a criatura que diferente da bruxa anterior já não lembrava em nada
um humano. — Matarei os dois e os devorarei.
Segurando firme o cabo de Desalento entre os dedos, o homem respira fundo e
parte em investida contra a bruxa. As chamas nos olhos da criatura ardem intensamente,
ela inspira fundo inflando o peito até ser possível enxergar, mesmo na baixa luz, as costelas
se dividindo por baixo do tecido fino do vestido vermelho. Anker correndo por cima dos
corpos espalhados pelo caminho viu a cena e lançou-se no chão por puro instinto.
Um jato de fogo azulado espalhou-se como um leque, deitado sobre um cadáver
Anker permaneceu de olhos fechados enquanto as chamas demoníacas o cobriam. Rolou
colocando o corpo sobre si e mesmo não sendo quente o fogo azul derreteu o escudo
improvisado de Anker, carne morta derretia sobre ele exalando um aroma pútrido que
deu-lhe ansia de vomito.
— Merda! — ele gritou.
Abriu os olhos e as chamas infernais tinham se extinguido exceto por algumas
labaredas que alimentavam-se de alguns defuntos no chão. Anker jogou de lado o que
restou do corpo que o protegeu e voltou o rosto para Dreany. “Ela está bem”, a garota
estava desmaiada, mas não mostrava nenhum sinal de que fôra atingida. Com um salto
colocou-se de pé, ergueu a espada e partiu para contra-atacar a bruxa surpresa com a
sobrevivência do guerreiro.
A criatura encolheu-se quando Desalento foi erguida no ar.
Um golpe furioso entre a cabeça e o ombro da bruxa. A lâmina foi empurrada pelos
músculos enrijecidos de Anker, partindo ossos, órgãos e por fim tirando a vida da bruxa que
o atormentava. Estranhamente ele acabou em poucos segundos com o terror de um dia
inteiro e vingou os que foram ceifados pelas bruxas.
O homem retirou o aço de dentro da criatura, as chamas nos olhos dela se
extinguiram e a névoa dispersou-se. Anker estava só novamente, acompanhado por um
campo de mortos e pela lua.

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