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A SOBERANIA NACIONAL E A DELIMITAÇÃO DE TERRITÓRIOS: O CONFLITO DA GUIANA

VERSUS VENEZUELA E AS TRATATIVAS PELA PAZ 1

VOLUME III
NÚMERO 1
JAN-JUN/2021

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME I | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2020


EDITORIAL

A REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA, da Faculdade


do Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS, sediada em Recife,
estado de Pernambuco, tem seu foco e escopo voltado para
estudos jurídicos com interface nas novas tecnologias e/ou ensino
jurídico e/ou sociedade em transformação e com publicação de
seus fascículos de forma semestral.
O periódico encontra-se estruturado segundo as
diretrizes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES) e vinculado ao Programa de Pós-
Graduação em Direito, Compliance, Mercado e Segurança
Humana da Faculdade CERS.
A presente edição é apresentada aos leitores com
06 (seis) títulos, todos inéditos, e criteriosamente selecionados pelo método Double
Desk Review, viabilizando a impessoalidade e cientificidade proposta pelo periódico.
Todos os artigos foram avaliados por professores doutores. Na presente edição há um
texto escrito no idioma italiano, cujo autor é vinculado ao Centro Ricerca e
Documentazione della FR International (Napoli) e é fundador do Osservatorio sui Diritti
umani dell’UNISA (Salerno). Em relação aos demais, 80% são oriundos de nacionais
vinculados a instituições fora do estado na qual a revista encontra-se sediada, tudo em
prestígio ao princípio da exogenia.
Uma das marcas do século XXI se deu pelo avassalador desenvolvimento da
tecnologia da informação e da comunicação e este fato impactou em transformações
substanciais no tecido social, em vários campos do saber e, no direito, com repercussão
na ordem jurídica em seus diversos subsistemas. Neste contexto, por intermédio do
presente editorial é disponibilizado ao público o Volume 03, Fascículo 01 e nele
encontram-se publicados os seguintes textos:

Impactos das novas tecnologias na prova previdenciária


Felipe Camilo Dall’Alba e Fernando Rubin

Vírus sacer: bioetica, ecologia e animalismo in Italia


Francesco Rubino

Depois da razão: crise da metafísica e desafios para a democracia contemporânea


José Garcez Ghirardi
Repensando o ensino jurídico a partir da pandemia (covid-19) e as novas
tecnologias para a educação à distância
Liane Tabarelli e Rodrigo Wasem Galia

Ensino jurídico e inteligência artificial: levando a sério a transformação digital


nos cursos de Direito
Rodrigo Mioto dos Santos, Luiz Magno Pinto Bastos Júnior e Alexandre Morais da Rosa

As lições do direito italiano para a mitigação do prejuízo no direito brasileiro


Silvano Flumignan

A todas e a todos, desejamos uma boa leitura!

Oton de Albuquerque Vasconcelos Filho


Editor Responsável da Revista Científica Disruptiva
VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021

IMPACTOS DAS NOVAS


TECNOLOCIAS NA PROVA
PREVIDENCIÁRIA
Felipe Camilo Dall’Alba1
Fernando Rubin2

RESUMO: O artigo tem como objetivo tratar do direito à prova e


as novas tecnologias com destaque, para o processo
previdenciário. O método utilizado para a presente investigação
foi o hipotético-dedutivo e os tipos de pesquisa foram de caráter
qualitativo, bibliográfico e jurisprudencial. O processo
RECEBIDO EM: 01/06/21
previdenciário é um dos locais onde o ambiente virtual está sendo
ACEITO EM: 19/06/21 testado com bastante força, pois o direito material em debate, em
razão de suas peculiaridades, assim permite. Destaca-se a prova
testemunhal nas audiências telepresenciais e para os
depoimentos gravados pelos próprios advogados. O artigo
aborda, também, a respeito da inteligência artificial, que ainda
está em desenvolvimento, mas que pode ser aplicada no campo
previdenciário. A hipossuficiência técnica é uma realidade e não
pode ser desconsiderada, quando se fala em utilizar tecnologias
no sistema de justiça. Assim, faz-se um alerta sobre o perigo das
novas tecnologias, para o processo, devendo-se respeitar os
direitos fundamentais processuais, sob pena de transformar o
processo num mero procedimento.

PALAVRAS-CHAVE: prova; novas tecnologias; direitos


fundamentais; hipossuficiência; processo previdenciário.

1
Procurador Federal da AGU, Professor de pós-graduação, doutorando em
processo civil pela PUCRS, mestre em processo civil pela UFRGS.
2
Advogado em Direito Social, Professor de pós-graduação, doutor em processo
civil pela PUCRS, mestre em processo civil pela UFRGS.

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4 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

IMPACTS OF NEW TECHNOLOGIES ON THE SOCIAL


SECURITY EVIDENCE
ABSTRACT: The article aims to address the right to proof and new technologies with
emphasis on the social security process. The method used for this investigation was the
hypothetical-deductive and the types of research were qualitative, bibliographical and
jurisprudential. The social security process is one of the places where the virtual
environment is being tested with great force, as the material law under discussion, due
to its peculiarities, allows it. Witness evidence stands out in telepresence hearings and
for testimonies recorded by the lawyers themselves. The article also addresses artificial
intelligence, which is still under development, but which can be applied in the social
security field. Technical hyposufficiency is a reality and cannot be ignored when it comes
to using technologies in the justice system. Thus, an alert is made about the danger of
new technologies for the process, and fundamental procedural rights must be respected,
under penalty of transforming the process into a mere procedure.

KEYWORDS: proof; new technologies; fundamental rights; hypo-sufficiency; social


security process.

IMPACTOS DE LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS EN LA PRUEBA


DE SEGURIDAD SOCIAL
RESÚMEN: El artículo tiene como objetivo abordar el derecho a la prueba y las nuevas
tecnologías con énfasis en el proceso de seguridad social. El método utilizado para esta
investigación fue el hipotético-deductivo y los tipos de investigación fueron cualitativos,
bibliográficos y jurisprudenciales. El proceso de la seguridad social es uno de los lugares
donde se está probando con gran fuerza el entorno virtual, como lo permite la ley
material en debate, por sus peculiaridades. Las pruebas testimoniales se destacan en las
audiencias de telepresencia y en los testimonios grabados por los propios abogados. El
artículo también aborda la inteligencia artificial, que aún está en desarrollo, pero que
puede aplicarse en el campo de la seguridad social. La hiposuficiencia técnica es una
realidad y no se puede ignorar a la hora de utilizar tecnologías en el sistema judicial. Así,
se alerta sobre la peligrosidad de las nuevas tecnologías para el proceso, y se deben
respetar los derechos procesales fundamentales, bajo pena de transformar el proceso en
un mero trámite.

PALABRAS CLAVE: prueba; nuevas tecnologías; derechos fundamentales;


hiposuficiencia; proceso de seguridad social.

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 5

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 O DIREITO À PROVA, NOVAS TECNOLOGIA E A


JUSTIÇA CIVIL; 2.1 Conceito de prova e momentos probatórios; 2.2 Produção da Prova
testemunhal no ambiente virtual; 2.3 Substituição da prova testemunhas pela documental;
2.4 A utilização da inteligência artificial por parte dos advogados e juízes; 3 ALERTA: USO
ABUSIVO DAS NOVAS TECNOLOGIAS; 3.1 Desrespeito ao contraditório e a ampla defesa;
3.2 Hipossuficiência tecnológica; 3.3 Proteção dos processos em face de ataques
cibernéticos; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo tratar do direito à prova e as novas


tecnologias nos processos previdenciários, que, inclusive, é um dos locus onde é possível
medir e sentir o impacto. E isso não é novo, pois do sistema eproc, no início dos anos
2000, começaram os sensíveis avanços tecnológicos e digitais nos juizados especiais
federais em matéria previdenciária.

Por isso, o texto começa por relembrar os momentos da prova e seus nexos
com as novas tecnologias, tais como audiências por videoconferência, gravações
assíncronas e inteligência artificial.

Já o segundo ponto tem o objetivo de oferecer uma crítica e fazer um alerta


ao uso das novas tecnologias, sendo a baliza o resguardo do devido processo legal, com
suas garantias, como por exemplo, o contraditório e a ampla defesa, para fins de
construção de um processo justo e qualificado.

Assim, por meio de método hipotético-dedutivo e de pesquisa qualitativa,


bibliográfica e jurisprudencial, espera-se que o leitor, operador do direito previdenciário,
possa compreender, no decorrer da leitura, os impactos presente e futuros das novas
tecnologias no âmbito das demandas no direito social.

2 O DIREITO À PROVA, NOVAS TECNOLOGIA E A JUSTIÇA CIVIL

O estudo da prova foi impactado diretamente com o advento das novas


tecnologias. Começou-se a falar, por exemplo, em print da página do face book, print
das conversas do Whatsapp, divulgação de vídeos, audiência telepresenciais, além da
inteligência artificial. Todos são problemas que geram consequências no âmbito
processual, pois as partes têm direito à uma prova lícita, segura e confiável, mesmo que
atípica (RUBIN, 2013).

Com isso, nos próximos tópicos, direta ou indiretamente, vamos percorrer


alguns desses novos elementos que estão trazendo diversas inquietações ao sistema.

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6 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

2.1 Conceito de prova e momentos probatórios

As partes possuem o direito à prova, isto é, têm “a liberdade de criar ou


reforçar os pressupostos para a obtenção de uma determinada consequência jurídica,
qual seja, uma decisão judicial favorável e a do poder de exercer influência na
determinação dos pressupostos a serem considerados na construção da decisão do órgão
jurisdicional” (REICHELT, 2009, p. 326).

A prova, segundo Reichelt, pode ser designada como um argumento


empregado no contexto do debate processual, ordenado segundo normas ético-jurídicas
e lógico-argumentativas, o que se diferencia em relação aos demais argumentos
empregados em tal contexto em função do seu conteúdo e de sua finalidade. O conteúdo
é o resultado do contraste entre as alegações sobre fatos juridicamente relevante que
sejam objeto de controvérsia ao longo do debate processual e aquilo que efetivamente
se passou no mundo extraprocessual. Já a finalidade, é tornar presente, diante dos olhos
dos magistrados, um retrato possível da realidade considerada juridicamente relevante
para o deslinde do debate processual, de maneira a influenciar na formação do
convencimento. Assim, os meios de prova, não são a prova, são os instrumentos
empregados pelas partes ou pelo juiz para construir razões que integram a estrutura
argumentativa (REICHELT, 2009, p. 111-112).

O direito à prova se desdobra em direito à proposição de provas, à admissão


da prova proposta, ao direito à produção de provas admitidas e ao direito à valoração
das provas (REICHELT, 2009, p. 327). Nessa senda, a prova possui momentos, quais
sejam: o da propositura, o da admissão e o da avaliação. Ora, a propositura da prova é
uma atividade da parte, já a admissão e a avaliação são atividades do juiz.

No que tange à propositura da prova, tem que dizer que a defesa de um direito
prioritário a prova é algo muito sério. Não é de hoje que insistimos que a questão da
admissibilidade da prova não pode ficar ao mero arbítrio do julgador (RUBIN, 2014).

O terreno da admissão da prova vai dizer respeito ao momento em que o juiz


autoriza ou não a inserção da prova no processo. Mas essa possibilidade não é ampla e
irrestrita, já que o Estado-juiz não é o único destinatário da prova (Apelação Cível
50000835020184047113, TRF 4, Des. João Batista Pinto Silveira). Ensina Reichelt que a
admissibilidade da prova concerne à aferição da possibilidade de uma específica
ferramenta na investigação da realidade histórica desenvolvida ao longo do processo
(REICHELT, 2009, p. 325).

A produção da prova depende, naturalmente, do meio probatório. Em regra,


a prova documental é produzida na petição inicial e na contestação, a prova testemunhal
é produzida em audiência, a perícia vem aos autos por meio de laudo.

Por sua vez, a avaliação da prova vai se dar quando o juiz decide o caso. O
sistema brasileiro é o da persuasão racional, ou seja, as provas não possuem valor
determinado. Conforme doutrina Reichelt:

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 7

diversas soluções já foram apresentadas ao longo da história do direito


processual em relação ao problema da eficácia das provas na formação do
convencimento jurisdicional, as quais oscilam entre os polos dos sistemas da
prova legal e da ideia de liberdade do convencimento judicial. (REICHELT,
2009, p. 187)

Nesse diapasão, o modelo de avaliação da prova, previsto no CPC, é o da


persuasão racional, ou seja, o juiz apreciará a prova constante nos autos,
independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará, na decisão, as razões
da formação de seu convencimento (art. 371).

O outro modelo de avaliação da prova é o da prova legal que, para Carlos


Alberto Alvaro de Oliveira, inibiu a discricionariedade do juiz, na valoração dos
elementos singulares da prova; porém, a estrutura do cálculo por ele efetuado
correspondia à estrutura da situação probatória específica, geralmente aproximada à
situação verificada no caso concreto. Já a prova legal codificada impõe resultados
vinculantes e incontestáveis a determinados tipos de provas (OLIVEIRA, 2008, p. 160).
E, no modelo da íntima convicção, o juízo decide livremente, mas não precisa
fundamentar sua decisão, a exemplo do Tribunal do Júri.

Durante décadas o tema da prova permaneceu em águas calmas, cuja maior


discussão se dava em torno da prova emprestada, para se saber se deveria ou não
respeitar o contraditório. Mas com o advento da internet tudo isso mudou. Seguimos,
então, nos próximos tópicos explorando os mais decisivos impactos.

2.2 Produção da Prova testemunhal no ambiente virtual

Tradicionalmente, até bem pouco tempo, a audiência era presencial,


confundindo-se, para muitos, o trabalho jurisdicional, com o local físico onde o a
trabalho era prestado.

Assim, de acordo com o Art. 361 do CPC as provas orais serão produzidas em
audiência, ouvindo-se preferencialmente primeiro o perito e os assistentes técnicos; o
autor e, em seguida, o réu, que prestarão depoimentos pessoais; as testemunhas arroladas
pelo autor e pelo réu, que serão inquiridas. Porém, esse cenário sofreu mudanças drásticas.
Com efeito, a audiência presencial foi substituída por audiências à distância.

A experiência do uso de audiências à distância não é algo novo no sistema


brasileiro. Porém, a pandemia acelerou a sua inserção no dia a dia de todo o sistema de
justiça. Tanto não é novo, que o CPC já tinha previsão de sua utilização, como por
exemplo, o depoimento pessoal por videoconferência, oitiva de testemunha e acareação
(respectivamente Art. 385. § 3º, Art. 453. § 1º, Art. 461, § 2º). Segundo, Fredie Didier, Paula
Braga e Rafael de Oliveira, inquirição à distância visa desburocratizar o procedimento em
atenção ao princípio da eficiência. Entendem os autores que a testemunha pode estar em
qualquer lugar (DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 253-254).

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8 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

Nessa esteira, o CNJ acelerou a implantação de tais ambientes virtuais por


meio da Resolução CNJ 345/20 que instituiu o juízo 100% digital:

Art. 5º As audiências e sessões no “Juízo 100% Digital” ocorrerão exclusivamente


por videoconferência. Parágrafo único. As partes poderão requerer ao juízo a
participação na audiência por videoconferência em sala disponibilizada pelo
Poder Judiciário. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, p. 2)

Observe-se que estamos trabalhando com audiências síncronas, ou seja, o


evento é ao vivo. Não nos parece o ideal gravar o depoimento das partes de forma
individual e depois juntar nos autos. Isso acabaria for ferir o contraditório. Se bem que,
na esteira da lógica da prova emprestada, à luz do novel art. 372 do CPC, o contraditório
pode ser diferido no processo, ainda admitindo-se a prova emprestada mesmo que não
haja identidade de partes – o que também é reforçado no Enunciado n° 30 do Conselho
da Justiça Federal (CJF).

Outro detalhe interessante é que o sistema brasileiro não utilizou qualquer


critério de exclusão para o uso de audiências por videoconferência. Não utilizou, por
exemplo, o critério valor da causa ou o critério complexidade da causa. Em sentido
oposto, propôs Richard Susskind: “I predict, then, that online courts an ODR will prove
to be a disruptive technology that fundamentally challenges the work of traditional
litigators and of judges. In the long run, I expect them to become the dominant way to
resolve all complex and high-value disputes.” (SUSSKIND, 2017, p. 121).

Além disso, para Reichelt é equivocado obrigar as partes a realizar audiência


pelo sistema virtual, isso está no campo da discricionariedade. Ainda segundo ele, em
sede de atividade de instrução, a prática de atos processuais por meio eletrônico sempre
foi vista como uma escolha que passava por conveniência das partes e do juízo
(REICHELT, 2021, p. 268).

Sublinhe-se que se trata, aqui, de possibilidade que, por certo, nunca impediu
a parte de manifestar sua vontade de praticar o ato na sede do juízo, às suas expensas,
mas, antes, sempre foi pensada como uma forma de racionalizar o custo em termos de
despesas e de tempo associados às providências envolvidas na oitiva do relato da parte
em outra comarca, seção ou subseção judiciária. Não haveria fundamento para o
julgador que insistisse em rejeitar o pleito da parte que manifestasse sua preferência por
comparecer espontaneamente à sede do juízo para prestar o seu depoimento pessoal em
audiência designada para tanto. Essa mesma lógica vale, por certo, também para a
possibilidade de produção de prova testemunhal por videoconferência acareação
(REICHELT, 2021, p. 268).

Seja como for, utilizando-se dos negócios jurídicos processuais, seria possível
às partes acordarem de realizarem determinadas audiências na forma presencial,
submetendo o entendimento conjunto à homologação judicial – o que reforçaria a opção
dos litigantes pelo espaço presencial, dadas as questões específicas do caso concreto.

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 9

Nesse sentido, ao prever que as audiências e sessões no “Juízo 100% Digital”


ocorrerão exclusivamente por videoconferência, a opção normativa acaba por engessar
o sistema, de modo a não permitir que o julgador, no exercício dos poderes de direção
do processo que lhe são associados nos arts. 139 e 932 do Código de Processo Civil, possa,
eventualmente, lançar mão de outra forma que se repute mais satisfatória para a prática
pontual de determinado ato processual.

De maneira especial, pensa-se que o melhor seria permitir que as partes


pudessem, mediante consenso, indicar ao julgador sua vontade no sentido de audiências
de mediação, nas quais se busca a restauração da comunicação entre elas, pudessem ser
realizadas de maneira presencial (REICHELT, 2021, p. 269).

Para Reichelt, um critério que poderia ser levado em conta, para utilizar o
sistema de vídeo conferência, é a maior ou menor comodidade para fins de oferta do relato,
levando-se em conta a perspectiva do depoente a esse respeito. Lógica análoga à acima
apontada pauta a possibilidade de o advogado com domicílio profissional em cidade diversa
daquela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por videoconferência ou
outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, na forma do
art. 937, § 4º do Código de Processo Civil (REICHELT, 2021, p. 269).

2.3 Substituição da prova testemunhas pela documental

O ambiente virtual tem gerado um efeito colateral, que talvez não fosse imaginado.

Diante da dificuldade e da demora em se obter a oitiva das testemunhas, ou


seja, da ineficiência da prova testemunhal, aliada a facilidade em se preencher
documentos na internet, tem propiciado um movimento recente de substituir a prova
testemunhal, pela documental.

No processo previdenciário a questão salta aos olhos, com os movimentos


contemporâneos de se admitir a autodeclaração do segurado – para fins de
reconhecimento de atividade rural ou união estável – e a declaração das testemunhas
por escrito, levado a registro público as suas assinaturas antes mesmo do ingresso do
processo perante o juízo federal.

Susskind, inclusive, já tinha antevisto a importância da automação dos


documentos para os novos tempos do sistema jurídico ao dizer que “não tão sofisticados
quanto os sistemas de montagem automatizada de documentos em escala real são os
serviços online que fornecem aos usuários modelos básicos de documentos”
(SUSSKIND, 2017, p. 46). Diz o mesmo autor, na mesma senda, que tal sistema “permite
que os documentos sejam gerados em minutos que, no passado, demoravam muitas
horas a serem elaborados” (Id, 2017, p. 46).

De fato, repisemos, nas ações de segurado especial, para comprovar o tempo


rural, não é mais necessária audiência de instrução para a oitiva de testemunhas e
tomada de depoimento pessoal, basta o preenchimento de um documento e de

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10 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

declarações escritas, além da prova material; a situação de desemprego, para a


prorrogação do período de graça, vem sendo feita por meio de declaração de
testemunhas ao invés de oitiva presencial. Deixou-se até mesmo de fazer, em muitos
casos, perícia presencial, para ser substituída por análise de documentos. Para testar a
tese aqui lançada, na prática, copiamos um despacho sobre o tema:

Em razão das alterações legislativas promovidas pela Medida Provisória n.


871/2019, posteriormente convertida na Lei n. 13.846/2019, o INSS editou
o Ofício-Circular n. 46/DIRBEN/INSS, com orientações para análise, no âmbito
administrativo, da comprovação atividade de segurado especial a partir de
18/01/2019. De acordo com as diretrizes estabelecidas no referido ato, a
condição de segurado especial pode ser reconhecida com base em
autodeclaração, ratificada por informações obtidas a partir de bases
governamentais ou prova material contemporânea ao período em que alegado
o exercício de atividade rural. Nesse contexto, uma vez que a autodeclaração,
instruída com documentos contemporâneos ao desempenho do trabalho rural,
pode revelar-se suficiente ao reconhecimento pretendido, e tendo em vista os
princípios da celeridade e economia processual, que regem a atuação dos
juizados especiais, afigura-se desnecessária, ao menos por ora, a realização de
audiência para oitiva de testemunhas quanto ao tempo rural. Desse modo, a fim
de melhor instruir o feito, determino a intimação da parte autora para que, no
prazo de 10 dias, junte a Autodeclaração do Segurado Especial - Rural,
devidamente preenchida e assinada. Caso já conste nos autos desses
documentos, apontar sua localização (evento, documento, fls.). O documento
em questão pode ser obtido no endereço eletrônico:
https://www.gov.br/inss/pt-br/centrais-de-
conteudo/formularios/Autodeclaraodoseguradoespecialrural.pdf Deverá a
parte requerente, no mesmo prazo anteriormente referido, listar, em ordem
cronológica, os documentos contemporâneos ao período pretendido
apresentados nestes autos, indicando sua localização (evento, documento, fls.).
Na hipótese de ainda não ter apresentado a aludida documentação, deverá
a parte demandante, em igual prazo, proceder à sua juntada, listando-a em
ordem cronológica, também com indicação de sua localização (evento,
documento, fls.). Registro, nos termos da referida orientação administrativa,
que deverá ser apresentado pelo menos um documento anterior à data
presumida do início da incapacidade, observado o limite temporal de sete anos
e meio.

Contudo, observe-se que a tentativa de substituição da prova testemunhal


por declarações, não é assunto novo. O próprio CPC não aceita a substituição, pois, o
art. 408 parágrafo único adverte que quando contiver declaração de ciência de
determinado fato, o documento particular prova a ciência, mas não o fato em si,
incumbindo o ônus de prová-lo ao interessado em sua veracidade.

A novidade, portanto, está na autorização legal da substituição da prova


testemunhas por declarações, que no passado não encontravam guarida no sistema. De
qualquer forma, nos parece que, embora exista o permissivo legal, os juízes podem, se
estiverem em dúvida, realizar a audiência para ouvir as partes e as testemunhas. Isso
porque jamais podemos esquecer que o Estado-juiz pode produzir provas de ofício,
conforme a dicção do art. 370, caput, do CPC – não estando na órbita específica das

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 11

partes o comando de complementação da prova, que compete realmente ao diretor do


processo, seja o magistrado de piso, seja o julgador pertencente aos Tribunais de revisão.

2.4 A utilização da inteligência artificial por parte dos advogados e juízes

Segundo estudo da FGV, praticamente todos os tribunais do Brasil estão


elaborando projetos de inteligência artificial, de modo que em pouco tempo a
transformação do sistema de justiça será sentida na prática. Por isso, é interessante
trazer a inteligência artificial, para os mais diversos ramos do direito (SALOMÃO, 2020).

Ainda que insipiente a inteligência artificial significa que as máquinas


pensam, ou melhor, imitam, o pensamento humano; a base é aprender utilizando-se
generalizações que as pessoas empregam para tomar decisões habituais (FENOLL, 2018,
p. 20). A palavra-chave da inteligência artificial é o algoritmo, que seria o esquema
executivo da máquina que armazena todas as opções de decisão, em função dos dados
que se vai conhecendo (FENOLL, 2018, p. 21). Por exemplo, se a temperatura está
elevada, tem-se que ligar o ar-condicionado ou colocar uma roupa leve; assim, a máquina
seria programada a tomar uma decisão avaliando o ambiente em que deve atuar, se é no
ar livre, no interior do domicílio, ou num edifício público (FENOLL, 2018, p. 21).

Para entender como funciona a inteligência artificial, é preciso conceituar,


ainda que superficialmente, o que é aprendizado de máquina (machinelearning),
aprendizado profundo (deeplearning) e processamento de linguagem natural.

Ensina Atheniense que: a) o aprendizado de máquina é um ramo da


inteligência artificial em que os sistemas conseguem aprender com dados, identificar
padrões e tomar decisões com pequena participação humana, aprendendo regras
sozinhos, a partir dos dados com os quais foram alimentados; b) por sua vez, o modelo
de aprendizado profundo (deeplearning) é um ramo de aprendizado de máquina que
relaciona palavras e termos ao analisar uma quantidade massiva de dados. O
deeplearningsó é possível graças à montagem de redes neurais – redes conectadas que
permitem um complexo processo de análise de decisão em teia de camadas, para analisar
múltiplas variáveis e gerar soluções; c) processamento de linguagem natural utiliza
técnicas de aprendizado de máquina, para encontrar padrões num conjunto de dados e
reconhecer a linguagem natural (ATHENIENSE, 2018, p. 161).

Do mesmo modo, segundo Nissan, o aprendizado de máquina realiza a


“mineração” de dados, ou seja, o conjunto de técnicas, para peneirar por meio de uma
enorme massa de dados, com o objetivo de chegar à informação e a padrões. Tipos de
mineração de dados incluem, por exemplo, mineração preditiva de dados; segmentação;
resumo de dados; série temporal, por previsão; emineração de texto (NISSAN, 2015, p. 445).

Ademais, ensina Turing, que uma característica importante de uma máquina


de aprendizagem é que seu professor, muitas vezes, ignorará o que está acontecendo
dentro dela, embora ainda possa ser capaz de prever o comportamento de seu aluno.

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12 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

Assim, tal ferramenta poderá competir com os homens em todos os campos puramente
intelectuais (TURING, 1950).

A inteligência artificial pode ser fraca ou forte. Na inteligência artificial fraca,


é possível que as máquinas atuem de forma inteligente (ou como se fossem inteligentes);
contudo, na hipótese da IA forte, as máquinas realmente pensam (em oposição ao
pensamento simulado) (RUSSELL, 2004, p. 1075).

No regime probatório, inicia-se o inventário pela admissão da prova. Quanto


à admissão da prova, Fenoll é bastante otimista, pois afirma que a atividade de admissão
é bastante previsível e se poderia fazer uma máquina que admitisse, por exemplo, os
documentos e a perícia (FENOLL, 2018, p. 37). Claro, a facilidade na admissão da prova,
pensada por Fenoll, diz respeito às provas não controvertidas, pois a complexidade
aumenta, por exemplo, quando da avaliação da prova ser ou não ilícita, ou seja, toda vez
que a máquina tem que emitir um juízo de valor a sua atividade é limitada.

Então, como operaria a máquina de aprendizagem, na prática, no sistema da


persuasão racional, tanto na avaliação da declaração das pessoas (que abrange
depoimento pessoal das partes e o depoimento das testemunhas) na análise de perícias
e de documentos? No que tange à avaliação da prova, deve-se ter o máximo cuidado,
pois a inteligência artificial, por se basear em repetições, tende a criar modelos rígidos
de avaliação probatória, numa volta à prova legal.

Fenoll afirma que a inteligência artificial pode ser importante, em


consideração às circunstâncias que afetam a credibilidade do testemunho (FENOLL,
2018, p. 80). Por exemplo, o ADVOKATE é um programa que inclui informações como a
distância entre a testemunha e o autor; a duração da observação; e as condições de
visibilidade ou iluminação (NISSAN, 2015, p. 443).

Porém, alerta o mesmo autor que esses programas trabalham com estatísticas,
que foram embasadas em processos anteriores; contudo, pode ser que a compilação desses
assuntos tenha sido feita de maneira incorreta (FENOLL, 2018, p. 83-84).

Com efeito, na análise da contextualização do fato, a inteligência pode ser


importante, ou seja, é crível utilizar inteligência artificial, para analisar os detalhes que
uma pessoa oferece sobre o ambiente em que os fatos ocorreram. Por exemplo, a
descrição do clima no dia da ocorrência do fato, existência de barulhos. O aplicativo
deve ser capaz, também, de realizar a leitura dos dados obtidos em outros meios de
prova e comparar com o que disse o interrogando (FENOLL, 2018, p. 85). Na Espanha,
foi criado o aplicativo Veripol em que a polícia detecta denúncias falsas.

Com relação à formulação de perguntas no interrogatório das partes, Fenoll


também entende ser possível criar uma inteligência artificial, para aceitar apenas
perguntas neutras, que melhorariam o nível dos interrogatórios. Por exemplo, seria
possível perguntar como era a pessoa acusada e não como era a camisa da pessoa acusada
(FENOLL, 2018, p. 89).

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 13

Porém, Fenoll é categório em afirmar que “a inteligência artificial pode


melhorar parte do trabalho de valoração da prova testemunhal e ajudar na motivação
sobre as provas, mas dificilmente pode substituir o magistrado até as últimas
consequências” (FENOLL, 2018, p. 87).

Embora limitada, a inteligência artificial pode colaborar, igualmente, com o


juízo na avaliação da prova documental lendo a linguagem, que pode ser eficaz para
buscar o vocabulário e expressões que sejam comuns em cada contexto. Por exemplo, a
linguagem não habitual num documento administrativo pode demonstrar o desvio de
poder. O uso de um vocabulário familiar num documento familiar pode revelar uma
estafa ou um vício do consentimento. A riqueza do vocabulário, numa carta, pode revelar
o seu autor, que pode ter baixo nível cultural (FENOLL, 2018, p. 93).

Porém, Fenoll é categórico, também, em afirmar que a inteligência artificial


não tem capacidade de interpretar, por isso é preciso um ser humano, para entender o
significado das palavras (FENOLL, 2018, p. 93).

Quanto à avaliação da prova pericial, a inteligência artificial poderia ajudar


nas falhas de coerência, nos resultados da perícia; isto é, cálculos errados, medições
desproporcionais ou conclusões que não correspondem aos dados aos quais o mesmo
perito recorreu em seu exame e que apresenta no parecer (FENOLL, 2018, p. 98). Nesse
mesmo sentido, nas ações de incapacidade envolvendo a previdência, a ferramenta
poderia ser usada para comparar se a incapacidade reconhecida pelo perito é coerente
com os demais atestados médicos juntados nos autos, bem como se a deficiência
atestada é compatível com a última atividade exercida, pois se o segurado é empresário,
uma dor no joelho não o incapacita para o trabalho.

Não só na avaliação da prova testemunhal, pericial e documental a


inteligência artificial pode ser relevante. A inteligência artificial pode ser útil, também,
para formar inferências lógicas, para encontrar um resultado. Nissan afirma que, por
exemplo, descobriu-se que 80% dos clientes que compraram os livros X e Y também
compraram um livro sobre o assunto Z. Algo similar pode ser interessante ao rastrear,
digamos, transações ilegais. “O problema das regras de associação de mineração pode
ser declarado da seguinte forma: dados valores predefinidos para suporte mínimo e
confiança mínima, encontramos todas as regras de associação que contêm mais do que
apoio mínimo e confiança mínima” (NISSAN, 2015, p. 455). Seria mais ou menos o que
diz o professor Reichelt: “a aferição do grau de probabilidade associado à determinada
prova dependerá, por certo, da consistência da regra de experiência empregada na
construção do respectivo argumento (REICHELT, 2009, p. 227).

Além disso, lembra Fenoll, que é possível criar um algoritmo que diga ao juiz
se uma hipótese inclui todos os dados probatórios possíveis ou se é possível formular
novas hipóteses probatórias. Tais ferramentas utilizam-se de dados estatísticos
anteriores (FENOLL, 2018, p. 110-111). Pode-se citar, como exemplo, o ALIBI, que
prognostica o comportamento defensivo dos réus (FENOLL, 2018, p. 111): a acusação
afirma que o acusado quebrou o vidro de uma vitrina de joalheria; entrou, atirou e feriu

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14 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

o joalheiro e, depois, fugiu levando objetos de valor com ele. O ALIBI afirma que “ele”
quebrou o vidro acidentalmente, e que “ele” entrou para deixar uma nota com suas
coordenadas (NISSAN, 2015, p. 452). Assim, as ferramentas de inteligência artificial têm
o condão de colaborar para melhorar o nível de acerto dos julgamentos.

Contudo, o uso da inteligência artificial também está sujeito a críticas, a


lembrar Lênio Streck que entende que:

Primeiro, o nível da mera substituição do exame de recursos e petições por


robôs, o que significa, nos tribunais, a perda de efetividades qualitativas,
trocadas por efetividades quantitativas, prejudicando milhões de pessoas em
seus direitos fundamentais. Robô não fundamenta. Logo, ocorre a violação do
artigo 93, IX, da Constituição. (STRECK, 2019)

Então, partindo da crítica de Lênio Streck, há que se compreender que o uso


indiscriminado das novas tecnologias, pode ser ineficiênte e prejudicar os direitos
fundamentais das partes.

3 ALERTA: USO ABUSIVO DAS NOVAS TECNOLOGIAS

Na presente quadra histórica, estamos observando na prática da justiça civil


que os juízes, provavelmente em razão da facilidade de acesso às novas tecnologias, têm
repassado às partes a tarefa de produzir a prova.

Para ilustrar a situação, vamos citar exemplos gritantes, que chamam a


atenção: a) juiz formula as questões em um despacho, para o advogado interrogar o seu
cliente e tudo fica documentado por meio de filmagem; e o juiz determina que a parte
faça uma filmagem, para demonstrar seu estado de saúde.

3.1 Desrespeito ao contraditório e a ampla defesa

Os direitos fundamentais processuais como devido processo legal, segurança


jurídica, contraditório e ampla defesa não podem ser desprezados completamente em
nome da eficiência fordiana (RUBIN, 2021).

Portanto, as situações listadas no item anterior devem ser vistas com reserva,
porque a prova não pode ser colhida sem respeito aos princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa. No momento que o advogado toma o depoimento do
seu cliente, sem a presença da parte contrária, existe um aparente desrespeito ao
contraditório, já que o advogado da parte contrária estará impedido de formular
perguntas. E, como se trata de uma filmagem assíncrona, pode-se pôr em dúvida até
mesmo a veracidade das declarações prestadas.

Tem-se que ter cuidado com o uso indiscriminado e sem critério da prova
unilateral e filmada, pois os processos fazem coisa julgada e interferem, por isso,

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IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA 15

diretamente na vida das pessoas. Observe-se que o TRF firmou uma tese para combater
a privatização da prova que já tinha se tornado praxe entre os juízes de primeiro grau:
IRDR Nº 17:

Não é possível dispensar a produção de prova testemunhal em juízo, para


comprovação de labor rural, quando houver prova oral colhida em justificação
realizada no processo administrativo e o conjunto probatório não permitir o
reconhecimento do período e/ou o deferimento do benefício previdenciário.

Portanto, a outorga da prova para as partes, deve ser vista com certa reserva,
ainda mais se realizada de forma unilateral. Evidentemente que não havendo outras
opções imediatas e com a devida autorização judicial, a prova assim colhida não nos
parece ilícita, embora não seja a forma ideal, repitamos.

Porém, nos parece que, quando presente ambas as partes, elas podem gravar
os depoimentos e remeter ao juízo. Contudo, não pode ser avaliada como prova
testemunhal e sim como prova atípica.

3.2 Hipossuficiência tecnológica

Outro detalhe que não pode ser esquecido é o da hipossuficiência tecnológica


que está presente, muitas vezes, nas pessoas com menos condições financeiras, que não
tem condições de pagar um plano caro de internet, nem mesmo tem condições de
adquirir um celular ou um computador com potência suficiente para participar das
audiências virtuais. Não se pode passar a régua, como se todos fossem iguais.

Portanto, embora mesmo no juízo 100% digital, caso haja determinação de


realização de todas as audiências por meio de teleconferência, caso as partes não tenham
acesso adequado aos meios digitais, isso deve ser comunicado ao juízo, para que se adote
o modelo presencial.

3.3 Proteção dos processos em face de ataques cibernéticos

Com a massificação das cortes virtuais há um novo problema a ser enfrentado


pelo sistema de justiça que são os ataques cibernéticos. O TJ/RS sofreu um ataque
cibernético que ocasionou a indisponibilidade do site e sistema na última sexta-feira. Até
esta segunda-feira, 3, o site está funcionando apenas em link temporário com os principais
serviços. Os prazos foram suspensos até nova determinação (MIGALHAS, 2021).

O TRF da 1ª região sofreu ataque hacker nesta sexta-feira, 27, e o site do


tribunal foi retirado do ar. Ainda não se sabe quais dados foram afetados. Em nota, o
Tribunal informou que foram adotadas medidas preventivas para a preservação do
ambiente e todos os sistemas do Tribunal foram colocados em modo restrito para
permitir investigação (MIGALHAS, 2020).

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16 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

O STJ também já foi vítima de ataque: A presidência do STJ informou nesta


quarta-feira, 4, que acionou a Polícia Federal para investigar ataque cibernético sofrido
pela Corte. O Tribunal sofreu problemas no sistema na tarde desta terça-feira, 3, quando
foram interrompidas as transmissões de todas as sessões, que aconteciam de forma
virtual. O site do Tribunal também está indisponível (MIGALHAS, 2020).

O TSE também sofreu ataque cibernético. Operação da Polícia Federal em


parceria com a polícia portuguesa prendeu um suspeito de ter invadido o sistema do TSE
durante as eleições do último domingo, 15 (MIGALHAS, 2020).

Assim, o sistema de justiça tem que investir em proteção dos dados, pois os
processos são o bem maior dos jurisdicionados, já que lá estão documentos e
informações, muitas vezes, irrecuperáveis. Deve-se por isso, ter a máxima segurança.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, é correto afirmar que o direito à prova é um direito


fundamental no nosso sistema, que colabora para formar o convencimento judicial. E foi
possível verificar, no decorrer no texto, que as novas tecnologias estão impactando
diretamente a prática judicial previdenciária.

Lembre-se que as audiências telepresencias, por meio do juízo 100% digital,


quebrou completamente o paradigma de que o serviço judicial se confundia com o
edifício do foro. Hoje, o juiz está num lugar, as partes em outro e os advogados em outro.

Além disso, o artigo não se furtou de analisar a inteligência artificial no


âmbito da prova. Esse impacto ainda não é sentido de forma concreta, mas em breve
teremos algoritmos para propor prova, admitir a prova e avaliá-las. Certamente um
algoritmo terá condições e ler o laudo dos peritos do juízo e os documentos da autarquia,
como por exemplo, o cadastro social de informações sociais (CNIS), e darão a decisão
nos processos de auxílio-doença.

Certo que vivenciamos um processo de privatização e documentação da


prova, o que exige cautela nos resultados, diante da importância muitas vezes da perícia
presencial, da oitiva de testemunhas e partes em audiência presencial de instrução e
julgamento, como previsto tradicionalmente no codex. Isso tudo, para evitar que o
processo deixe de ser processo e passe a ser procedimento.

Assim, esperamos ter colaborado, para formular uma melhor aplicação


prática das novas tecnologias no ambiente do processo previdenciário.

REFERÊNCIAS

ATHENIENSE, Alexandre Rodrigues. As premissas para alavancar os projetos de


inteligência artificial na Justiça brasileira. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho;

CERS REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA


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Congresso Internacional de Direito, Governo e Tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução n. 345, de 9 de outubro de 2020.


Diário da Justiça [do] Conselho Nacional de Justiça, Brasília, DF, n. 331, p. 2-3, 9 out. 2020.
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512. Acesso em: 4 jun. 2021.

DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
Processo Civil. Salvador: Podivum, 2016. v. 2.

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NISSAN, Ephraim. Digital technologies and artificial intelligence’s present and foreseeable
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OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no Processo Civil. São Paulo:
Saraiva, 2008.

REICHELT, Luis Alberto. Reflexões sobre o Modelo do juízo 100% Digital à Luz do
Direito Fundamental ao Acesso à justiça. In: HAUSCHILD, Mauro Luciano (Org.).
Justiça, cidadania e direitos humanos: homenagem ao Ministro Humberto Martins.
Porto Alegre: Paixão Editores, 2021.

REICHLET, Luis Alberto. A prova no Direito Processual Civil. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2009.

RUBIN, Fernando. Das provas em espécie: da prova documental à inspeção judicial.


Revista Jurídica LEX, v. 63, p. 11-27, 2013.

RUBIN, Fernando. O direito à produção de provas e as correlatas questões


recursais no Projeto do novo CPC. Novas tendências do processo civil - Volume
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RUBIN, Fernando. Repensando os atos processuais: mudanças do processo escrito para


o processo eletrônico e a concretização do direito fundamental das partes ao processo
justo. In: HAUSCHILD, Mauro Luciano (Org.). Justiça, cidadania e direitos humanos:
homenagem ao Ministro Humberto Martins. Porto Alegre: Paixão Editores, 2021.

RUSSELL, S. J.; NORVIG, P. Inteligencia Artificial. Un Enfoque Moderno. Madrid:


Pearson Educación, S.A., 2004.

SALOMÃO, Luis Felipe. Inteligência artificial: tecnologia aplicada à gestão dos


conflitos no âmbito do poder judiciário brasileiro, 2020. Disponível em:
https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf. Acesso
em: 4 jun. 2021.

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18 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOCIAS NA PROVA PREVIDENCIÁRIA

STJ aciona Polícia Federal após sofrer ataque por hackers. Migalhas,4 nov. 2020.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/335869/stj-aciona-policia-
federal-apos-sofrer-ataque-por-hackers. Acesso em: 4 jun. 2021.

STRECK, Lenio Luis. Que vem logo os intelectuais para ensinares os especialistas.
Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-30/senso-incomum-
venham-logo-intelectuais-ensinarem-aos-especialistas. Acesso em: 4 jun. 2021.

SUSPEITO de ataque hacker ao TSE é preso em Portugal. Migalhas, 28 nov. 2020.


Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/337059/suspeito-de-ataque-
hacker-ao-tse-e-preso-em-portugal. Acesso em: 4 jun. 2021.

SUSSKIND, Richard. Tomorrow´s Lawyers. New York: Oxford, 2017.

TJ/RS sofre ataque hacker e suspende prazos processuais. Migalhas, 3 maio 2021.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/344876/tj-rs-sofre-ataque-
hacker-e-suspende-prazos-processuais. Acesso em: 4 jun. 2021.

TRF-1 sofre ataque hacker e site sai do ar. Migalhas, 27 nov. 2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/quentes/337033/trf-1-sofre-ataque-hacker-e-site-sai-do-
ar. Acesso em: 4 jun. 2021.

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA
VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021

E ANIMALISMO IN ITALIA
Francesco Rubino 1

ABSTRACT: Nelle osservazioni che seguono, svolte durante il lungo


periodo dominato dalla visione pandemica globale, indichiamo
quattro ragioni che spiegano il ritardo della cultura bioetica italiana
e del biodiritto ecologico, proprio nel Paese che da molti è posto
correttamente all’origine del diritto e dei diritti moderni, dalla
Roma repubblicana e imperiale fino alla Costituzione del 1948
(modello di sistema giuridico integrato di diritti sociali e libertà
fondamentali, di democrazia sostanziale e processo, di condizioni
etiche universali e obiettivi politici collettivi, di principii egualitari
e di personalismo giuridico e filosofico). In questo saggio – che
riprende altri lavori precedenti (es. Ecologia, marxismo,
RECEBIDO EM: 18/05/21
ACEITO EM: 23/06/21
costituzione [2019] o Diritto animale [2021] – l’autore dialoga, con
la metodologia della comparazione, nel contesto contemporaneo e
post-moderno di “visione pandemica”, con autori classici (tra cui
Bobbio sul personalismo sociale, Agamben sulla persona e
l’animale, e su morte e ambiente) e con autori fondamentali nel
pensiero italiano e occidentale che ancora attendono una definitiva
riscoperta (il personalista-socialista Aldo Moro, i filosofi Pietro
Martinetti e Cesare Goretti che anticiparono Rawls, Habermas e
Peter Singer). Lo scopo è quello di offrire al lettore
un’interpretazione contestualizzata e integrata, sulla base della
comparazione giuridica e filosofico-politica, tanto dell’origine del
virus come prodotto bioetico e biopolitico, oltre che ecologico,
quanto del grave ritardo della cultura italiana in questa
comprensione bioetica, filosofica e giuridica, che è a parere
dell’autore alla base degli atteggiamenti contraddittori e inefficaci
davanti alla sfida ecologica posta dal virus.

PAROLE CHIAVE: bioetica; animalismo; personalismo;


costituzione; virus.

1
Ph.D presso l’Università “Federico II” (Napoli), già docente presso l’Università
“Federico II” – SSPF (Napoli), l’università di Paris Est (Créteil) e di Paris Ouest
(Nanterre), e presso l’Università Federale – UFRGS (Porto Alegre), al momento
PV presso il PPGD dell’Università Federale – UFBA (Salvador), dirige attualmente
il Centro Ricerca e Documentazione della FR International (Napoli) ed è
fondatore dell’Osservatorio sui Diritti umani dell’UNISA (Salerno). E-mail:
lawclinicparis.francescorubino@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-6695-
2050

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


20 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

VIRUS SACER: BIOÉTICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO NA ITÁLIA


RESUMO: Nas observações que seguem, escritas ao longo da epoca de visão pandemica
globale, destacamos quatro razões tentando explicar o atraso da cultura bioetica italiana
e do biodireito ecologico no País que, conforme quanto destacado em outros artigos e
pesquisas pela mesma autoria, deu origem ao direito e aos direitos modernos desde a
antiga Roma até a Constituição da República Italiana do 1948 (a Constituição sendo
modelo integrado de direitos sociais e liberdades fundamentais, de democracia substancial
e processo, de situações éticas básicas e de finalidades politicas coletivas, de princípios
igualdarios e de personalismo jurídico e filosófico). No ensaio que apresentamos ao leitor,
que continua outros trabalhos precedentes (i.e. Ecologia, Marxismo, Constituiçao [2019]
e Direito animal [2021]) iremos dialogar brevemente, nesse contexto contemporaneo e pos-
moderno de “visão pandemica”, com autores clássicos, entre os quais Bobbio sobre o
personalismo social, Agamben sobre a personalidade animal e a morte ecologica, e autores
fundamentais que ainda merecem uma redescoberta radical, quais o pensador
personalista-socialista Aldo Moro e os filósofos do direito Pietro Martinetti e Cesare
Goretti (que são os antecipadores-inspiradores do Rawls, do Habermas e do mesmo Peter
Singer). A finalidade deste artigo, que na metodologia è dialogico (ensaio), comparado
(pesquisa), e critico (posicionamento filosofico-politico) è a de oferecer uma interpretação
contextualizada e integrada tanto das origens do virus como produto bioético e bio-
politico, e não apenas ecologico, quanto das razões do atraso, no nível comparativo e da
complexidade, da cultura italiana nessa compreensão bioética e bio-politica.

PALAVRAS-CHAVE: bioética; animalismo; personalismo; constituição; vírus.

VIRUS SACER: BIOETHICS, ECOLOGY AND ANIMALISM IN ITALY


ABSTRACT: In the brief notes that follow, we offer four reasons to explain the
phenomenon, as widely evident as objectively odd, of the late coming of a Bioethical view
both in law and culture in Italy, meaning: in the country where contemporary law and all
Western systems of rights arose and spread all over in the “new world”. We will follow our
previous researches and lead the reader into the ancient Roman law, from Imperial codes
to later doctrina about due process and the rule of law. Wi will focus then how the
Republican Constitution of 1948 is an implicate model of integration among both human
and fundamental rights, democracy and justice and due process of law, basic ethical
principles and collective goals, as well as of both egalitarianism and personalism, shaping
a true bioethical comprehension of ecology and sociology. In this brief survey we will let
the reader dialogue with classical authors in the context of post-modern pandemic views,
in order to give shape also to virus as both a bioethical and ecological product. Among
others: Bobbio and the social personalism, Agamben and “personalism” of the homo sacer;
on the other, a radical rediscovery of philosophers of law Martinetti, Goretti and Aldo
Moro, who anticipate-inspire Rawls, Habermas and Peter Singer.

KEYWORDS: bioethics; animalism; personalism; constitutionalism; virus.

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 21

VIRUS BIOÉTICO, ECOLOGÍA Y ANIMALISMO EN ITALIA


RESÚMEN: En las observaciones que siguen, realizadas durante el largo período
dominado por la visión de la pandemia global, indicamos cuatro razones que explican el
retraso de la cultura bioética italiana y el bioderecho ecológico, precisamente en el país
que es correctamente colocado por muchos en el origen de la ley y los derechos modernos,
desde la Roma republicana e imperial hasta la Constitución de 1948 (modelo de sistema
jurídico integrado de derechos sociales y libertades fundamentales, de democracia y
proceso sustancial, de condiciones éticas universales y objetivos políticos colectivos, de
principios igualitarios y de personalismo jurídico y filosófico). En este ensayo, que retoma
otros trabajos anteriores (por ejemplo, Ecología, marxismo, Constitución [2019] o
Derecho animal [2021]), el autor dialoga, en el contexto contemporáneo y posmoderno de
la “visión pandémica”, no sea olvidado, con autores clásicos (entre ellos Bobbio sobre el
personalismo social, Agamben sobre la persona y el animal) y con autores fundamentales
del pensamiento italiano y occidental que aún esperan un redescubrimiento definitivo (el
personalista-socialista Aldo Moro, los filósofos Martinetti y Goretti que anticiparon a
Rawls, Habermas y Singer). El objetivo es ofrecer al lector una interpretación
contextualizada e integrada tanto del origen del virus como producto bioético y
biopolítico, como del grave retraso de la cultura italiana en esta comprensión bioética,
filosófica y jurídica, que se encuentra a juicio del autor en la base de las actitudes
contradictorias e ineficaces frente al desafío ecológico del virus.

PALABRAS-CLAVE: bioética; animalidad; personalismo; constitución; virus.

SUMÁRIO: 1 INTRODUZIONE; 2 LA PERSONA BIOETICA NELLA CULTURA


ROMANIST(IC)A; 3 IL CASO SPECIFICO DELLE ISTITUZIONI DI GAIO E DI
GIUSTINIANO: ANCORA A PROPOSITO DELLA TRADIZIONE ARISTOTELICA DI
VITA, NATURA E DIRITTO; 4 LA CULTURA COSTITUZIONALE DELLA DEMOCRAZIA
E DEI DIRITTI SOCIALI: IL PERSONALISMO; 5 I LIMITI POLITICI ED
EPISTEMOLOGICI DELLA CULTURA SCIENTISTA ITALIANA E DEL METODO
SCIENTIFICO NEL CONFLITTO COSTANTE CON I MASSIMALISMI STORICI; 6 IL
PROBLEMA DEL LINGUAGGIO E L’ANTROPOCENTRISMO COME
CENTRALIZZAZIONE DELLA FUNZIONE LINGUISTICA COME NUDA VITA; 7 LA
BIOETICA COME ECO-ETICA, IL PROBLEMA DEL VIVENTE, E I CONFLITTI TRA LE
SPECIE ANIMALI (COMPETIZIONE, CONCORRENZA, COOPERAZIONE,
MEDIAZIONE); CONCLUSIONI; BIBLIOGRAFIA.

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22 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

1 INTRODUZIONE

In quanto ricercatori sociali, anche noi giuristi siamo chiamati da anni a


confrontarci con quel vasto fenomeno sociale di “terrore” prodotto dalla percezione
diffusa delle trasformazioni ambientali e da una più acuta coscienza ecologica globale
(per il momento assumiamo queste condizioni come sociologiche e, appunto, come
“percezioni” di cambiamenti sociali). In questo contesti, l’occasione dal 2019 ad oggi
delle epidemie occidentali di “coronavirus” (in netta prevalenza epidemie europee e
americane, e con un devastante impatto economico e sociale sui Paesi colpiti,
soprattutto l’Italia) dovrebbe fornirci anche numerosi stimoli per rivedere e
comprendere la storia di formazione del nostro pensiero ecologico e bioetico, al fine di
coglierne soprattutto le lacune e tentare di comprendere i passaggi epocali che lo hanno
determinato (assieme a quelle lacune stesse, di cui oggi paghiamo il prezzo in termini di
vite umane, di catastrofi ambientali, e di costi economici e sociali). Ecco perché in queste
brevi note, più che semplificare una visione del virus o dell’animale o dell’ambiente (non
meglio specificato) in termini storici o scientifici, mi propongo di tentare un
inquadramento del pensiero ecologico e bioetico in Italia, nei suoi punti di contatto con
quello giuridico, e nelle tante contraddizioni che la storia di questi incroci e di queste
sovrapposizioni ha finito per produrre. In queste brevi osservazioni, che seguono
precedenti lavori svolti in oltre trent’anni di ricerche e occasioni di studio e confronto,
offriremo dunque al lettore alcune riflessioni che a nostro avviso possono in primo luogo
contribuire a spiegare (senza in alcun modo giustificare, beninteso) le ragioni del
gravissimo ritardo italiano, su base comparata sincronica e diacronica, nel dibattito
bioetico (dalla fase detta “umanista” a quella, non di molto più recente in effetti, detta
“animalista”), alle soglie di una fase “virologica” (o, secondo alcuni osservatori, di nuovo
“terrore”) appena aperta in maniera confusa e tuttora ricca di ambiguità e ambivalenze.
Non toccheremo neanche temi di fondo o collaterali, come ad esempio la definizione di
bioetica o di biodiritto, né quella di biopolitica (che spesso viene invece solitamente
associata, benché resti un’irriducibile diversità dei paradigmi di fondo), se non per
quanto possa servire alla finalità comparative di delineare il contesto o introdurre alcuni
riferimenti che agevolino la lettura e la comprensione delle ragioni del ritardo culturale
e politico di cui ci occupiamo, che ha ad esempio condannato le specie animali al ruolo
di semplici destinatari di obbligazioni morali di compassione o di una generica
obbligazione giuridica di non violenza (meglio: di non maltrattamento e di non
uccisione), e non ha ad esempio compiuto passi verso la costruzione di un modello
complesso o integrato di biosfera e di ecosfera, di ergosfera e di infosfera, né verso la
costruzione di nuovi, più ampi ed efficaci, paradigmi scientifici e culturali (si pensi a
come ancora viene utilizzato il paradigma Pianeta, con tutte le sue contraddizioni e
ambiguità tra “pianeta umano” e “pianeta vivente”). Non si tratta da parte nostra di
cogliere l’opportunità delle recenti epidemie per compiere una rivisitazione delle varie
posizioni bioetiche ed ecologiste, tanto classiche quanto post-moderne, né di proporre
una generica petizione di principio ecologista, globale o locale, ma di tentare una prima
ricostruzione critica delle tante insufficienze che la bioetica, il biodiritto, la ecoetica,
l’ambientalismo, la filosofia della scienza, l’epistemologia, i diritti degli animali e il
diritto animale, il diritto della scienza e della ricerca, soffrono in Italia, indicando nello

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 23

specifico quali di queste insufficienze derivano dalla stessa storia di formazione del
diritto e dei diritti in Europa e nella Penisola che, da Roma in poi, ha dato impulso alla
sistemazione e alla diffusione del diritto in Occidente, finendo per gravare tanto sul
liberalismo politico quanto sulla dottrina dei diritti fondamentali. Evidenzieremo
quattro linee principali di inchiesta per aprire il dibattito su queste insufficienze (bio-
eco)giuridiche-politiche e (bio-eco)filosofiche-etiche a cominciare proprio dall’eredità
complessa e resistente del diritto romano nelle sue varie fasi, incluse le Istituzioni e i
codici (par. 1 e 2), per toccare poi il diritto costituzionale e il costituzionalismo,
soprattutto nella visione originale del “personalismo” in Italia (par. 3), e la visione della
scienza e della tecnologia che la Costituzione stessa propone in dialettica tanto con i
presupposti della crescita economica (par. 4), quanto con quelli filosofici ed
ermeneutico-linguistici della bioetica e della “pura vita” (par. 5), che fanno parte dello
stesso blocco tematico, quanto infine con quelli etologici e della sociologia (par. 6).
Sottolineiamo, per concludere, che in ognuno di questi grandi complessi tematici
(personalismo; scientismo, epistemologia e visione della scienza e del suo rapporto con
il potere; bioetica, biodiritto, ecoetica; etologia, personalismo biologico e sociologia) il
dibattito filosofico è invece intenso e vivace, benché, appunto, si svolga in maniera
spesso tautologica e contraddittoria, come il lettore potrà eventualmente valutare, se ne
ha voglia e piacere, e dunque confermare o dissentire all’esito della lettura, che non
tralascia il dibattito in corso sulla malattia e la pandemia (come nuova forma di terrore).

2 LA PERSONA BIOETICA NELLA CULTURA ROMANIST(IC)A

Bisogna assumere l’ipotesi di lavoro che i limiti e le prospettive della cultura


giuridica italiana, e forse del diritto tout-court, possano quasi interamente essere
ricondotti al diritto romano, e in particolare (a differenza di quanto si possa spesso
superficialmente ritenere) alla natura “internazionale” del diritto romano, dunque a una
cultura dei diritti più che non del diritto o di diritto (CANTARELLA et al, 2014). Per
cominciare, ecco un tratto costitutivo che è anche un vizio originario.

Come è noto infatti – anche se, ad esempio, proprio Norberto Bobbio, cioè il
più rilevante filosofo del diritto e della politica del Paese fino a tutti gli anni ’90 inclusi,
evita di farvi espresso riferimento, e questa ‘omissione’ si rivelerà davvero ‘costitutiva’
anche del nostro diritto contemporaneo 2 – la cultura dei diritti si concentra su categorie
o gruppi, minoranze o nazioni, individui e vittime, e non invece direttamente sulla
“comunità umana” come soggetto (globale, planetario) in sé, o sulla classe sociale come
polo dialettico della storia, né naturalmente sulla norma giuridica come se fosse essa
stessa un soggetto di diritto o essa stessa istituisse tanto il diritto quanto i diritti
(nonostante, e quasi per paradosso, sia proprio il normativismo ad avere consentito lo
sviluppo e il netto consolidamento della cultura dei diritti umani contro la cultura del
diritto). A nostro parere, dunque, la persona umana come essere biologico o animale, gli
animali in generale e, seppure con maggiori sfumature, l’ambiente, nelle sue tante
caratterizzazioni storiche, non hanno mai costituito nel tempo un soggetto di diritto

2
Bobbio (1990), per quanto riguarda la filosofia del diritto, Bobbio (1981, 1997), per la filosofia politica.

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24 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

meritevole della tutela da parte del sistema dei diritti, benché animali e ambiente
rientrino a pieno titolo (ed è finanche ovvio che sia così) nell’ordinamento giuridico di
tutte le civiltà pre-romane, della Repubblica, dell’Impero, e delle tante turbolente fasi
successive della storia di Roma e del Mediterraneo 3. E intendiamo dire proprio che a
causa della nuova e recente cultura dei diritti, affermatasi nella seconda parte del
Novecento, non riusciamo a comprendere quale fosse la cultura del diritto (e non dei
diritti, ché non esisteva) degli animali come personae, e dunque anche dell’animale
umano, nelle epoche e nei contesti precedenti al nostro 4. Il che, a ben vedere, è davvero
paradossale se solo si pensa alle numerose e ricorrenti implicazioni religiose e
metafisiche, e dunque politiche, dell’immagine dell’animale nelle culture e nelle
politiche sociali, a qualsiasi livello. Ma anche se si volessero considerare gli animali come
cose o come oggetti, e dunque se si volesse arbitrariamente mettere da parte la loro
enorme importanza religiosa e filosofica in tutte le epoche e in tutte le culture antiche,
i problemi non diminuiscono affatto. Ad esempio, come già altroce abbiamo riportato,
a Roma gli animali vengono studiati dal punto di vista della proprietà nel diritto romano 5
o dal punto di vista della comprensione dello statuto della loro soggettività giuridica 6, e
magari anche analizzati nella loro dialettica di schiavitù assieme agli altri diritti dei
“servi” nei vari ordinamenti romani 7, ma non vengono compresi in una visione sistemica,
né sistematica, del diritto romano in sé (certo, nelle varie epoche e con le tante faglie e
trasformazioni adattative che ne hanno fatto un fenomeno vivo ancora oggi, e non solo
nelle università e nella ricerca scientifica sulle culture classiche). E si badi che non esiste

3
Non coglie (o non la condivide) questa distinzione, che a nostro avviso è fondamentale, uno dei più
interessanti studiosi di diritto degli animali nell’antichità e nel sistema romano, Pietro Paolo Onida, di
Sassari (ONIDA, 2012). Da altra prospettiva, sempre in diritto e sempre con riferimento alle tradizioni
antiche e di diritto romano, non compie la necessaria distinzione tra diritto e diritti anche Pocar (1998).
4
Si veda ad esempio, espressamente fin dal titolo, MAZZONI, Cosimo Marco. La questione dei diritti degli
animali. In: CASTIGLIONE, Lombardi Vallauri. La questione animale volume tematico di RODOTA;
ZATTI (2011, es. pp. 281, 283).
5
Si veda ad esempio il ricchissimo studio di uno dei più grandi giuristi italiani di sempre: GUARINO, Antonio
(disponibile ora liberamente online: vorremmo rinviare alle belle osservazioni dell’Autore sulla mancipatio
simbolica dell’animale o ai motivi dell’esclusione di alcune specie animali dal catalogo delle res mancipi), e in
particolare l’illuminante “pagina” dal titolo Collo dorsove domantur (1968).
6
Naturalmente bisogna considerare che il possesso o la proprietà di animali non è in alcun modo
comparabile con quanto si presenta oggi, ad esempio nelle aziende agricole o nei grandi allevamenti
industriali: il fatto che l’animale fosse una res, un bene, implicava che la proprietà fosse, da questo punto
di vista, una condizione giuridica e fattuale molto più complessa e articolata, e che il passaggio di proprietà
o l’alienazione di tali beni fosse assistito da maggiori garanzie per il bene stesso. Con riferimento agli
animali come proprietà e agli animali selvatici si veda ad esempio Venchiaruti (1987). Anche per una
discussione sull’adattamento degli istituti giuridici all’industrializzazione dell’antica Roma rinviamo a
Guarino (1968: 227 ss.).
7
Si pensi ad esempio alla controversia tra Sabiniani (che ampliavano la nozione di animale come bene
giuridico a tutti i capi astrattamente vendibili o addomesticabili, o in ogni caso trasferibili) e i Proculiani
(che invece restringevano la nozione di animale come bene solo ai capi già addomesticati o già posseduti),
sulla quale finisce per non prendere posizione proprio il celeberrimo giurista Gaio, il quale era sempre
attento alle conseguenze sull’ordinamento romano delle trasformazioni sociali ed economiche (in questo
caso, si trattava dell’enorme afflusso a Roma, verso il primo secolo e mezzo dell’Era comune, di vaste
mandrie di buoi e altro bestiame da soma che veniva ora destinato anche alla macellazione o a nuovi e più
vasti circuiti commerciali, il che, come è evidente, differenziava di molto l’assimilazione giuridica tra servi,
lavoratori schiavi, e animali).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 25

ancora la nozione di ambiente ma, al massimo, quella di vivente (che fonda una sorta di
bioetica ante-litteram).

Si è fatta dunque finanche retroagire la bioetica ai tempi di Roma, tentativo


tanto encomiabile (e straordinariamente riuscito, almeno in alcuni casi) 8, quanto
purtroppo viziato dallo stesso errore di prospettiva: cioè quello di applicare una cultura
sostanzialmente dei diritti a una cultura che invece era del diritto (o dello stato, della
Repubblica, della federazione, ecc.). Il che ha finito col confondere i mezzi e gli
strumenti di un diritto post-moderno e bio-politico, basato sul corpo e sul linguaggio,
con i mezzi e gli strumenti di un diritto che invece si basava su una tradizione di scambi
commerciali che non teneva conto naturalmente né del corpo (che era un altro mezzo
di scambio e di retribuzione) né, soprattutto, del linguaggio (che veniva assorbito
interamente dalle formule sempre mutevoli dello scambio di beni e servizi). In maniera
un po’ anacronistica, ancora, anche la teoria del “diritto fraterno” passa dal diritto ai
diritti quando si tratti di animali e ambiente 9. Senza considerare che “fraterni” sono in
quella (meta)teoria ‘solo’ l’atteggiamento e la posizione degli esseri umani, e non quelli
che derivano dalla complessità delle interazioni ambientali, tra le quali ovviamente
quelle degli esseri umani con gli animali o interspecifiche in generale, per non parlare
delle interazioni complesse con gli ambienti naturali, anche se li intendiamo soprattutto
come una sorta di ‘sfondo’ o di ‘scenario’ su cui ambientare le dinamiche di quelle
relazioni tra le specie.

In effetti, a nostro parere, l’errore è soprattutto di tipo storico, e diventa di tipo


sistematico quando si tenti di attualizzare le diverse tradizioni della filosofia politica e del
diritto, come se facessero tutte parte della stessa epoca o fossero un prodotto delle stesse
correnti politiche o un effetto delle stesse trasformazioni storiche. Si tende spesso a
sottovalutare infatti che la cultura dei diritti umani è una creazione molto recente nella
lunghissima storia della filosofia politica e del diritto, mentre ad esempio la democrazia è
di certo una creazione più antica, forse molto più antica, e leggermente più recente solo
della tendenza storica alle forme repubblicane. Sempre come esempio, i diritti sociali sono
una creazione della monarchia assoluta, e prima lo erano stati soltanto, in Occidente, dei
grandi imperi macedone e romano. Ed erano, almeno nel caso del diritto romano, una
sorta di concessione in favore dei popoli federati con l’Impero (quindi erano generati da
documenti o intese che avevano un valore costituzionale o comunque costitutivo,
appunto, dei poteri, dei diritti e delle libertà). La stessa organizzazione istituzionale di
Roma era strutturata attorno ai diritti sociali, in particolare all’edilizia popolare, ai
trasporti, alle infrastrutture e all’istruzione. E, in cambio di questo lavoro per il popolo e
le popolazioni, le istituzioni repubblicane e imperiali si attendevano la lealtà al diritto in

8
Molto di recente, raccolti da L. Chieffi e F. Lucrezi, i saggi di bioetica dello storico del diritto romano, e
già presidente della Corte costituzionale, Francesco Paolo Casavola (2019).
9
Certo, sforzandosi anche in modo encomiabile di ricostruire una soggettività giuridica dell’ambiente e delle
risorse naturali o di condizioni come la biodiversità o le tradizioni comuni dell’umanità. Per una ricostruzione del
diritto fraterno nel contesto dell’ecologia politica rinviamo a Martini e Rubino (2018). Per un inquadramento
espositivo generale, si veda naturalmente Resta (2007).

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26 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

tempo di pace, assieme alla prestazione di manodopera a basso costo, e la disponibilità


alla manovalanza militare e di controllo sociale in tempo di guerra o di eversione.

Assieme alle costituzioni repubblicane, poi, va detto che i diritti sociali sono
bensì una creazione del periodo tra le due grandi guerre del Novecento, che si consolida
poi nella nuova stagione costituzionale che segue la seconda guerra (e lo sono tanto negli
stati democratici quanto in quelli fascisti). Ma, assieme alle costituzioni monarchiche
(soprattutto le costituzioni di tipo “materiale” e non “formale”, come quella inglese e
quelle britanniche, ma anche quelle medio-orientali), i diritti sociali sono anche
un’invenzione un po’ più antica, di circa un millennio, e quasi precedono l’unificazione
dell’Inghilterra all’indomani del primo millennio dell’Era comune. E anche in questo
caso sono il frutto di una negoziazione tra le classi sociali agricole e tra le popolazioni
migranti della Scandinavia e quelle indigene, e con il consueto zampino anche qui dei
Romani. Insomma, semplificare sarebbe davvero un grande errore! Le epoche dei diritti
sono legate alle costanti negoziazioni tra le classi sociali e i popoli, le nazioni, i gruppi al
potere, le classi operaie e i ceti dei lavoratori e dei funzionari, ecc., mentre le epoche del
diritto sono caratterizzate dai cicli evolutivi delle comunità umane nel loro complesso,
e si articolano ai cicli della scienza e della tecnologia, più che a quelli della politica e
della cultura 10. Detto ancora diversamente: il diritto è il prodotto dell’evoluzione di una
specie, quella umana, mentre i diritti sono, all’interno di quella evoluzione, una
formazione di compromesso contingente e mutevole (anche il diritto è mutevole, ma nel
senso che è sottoposto alle leggi dell’evoluzione umana e ai grandi processi di “armi,
acciaio e malattie”, o a fenomeni globali come le catastrofi naturali e le mutazioni
climatiche che da sempre si succedono nella lunghissima storia delle specie animali,
determinandone dunque in concreto la concorrenza, la sopravvivenza o l’estinzione).

In conclusione, avere fatto retroagire al diritto romano la cultura dei diritti,


e in particolare dei diritti umani, sganciandola dal diritto come sistema adattativo, si è
rivelato un errore che ha pesantemente condizionato il percorso evolutivo delle libertà
e dei diritti come prodotto di lotte e rivendicazioni, insurrezioni e liberazioni, o del
fallimento delle stesse. 11

10
Un esempio tanto chiaro quanto sistematicamente ignorato – finanche nel folgorante Habermas (1992),
un testo che ha rilegittimato in Italia la visione della democrazia come processo – riguarda il processo
giudiziario, che serve sia al diritto violato da ripristinare sia ai diritti violati da reintegrare, con una
confusione storica che definiremmo, senza esitazione, tragica. Anche qui la confusione ha origine nel
diritto romano, e in particolare nella sovrapposizione tra diritto classico e diritto imperiale, quest’ultimo
tendente ovviamente alla uniforme applicazione del diritto (tramite i pretori inviati nelle province) e non
alla tutela dei diritti. Ed è questo scopo di garanzia dell’unità dell’ordinamento, sia detto en passant, che
è anche alla base dell’istituto della giuria come espressione degli interessi del territorio e non come
strumento di garanzia dei diritti delle parti.
11
Ed è solo per questo errore di prospettiva che risulta possibile estendere agli “animali non umani” i diritti
e le libertà negoziate invece dagli “animali umani”. Ed è per questo errore di prospettiva che è possibile
fondare la bioetica su un oggetto che per sua stessa natura non è persona, né soggetto, anche se è
indubbiamente biologico, zoologico ed etico, finanche sacro in alcuni contesti, quale è l’embrione.
Un’interessante ricostruzione a proposito dell’embrione viene dal noto matematico di Torino, Piergiorgio

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 27

3 IL CASO DELLE ISTITUZIONI DI GAIO E QUELLE DI GIUSTINIANO: LA


TRADIZIONE ARISTOTELICA DI VITA, NATURA E DIRITTO

Una breve parentesi meritano le Istituzioni di Gaio 12 che hanno condizionato


il diritto civile e quello penale (oltre che quello processuale, naturalmente) nella loro
fase “classica” agli inizi dell’Ottocento e nel corso dell’intera fase storica che Hobsbawm
definisce “l’età degli imperi” (fino all’esito della grande guerra, cioè). Diremo subito che
il problema non è quello di stabilire se il Gaio delle Istituzioni sia il giurista del secondo
secolo o si tratti invece di un giurista (anche collettivo) precedente e appartenente alla
scuola sabiniana (di cui ci siamo brevemente occupati nel paragrafo precedente). Ma è
che proprio grazie all’atteggiamento degli storici e dei giuristi nei confronti di questo
prezioso documento – fatto risalire al secondo secolo dell’Era comune – ricaviamo
numerose indicazioni sul modo in cui è stato recepito il diritto romano nell’età borghese,
e cioè l’attenzione al linguaggio giuridico e alle sue specificità (ARCES, 2020) 13, e la
consolidazione di una età dei diritti che proprio durante il 1800 si stava affermando a
seguito della Rivoluzione francese e prima dei moti dei tanti tentativi d’insurrezione del
Risorgimento (gli aspetti linguistici sono stati oggetto di una recentissima attenzione,
mentre il rapporto tra l’età dei diritti e la scoperta del manoscritto delle Istituzioni
ancora attende studi adeguati). In questa sede, senza volere ripercorrere le tante
semplificazioni della visione che il grande giurista imperiale propone dell’animale e
all’ambiente – semplificazioni che vanno dall’animale come cosa all’animale come
schiavo, dall’essere senziente all’essere dotato, appunto, di anima – va annotata
un’osservazione a nostro parere chiarificatrice. E cioè che le Istituzioni nascono in un
contesto, quello del secondo secolo, che è sì aristotelico e stoico (e lo capirà molto bene
la filosofa del diritto Martha C. Nussbaum), ma è soprattutto già neo-stoico, grazie
proprio alla figura dell’imperatore Marco Aurelio, che non era ‘solo’ uno degli
“imperatori buoni” ma anche uno dei filosofi più influenti della sua epoca. Per di più,
l’epoca di Marco Aurelio, durante la quale videro la luce i testi di Gaio (incluse le
Istituzioni), non fu un’epoca di pace e prosperità (durante la quale, cioè, è fin troppo
semplice identificare un regnante come “buono”) ma un’epoca di conflitti militari, crisi
economiche, carestie, e per finire anche ricorrenti epidemie. È dunque in questo
contesto che la visione pan-animalista di Gaio (derivata direttamente da Marco Aurelio)
va inserita, e non invece nel contesto in cui furono rinvenuti i manoscritti delle
Istituzioni agli inizi dell’Ottocento (un’epoca di guerre imperiali sì, ma anche e
soprattutto di grande sviluppo economico e industriale e di crescente benessere del ceto
medio e delle classi produttive). In altri termini, il contesto neo-stoico del secondo secolo
di Gaio e Marco Aurelio (entrambi eredi diretti di Apollonio di Calcide e di Quinto
Giunio Rustico, ed eredi indiretti di Epitteto e soprattutto di Seneca), è perfettamente
compatibile con una visione, appunto, neo-stoica che inserisce l’animale nella

Odifreddi, da sempre impegnato a descrivere i limiti epistemologici della cultura scientista italiana: es.
Odifreddi (2007: 72).
12
Rinvenute nel 1816 e restaurate sotto la direzione di Von Savigny, prima, e dal romanista (e importante
resistente e futuro ministro) napoletano Vincenzo Arangio Ruiz, in seguito.
13
La scrittura delle Istituzioni ha ricevuto una recente attenzione proprio nel corso del 2020 con la
riedizione critica delle stesse Istituzioni in Babusiaux e Mantovani (2020).

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28 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

complessità dell’ambiente-territorio e non ‘solo’ del vivente-comunità. Ma è solo


forzatamente compatibile, invece, con una visione dei diritti quale quella del
diciannovesimo secolo, in cui i diritti derivano dal riconoscimento della personalità
(inclusa quella animale, evidentemente). E non si dimentichi che, almeno sul piano
filosofico, il socialismo ottocentesco è una tipica visione neo-stoica, a cui spesso viene
abbinata (ad esempio da filosofi tanto diversi come Stanley Cavell, Martha C. Nussbaum,
John Rawls, o Amartya K. Sen) la filosofia politica del “giovane Marx”. La prima è una
visione ecologica che possiamo definire “integrata”, e che molto deve, oltre che allo
stoicismo, anche ai tanti contatti che Marco Aurelio favorì con le culture orientali. La
seconda è invece una visione ecologica che potremmo definire “politica” e che si radica
nello stoicismo di diretta derivazione continentale e occidentale, fondata sul metodo
analitico e sulla giustizia processuale. Nella prima il diritto è il prodotto del territorio (e
il territorio è il prodotto delle culture che vi si innestano), mentre nella seconda il diritto
è il prodotto della comunità (e la comunità è il prodotto delle rivendicazioni e dei
compromessi che vi si svolgono). Dalla prima visione ecologica nasce una visione del
diritto come descrizione della fase storica (come lo aveva interpretato ad esempio già
Cicerone, giustamente considerato anch’egli un filosofo stoico più che non sofista, e che
ricorrerà anche nella cultura popolare con lavori molto noti come ad esempio Le
memorie di Adriano della Yourcenar, del 1951, tradotto in Italia due anni dopo e destinato
a una costante divulgazione dagli anni ’60 ad oggi) 14. Dalla seconda visione ecologica
nasce una visione del diritto come sistema dei diritti (come verrà interpretato in seguito
nei vari regni del continente e che arriverà poi anche nel nuovo continente). I giudici
della prima visione erano le giurie, mentre i giudici della seconda erano i pretori (e non
sorprende che, proprio dalla loro fusione, sia nato il diritto processuale trapiantato poi
nel nuovo continente, basato tanto sulla giuria quanto sul giudice unico) 15.

Dopo appena tre secoli, le Istituzioni e in generale il Codex di Giustiniano –


sotto la guida del noto giurista e questore supremo Triboniano a partire dal 529 – fanno
piazza pulita del tentativo neo-stoico di Marco Aurelio e del giurista Gaio, e instaurano
una visione dei diritti che aprirà la strada a quella di epoca moderna e ottocentesca.
Quanto agli animali, è noto che il Ius naturale del Corpus e in particolare delle Istituzioni
di Giustiniano introduce alcuni concetti fondamentali quali la “natura commune
animantium” e la “natura animalium” come ponte per il diritto della natura, e alcuni
istituti comuni “a tutti gli animali” proprio in base al ius naturale e non solo in base al
ius gentium e al ius civile (ONIDA, 2002; 2003). Naturalmente non possiamo ripercorrere
qui le tante questioni che accompagnano questa riscoperta degli autori romani. Diremo
soltanto che a numerosi giuristi italiani (da Francesca Rescigno a Pietro Paolo Onida, da
Giulia Ferrari a Paolo Donadoni, solo per restare ai più attivi in questo campo), ai quali
va dato il merito di avere rilanciato tutto un settore di ricerche che hanno reso vivace e
ampio il dibattito sugli animali e il diritto (si pensi solo alla “bioetica giuridica” o alla
“ecologia selvaggia”, o ancora al successivo “eco-femminismo”, di Silvana Castignone,

14
È interessante annotare che la lettera che, in punto di morte, l’imperatore Adriano scrive e destina al
suo successore Marco Aurelio nel libro della Yourcenar comincia proprio con parole dense di significato
anche ai fini di questa nostra breve ricostruzione: “Animula vagula blandula…”
15
Rinviamo ad alcuni nostri studi: Magliacane e Rubino (2009; 2019); Rubino (2008; 2020).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 29

che tuttavia sono volutamente critici ma anti-dogmatici e anti-sistematici) 16, con


l’auspicio di pervenire ad una visione più articolata e completa, il Corpus appare come
la base di una visione emancipata dei diritti degli animali (senza peraltro che questo
corrisponda ad una visione ambientalista in sé).

Ma a nostro parere il Corpus, proprio perché sorretto da una visione ecologica


molto semplificata, è anche alla base dell’equivoco di fondo sui diritti degli animali, e
cioè l’estensione agli animali – mammiferi “superiori” o altro, non è ora in gioco questo
– dei diritti umani, sulla base di una mediazione estremamente problematica come
quella di persona fondata su una condizione di “autocoscienza” (difficilmente
esportabile in senso complesso e senza ulteriori limitazioni) 17. Che poi questa estensione
venga operata anche grazie al concetto (di per sé indefinito, ma molto spendibile in
maniera interdisciplinare) di ius naturale, bypassando quindi la problematicità
dell’autocoscienza della persona, appare più una sorta di espediente “politico”, certo
comprensibile e giustificabile, che non invece un autentico salto di paradigma in grado
di consentire una profonda revisione del sistema dei diritti. Da questo punto di vista, ad
esempio, dobbiamo registrare numerose oscillazioni della dottrina tra l’analisi delle
posizioni pre-imperiali di Cicerone (che già introduce l’animale nella “morale collettiva”,
sulla base di Pitagora ed Empedocle, ma, appunto, in vista di una natura comune per la
civitas che va scoperta, costruita e costituita) 18 e quelle delle posizioni invece
pienamente imperiali di Giustiniano (che presuppongono un sistema dei diritti,
articolato in varie branche, tra cui quella del diritto naturale, nel quale viene poi
candidata di volta in volta l’appartenenza di categorie diverse, e tra queste anche quella
degli animali) 19.

Infine, rileveremo l’ambiguità costitutiva del rapporto tra vita, natura e


diritto di matrici aristotelica e neo-aristotelica (anche aristotelo-marxista, come nella
tradizione della sinistra italiana), che finirà per segnare tappe importanti nella storia del
pensiero giuridico nazionale, tanto progressiste e libertarie (la salute e la vita come
esperienza della libertà: un tema ricorrente, dall’antifascismo al femminismo degli anni
Settanta e Ottanta, proprio in dialettica con una bioetica non ancora laicizzata), quanto
regressive e rassicuranti (la salute come sopravvivenza anche a costo della privazione
della libertà, su una linea kantiana del diritto e della norma: un tema anch’esso

16
Se ne veda ad esempio un’introduzione filosofica in Castignone (2002).
17
Sulla tradizione filosofica del concetto di persona (anche nel Corpus) si veda ad esempio lo studio di
Sebastiani (2009: 192), e in generale Furlan (2009).
18
Un tentativo molto interessante di ricostruzione del ius naturale viene dai giuristi brasiliani Heron
Gordilho e Cristovão Dos Santos, che in maniera impeccabile arrivano a proporre, non solo una visione,
ma anche una serie di possibili traduzioni alternative relative alle Institutiones nel contesto di una
ricostruzione ermeneutica e filosofica del Ius naturale: si veda Gordilho e Santos Junior (2019: es. 130, Par.
6, “Aquisição da propriedade animal por ius naturale”). Per un quadro filosofico preliminare si veda anche
Gordilho e Silva (2016). Si veda anche la recente versione di Gordilho e Santos Junior (2020). In particolare
il lavoro negli anni di Heron Gordilho, di Salvador, ci sembra tra i più interessanti e ricchi per proporre
una visione integrata dell’animalismo e del diritto degli animali.
19
Sulla filosofa animalista Silvana Castignone: Donadoni e Fanlo Cortes (2018).

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30 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

ricorrente, che si è rilanciato definitivamente, in forma anche autoritaria, in occasione


delle recenti epidemie di coronavirus in Italia).

4 LA CULTURA COSTITUZIONALE: DEMOCRAZIA E DEI DIRITTI SOCIALI

Come abbiamo visto, l’eredità del diritto romano in quanto diritto


essenzialmente “doppio” (come altri diritti imperiali o assolutisti, in cui lo stato
imperiale affiancava alle istituzioni e al diritto del vecchio ordinamento quelle di un
nuovo ordinamento che finiva per coesistere col primo) ha sicuramente pesato come
un’ipoteca sul diritto degli animali “non umani”, soprattutto a causa del malinteso
ampliamento dei diritti umani ai diritti degli animali.

Una volta che la stagione dei diritti avesse poi raggiunto una certa maturità e
stabilità, e cioè dopo le Rivoluzioni e le insurrezioni del Settecento e lungo tutto
l’Ottocento, in una prima stagione storica moderna, e dopo la seconda guerra, in una
seconda stagione moderna (quella che li ha definitivamente sistematizzati), si sarebbe
cercato di costituire un corollario, tanto poco scientificamente fondato quanto poco
tenacemente perseguito, quello cioè di attribuire soggettività giuridica e personalità
giuridica agli animali, seguendo un percorso che finirà per rivelarsi altrettanto inefficace
e anti-scientifico anche e proprio a proposito di eventuali diritti dell’ambiente.
Ripetiamolo ancora brevemente a vantaggio del lettore, qual è questo malinteso e quale
questo indebito ampliamento. Da un lato, infatti, non si capisce perché bisogna
estendere agli animali non umani una sfera di soggettività e di personalità sul piano dei
diritti che si è nel tempo rivelata problematica anche per gli animali umani 20. Dall’altro,
invece, non si comprende sul piano scientifico il perché di questa grande divisione tra
gli animali umani e gli animali non umani (che dovrebbero in astratto ricomprendere, e
in maniera non poco problematica, tutte le altre specie animali, e con quali limiti poi?).
Un esempio di questo malinteso è la proposta di modifica dell’art. 9 della Costituzione
italiana, presentata alla Camera dei deputati con la proposta di legge C. 306 del 13 marzo
2013. Questo il testo nella nuova versione proposta: “La Repubblica tutela il paesaggio e
il patrimonio storico della Nazione, l’ambiente e la biodiversità, promuove il benessere
degli animali in quanto esseri senzienti” 21. La proposta di modifica della Costituzione

20
E anche il tono di denuncia con cui viene semplicemente riportata un’evidenza semplice e
incontestabile, assume invece spesso la portata di una svolta epocale. Ad esempio Francesca Rescigno
denuncia che finora “il patrimonio dei diritti è stato considerato esclusivamente al servizio del genere
umano”, “il che – chiarisce Micaela Lottini – ha escluso che gli animali potessero essere riconosciuti come
portatori di diritti ed interessi”. Si vedano Rescigno (2014, p. 51); Lottini (2018, p. 13).
21
Il testo attualmente in vigore è il seguente. “La Repubblica promuove lo sviluppo della cultura e la ricerca
scientifica e tecnica. Tutela il paesaggio e il patrimonio storico e artistico della Nazione.” Sia detto sin d’ora:
l’aspetto più interessante dell’intero dibattito sull’articolo è di certo la formula “paesaggio”, che invece risulta
purtroppo acquisita come un dato a-storico o de-storicizzato anche nei lavori di maggiore buona volontà sul tema,
tra cui ad esempio quelli di Salvatore Settis (2010; 2017), o di Tomaso Montanari (2013). Intendiamoci: quando
parliamo di un vizio di “de-storicizzazione” non ci riferiamo al fatto (ovvio, e segnalato correttamente dagli autori)
che la nozione di “paesaggio” ha una storia, e anche molto antica! Né ci riferiamo alla denuncia del fatto che
rispetto di quella storia lunga e antica le culture e le istituzioni non si rivelano oggi all’altezza… Ma che la storia
del paesaggio (proprio perché le culture e il diritto non ne dimostrano consapevolezza se non tardiva e
insufficiente) non segue i criteri interpretativi che noi adottiamo oggi, alla luce di quelle culture e di quel diritto

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 31

era il frutto di un dibattito lungo e articolato, ma anche molto confuso (e non poco
ambiguo, sotto aspetti diversi) 22. Naturalmente, non è la confusione sintattica che
intendiamo evidenziare, e che è peraltro indiscutibile 23. Né ci limitiamo a stigmatizzare
la limitazione del benessere degli animali alla sola condizione di “esseri senzienti”, che
è forse la più problematica e la più ambigua tra le condizioni che l’animalismo degli anni
Ottanta del secolo scorso abbia mai offerto (e lo ha fatto Peter Singer assieme a John
Rawls 24, e in Italia lo avevano già fatto in maniera già articolata e complessa i pionieri

che si rivelano inconsapevoli e inadeguati! Ad esempio Settis (uno dei più importanti intellettuali italiani, se non
il più importante in materia artistica e ambientale), in apertura del suo volume del 2017 sopra citato (che raccoglie
le sue lezioni presso l’Università della Svizzera italiana dell’anno 2014-2015) segue e riporta correttamente le
vicende drammatiche della separazione dei concetti di arte e paesaggio (con le poche eccezioni, ad esempio a
Venezia fine ‘700), ma da questa illecita e risalente separazione fa derivare ‘soltanto’ il plauso per le costituzioni
della Repubblica di Weimar (1919) e della Repubblica italiana (1948) che hanno invece sanato questa ferita, senza
considerare ad esempio che nella Venezia del ‘700 il concetto di paesaggio non potesse in alcun modo essere
avvicinato a quello del regno etiope del 900 EC o dell’Italia resistenziale e post-resistenziale degli anni ’40, se non
al rischio di un involontario gesto razzista, come per dire cioè (e questo è inaccettabile, tanto sul piano scientifico
quanto su quello politico) che fino ad ora negli altri sistemi non si è mai difeso il paesaggio e che tocca a noi il
compito di farlo bene e per primi.
22
Tra i vari protagonisti, tra i giuristi, citiamo almeno Rescigno (2005). Bisogna notare che l’art. 9 è stato
spesso messo in relazione con l’art. 33 Cost. che sancisce l’assolutezza della libertà della scienza e del suo
insegnamento (correlazione che, naturalmente, si giustifica da sé), ma non con l’art. 7 Cost. che invece
stabilisce un principio di reciproca influenza, non tanto tra Stato e Chiesa cattolica, ma tra scienza e
religione, che ha costituito un’ipoteca pesantissima sulla radicalità dell’affrancamento delle visioni
scientifiche dal loro fondo ideologico e di cultura popolare, così come dai condizionamenti che la religione
giustificava tra progresso scientifico e razzismo o tra innovazione tecnologica e capitalismo, o tra libertà
di pensiero (fondamentale per ogni attività di ricerca scientifica) e conformismo di ideologie e
comportamenti. Va da sé che anche la “questione animale” sia rimasta vittima di questa reciproca
influenza tra religione e scienza (e senza che il pensiero laico si sia fatto carico della “questione animale”,
ridotta anzi al dibattito sull’utilitarismo e sull’antropocentrismo).
23
Per capirci, “ambiente”, “biodiversità” e “benessere” sono tre concetti diversi e non comparabili tra di
loro, che appartengono a tradizioni differenti e che hanno statuto politico e filosofico autonomo. Il
benessere è una condizione (individuale o collettiva) che, non soltanto ha una vasta estensione semantica
(dalla semplice assenza di malattia al pieno dispiegarsi della libertà e della personalità), ma sembra anche
appartenere a una tradizione relativistica, quasi personalistica (e che, se invece fosse “socializzabile”
diventerebbe l’occasione per una deriva totalitaria o autoritaria). La biodiversità è invece una condizione
degli ecosistemi o della biosfera che però è anche un principio quasi normativo: posto, cioè, che la natura
si presenta in territori biologicamente diversi tra di loro e ricchi di diversità (anche quelli più antropizzati),
questa caratteristica va tutelata. Non è dunque un principio scientifico, ma un’estensione di un principio
di protezione della natura nella forma in cui si presenta, e che noi tuttavia… non conosciamo! Quanto al
concetto di ambiente, la sua ricchezza semantica è forse pari solo alla sua altrettanto ricca ambivalenza,
del tutto inservibile sul piano costituzionale: l’ambiente è “ostile” ma anche “sicuro”, è oggetto dell’attività
umana di protezione ma è anche l’insieme naturale che comprende la stessa attività della specie umana,
è la concretizzazione del concetto astratto di natura ma anche di società, territorio, lavoro, salute, ecc. Si
veda Lewis e Maslin (2019).
24
Per una discussione si veda Nussbaum (2001). Specificamente sugli animali Nussbaum (2007).

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32 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

dei diritti degli animali Piero Martinetti 25 e Cesare Goretti 26). Per non parlare di concetti
che erano appena entrati nel contesto filosofico degli anni Ottanta (quale ad esempio
quello, tanto improprio quanto efficace, di “micro-organismo”) 27 per finire travolti
immediatamente dalle epidemie di HIV 28. O, ancora, l’abrogazione dell’arte come
patrimonio da tutelare, e la cancellazione della scienza, della cultura e della tecnologia
come principio fondamentale dell’attività d’impresa, da un lato, e come luoghi della
costruzione della personalità individuale e collettiva, dall’altro 29. È invece l’aspetto
sistematico che risulta davvero pericoloso nel testo della riforma, e per vari motivi. Tra
questi, il principale è che questa “sistematica” distingue e separa i concetti tra di loro, il
paesaggio dall’ambiente, e il benessere degli animali dalla biodiversità e dal paesaggio.
E, ovviamente, purtroppo, alla base di questa confusione giuridica vi è la limitazione del
concetto di paesaggio e il suo depotenziamento nella dinamica costituzionale: da
concetto inserito a pieno titolo nella radice resistenziale e antifascista della Costituzione,
ad esempio, e proiettato nella dialettica tra scienza e potere come indicatore di
complessità e misura di equilibrio e adattamento tra ricerca scientifica e conquiste
tecnologiche, a semplice sfondo delle attività degli animali umani e delle altre specie

25
Del grande Piero Martinetti, collega di Antonio Banfi a Milano, antimilitarista in occasione della prima
guerra e poi unico filosofo a rifiutarsi di sottoscrivere il manifesto fascista (pagandone poi le conseguenze
con l’arresto a Torino nel maggio 1935 assieme a sostenitori di Giustizia e Libertà e ad altri intellettuali
della casa editrice Einaudi), si legga almeno Martinetti (1999). Sulla filosofia degli animali come esseri
senzienti in Martinetti, si veda Vigorelli (2007).
Pietro Martinetti, che peraltro è anche il filosofo che ha fondato eticamente la scelta vegetariana, è oggi
ingiustamente dimenticato, ma a nostro parere le sue riflessioni sono di gran lunga più articolate e
complesse di quelle di altri filosofi animalisti, ben più noti e ‘rassicuranti’ degli anni ’70 e ’80. Diremo
soltanto che per Martinetti nessun allevamento di animali avrebbe goduto di legittimità morale e
filosofica, neppure quelli australiani che, seppure in funzione di compromesso, hanno invece finito per
‘rassicurare’ Peter Singer.
26
Com’è noto, fu proprio il filosofo antifascista Goretti a considerare l’animale come “soggetto di diritto”.
E in effetti, anche Goretti si rivela di gran lunga più progressista di grandi filosofi animalisti come Peter
Singer, in quanto per l’intellettuale militante torinese la questione filosofica e scientifica non è la
percezione del dolore (che potrebbe costituire un fondamento per una morale compassionevole, una
“pietà verso gli animali”, appunto) ma la percezione della regola di gruppo, cioè una sorta di fondamento
etico della vita animale (Martha C. Nussbaum riprende questo argomento in alcuni passi de L’intelligenza
delle emozioni, a proposito ad esempio dell’elaborazione del lutto o della vita sessuale, e soprattutto in
Frontiers of Justice, entrambi sopra citati, a proposito ad esempio di un felino che si comporti in maniera
violenta o aggressiva al di là delle necessità).
Su Goretti si veda ad esempio Pisanò (2012: es. p. 39, 48), o anche Di Lucia (2002).
27
Si veda ad esempio, tra i pochi lavori italiani dedicati ad Hans Jonas quello di Michelis (2007), che
segnaliamo tanto perché è un’ottima ricostruzione del pensiero del più completo filosofo della bioetica e
della eco-etica, quanto perché, d’altra parte, segnala proprio una delle lacune fondamentali della visione
bioetica italiana negli anni 2000, non rintracciando nel lavoro di Jonas (che pure ne è invece davvero ricco)
la presenza della riflessione etica e bioetica su virus e batteri. Aveva segnalato questa presenza invece nel
lavoro di Jonas (e l’aveva anche stigmatizzata, come esempio di antropomorfismo del vivente) ad es.
Donnelly (1979).
28
Ne aveva parlato in maniera olistica (da parte filosofica cristiana), dei virus e batteri come facenti parte
della vita anche umana, dunque, Vanni Rovighi (1980: es. 72).
29
Ritorna su questa contraddizione tra scienza, arte e potere (a partire dalla ambivalenza irriducibile “che
ogni pharmakon porta con sé” in Foucault) uno dei più noti filosofi animalisti italiani, Massimo Donà
(2020).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 33

animali “senzienti”. Da paradigma a semplice cornice indifferente 30. Ne discende un


ulteriore corollario, deleterio sul piano scientifico e su quello politico-giuridico. E cioè
che il problema non è quello che la giustizia o il diritto delle nostre società possano
essere estesi anche alle diverse comunità animali o all’ambiente nel suo complesso
(anche indebitamente ricompreso in questa impropria maniera globale e totalizzante),
ma che questa estensione risulti alla fine strumentale per veicolare una visione ridotta
della democrazia e del diritto, che sono invece conquiste delle rivoluzioni e delle
insurrezioni, o delle tante negoziazioni successive al loro fallimento. Da questo punto di
vista, schiavizzare animali umani o animali non umani, attribuendo loro i diritti e le
libertà della “manodopera” (per la parola scelta seguiamo una folgorante intuizione di
Donna Haraway), è davvero l’esito di uno stesso processo 31. Sullo sfondo resta poi,
sempre sul piano costituzionale, una lunga (ma molto sofferta) cultura del personalismo,
su base tanto religiosa (cattolica, cristiana ed ebraica, essenzialmente) quanto socialista
(umanista, riformista, giustizialista, ma anche, in alcuni momenti, direttamente
rivoluzionaria o insurrezionalista), di cui l’esempio più compiuto è quello del giurista
cattolico Giuseppe Capograssi, autore del celebre Codice di Camaldoli nel luglio 1943
(una sorta di vera e propria costituzione materiale ante-litteram della società italiana a
venire) e poi giudice della prima corte costituzionale della Repubblica nel 1955 32.
Naturalmente, il personalismo ebbe altri importanti interpreti e protagonisti in Italia,
soprattutto nel periodo tra le due guerre, sia da parte fascista (per quanto scettica e
sempre più delusa, e poi decisamente anti) come ad esempio il grande filosofo del diritto
Antonio Pigliaru, sia da parte comunista (per quanto, appunto, nella dialettica con la
visione organicistica e deterministica tipica del marxismo dell’epoca), soprattutto nella
figura del più grande filosofo politico del secolo scorso, e non solo in Italia, Antonio
Gramsci 33. E poi proseguì la sua parabola con l’esperienza socialista e democratico-
cristiana di Aldo Moro, giurista e uomo politico fino al suo sequestro e omicidio nel
marzo – maggio 1978, come base (almeno nelle intenzioni) per l’azione di rinnovamento
sociale 34. Insomma, proprio il personalismo, elevato a valore fondamentale dell’intera

30
Se ci viene passata un’osservazione polemica, ancora una, diremo che la maniera in cui i costituzionalisti
italiani hanno trattato il paradigma del paesaggio è indegna di una Costituzione come quella italiana del
1948 e di un ceto intellettuale e scientifico come quello che era pure confluito nell’assemblea costituente.
Una variante interessante e proficua, ma purtroppo non meno ambigua, è quella della “nuda vita” proposta
da Giorgio Agamben nella sua bella raccolta di “quadri” sulle relazioni tra uomo e animale: Agamben
(2002). A nostro parere, di Agamben si rivela ben più efficace la formula di stato d’eccezione applicata alla
concorrenza tra le specie. Ce ne occuperemo tra qualche paragrafo. Non è ovviamente un caso che sia
proprio Agamben – e proprio per queste sue costanti analisi sulla “nuda vita” e sulla “persona (come)
animale”, al di là di come la si pensi al riguardo – il filosofo che si sia più speso nello scorso anno, fin
dall’inizio delle epidemie, contro l’aspetto totalitario e assolutistico della visione pandemica.
31
E lo stesso discorso potrebbe rivolgersi anche alle intelligenze artificiali, ovviamente (aspetto anche
questo interamente taciuto nell’attuale dibattito su scienza e politica, benché costituirà la più grande
rivoluzione sociale del lavoro del futuro). Si veda Rubino (2021).
32
Un’ottima introduzione al filosofo e giurista del personalismo è Pomarici (2007).
33
Una bellissima introduzione a questo complesso nodo tematico viene da Giorgio Baratta e altri per
l’associazione “Terra Gramsci” e per l’Archivio Antonio Pigliaru nel volume Il soldino dell’anima: Antonio
Pigliaru interroga Antonio Gramsci. Cagliari: CUEC (COMITATO TERRA GRAMSCI – BARATTA, 2010).
34
Sul personalismo nella dottrina giuridica di Moro rinviamo all’approfondito studio di Pisicchio (2012).

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34 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

carta costituzionale, si è rivelato un ostacolo enorme per la comprensione di un diritto


che non si volesse solo antropocentrico.

5 I LIMITI POLITICI ED EPISTEMOLOGICI DELLA CULTURA SCIENTISTA


ITALIANA E DEL METODO SCIENTIFICO NEL CONFLITTO COSTANTE CON I
MASSIMALISMI STORICI

E tuttavia, come spesso abbiamo osservato, un quadro che fosse solo teorico
o filosofico non renderebbe certo giustizia alla complessità dei temi in gioco. Nel quadro
della guerra fredda la ricerca e l’innovazione tecnologica del nostro Paese sono state
infatti entrambe condizionate dalle esigenze strategiche di approvvigionamento
energetico, con la conseguente deleteria sovrapposizione di “ambiente” (inteso nella sua
complessità) e “territorio” (inteso come risorse). E in una cultura economica
profondamente ancorata al territorio – dalle estrazioni all’agricoltura e agli allevamenti,
in condizioni di arretratezza cronica di infrastrutture e trasporti – lo spazio per una
cultura olistica progressista si riduce in ragione del crescente sfruttamento delle risorse,
secondo un paradigma proprio della crescita economica che, almeno in età moderna,
era stato ampiamente sfruttato nelle cd. “guerre indiane” negli Stati Uniti d’America 35 o
nella pratica del reinvestimento produttivo nelle colonie inglesi come l’Australia o
l’Indocina 36. (E, sia detto tra parentesi, non è un caso che sarà proprio il movimento anti-
coloniale tra gli anni ’20 e ’60 del secolo scorso che si incaricherà per la prima volta nella
storia moderna di costruire una riflessione politica e filosofica sulla cultura delle specie
animali e dell’ambiente, in parallelo con la cultura dei mari e degli oceani che nel
frattempo si sviluppava nella Società delle Nazioni, prima, e all’Onu su tenace impulso
sovietico, poi) 37. Ora, bisogna purtroppo rilevare che il ritardo scientifico italiano in
relazione all’accelerazione internazionale a guida statunitense e sovietica, soprattutto
nel periodo fascista in Italia e in Europa, fu alla base della legittimazione di uno
scientismo che potremmo definire con Lombardo Radice “ingenuo” o “ingenuamente

35
Un’ottima ricostruzione è ad esempio nell’approfondita ricerca di Valtz Mannucci (2007: 141 ss.).
36
Ancora riteniamo che uno dei testi migliori per contestualizzare queste dinamiche si quello di
Hobsbawm (1987, 2019). Peraltro, è interessante notare sin d’ora che le dinamiche descritte da Hobsbawm
sono anche alla base della comprensione tanto del femminismo quanto del diritto animale e delle
posizioni animaliste: si veda ad esempio l’ottimo volume a cura di Adams e Donovan (1999). Inutile
ovviamente riportare qui l’ampia ricostruzione che una studiosa come Carol J. Adams ha nel tempo
proposto: basti qui citare soltanto la recente riedizione aggiornata, sulla pornografia della carne, di Adams
(2020), sulla quale non è ovviamente questa la sede per soffermarsi adeguatamente.
37
Va notato che, sempre nell’ambito della guerra fredda, il diritto delle acque e degli oceani andò di pari
passo con le esigenze spionistiche dei due blocchi principali, in una feconda logica degli interessi reciproci
e in una dottrina del “mutuo vantaggio” che si affermò quasi senza incidenti (solo poche eccezioni,
soprattutto tattiche, come la vicenda nota come “missili di Cuba” nell’ottobre 1962) fino alla “distensione”
(in realtà molto più turbolenta, bellicista e guerreggiata) degli anni ’80 e ’90.
Per altri versi, noteremo che l’etologia cognitiva (centrata in gran parte sui mammiferi, e nella maniera
più originale e sorprendente proprio sui mammiferi marini) ha costituito la base (sistematicamente
dimenticata o ingiustamente sottovalutata) della bioetica. Questa importante base scientifica avrebbe
consentito, ad esempio, proprio l’ampliamento dei confini della specie umana, sul presupposto della
aumentata possibilità di comunicazione interspecifica!

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 35

deterministico”, che non seppe in alcun modo approfittare della grande apertura di
credito che veniva offerta dalla Costituzione con il riconoscimento della libertà di ricerca
scientifica e artistica e della libertà di insegnamento (art. 33-I: “l’arte e la scienza sono
libere e libero ne è l’insegnamento”, secondo la proposta del costituente comunista e
celeberrimo rettore antifascista Concetto Marchese, su cui SILVESTRI, 2019: 17). Tre
tragici esempi che anticipano gli anni ’50 e ’60 e ci aiutano a comprendere lo
smantellamento della cultura scientifica progressista in Italia, e che qui possiamo
soltanto limitarci a segnalare, sono quello del fisico nucleare ante-litteram Ettore
Majorana (che per fuggire dall’obbligo di lavoro per i nazisti e i fascisti, in una classica
storia di intrecci di servizi segreti e governi, si ritirò segretamente in un convento
siciliano nel marzo 1938) 38, del fisico premio Nobel Enrico Fermi (che, per sfuggire ai
fascisti e ai nazisti emigrò a New York e Chicago, acquistando la cittadinanza
statunitense, e fu uno dei padri “non pentiti” della bomba atomica) 39, e infine del fisico
Bruno Pontecorvo (che, per sfuggire ai fascisti e ai nazisti, si rifugiò nel 1950 in Unione
sovietica acquistandone la cittadinanza) 40. Volendo semplificare, diremo che in Italia
accadde negli anni ’50 e ’60 quello che accadde più recentemente anche in altri grandi
produttori mondiali che venivano da un’economia per gran parte agricola e di recente
riconversione e rilancio industriale. E cioè un netto dominio delle tecniche produttive
sulle discipline scientifiche, decapitate tragicamente dall’emigrazione intellettuale e
dalla mancanza di investimenti. Per quanto attiene all’oggetto di questo saggio, ad
esempio, rileviamo che crebbe a dismisura la produzione industriale nel settore agricolo
e in quello dell’allevamento, mentre tanto la ricerca avanzata (sull’etologia cognitiva o
sulla cibernetica animale) quanto quella di base (si pensi alla bio-geo-chimica o al
rapporto problematico tra sociologia animale, etologia e zoologia) rimasero per lunghi
periodi ferme e si arrestarono a un livello essenzialmente didattico, incerto e incostante
nei metodi e nei protagonisti 41. In questo contesto – caratterizzato, lo ripetiamo, da
un’incostante crescita della ricerca di base e di quella applicata, e da una diffusa
incertezza sui limiti e le prospettive dei principi costituzionali di libertà di ricerca e di
insegnamento, sullo sfondo di un orientamento religioso dell’oggetto trascendente
(tempo o spazio o divinità è lo stesso) della metafisica e della scienza – la questione

38
Il libro tuttora migliore su Majorana è quello del grande conterraneo del fisico, Leonardo Sciascia
(SCIASCIA, 1975). Ma va anche menzionato in questo contesto il recente studio di Agamben (2016).
39
Si veda il recente volume scritto da due grandi fisici e testimoni delle ricerche di Fermi come Gino Segrè
e Bettina Hoerlin (SEGRE’; HOERLIN, 2017).
40
Bruno Pontecorvo è fratello del celebre regista Gillo Pontecorvo e cugino diretto del celebre giurista
italiano Tullio Ascarelli. Una ricca ricostruzione è del fisico di Oxford, Frank Close (2016).
41
In Italia ebbero ad esempio un grande successo commerciale alcuni lavori (non i migliori) dell’etologo
nazista Konrad Lorenz tra cui il noto L’anello di Re Salomone o altri articoli sulla “sensibilità” degli animali
e sui “crimini contro gli animali”, sulla base della stessa controversa (e francamente inaccettabile)
gerarchia di sensibilità tra i mammiferi superiori e quelli invece di altre specie “inferiori”, che è un primo
esempio comunque di estensione agli animali dei diritti umani. Un’eco minore sul piano della
divulgazione ebbero altri lavori, di netta impronta anti-lorenziana, come quello pionieristico dello
psichiatra basagliano (e anche rinomato malacologo) siciliano Nino Rubino (RUBINO, [1968] 2016).

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36 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

animale era destinata a restare ai margini del dibattito politico, filosofico e giuridico, e
più tardi bioetico e ambientalista, con poche eccezioni (RUBINO, 2003; 2020). 42

È su questo nodo teorico essenzialmente pragmatista (su un fondo etico che


potremmo dire umanista o esistenzialista) che si innesta la dialettica sociale del contagio
e del virus, che la sinistra aveva purtroppo accantonato fin dagli anni Sessanta, quando
una serie di articoli su Rinascita (il settimanale del Partito comunista) aveva invece
rilanciato il dibattito sulla guerra batteriologica proprio sullo sfondo delle ricerche
teoriche e politiche su scienza e potere 43.

6 LA SOCIETÀ SENZA DOLORE E IL PROBLEMA DEL LINGUAGGIO:


L’ANTROPOCENTRISMO COME FUNZIONE LINGUISTICA DELLA NUDA VITA

Al di là della pionieristica ma marginale posizione bioetica, incarnata in Italia,


quanto agli animali, da Luisella Battaglia e Silvana Castignone (organizzatrici a Genova,
nel maggio del 1986, del primo convegno nazionale sui diritti degli animali) 44, due vasti
e fecondi dibattiti italiani erano destinati a influenzare profondamente posizioni diverse
un po’ dappertutto (da Jacques Derrida a Vandana Shiva), e cioè quelli sullo stato
d’eccezione e sulla nuda vita, entrambi rilanciati una ventina d’anni fa dal filosofo Giorgio
Agamben, sulla linea di alcune straordinarie, e ai tempi poco conosciute, intuizioni di
Walter Benjamin, e su quella ben più battuta ma sempre ricca di stimoli dei seminari di
Foucault al Collège de France. E un’eco recente arriva alla “società senza dolore” del
filosofo tedesco Byung-Chul Han. Anche in questo caso, dare conto, sia pure sommario,
di una vastissima serie di riferimenti filosofici, giuridici, politici, etici, scientifici, al
riguardo, è davvero molto difficile (e anche la maniera in cui questi riferimenti sono stati
recentemente ripresi, criticati, rilanciati, discussi, in occasione della “visione pandemica”
lo conferma). Noteremo soltanto, per cominciare, che non a caso, per proporre il suo
affresco biopolitico e post-moderno, Agamben torna con insistenza (fin dal titolo stesso
delle sue più note ricerche filosofiche) al diritto romano. Esponiamo rapidamente la
posizione di Agamben nelle sue stesse parole.

Solo perché qualcosa come una vita animale è stata separata all’interno
dell’uomo, solo perché la distanza e la prossimità con l’animale sono state

42
Va infine segnalata una sorta di eccezione al contrario, relativa al Partito comunista, il quale era
sicuramente l’unica forza politica e culturale che, anche grazie alla elevata qualità delle riviste di area
politica, si era impegnata per la promozione di una visione laica e politica dell’ecologia, con una presenza
considerevole e tendenzialmente egemonica delle avanguardie scientifiche e artistiche, ma che scontava
la difficoltà di avere una base elettorale e di sostegno (soprattutto in Italia centrale e centro-settentrionale)
che invece era legata ancora ad una visione essenzialmente agricola e contadina dell’ambiente, che
tollerava tanto una visione elementare e a-problematica del rapporto uomo / ambiente / animale come
semplice rispetto della visione tradizionale di questo rapporto, quanto ad esempio le attività circensi o
quelle venatorie. E, come è facile intuire, la ricerca di un punto di equilibrio progressista tra la redazione
di riviste come Rinascita e i circoli dell’ARCI Caccia (l’associazione dei circoli ricreativi contigui al Partito
comunista) non era un progetto che prevedeva scadenze brevi per il Partito!
43
Per un inquadramento, si veda Magliacane (2021).
44
Gli atti sono raccolti in Castignone e Battaglia (1987).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 37

misurate e riconosciute innanzitutto nel più intimo e vicino, è possibile opporre


l’uomo agli altri esseri viventi (AGAMBEN, 2002, p. 24).

Il problema, come si vede, non è tanto quello della nuda vita in sé (la “vita
animale [che] è stata separata all’interno dell’uomo”), quanto la possibilità del
linguaggio come fenomeno emergente che assicura l’organizzazione della specie umana
e la rende, secondo Agamben (che contesta appunto questa visione), isolabile e
opponibile alle altre specie animali. Quanto al linguaggio, passando da Aristotele a
Cartesio attraverso la doppia natura dell’animale umano,

definire l’umano non attraverso una nota characteristica, ma attraverso la


conoscenza di sé, significa che è l’uomo colui che si riconoscerà come tale, che
l’uomo è l’animale che deve riconoscersi umano per esserlo (AGAMBEN, 2002, p.
24).

Vi sarebbe molto da dire, naturalmente. E di certo non siamo corretti con il


complesso pensiero dell’intrigante filosofo romano-veneziano-armeno se riduciamo le
sue argomentazioni sulla latenza dell’animalità umana a quelle che possiamo estrarre
per inserirle poi nella nostra rapida ricostruzione dei limiti della cultura dell’animale in
Italia 45. E non possiamo neanche tentare di entrare nel dibattito, ancora tutto da
costruire, sulla simbiosi virale emersa in tutta la sua potenza selettiva, ecologica, e
naturalmente bio-politica e sociologica, nel caso delle recenti epidemie di Sars-Cov-2 del
2019-2021 (MAGLIACANE et al, 2020). Anziché seguire questa traccia nascosta,
Agamben invece propone un’opposizione in seno alla società degli uomini;

non sorprende che il protagonista di questa nuova guerra di religione sia quella
parte della scienza dove la dommatica è meno rigorosa e più forte è l’aspetto
pragmatico: la medicina, il cui oggetto immediato è il corpo vivente degli esseri
umani, [e che] si limita a prendere in prestito dalla biologia i suoi concetti
fondamentali [ma] a differenza della biologia, articola questi concetti in segno
gnostico-manicheo, cioè secondo un’esasperata opposizione dualistica.
(AGAMBEN, 2020b).

Anche qui vi sarebbe molto da dire sul “dio maligno” che è la malattia, “i cui
agenti specifici sono i batteri e i virus”, e un “dio o un principio benefico, che non è la
salute ma la guarigione, i cui agenti cultuali sono i medici e la terapia.” (AGAMBEN,
2020b). Ma quello che possiamo trarre dal dibattito aperto e coltivato da Agamben, e
che rileva ai nostri fini, è per ora una contraddizione evidente (a nostro parere
irresolubile e inconciliabile) tra la sistematica giuridica dei diritti (e della vita politica
che ne discende come organizzazione della società e dei gruppi) e le dinamiche
45
Peraltro, vi è come un’ulteriore contraddizione nella contraddizione. E cioè che l’animale “latente” nel
bios antropocentrico e artificiale, frutto della costante scelta dell’uomo di definire se stesso in opposizione
(o comunque come differente) rispetto alle altre specie animali, è anche sul piano mitologico e religioso
un dio, dal momento che la simbolica divina è per gran parte fondata sulla teratonomia e la teratologia (e
anche le voci divine, note anche come “voci bicamerali”, come sappiamo dallo studio comparato delle
religioni, erano voci di dei animali). Dunque l’aspetto emancipatorio della cultura dell’animale rischia di
appiattirsi, paradossalmente, sugli aspetti reazionari e regressivi, quando non addirittura repressivi, della
religione e della mitologia, quando non della pseudo-scienza (come viene spesso chiamata la religione
antica).

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38 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

dell’evoluzione e delle leggi di selezione e competizione tra le specie nell’ambiente e con


l’ambiente. Questa contraddizione – meglio: questa serie di contraddizioni, strutturate
un po’ come un reticolo di condizioni che si escludono l’una con l’altra e tra di loro prese
a gruppi (breve: una contraddizione di struttura) – poggia sulla doppia funzione del
linguaggio della specie umana 46. Da un lato, infatti, il linguaggio posto a base dello stato
d’eccezione (e dunque della forza di legge, e dunque ancora del corpo come “soggetto
sospeso” del potere) è solo ed unicamente quello della specie umana. Il quale è tuttavia,
dall’altro lato, un prodotto dell’evoluzione della nostra specie umana, e solo di questa
specie 47. Questo punto sfugge ad esempio, proprio a proposito della posizione di
Agamben, anche nella bella ricostruzione che Byung-Chul Han (HAN, 2021) offre su una
società “immunologica” e “algofobica” che ha “bandito la sofferenza dalla vita”, e che si
svolge proprio a partire da una riflessione filosofica sulla malattia nel contesto della
visione pandemica globale. Ed è importante notarlo, perché si tratta a nostro parere di
un vizio, quello del primato linguistico, che è tutto ecologico, prima ancora che politico
(cioè mediato da un “discorso” etico). La lingua (o, meglio, anche il linguaggio) della
sofferenza e del piacere, potremmo dire per semplificare, è quella del corpo, ma la lingua
del corpo non è quella del piacere e non si esprime attraverso il linguaggio. 48 Noteremo
inoltre che questo pregiudizio linguistico è anche alla base della bioetica italiana
(fondata sul principio del consenso, e per di più su un consenso che sia informato, cioè
performato dal linguaggio), ed è lo strumento principale dello scientismo autoritario
secondo il quale i paradigmi scientifici dominanti sono quelli che riescono ad imporsi
come spiegazioni condivise 49. Insomma, non pensiamo di semplificare molto se

46
In effetti Agamben aveva presentato la funzione del linguaggio in maniera ancora più complessa e
articolata in un seminario del 1982 sul “luogo della negatività”: Agamben (1982, nuova edizione accresciuta
2008).
47
Il che è anche drammaticamente naif, oltre che antiscientifico, dal momento che corrisponde a dire, ad
esempio, che la perdita della ali o della capacità anfibia si è rivelata un grandissimo vantaggio evolutivo
per la specie umana! Antiscientifico: nel senso che, ad esempio, confonde in maniera grossolana tra un’ala
e un terzo braccio (la prima sicuramente destinata a vantaggi competitivi, il secondo non necessariamente,
e per vari motivi anche fisiologici o neurobiologici, che sono anche essi il risultato di una complessa
comparazione tra possibili storie evolutive). Gli argomenti più ricchi per questa visione che noi adottiamo,
e che non è sociobiologica, sono stati portati da Stephen Jay Gould, la bibliografia del quale è (per nostra
fortuna) sterminata, e del quale segnaliamo dunque unicamente, per motivi didattici, le varie raccolte dei
saggi apparsi fino al 2002 (anno della morte) su Natural History, tra cui Gould (1983, in particolare la parte
V: “Il ritmo del cambiamento”; 1989, ad esempio la parte I: “Stranezze che hanno un senso”).
48
Una parentesi: non è un caso che le traduzioni italiane dei testi di Lacan abbiano per anni ignorato
proprio questa ambivalenza costitutiva del corpo come soggetto psicoanalitico tra linguaggio e parola, il
primo simbolico e la seconda immaginaria, e abbiano continuato nel tempo a confondere le potenzialità
libertarie ed emancipatorie della parola con le prospettive invece castranti e sintomali del linguaggio. Un
esempio è proprio la ricostruzione di Recalcati (2012), in cui questo errore è addirittura costitutivo della
intera posizione di Recalcati su Lacan. Recalcati, insomma, a causa delle traduzioni italiane di Lacan, non
riesce cioè a distinguere proprio tra “linguaggio” (langage) e “parola” (parole, e non mot!), finendo dunque
per offrire una ricostruzione davvero sbilanciata del pensiero e della clinica di Jacques Lacan.
49
Laddove, appunto, non è il metodo della spiegazione ad essere problematico, ma quello della
spiegazione condivisa, cioè comunicata, informata, dibattuta e linguisticamente posta in maniera da
dominare le altre. Quanto sia poco sofisticata questa posizione è confermato soprattutto dall’archeologia,
che sistematicamente mette in crisi numerose acquisizioni della politica e del diritto (senza che peraltro
la politica e il diritto ne risentano nei loro paradigmi dominanti).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 39

affermiamo che, nel corso del lungo dibattito bioetico, vita e linguaggio abbiano teso a
condividere uno stesso statuto di condizioni fondamentali (possiamo importare qui
l’esempio del parlêtre lacaniano, che peraltro Lacan stesso introdusse proprio per
contestare il primato psicanalitico di questo “animale simbolico”), anche se, appunto, gli
statuti etico, bioetico, filosofico, psicoanalitico, ecc., del linguaggio non sono
sovrapponibili (e anzi spesso sono in conflitto tra di loro, come nel caso della filosofia
della vita e della condizione di autocomprensione) 50. Anche a proposito della filosofia di
Agamben della “nuda vita” si possono portare le stesse obiezioni, ma in maniera
purtroppo ben più radicale (e pure riconoscendo ad Agamben il grande merito di avere
scosso un dibattito bioetico che fino alla fine degli anni ’90 si era ancorato a definizioni
e formule semplici e tranquillizzanti quali quella di “consenso informato” o di “corpo
come persona”). Infatti, la nuda vita proposta da Agamben è proprio quella animale, ed
è celebre la dialettica tra bios e zoé, quest’ultima in quanto, appunto, nuda vita. Solo che,
come abbiamo brevemente lasciato già intuire in precedenza, riconoscere la latenza
della vita animale nella vita dell’animale umano non implica necessariamente (o almeno
non automaticamente o in una maniera deterministica) il riconoscimento di
un’equivalenza o di una parità di opportunità fenomenologiche all’animale latente
nell’uomo! Cioè, in altri termini, il problema della prevalenza dell’animale umano, che
non ha alcuna giustificazione neanche in termini di evoluzione, non si risolve. Anzi, si
aggrava finanche, nel momento in cui, per antica tradizione italiana ed europea, animale
e divinità tendono a riconoscersi reciprocamente nella loro origine comune e dunque,
in numerose religioni e pseudo-scienze, a coincidere 51.

Ma anche questa configurazione, già insoddisfacente e anti-ecologica di per


sé, viene addirittura stravolta (anche se non superata) nell’attuale fase detta
“pandemica”, in cui, non più l’animale (come nell’antropologia classica), non più l’homo
(come nell’antropologia post-moderna e bio-politica proposta da Agamben), ma il virus
è realmente e autenticamente sacer. O, come si direbbe in psicoanalisi, totemico e
oggetto dell’interdetto del tabù 52.

50
Questa contraddizione era stata ad esempio rilevata dal paleontologo Niles Eldredge il quale (non senza
ambiguità, va detto, e seguendo l’altrettanto ambigua linea darwiniana), nell’analizzare il rapporto tra
l’evoluzione degli esseri viventi e l’ecologia getta la scala “da noi mammiferi della specie Homo sapiens,
giù fino ai batteri”. Si veda Eldredge (2000: p. xviii). Rileva la contraddizione (anche contro Eldredge, in
questo caso), a proposito di Jonas, Furiosi (2003).
51
E basterebbe, in Italia, l’etica tutta martirologica e sacrificale dell’agnello di dio a dimostrarlo, che fu alla
base anche delle tendenze riformiste del Concilio Vaticano II (ottobre 1962 – dicembre 1965), su cui si
fonda a sua volta una delle più importanti ermeneutiche della dignità umana previste negli articoli 1, 2 e
3 della Costituzione italiana (rispettivamente la dignità del lavoratore e del cittadino, quella del soggetto
di diritto e della persona umana, e quella dell’attore sociale e dell’individuo responsabile come singolo e
nella / nelle comunità). Per una critica di questa visione della dignità, tanto statica quanto dinamica, sia
consentito rinviare al nostro Rubino (1998), peraltro di lì a poco in ottima e forse immeritata compagnia
con Ricoeur (2006).
52
Non si dimentichi che il delirio del contagio e del contatto (délir de toucher) apre il Totem e tabù
freudiano!

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4 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

7 LA BIOETICA COME ECO-ETICA E CONFLITTI TRA LE SPECIE ANIMALI:


COMPETIZIONE, CONCORRENZA, COOPERAZIONE, MEDIAZIONE

Infine, una delle cause generali del ritardo italiano nel dibattito sul diritto
animale – come prodotto, ripetiamolo ancora, di una comparazione etologica e non
come risultato automatico di un’estensione indebita ed anti-scientifica delle
sovrastrutture umane ad altre specie animali o all’ambiente nel suo complesso, che è a
nostro parere alla base dell’inefficacia della reazione culturale alle recenti epidemie – è
proprio il meccanismo di concorrenza adattativa tra le specie animali. In altri termini,
potremmo comprendere la bioetica umana o umanist(ic)a come eco-etica? Abbiamo in
qualche modo tentato di farlo?

L’argomento è davvero troppo vasto per anche solo tentare una breve
esposizione didattica (che si parta dal naturalismo di Stephen Jay Gould, dalla
divulgazione di Jared Diamond, o dalla genetica culturale dei Cavalli Sforza, per non dire
della recente “società senza dolore” e “algofobica” presentata da Byung-Chul Han).
Quello che qui potrebbe interessare è invece un argomento di tipo politico, che vede
ancora una volta gli animali nel ruolo proteiforme di sintesi dell’ecologia. E cioè che
l’estensione dei diritti umani agli animali (anche mitigata e corretta in base a vari criteri,
come la proibizione della sofferenza animale introdotta nel 2004 e nel 2010 nel diritto
penale italiano) non può in alcun caso prescindere dalla considerazione della
concorrenza tra le specie animali, inclusa quella umana. Così come, per altri versi, la
pietà e la compassione non possono neanch’essi prescindere dalla considerazione di
eventuali criteri utilitaristici (si pensi al vasto dibattito sui cd. “animali da compagnia”).
Quanto alla proibizione della violenza sugli animali, ad esempio, ci si può ancorare a
criteri più articolati e complessi rispetto a quelli della sistematica giuridica tradizionale.
Come sappiamo, infatti, il destinatario della giustizia ricostruttrice non è infatti né la
sola legge (come nell’ambito di una sistematica, anche sovranazionale o comunque
sganciata dallo Stato, della giustizia retributiva, ché è appunto l’unica sfera che dovrebbe
interessare le specie animali, che certamente non sono organizzate in nazioni, stati, o
comunità sovranazionali), né in sé la vittima principalmente considerata come soggetto
di diritto / dei diritti (come accade invece nella vendetta), né l’accusato (come si
evidenzia invece nella concezione “terapeutica” della pena in Platone e nel modello
tipico di giustizia “riabilitativa” che ne deriva) 53, ma il legame organico che fa tenere
insieme una comunità umana, in quanto archè della comunità giuridica. La comunità
umana, in altri termini, ricorre ad una finzione giuridica secondo la quale essa sarebbe,
a un tempo, parte e arbitro del gioco del diritti e dei diritti, lasciando agli animali non
umani il ruolo di parte minoritaria (al massimo destinataria dei diritti che derivano dalla
compassione umana verso le altre specie, e senza che questo tocchi in alcun modo alcuna
visione utilitaristica del diritto e dei diritti, della giustizia e dell’etica) 54.

53
Prospettiva condivisa anche dallo stoicismo, e oggetto del capabilities approach di Martha C. Nussbaum.
54
Qualche segnale interessante (ma davvero si tratta soltanto di segnali sporadici viene dalla
giurisprudenza suprema, ad esempio una sentenza della Cassazione penale (IV sezione) del 14 luglio 2011
che ha stabilito che “non commette reato l’automobilista che provochi un incidente automobilistico

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 41

E non si dimentichi che questo intero complesso processo è svolto attraverso


le modalità del linguaggio umano (cioè della “lingua”), che sono esse stesse derivanti
dallo svolgimento nelle epoche storiche della dialettica della scienza e del potere, e
dunque difficilmente adattabili ad una diversa narrazione di quello stesso svolgimento.
Sul piano della filosofia del diritto, in breve, l’animale incarna una di quelle numerose
figure (tanto necessarie e fondative quanto mitiche e narrative) della forza di legge 55. Ma
la figura che incarna si trova in ogni caso nella posizione passiva (al massimo del

mortale, al fine di non investire un animale che abbia invaso la corsia di marcia, anche se l’autore del fatto
viaggiava oltre la velocità massima prevista per legge”. È da notare che la sentenza, peraltro resa senza
rinvio (cioè vincolante come principio per tutte le corti di grado inferiore) è indubbiamente pioniera, ma
manca di motivazione adeguata, e si riferisce a circostanze troppo specifiche e contingenti per potere
realmente assumere la funzione di principio guida per la giurisprudenza (in grado magari di suscitare un
dibattito vasto e sentito, tra i giuristi e l’opinione pubblica).
Per i nostri fini, la decisione è importante perché mette a nudo aspetti ineludibili della concorrenza tra le
specie: l’omicidio è, appunto, l’assassinio di un essere umano, e non di un animale, e, nel caso della
decisione citata, viene soltanto “giustificato” (il fatto non costituisce reato) dall’esigenza per
l’automobilista di non uccidere un cane che attraversava la corsia (che in ogni caso non sarebbe stato
reato). D’altra parte, ed è qui la contraddizione, punire il fatto di provocare (seppure in maniera non
intenzionale) la morte di un animale (in questo caso un cane, sicuramente colpevole di avere attraversato
la strada in violazione delle regole stabilite dagli umani) sarebbe rilevante ‘solo’ in quanto assassinio di un
essere senziente, il che aprirebbe la strada a ben più pericolose condotte anti-animaliste, come quelle che,
in altri ordinamenti, legittimano la strage di animali da macello sulla base dell’attenuazione preventiva
del dolore ad essi inferto con la morte a fini industriali (ma è solo un esempio).
Una conferma viene da una quasi coeva sentenza del 2011 della Cassazione penale (III sezione, n. 29543)
che punisce una condotta omissiva di mancato soccorso a un gatto domestico investito e sbalzato in una
proprietà privata (alla quale, appunto, il proprietario vietava l’accesso a due intenzionati soccorritori
dell’animale), ma ‘solo’ nell’ottica dei “Delitti contro il sentimento per gli animali” introdotti con leggi del
2004 e del 2010, e non, ad esempio, come condotta violenta in sé (anche tramite omissione o mancato
soccorso) da parte di esseri umani. Anche in questo caso, ed è questo l’aspetto interessante di un dibattito
che deve aprirsi al più presto, vi sarebbe tuttavia una contraddizione: e cioè che la pietà per gli animali (di
cui ricordiamo i pionieristici approcci dei filosofi antifascisti Martinetti e Goretti sopra citati) può essere
anch’essa tanto come sentimento tipico della specie umana (un approccio che, mezzo secolo più tardi e
oltreoceano, sarà ripreso autonomamente da filosofi come Cora Diamond sulla linea di un perfezionismo
morale che veniva da Emerson attraverso Stanley Cavell), quanto come posizione politica-ecologica di
solidarietà tra le specie del Pianeta. In quest’ultimo caso si aprirebbe un dibattito ancora inedito (al di là
delle posizioni massimaliste e di puro principio, o “ecologiste ingenue”, come venivano definite in alcune
riviste di settore tra cui Gaia Scientia o in alcune riviste giuridiche straniere, brasiliane e statunitensi
soprattutto, con riferimento alla critica socialista contro il “riduzionismo biologico”). Nel primo caso,
invece, il perfezionismo sarebbe una sorta di antropocentrismo progressista (con il problema di chiarire e
stabilire se la pietà verso gli animali sia da parte umana un imperativo morale, un’opzione politica, o una
condizione derivante dalla comprensione della propria funzione ecologica, inclusa una comprensione di
tipo pragmatista o utilitarista, con tutte le ambiguità e ambivalenze che ne derivano, analizzate al meglio
da Martha C. Nussbaum sopra citata).
55
Ovviamente ci riferiamo alle intuizioni straordinarie e feconde di Walter Benjamin e in particolare al
suo Per la critica della violenza, che citiamo nell’edizione originale Benjamin (2016); si veda ancora Derrida
(1994, 2005); nonché naturalmente Agamben (2003). Le critiche, anche feroci e non sempre mirate, di
Derrida contro Agamben, sembrano un po’ eludere uno dei nodi fondamentali del discorso benjaminiano,
quello della violenza come “natura”, e tanto Derrida quanto Agamben non analizzano, in effetti, questa
problematica identificazione ma si concentrano soprattutto su cosa sia “vita” e “natura”. Non è un caso,
tuttavia, se Derrida abbina la” bestia” e il “sovrano” nella dialettica del potere, risolta “naturalmente” a
favore di quest’ultimo (ma in maniera del tutto provvisoria e contingente).

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42 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

destinatario dei diritti) in cui è peraltro in buona compagnia da sempre, assieme alle
tante minoranze sociali, ai soggetti psichiatrizzati, ai reclusi, e purtroppo a molte altre
categorie, gruppi, comunità, individui, oggetto/oggetti della solidarietà e della
compassione della specie umana. O, meglio, di quella parte della specie umana che crea
per i propri esclusivi interessi la dialettica del diritto e dei diritti, sottraendola ai
meccanismi generali della selezione ecologica: in fondo, capiamoci, qual è e dov’è la
pretesa superiorità (in termini, appunto, di selezione) di un non disabile rispetto a un
disabile, o di un non schizofrenico rispetto a uno schizofrenico (e ci scusiamo per questa
terminologia, che dovrebbe essere destinata alla spazzatura della storia)? 56

Ma quale dialettica del potere emerge se si allarga, dall’altro lato, non la sfera
dei diritti, ma quella della politica, anche alle specie non umane? E se la si allarga alla
vita nel suo complesso, o al Pianeta nella sua configurazione paradigmatica? O se la si
svolge, la vita, su un piano di evoluzione e non su quello biologico? 57 Possiamo ancora
sostenere, realisticamente, che la competizione evolutiva per il Pianeta abbia qualcosa a
che fare con la dialettica parlamentare delle nostre società umane? O che (come pure ha
sostenuto per anni qualche nota scuola italiana di giuristi e comparatisti) i diritti fanno
parte di una delle strutture sociali più resistenti e idonee a garantire il successo
competitivo della nostra specie da cui discende, in ultima analisi, l’obbligo
compassionevole nei confronti delle altre specie animali? 58 Con la contraddizione finale
che tutti gli animali, inclusi quelli umani, sono sottoposti ad eventi complessi (e
catastrofici, proprio in termini scientifici di teoria della catastrofi, come ha spesso notato
opportunamente Alessia J. MAGLIACANE, 2016) che assieme a uno dei migliori studiosi
di Environmental Humanities, Bruno LATOUR (2019), possiamo didatticamente
chiamare “i capricci di Gaia” e “i capricci dell’Antropocene” (anche “scossoni
epistemologici ed esistenziali”). Le epidemie e le pandemie, intese soprattutto come
fenomeni sociali, rientrano, a torto o a ragione, tra quei capricci.

8 CONSIDERAZIONI FINALI

Nelle note che precedono abbiamo tentato di evidenziare alcuni motivi che
caratterizzano il dibattito politico, scientifico e giuridico italiano sulla relazione tra la
specie umana ed altre specie animali, che a nostro parere dovrebbe essere il fondamento
della cultura bioetica. Non abbiano neanche sfiorato i termini generali del dibattito. Per
un lato lo abbiamo presupposto, e per l’altro non era nostro scopo metterlo in discussione
in maniera dettagliata (lo abbiamo fatto in numerose altre occasioni ed altre sedi). Né
abbiamo riportato le tante contraddizioni che, già dai primissimi giorni, hanno dominato

56
Traducendo in termini sociologici: è davvero importante la carica emancipatoria contenuta in astratto
nella formula di “diversa abilità”? E, anche a questo proposito, non sarebbe forse meglio usare quella di
“disabilità generale” o di “incapacità generale”, introdotta ad esempio da Freud con compiutezza negli
anni Venti del secolo scorso? Si torni a Freud (2010).
57
Sono pochissimi i testi e gli articoli dedicati a questo (se si esclude il paradigma “bellezza” di Wilczeck,
che si occupa anche dei virus e annuncia una rivoluzione scientifica che sembra ancora di là da venire).
Ad esempio, sulla “vita dei virus, Villareal (2020).
58
Abbiamo discusso queste posizioni in RUBINO (2019). Nel caso delle pandemie: Honigsbaum (2021).

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VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA 43

il dibattito sul virus e la pandemia, col vizio principale di sovrapporre in maniera confusa
e spesso strumentale motivi etici ed esigenze sanitarie, concetti bioetici e interdetti
giuridici, filosofia della vita e della natura e filosofia del diritto e della politica, ecc.

Possiamo invece dire che i motivi del ritardo culturale dell’Italia nei
confronti della comprensione di una posizione bioetica ed ecologica nella relazione
con la nostra specie e con le altre specie, in una visione integrata e complessa degli
ecosistemi, della biosfera e dell’infosfera, sono diversi e risalenti. In primo luogo, i tanti
malintesi a proposito del diritto romano, che hanno fatto ad esempio retroagire alla
lunga stagione dell’Impero istituti e concetti giuridici e politici elaborati invece solo
pochissimi decenni fa, come quelli dei diritti umani. Su un piano generale, anche la
confusione tra bioetica e filosofia della vita nasce dalla malintesa sovrapposizione
romanistica del naturalismo aristotelico (che aveva un valore etico, e dunque
prescrittivo e non descrittivo), e dall’insufficiente visione filosofica e scientifica del
vivente (che è stato descritto o compreso in sé e non nella sua funzione oggettiva e su
scala evolutiva). In secondo luogo, la sovrapposizione, al livello costituzionale, della
tradizione dei diritti fondamentali sociali con quella della democrazia e con quella
delle libertà personali (precursori dei diritti umani universali contemporanei), con al
centro una nozione tanto problematica quanto iper-semplificata di dignità, che ha
indotto ad estendere in maniera indebita e infondata queste condizioni della nostra
specie animale anche alle altre specie animali (peraltro considerandole in maniera
unitaria o sotto la formula ambigua di “esseri sensienti”, contenuta in alcune proposte
di modifica costituzionale). Un po’ come dire, e siamo coscienti della forte carica
destabilizzante di quanto affermiamo, che la centralità del personalismo e della
dottrina dei diritti umani fondata sul primato della persona umana, sia un ostacolo a
una corretta visione ecologica e politica del “diritto animale”. Un po’ come dire, se ci
si passa l’accostamento, che la biologia è la versione “razzista” (cioè essenzialmente
suprematista) della zoologia, e che la dignità umana è divenuta la premessa storica e
politica dello sfruttamento dell’ambiente e delle altre specie animali. In terzo luogo
abbiamo ritenuto di dovere almeno menzionare lo scientismo che ha caratterizzato
nelle diverse epoche storiche la nostra visione del rapporto tra scienza e potere, da
sempre condizionata da esigenze e contingenze politiche e diplomatiche. Questo
scientismo, che era stato ridimensionato negli anni ’80 grazie al fecondo dibattito laico
sulla bioetica e l’etica della vita e dei suoi innegabili diritti (base dell’ecologia più
progressista), si è reso purtroppo evidente proprio nei suoi tanti e tragici limiti in
occasione della gestione dell’emergenza sanitario globale 2019-2021, finendo per
sviluppato e portare a conseguenze anche la strategia del riduzionismo linguistico,
puntando proprio sulle sue tante ambiguità (che è un altro aspetto, peraltro ben più
insidioso perché davvero universale e generale, dell’antropocentrismo filosofico e
politico che già le culture personalistiche annunciavano). Infine, abbiamo introdotto
alcuni temi strettamente correlati, sui quali spesso insistiamo nelle nostre ricerche: in
particolare quello dell’accelerazione post-costituzionale dell’innovazione tecnologica,
in un contesto tuttavia di guerra fredda, nel quale la “doppia fedeltà” della Nazione ha
di fatto bloccato quello stesso processo di innovazione tecnologica (tanto i personal
computers quanto gli antibiotici sono, a nostro parere, sul piano scientifico fermi agli

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4 VIRUS SACER: BIOETICA, ECOLOGIA E ANIMALISMO IN ITALIA

anni Ottanta, a dispetto di un grande perfezionamento tecnico). La scienza e la cultura


italiana hanno dunque guardato attorno a sé (ambiente, animali, biosfera, ecosistemi
o infosfera) e dentro l’umano (embrione, malattia, microorganismi, salute, psichiatria),
non nella prospettiva dell’adattamento della specie, ma nella prevalente strategia
dell’accaparramento tattico delle risorse fondamentali, lasciando agli animali
(qualunque sia la loro soggettività) e al Pianeta (qualunque sia la sua soggettività) la
scelta impossibile tra una rivoluzione contro il dominio oppressivo della specie umana
(antropocene o capitalocene che sia, tante volte descritto nei libri, soprattutto classici,
di fantascienza o di un fantasy tanto libertario e anarchico quanto purtroppo velleitario
e riduzionista), rivoluzione che non fa parte tuttavia della storia evolutiva del Pianeta,
da un lato, e l’accettazione “senziente” (da parte degli animali) o “geologica” (da parte
di Gaia) della sofferenza e delle devastazioni inflitte a scopo di ricerca detta
“scientifica” o, più ‘semplicemente’, a scopo di commercio, guerra, sfruttamento.

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA
VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021

METAFÍSICA E DESAFIOS PARA A


DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

José Garcez Ghirardi 1

RESUMO: A crise da democracia tornou-se um tema onipresente


nos debates acadêmicos contemporâneos. Diversos autores têm
buscado apontar suas razões e compreender a ascensão de um novo
tipo de populismo ao redor do globo, oferecendo explicações de corte
sociológico, político, jurídico, econômico e psicológico. Esse artigo
sugere que, conquanto essas análises sejam valiosas para uma
apreensão abrangente da crise das democracias contemporâneas,
uma compreensão mais ampla desse fenômeno não pode se dar sem
que se realize a discussão da crise das premissas metafísicas que
RECEBIDO EM: 27/02/21 davam legitimidade ao projeto político-jurídico da Modernidade
ACEITO EM: 26/06/21
como um todo. O argumento central, estruturado na forma de
ensaio, é o de que os esgarçamentos dos fundamentos metafísicos
que lastreavam as dinâmicas de universalização e de categorização
constitutivos do projeto jurídico-político da Modernidade estão no
centro da crise presente e das dificuldades que as forças políticas têm
encontrado para superá-la. Além da introdução, o artigo se divide em
três seções (Verdade, universais, categorias; Impactos políticos da
crise da metafísica; Pós-verdade, pós-Modernidade) mais as
considerações finais.

1
Pós-doutorado no Collège de France, (Chaire État Social et mondialisation)
(2017), com bolsa FAPESP e na UNICAMP (2004). Advogado formado pela
Universidade de São Paulo (1985). Mestre e Doutor em Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (1995 e 1998). Diretor de
Formação Docente da Associação Brasileira de Ensino do Direito ? ABEDi, tendo
também atuado como membro da Comissão de Especialistas da Secretaria de
Educação Superior do MEC para a área de Direito. É Coordenador do
Observatório do Ensino do Direito da FGV DIREITO SP. Adjunt Faculty da
Gonzaga Law School (WA/EUA) onde lecionou os cursos Jurisprudence and the
Arts (2010) e Political Economy of Law and Development (2013). Foi pesquisador
visitante na Wayne State University (Detroit-MI, EUA), com bolsa concedida
pelo CNPq. É autor, entre outras obras, de O Mundo fora de Prumo:
transformação social e teoria política em Shakespeare (Almedina, 2011); O
Instante do Encontro: questões fundamentais para o ensino jurídico (FGV, 2012)
e Narciso em sala de aula: novas formas de subjetividade e seus desafios para o
ensino (FGV, 2016). Professor em tempo integral da FGV DIREITO SP (Graduação
e Mestrado). Email: jose.ghirardi@fgv.br https://orcid.org/0000-0002-1855-7793

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 51
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

PALAVRAS-CHAVE: democracia; metafísica; modernidade; legitimidade política.

AFTER REASON: CRISIS OF METAPHYSICS AND CHALLENGES TO


CONTEMPORARY DEMOCRACIES
ABSTRACT: The crisis of democracy has become omnipresent in contemporary
academic debates. Scholars have been attempting to indicate its roots and to understand
the rise of new populisms around the globe. These authors offer sociological, political,
legal, economic and psychological explanations for the crisis o democracy. This paper
suggests that, although such analyses are important for the understanding of this
phenomenon, its broader comprehension cannot be achieved without a critique of the
metaphysical premises which serve to legitimize the legal-political project of Modernity
as a whole. The key argument, presented in essay form, is that the erosion of the
metaphysical foundations buttressing Modern notions of truth and universality is at the
heart of the contemporary enfeebling of democracy and help explain the difficulties to
tackle this process. The paper is divided in an Introduction plus three sections (Truth,
universals, categories; Political impacts of the crisis of metaphysics; Post-truth, Post-
modernity) and a concluding section.

KEYWORDS: democracy; metaphysics; modernity; political legitimacy.

DESPUÉS DE LA RAZÓN: CRISIS DE LA METAFÍSICA Y DESAFÍOS


PARA LA DEMOCRACIA CONTEMPORÁNEA
RESÚMEN: La crisis de la democracia se ha convertido en un tema omnipresente en los
debates académicos contemporáneos. Varios autores han tratado de señalar sus razones
y comprender el surgimiento de un nuevo tipo de populismo en todo el mundo,
ofreciendo explicaciones desde una perspectiva sociológica, política, jurídica, económica
y psicológica. Este artículo sostiene que, si bien estos análisis son valiosos para una
aprehensión integral de la crisis de las democracias contemporáneas, una comprensión
más amplia de este fenómeno no puede darse sin la discusión de la crisis de las premisas
metafísicas que legitimaron el proyecto político-legal de la Modernidad como un todo.
El argumento central, que está estructurado como un ensayo, es que el desgaste de los
fundamentos metafísicos que sustentaron las dinámicas de universalización y
categorización que constituyen el proyecto jurídico-político de la Modernidad están en
el centro de la crisis actual y de las dificultades que las fuerzas políticas han encontrado
para superarla. Además de la introducción, el artículo se divide en tres apartados
(Verdad, universales, categorías; Impactos políticos de la crisis metafísica; Posverdad,
posmodernidad) más las consideraciones finales.

PALABRAS CLAVE: democracia; metafísica; modernidad; legitimidad política.

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52 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 VERDADE, UNIVERSAIS, CATEGORIAS; 3 Impactos


políticos da crise da metafísica; 4 Pós-verdade, pós-Modernidade; 5 Considerações
finais; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

A crise da democracia tornou-se um tema onipresente nos debates


acadêmicos contemporâneos. Diversos autores têm buscado apontar suas razões e
compreender a ascensão de um novo tipo de populismo ao redor do globo. Com
frequência, essas explicações apresentam como causas possíveis do desgaste dos
regimes democráticos a desigualdade produzida pela globalização. Manuel Castells
sugere uma perspectiva sociológica para o entendimento da crise. Para ele, a turbulência
atual deriva da insatisfação dos largos setores sociais que entendem que seus modos de
vida estão sendo negativamente impactados pela globalização:

Quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e sobre seu Estado,
mais se recolhem numa identidade própria que não possa ser dissolvida pela
vertigem dos fluxos globais. Refugiam-se em sua nação, em seu território, em
seu deus. Enquanto as elites triunfantes da globalização se proclamam cidadãs
do mundo, amplos setores sociais se entrincheiram nos espaços culturais nos
quais se reconhecem e nos quais seu valor depende de sua comunidade, e não
de sua conta bancária. À fratura social se une a fratura cultural. O desprezo das
elites pelo medo das pessoas de saírem daquilo que é local sem garantias de
proteção se transforma em humilhação. E aí se aninham os germes da
xenofobia e da intolerância. (CASTELLS, 2018, p. 24)

Nessa perspectiva, a atual ascensão de governos populistas em diversas


partes do globo seria decorrência, desde o ponto de vista material, das transformações
dos modos de produção que estão na base da emergência do ‘mercado global’ e, desde
o ponto de vista simbólico, da contínua erosão de formas tradicionais de se entender a
sociedade, a família e a política.

Nancy Fraser postula razões semelhantes para o fenômeno da ascensão


populista, enfatizando a dimensão política da ansiedade psicológica trazida pela
globalização. Para a autora, as vitórias de Trump, não obstante sua truculência verbal e
suas diatribes contra os mais vulneráveis, assim como o sucesso do Brexit, não obstante
os problemas complexos inscritos nessa opção, “representam a contrapartida política
subjetiva à crise estrutural objetiva dessa forma de capitalismo” (FRASER, 2019, p. 77).
Richard Sennett havia antecipado, há quase cinquenta anos, o potencial
desestabilizador, para o campo da política, dessa problemática conexão entre ruptura
social e psicologia individual:

Em geral, podemos dizer que o “senso de comunidade”, de uma sociedade que


tem uma forte vida pública, nasce dessa união da ação compartilhada e de um
senso do eu coletivo. Mas nos períodos em que a vida pública está em erosão,
esse relacionamento entre ação compartilhada e identidade coletiva

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 53
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

desmorona. Se as pessoas nem estão falando umas com as outras nas ruas,
como poderão saber quem são como um grupo? (SENNETT, 2014, p. 658-659)

A proposta teórica de Sennett e sua influente sugestão do surgimento de um


sujeito “narcísico” cujo etos se acomodaria mal às demandas da democracia como a
conhecemos foi retomada contemporaneamente por Marta Nussbaum. Em Political
Emotions, Nussbaum sugere que a perda de prestígio da democracia em muitas
sociedades contemporâneas se deve ao esgarçamento dos sentimentos de civilidade,
sem os quais as sociedades políticas não podem sobreviver. Sem esses sentimentos, não
é possível conter as “forças latentes em todas as sociedades e, em última análise, em
todos nós: tendências a proteger a fragilidade do self por meio da humilhação e da
subordinação dos outros 2” (NUSSBAUM, 2015, p. 14, tradução nossa).

Esse artigo sustenta que, juntamente com essas perspectivas de corte político,
sociológico, econômico e psicológico, uma compreensão mais ampla desse fenômeno não
pode se dar sem a dimensão filosófica desse problema, e sem a discussão da crise das
premissas metafísicas que davam legitimidade ao projeto político-jurídico da Modernidade.

O argumento central, apresenta sob a forma de ensaio, é de que o


esgarçamento dos fundamentos metafísicos que lastreavam as dinâmicas de
universalização e de categorização constitutivas do projeto jurídico-político da
Modernidade estão no centro da crise presente e das dificuldades que as forças políticas
têm encontrado para superá-la. Além dessa introdução, o artigo se divide em três seções
(Verdade, universais, categorias; Impactos políticos da crise da metafísica; Pós-verdade,
pós-Modernidade), mais as considerações finais.

2 VERDADE, UNIVERSAIR, CATEGORIAS

O homem natural de Hobbes e o bom selvagem de Rousseau, o cogito de


Descartes e o imperativo categórico de Kant: as bases filosóficas que serviram de lastro
à formação das sociedades Modernas têm, em comum, a ideia de um ser humano
universal, e de uma Razão igualmente universal. A despeito de todo o amplo conjunto
de diferenças que marcam as pessoas ao redor do mundo, o projeto moderno postula a
existência de uma identidade fundamental que nos permite falar de gênero humano ou
de espécie humana (FOUCAULT, 2009, p. 31-49).

Essa unidade fundamental, base para a construção política do Estado-nação


e de suas formas de governo, solicita um gesto radical de apagamento de diferenças
concretas e de afirmação de similaridades abstratas. Esse gesto se consubstancia na
construção da ideia de cidadania sob uma perspectiva marcadamente moderna, que se
afasta de configurações anteriores da subjetividade política.
Giddens indica a novidade dessa formulação política da Modernidade,
contrastando-a com modos precedentes de fundamentar a coesão político-social.

2
“[...] forces that lurk in all societies and, ultimately, in all of us: tendencies to protect the fragile self by
denigrating and subordinating others.”

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54 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

[...] a grande diversidade de modos de cultura e de consciência características


dos “sistemas de mundo” pré-modernos formava um conjunto genuinamente
fragmentado de comunidades sociais humanas. Em contraste, a Modernidade
tardia produz uma situação em que a humanidade em alguns aspectos de torna
um “nós”, enfrentando problemas e oportunidades em que não existem
“outros” 3. (GIDDENS, 1991, p. 27, tradução nossa)

A ressalva persente no argumento de Giddens (“em alguns aspectos”) é


particularmente reveladora, na medida em que alude a um hiato tipicamente moderno
entre “cidadão” e “indivíduo”. As formas políticas da Antiguidade e da Idade Média
supunham uma subjetividade que se fundia com a pertença à polis, à Cristandade ou ao
estamento, e em que inexistia a noção de um “self” como unidade psicológica pré-social.
Conforme sustenta convincentemente Charles Taylor, esta configuração subjetiva
começa a se desenvolver apenas no início do século XVIII, sobretudo entre as elites
espirituais e sociais da Europa ocidental (TAYLOR, 1989, p. 185).

Os modernos, entretanto, tomam como axiomática essa segmentação entre


indivíduo e cidadão, entre subjetividade psicológica e papel social. Ela faz parte do
processo de “substituição da universitas pela societas e substitui o divino pelo político
como expressão do sagrado na vida social” 4 (TOURAINE, 1992, p. 31, tradução nossa)
que determina, para retomar a terminologia kantiana, “o imperativo categórico de
submissão à lei, que é [o imperativo] de conformar a vontade à lei universal da
natureza” 5 (idem, p. 39, tradução nossa).

Nessa perspectiva, os elementos distintivos de cada ser humanos, as


idiossincrasias que caracterizam cada mulher e cada homem em particular, são
acidentais e, desde um ponto de vista político, irrelevantes. Os elementos comuns,
capazes de serem apreendidos pela Razão, é que são essenciais e, desde um ponto de
vista político, relevantes.

A Razão é preponderante entre esses elementos comuns, porque se entende


que ela seja menos afetada por circunstâncias particulares do que outras dimensões
igualmente universais, como o corpo, a linguagem e a cultura. Ela é a base do ser
humano enquanto sujeito moral, justamente porque é o meio pelo qual cada indivíduo
pode entender a necessidade de submeter os apetites particulares aos requisitos da
ordem e da harmonia geral (idem, p. 38)

3
“[...] the many diverse modes of culture and consciousness characteristic of pre-modern “world systems”
formed a genuinely fragmented array of human social communities. By contrast, late moderdity produces
a situation in which humankind in some respects becomes a ‘we’, facing problems and opportunities
where there are no ‘others’.
4
“[...] le passage de l’universitas à la societas et remplace le divin par le politique comme expression du
sacré dans l avie sociale”.
5
“[...] conduit vers l’impératif catégorique de soumission à la loi, qui est de conformer a volonté à la loi
universelle de la nature”.

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 55
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

A natureza corpórea dos seres humanos constitui universal primeiro e


incontroverso. A dimensão biológica é, de fato, um dos implícitos estruturantes da
versão hobbesiana do homem natural. O prospecto sombrio de uma vida breve e brutal
decorre diretamente da percepção do risco que a luta pela sobrevivência física
representa para a vida em comum.

A universalidade que funda o argumento de Hobbes, importa observar, não


se baseia na concretude do corpo em si – que é forçosamente, individual - mas na
natureza corpórea que é universal porque constitutiva de todos os seres humanos e que
dialoga, a seu modo, com o universal da alma imaterial.

Hobbes não atrela importância, para a formulação de sua teoria política, às


especificidades de gênero ou raça, por exemplo. Em linha com a lógica iluminista, seu
interesse pelo concreto e particular é instrumental ao estabelecimento de leis abstratas
e universais. Todo seu argumento se baseia na ideia de um ser humano ideal ou típico.
Essa dicção hobbesiana, que discorre fundamentalmente sobre a natureza humana, é
emblemática do processo de naturalização da sociedade que marca o rompimento com
a perspectiva transcendente que marcara a teoria política medieval.

Dinâmica semelhante se verifica no tratamento que a primeira Modernidade


dá aos universais da linguagem e da cultura. Todos os povos vivem a dimensão
simbólica, têm linguagem, crenças, mitos, instituições. A exemplo do que ocorre com a
dimensão corporal, entretanto, a variedade nesse campo é também extraordinária. O
mito de Babel sublinha esse fosso entre os seres humanos, essa diferença entre as
culturas e seu modo de dar sentido à vida. Essa diversidade concreta não desautoriza,
entretanto, a crença em uma natureza humana única. De fato, essa pluralidade de
modos de viver é pensada e compreendida a partir de categorias universais de que cada
sociedade seria uma expressão particular.

As Viagens de Guliver, publicado em 1726 (SWIFT, 2012) testemunha o


interesse moderno por essa diversidade de culturas. A exemplo do que ocorre com o
corpo, as manifestações singulares se tornam interessantes na medida em que são
compreendidas como manifestações específicas de um mesmo universal, que é o objeto
próprio da investigação filosófica. Gulliver avalia cada um dos diferentes povos que
encontra a partir do ponto de vista da sociedade europeia em que vive, que se torna,
dessa forma, paradigmática.

A narrativa de Swift, e a afirmação implícita que ela faz da necessidade de


organização racional da sociedade testemunha, ainda uma vez, o modo moderno de
entender as relações entre universal e particular. Na perspectiva da Modernidade, a
Razão estaria livre desse particularismo que marca a forma concreta de manifestação
dos universais do corpo, da linguagem e da cultura.

O método de Descartes é, em um sentido muito profundo, um roteiro para


que possamos nos desvencilhar dos limites impostos por esses três elementos. O “eu”

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56 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

suposto no “penso, logo existo”, é um eu desprovido de corpo e de história, vale dizer,


de cultura, excisão indispensável para se acreditar na possibilidade de uma Razão pura.

A compreensão do mundo material, de fato, só pode ser levada a efeito a partir


de uma aplicação das categorias que decorrem do pensamento fundado em si mesmo.
Nesse processo, “a ordem das representações deve [...] respeitar os padrões que derivam
da atividade intelectual daquele que conhece” 6 (TAYLOR, 1989, p. 145, tradução nossa).

A Razão, como universal não maculado por particularidades contextuais é,


portanto, de todos os elementos comuns entre os seres humanos, aquele mais apto para
fundar uma convivência harmoniosa. Universal e desinteressada, ela pode servir como
critério comum para arbitrar entre os interesses particulares das diferentes sociedades
e de diferentes grupos dentre de uma mesma sociedade. Embora diversos em suas
características físicas e em suas tradições e costumes, todos os seres humanos – sempre
a segundo a perspectiva moderna – pensam da mesma forma.

A propalada universalidade da linguagem matemática serviu, ao longo da


primeira Modernidade, como validação do argumento de pureza da Razão universal
face às idiossincrasias do particular. A mesma objetividade oriunda da Razão era a
pedra angular de todo o edifício da ciência moderna e sua obsessão por fórmulas gerais.

Por esse motivo, essa versão de Razão se torna, na Modernidade, o


fundamento de legitimidade da política e do direito. Confrontados com dilemas
concretos, os seres humanos podem decidir objetivamente o melhor curso de ação, uma
vez que essa definição será resultado da avaliação racional dos dados. Como a Razão é
patrimônio comum de cada membro da sociedade, os critérios racionais de avaliação
são necessariamente compartilhados e aceitos por todos. A racionalidade comum dá
sentido e legitima as decisões tomadas pelo corpo social.

A legitimidade das instituições políticas modernas e o funcionamento das


democracias têm, assim, esse credo por base. O conceito de “vontade geral, expresso
por Rousseau, reflete, ainda uma vez, essa crença no caráter universal e democrático da
Razão. Nessa visada, a dinâmica que rege as ações do Legislativo, do Executivo e do
Judiciário; a elaboração de leis, o desenho e execução de políticas públicas e a
adjudicação de conflitos só merecem crédito junto às populações se puderem ser
racionalmente justificadas. Na Modernidade, a ideia de justiça se estrutura,
necessariamente, a partir desse entendimento de Razão e de verdade.

3 IMPACTOS POLÍTICOS DA CRISE DA METAFÍSICA

Esse entendimento se vê hoje amplamente contestado. Alimentando-se das


críticas articuladas, ao longo do século XIX, por autores tão importantes como Freud

6
“The order of representations must thus meet the standards which derive from teh thinking activity of
the knower”.

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 57
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

e Marx, as teorias pós-modernas negam veementemente quer a existência de uma


verdade universal, quer a possibilidade de uma razão pura (VATTIMO, 1996, V-XX).
Desde seu título, A crítica da razão negra, de Achille Mbembe, serve como emblema
desse desmantelamento da narrativa de universalidade neutra que havia legitimado
as instituições Modernas:

Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder, o


hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão,
da vida universal e da verdade da Humanidade Sendo o bairro mais civilizado
do mundo, só o Ocidente inventou um «direito das gentes». Só ele conseguiu
edificar uma sociedade civil das nações compreendida como um espaço
público de reciprocidade do direito. Só ele deu origem a uma ideia de ser
humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver os seus
poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao
género humano e, enquanto tal, preocupado com tudo o que é humano. Só ele
codificou um rol de costumes, aceites por diferentes povos, que abrangem os
rituais diplomáticos, as leis da guerra, os direitos de conquista, a moral pública
e as boas maneiras, as técnicas do comércio, da religião e do governo.
(MBEMBE, 2014, p. 27)

Os pretensos universais da Razão e da Verdade são denunciados como


mitificações a serviço de um projeto de poder e de dominação. Longe de serem
decorrências neutras e inevitáveis de uma verdade metafísica, eles são construções
particulares, utilizadas para naturalizar noções de superioridade cultural, para
normalizar a descrição do mundo em centro e periferia, para justificar estruturas de
dominação, exclusão e silenciamento.

O universalismo da Razão é apresentado, aqui, como uma estratégia de


império político pela sinédoque silenciosa que erige uma cultura (branca,
heterossexual, cristã, do Atlântico Norte) em cultura “normal” e, portanto, normativa
para todas as demais. A perspectiva em que se insere a contribuição de Mbembe não
recusa a ideia de que haja uma capacidade universal de pensar, mas rejeita a ideia de
que o pensamento possa não ser afetado pelo corpo e pela história.

Atualizando os postulados do materialismo histórico, essa crítica sustenta que a


incrustação da reflexão no real não é um obstáculo para o bem pensar, mas uma condição
para o bem pensar. O que se rejeita não é a lógica cartesiana – que continua sendo preciosa
enquanto uma ferramenta, entre outras, para pensar a vida – mas seu imperialismo
metodológico e sua pretensão de ser derivada de uma natureza humana pura, desencarnada
e a-histórica. Assim como a cultura e o corpo, propõe a crítica à Modernidade, a Razão
também “pisa no chão”, para lembrar o famoso soneto130 de Shakespeare.

Contestar a neutralidade da Razão moderna traz como corolário inevitável


contestar a ideia de “Verdade” que dela derivava. Uma das contribuições filosóficas
contemporâneas mais emblemática desse rompimento com as categorias que, ainda há
pouco, davam lastro à nossa vida em comum é a de Gianni Vattimo:

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58 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Dar-se conta de que o problema do consenso em relação a escolhas singulares


é, antes de mais nada, um problema de interpretação coletiva, construção de
paradigmas compartilhados ou então explicitamente reconhecidos, é o desafio
da verdade no mundo do pluralismo pós-moderno. [...] Em última análise se
trata de compreender que a verdade não se “descobre”, mas se constrói com o
consenso e o respeito da liberdade de cada um, e das diversas comunidades
que convivem, sem confundir-se, em uma sociedade livre. 7 (VATTIMO, 2009,
p. 16-17, tradução nossa)

A ênfase com que Vattimo aponta o caráter histórico, contextual, consensual


e social da verdade – em oposição direta à ideia moderna de verdade objetiva e
independente da vontade dos sujeitos - reverbera uma perspectiva que, formulada
primeiramente pela academia, vai se tornando hegemônica no Ocidente, passando a
compor o que Charles Taylor denomina de “imaginário social” (TAYLOR, 1994, p. 23-30).

4 PÓS-VERDADE, PÓS-MODERNIDADE

A expressão pós-verdade se tornou corriqueira em colunas de jornal e


programas de televisão: esse conceito começa a se tornar uma categoria recorrente a
partir da qual pensar a vida e entender o mundo. Ainda que, muitas vezes, nem seu
sentido, nem suas implicações sejam explicitadas com clareza, a ideia de que não há
verdade absoluta vai entrando para o senso comum ocidental.

Essa desconfiança em relação à metafísica de corte iluminista assinala uma


ruptura incontornável da sensibilidade das sociedades pós-modernas com as matrizes
éticas e filosóficas que haviam estruturado suas predecessoras modernas. Central para
essas sociedades é a possibilidade de que cada indivíduo possa construir
permanentemente a própria identidade e que possa, a partir dela, escolher o modo de
vida que entender necessário para realizá-la plenamente. A demanda por igualdade
entre todos convive, agora, com demandas de reconhecimento da especificidade de
cada um (FRASER et al., 2018).

Essa composição entre igualdade e singularidade é tudo menos evidente,


contudo, porque as premissas que fundam uma e outra demanda articulam
pressupostos marcadamente diversos – e, potencialmente, incompatíveis. A
legitimidade das instituições políticas da Modernidade tinha tido por horizonte a
igualdade entre seres humanos racionais, que se fundava nos universais correlatos de
Razão e de Verdade. Os governos partiam dela para justificar suas políticas de
enfrentamento dos problemas sociais e suas opções em casos concretos.

7
“Prender atto che il problema del consenso sulle singole scelte è anzitutto un problema di interpretazione
coletiva, di costruzione di paradigmi condivisi o comunque esplicitamente riconosciuti, è la sfida dela
verità nel mondo del pluralismo post [...] Alla fine si trata di capire che la verità non si “incontra” ma si
costruisce con il consenso e il rispetto dela libertà di ciascuno e dele diverse communità che convivono,
senza confondersi, in una società libera.”

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 59
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Discursivamente, a referência para o estabelecimento de políticas específicas


era a categorias gerais (p.ex.: trabalhadores, contribuintes, menores de idade) que
compunham um grupo social racionalmente compreensível. Esse manejo científico da
sociedade (FOUCAULT, 2009) tinha por horizonte a igualdade categórica da lei, não a
especificidade biográfica dos indivíduos.

No campo político, a categoria operante era a de cidadania, que,


programaticamente, desconsiderava todas as diferenças tidas como não essenciais – isto
é, diferenças que não implicassem distinções na possibilidade (em teoria, ao menos) de
ter reconhecidos seus direitos e de poder exercê-los, incluindo-se aí os direitos políticos
(p.ex.: votar; candidatar-se e ocupar cargos públicos) (ROSANVALLON, 2010).

No campo jurídico, a tradução dessa crença era o conceito de sujeito de


direitos, ficção que afirma a capacidade de todos, indistintamente (novamente, em
teoria, ao menos), de exercer seus direitos (subjetivos e objetivos) e de, em caso de
litígio, ter garantido o devido processo legal por meio do acesso ao sistema judicial.

No campo econômico, a organização das relações se dava a partir do conceito


de categoria profissional, e de sua posição no processo de produção (capitalista,
trabalhador). A importância fundamental que os sindicatos (de trabalhadores e
patronais) assumiram no Ocidente se baseia nas implicações dessa categorização. As
negociações relevantes se dão entre sindicatos - havendo um forte sentido de
homogeneidade dentro de cada campo.

Nessas três dimensões, as diferenças individuais de base individual e


biográfica eram consideradas irrelevantes para os fins de desenho de políticas, produção
de legislação e de condução de projetos específicos (TOURAINE, 1992). O horizonte, na
Modernidade, é sempre o de um universal categórico, com seu conjunto de características
comuns em termos políticos, jurídicos e econômicos. Subcategorias dentro desses grupos
maiores - como se vê, por exemplo, da seleção de cidadãos que mereceriam proteção
específica da seguridade social - seguem a mesma lógica de categorização.

Esse apagamento estratégico de diferenças individuais encontra-se hoje


severamente impugnado, conforme se apontou acima. Pergunta-se,
contemporaneamente, por que a raça ou o gênero de um indivíduo não devam ser
fatores relevantes para a definição de políticas, se eles são decisivos para excluir um
número enorme de cidadãos da igualdade de oportunidades que a democracia promete
produzir? Por que insistir em agir como se a igualdade formal fosse sinônimo de
igualdade real? E por que adotar como fundamento para a definição das categorias tidas
como relevantes as normas, os valores, os comportamentos, as práticas e o conceito de
verdade de apenas uma parcela da população?

Esses questionamentos colocam em questão a legitimidade de todo o


sistema. Essa crítica vem tomando corpo e se torna agora incontornável como moldura
dos debates políticos. Os trabalhos de Michel Foucault, por sua análise profunda e

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60 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

contundente das estruturas de poder e opressão constitutivas das trocas quotidianas


(como se vê, por exemplo, de A microfísica do poder, Vigiar e Punir, A história da
loucura ou História da sexualidade) ilustram eloquentemente esse esforço de crítica
aos discursos hegemônicos de poder e à injustiça estrutural e silenciosa das
instituições que representam o poder.

O conceito mesmo de pós-modernidade se constrói a partir dessa denúncia


da metafísica moderna e das instituições que a tinham por base. Como observa Lyotard:

Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em


relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências;
mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo
metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia
metafísica e a da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa
perde seus atores (functeurs),os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes
périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de
linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc.,
cada um veiculando consigo validade pragmáticas sui generis. (LYOTARD,
2008, p. 19)

Ao questionamento filosófico, teórico, da perspectiva moderna se soma,


sobretudo desde a metade do século XX, uma prática ativista, concreta, de contestação,
que coloca em xeque a legitimidade dos universais que sustentam a democracia
moderna. O movimento dos direitos civis, os movimentos feministas, os Black Panthers
e a revolta de Stonewall (confrontos entre a polícia e cidadãos LGBT em Nova York, em
1969) são manifestações pioneiras e exemplares da crescente insatisfação com a lógica
de homogeneização que se inseria nas ideias de cidadania, sujeito de direitos e categoria
profissional. Essa homogeneização, sustentam esses críticos, longe de ser anódina,
perpetua injustiças estruturais dentro da sociedade.

Esses movimentos propunham que, antes de sermos cidadãos de qualquer


Estado, uma parte em um litígio ou contrato ou um elo na cadeia de produção, somos
seres humanos. E a condição humana implica formas específicas de entender e viver a
própria história, o próprio corpo, as próprias crenças (TAYLOR, 1991). Poder escolher
livremente essas formas, vale dizer, ter autonomia em relação a essas decisões
fundamentais, é o que nos constitui como seres humanos. Não há uma maneira correta,
pré-estabelecida, de ser humano, vale dizer, não há um ser humano normal.

Nessa perspectiva, a característica fundamental dos seres humanos é estarem


em contínua transformação. Sob esse prisma, a jornada humana é entendida como uma
jornada de permanente autodescoberta e reinvenção, que só pode ser plenamente
realizada na liberdade e na autonomia (TAYLOR, 1991). Nada, nem ninguém, pode
legitimamente impor uma heteronomia que impeça às pessoas de realizarem suas
escolhas de vida. Não é difícil ver o hiato entre essa perspectiva e a lógica tradicional de
legitimação das instituições políticas e sociais da Modernidade.

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 61
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

A democracia vem buscando reinventar-se para acolher a demandas


igualmente poderosas por respeito às diferenças e à autonomia e, assim, relegitimar-se
perante seus cidadãos. Há uma crescente aceitação do postulado de que as instituições
políticas precisam assumir uma atitude crítica em relação a ideias hegemônicas de
normal. Ponto central nessa tentativa de reconstrução democrática é a ideia de
dignidade humana. Ela vem se tornando o novo horizonte a partir do qual se busca
restaurar a crença das populações na legitimidade dos regimes democráticos. Também
essa reconstrução, entretanto, implica desafios importantes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)


expressa o reconhecimento solene de que “a dignidade inerente a todos os membros da
família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948). A relação direta que esse texto cardeal
estabelece entre dignidade humana e direitos, e a afirmação taxativa de que ambos são
condição de existência da justiça, da liberdade e da paz expressam uma aspiração elevada
para a qualidade de nossa vida em comum. O texto incorpora uma forte sensibilidade
para os valores do pluralismo, representando, assim, um desafio para o monismo
implícito nas formas modernas de se entender a democracia, a cidadania e a igualdade.
A noção de “dignidade”, base de toda a perspectiva representada pela
Declaração, tem a marca das ideias verdadeiramente fundamentais. Como no verso
luminoso de Cecília Meireles, dignidade é uma daquelas palavras “que o sonho humano
alimenta; não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” (MEIRELES, 2015).
Sustentar que todas as pessoas são dignas de respeito não é controverso. Há um forte
consenso, um sentimento difuso e arraigado, de que há algo de precioso e de sagrado
em cada um de nós, apenas pelo fato de sermos membros da família humana. Tampouco
é controvertida a ideia de que esse algo precisa ser cuidadosamente protegido, precisa
estar ao abrigo de todo tipo de agressão. Sem ele, não nossa vida não é plenamente
humana. Quando se faz menção à dignidade, “não há ninguém que não entenda”.

Mas também “não há ninguém que explique”. Isto é, o significado preciso


desse conceito é elusivo, fugidio e centro de grandes controvérsias. Sua pretensão de ser
um conceito universal acarreta, desde logo, as mesmas dificuldades – e abre flanco para
as mesmas objeções – que haviam conhecido as ideias modernas de Razão e de Verdade.
Será mesmo possível atribuir um mesmo sentido à expressão dignidade humana em
toda parte, em todas as culturas? Ou o significado específico desse conceito tem que ser
descoberto ou construído em cada comunidade?

Se a resposta for a primeira, isto é, se dissermos que há no termo um sentido


fundamental que ultrapassa as diferenças de cultura e de contexto, então estaremos
postulando a ideia de um humano universal, o que implica acreditar que é possível
estabelecer um significado para ser humano, independente das circunstâncias concretas
em que as pessoas de fato vivem. Dadas as críticas ao universalismo moderno, essa
posição não é simples de sustentar. Ela é passível de ser apresentada como uma tentativa

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62 DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

talvez inadvertida de reencenar, sob uma nova roupagem, a mistificação que desejava
apresentar os valores ocidentais como valores universais.

Se a resposta for a segunda, isto é, se dissermos que o sentido de dignidade


humana é essencialmente contextual e que, portanto, só pode ser plenamente realizado a
partir das características de cada cultura, reduzimos fortemente sua utilidade prática. Se o
conceito existe para ser um limite à agressão e ao arbítrio, sustentar que ele não tem um
sentido preciso abre as portas para que os poderosos possam sempre dizer que suas ações,
por mais questionáveis que pareçam aos olhos de muitos outros, atendem a uma percepção
especificamente cultural, tradicional dos elementos que constituem a dignidade humana.

Essa fluidez do conceito é um desafio, como se disse, mas, em tese, não uma
dificuldade intransponível para as democracias. Elas têm buscado fazer frente a esse
desafio entendendo que a dignidade humana é um princípio, isto é, um valor que deve
nortear as ações. O reconhecimento das dificuldades de precisar uma definição única
em um mundo plural não torna fútil ou inútil invocar esse conceito. Em uma infinidade
de situações quotidianas, ele é poderoso para aperfeiçoar a busca pela justiça e sua
realização. A vida se dá em comunidades específicas e, no interior dessas comunidades,
tende a ser mais denso o grau de convergência sobre os elementos mínimos
indispensáveis para uma vida digna.

A possibilidade de amplo acesso e fruição às condições dessa vida digna


constitui aquilo que a Declaração nomeia direitos iguais e inalienáveis de todos. Eles
são direitos cuja existência independe de seu reconhecimento formal pelo Estado:
temos esses direitos pelo simples fato de sermos humanos. Mas eles são também o
princípio a partir do qual cada Estado deve se estruturar e agir. Os Estados devem
reconhecer e proteger, por meio de legislação, a dignidade de cada um de seus cidadãos.
A dimensão ética, ampla, do valor dignidade humana se traduz, assim, na dimensão
jurídica de regras concretas e específicas que buscam implementá-lo.

O crescente prestígio da ideia de direitos humanos e a ininterrupta


ampliação de seu campo de abrangência são consequência dessa maneira de pensar. A
busca de uma vida digna e da autorrealização – na forma como cada indivíduo a desejar
significar – não pode ser impedida por ninguém e deve ser promovida por todos. Se o
Estado pretender impedir essa realização ou, se de uma maneira ou de outro, seu
funcionamento tiver essa consequência, ele será ilegítimo. O mesmo vale para a
democracia formal: se, na prática, ela resultar em afronta à dignidade ou à capacidade
de autorrealização dos seres humanos, sua legitimidade se esgarçará.

O colapso do lastro metafísico que dava solidez aos discursos políticos da


Modernidade, entretanto, torna permanente instáveis esses conceitos que dão base a
essa reconfiguração do pensamento e da prática jurídica. O crescente protagonismo das
cortes constitucionais, em boa parte do Ocidente, e a renovação dos debates sobre a
hermenêutica jurídica e seus limites são desdobramentos dessa mudança de paradigma,

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DEPOIS DA RAZÃO: CRISE DA METAFÍSICA E DESAFIOS 63
PARA A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

que faz da verdade um resultado, sempre provisório, da interpretação coletiva


(VATTIMO, 2009, p. 16).

A renovação do projeto democrático requer, assim, a capacidade de o Direito


refundar a legitimidade de sua lógica de normatização a partir de premissas não inquinadas
pelo tipo de universalismo que marcou as formas jurídicas e políticas da Modernidade. Sem
essa atenção à matriz metafísica da crise hodierna, o pensamento jurídico terá dificuldades
para formular propostas consistentes e efetivas para sua superação.

REFERÊNCIAS

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Melo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2018.

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France, 1977-1978. Paris: Seuil, 2009.

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internacional sobre os novos populismos – e como enfrentá-los. Tradução: Silvia
Bittencourt et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2019, p. 77-89.

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Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

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The Belknap Press of Harvard University Press, 2015.

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CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021 REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A
PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E
AS NOVAS TECNOLOGIAS PARA A
EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA

Liane Tabarelli 1
Rodrigo Wasem Galia2

RESUMO: Este trabalho apresenta breves considerações acerca dos


desafios enfrentados na atualidade para a interpretação do Direito,
em especial a fim de que se garanta, com a tarefa hermenêutica,
efetividade aos direitos fundamentais. Nessa linha, importante
observar que a atividade interpretativa é inerente a atuação de todo
RECEBIDO EM: 11/05/21
aquele que se propõe a compreender o alcance de um texto. Na
ACEITO EM: 26/06/21 seara jurídica, tal ofício já se manifesta desde o início da trajetória
acadêmica do aluno. Daí a significativa relevância de se (re) pensar
criticamente o ensino jurídico dos dias correntes, principalmente
em razão da pandemia (covid-19), que traz uma nova realidade ao
ensino jurídico no Brasil, com a utilização de novas tecnologias
(aulas virtuais através de plataformas digitais, por exemplo) para
evitar o contágio do vírus entre os atores envolvidos no processo
ensino-aprendizagem (professores e alunos) e permitir um
conhecimento sem fronteiras. O problema de pesquisa é saber até
que ponto o ensino jurídico foi afetado pela pandemia. Como
conclusão, percebe-se que professores e alunos terão que se
reinventar no processo ensino-aprendizagem, o que afetou o ensino
jurídico, já que não há possibilidade de aulas presenciais enquanto

1
Advogada e parecerista. Professora adjunta da Escola de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente de cursos de pós-
graduação e preparatórios para concursos públicos. Doutora em Direito pela
PUCRS. Ex-bolsista da CAPES de Estágio Doutoral (Doutorado Sanduíche) na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal. Autora de obras e
de diversos capítulos de livros e artigos jurídicos. Endereço eletrônico:
liane.tabarelli@pucrs.br.
2
Pós-Doutor, Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela PUCRS. Professor
Federal nas áreas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho
desde 2018. Avaliador do INEP-MEC na autorização de Novos Cursos Jurídicos no
Brasil. Autor e co-autor de diversas obras jurídicas no Brasil. Parecerista de
diversas Revistas Jurídicas. Membro de Conselho Editorial. Diretor Científico da
Comissão Estadual de Direito do Trabalho da ABA (Associação Brasileira de
Advogados) do Rio Grande do Sul. Palestrante. Endereço eletrônico:
rodrigogalia@hotmail.com. http://orcid.org/0000-0002-6364-0262

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
66 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

perdurar a pandemia. Trata-se de um estudo descritivo de revisão de literatura, de natureza


qualitativa sobre o ensino jurídico em tempos de COVID-19 com orientações importantes
para os professores e alunos diante das recomendações do Ministério da Educação.

PALAVRAS-CHAVE: ensino jurídico; desafios contemporâneos; interpretação do


direito; covid-19; educação à Distância.

RETHINKING LEGAL EDUCATION FROM PANDEMIC (COVID-19)


AND NEW TECHNOLOGIES FOR DISTANCE EDUCATION
ABSTRACT: This work presents brief considerations about the challenges faced today for
the interpretation of Law, especially in order to guarantee, with the hermeneutic task,
effectiveness to fundamental rights. Along these lines, it is important to note that
interpretative activity is inherent in the work of everyone who sets out to understand the
scope of a text. In the legal field, this profession has manifested itself since the beginning
of the student's academic trajectory. Hence the significant relevance of (re) thinking
critically the legal education of the current days, mainly due to the pandemic (covid-19),
which brings a new reality to legal education in Brazil, with the use of new technologies
(virtual classes through digital platforms, for example) to avoid spreading the virus among
the actors involved in the teaching-learning process (teachers and students) and allow
knowledge without borders. The research problem is to know to what extent legal
education was affected by the pandemic. In conclusion, it is clear that teachers and
students will have to reinvent themselves in the teaching-learning process, which affected
legal education, as there is no possibility of classroom classes while the pandemic persists.
This is a descriptive study of literature review, of a qualitative nature about legal education
in times of COVID-19 with important guidelines for teachers and students in view of the
recommendations of the Ministry of Education.

KEYWORDS: legal education; contemporary challenges; interpretation of law; covid-19;


distance Education.

REPENSANDO LA EDUCACIÓN JURÍDICA DESDE LA PANDEMIA


(COVID-19) Y LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS PARA LA
EDUCACIÓN A DISTANCIA
RESÚMEN: Este trabajo presenta breves consideraciones sobre los desafíos que enfrenta
hoy la interpretación del Derecho, especialmente para garantizar, con la tarea
hermenéutica, la efectividad de los derechos fundamentales. En esta línea, es importante
señalar que la actividad interpretativa es inherente a la actuación de todo aquel que se
propone comprender el alcance de un texto. En el ámbito jurídico, esta profesión se ha
manifestado desde el inicio de la trayectoria académica del alumno. De ahí la relevancia
significativa de (re) pensar críticamente la educación jurídica de los días actuales,
principalmente debido a la pandemia (covid-19), que trae una nueva realidad a la educación

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 67

jurídica en Brasil, con el uso de nuevas tecnologías (clases virtuales a través de plataformas
digitales, por ejemplo) para prevenir la propagación del virus entre los actores involucrados
en el proceso de enseñanza-aprendizaje (docentes y estudiantes) y permitir conocimientos
sin fronteras. El problema de la investigación es saber hasta qué punto la educación jurídica
se vio afectada por la pandemia. En conclusión, es claro que docentes y estudiantes tendrán
que reinventarse en el proceso de enseñanza-aprendizaje, lo que afectó a la educación
jurídica, ya que no hay posibilidad de clases presenciales mientras persista la pandemia. Se
trata de un estudio descriptivo de revisión bibliográfica, de carácter cualitativo sobre la
educación jurídica en tiempos del COVID-19 con pautas importantes para docentes y
estudiantes en vista de las recomendaciones del Ministerio de Educación.

PALABRAS CLAVE: educación jurídica; desafíos contemporáneos; interpretación de


derecho; covid-19; educación a distancia.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Ensino jurídico e os desafios contemporâneos à


interpretação do Direito; 3 Repensando os Cursos de Direito a partir da pandemia
(COVID-19) a partir das novas tecnologias para a educação à distância na Sociedade da
Informação; 4 CONSIDERAÇÕES Finais; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

Fruto de uma herança positivista, dizia-se que o juiz era unicamente a boca
que pronunciava as palavras da lei. Era o chamado dogma da completude do
ordenamento jurídico. Tudo o que interessava ao Direito deveria estar contido em Lei.
Como se a Lei pudesse prever todas as transformações sociais da humanidade. Isso não
mais se verifica (ou não deve mais se verificar).

Na atualidade, exige-se das autoridades julgadoras atuações cooperativas 3 a


fim de se otimizar a concretização das normas constitucionais, e, em particular, dos
direitos fundamentais. Todo direito é constitucional, isso é, deve ser lido e interpretado
através dos preceitos constitucionais. Nessa linha, fato inexorável é que a atividade
judicial é, por excelência, interpretativa. Porém, inarredável também a realidade de que
todos os atores que militam no mundo jurídico participam dessa tarefa e também
contribuem para esse mister hermenêutico.

3
Lembre-se que, por exemplo, com a adoção do Princípio da Cooperação no art. 6º, CPC/2015 para que
exercício do direito constitucional disposto no art. 5º LV, CF/88 (contraditório e ampla defesa) seja pleno
e efetivo, exige-se do julgador condução proativa do feito, estimulando e facilitando o auxílio mútuo entre
todos os envolvidos na relação jurídica processual para que, ao fim e ao cabo, consiga-se se obter uma
prestação jurisdicional eficiente num prazo razoável. Foi exatamente em homenagem à composição
amigável dos conflitos entre os litigantes e a duração razoável dos feitos em juízo (art. 5º, LXXVIII, CF/88),
entre outros motivos, que o legislador processual civil de 2015 previu a implantação da audiência do art.
334 na Lei nº 13.105.

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
68 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

Em razão disso, esse enxuto ensaio se propõe a refletir sobre a importância


de se (re)pensar criticamente o ensino jurídico contemporâneo, tendo em vista que os
estudantes de Direito, enquanto tais, já são co-partícipes desse cenário interpretativo,
auxiliando na evolução da Ciência Jurídica e na transformação da realidade social.

A doença respiratória denominada de COVID-19, determinada pelo agente


etiológico SARS-CoV-2, passou a existir inicialmente na China, em dezembro de 2019 e,
ligeiramente, se espalhou pelo país e pelo restante do mundo. Em data de 11 de março
de 2020, a Organização Mundial da Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020)
declarou a COVID-19 uma pandemia mundial. Neste cenário mundial, inclusive no
Brasil, foram tomadas medidas de isolamento social como forma de prevenir e diminuir
a propagação da COVID-19.

Dentre essas medidas, merece ênfase a determinação do fechamento das


instituições de ensino, que tiveram que suspender suas aulas e atividades presenciais.
Diante desta perspectiva, o Ministério da Educação respondeu à Associação Brasileira
de Mantenedoras de Ensino Superior - ABMES consulta a respeito da aplicabilidade das
orientações do Parecer CNE/CEB nº 19/2009, em virtude da pandemia do COVID-19 e
suas implicações, sobre a tomada de decisões e providências relacionadas ao
cumprimento do calendário acadêmico por parte das Instituições de Educação Superior
privadas e trazendo alternativas para suprir o processo de ensino e aprendizagem em
contextos caracterizados pela ausência de contato entre discente e docente no mesmo
ambiente físico (BRASIL, 2020a).

Nessa esteira, o Ministério da Educação editou, ainda, a Portaria nº 343, de 17


de Março de 2020, que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em
meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-
19, destacando que é de responsabilidade das instituições a definição das disciplinas que
poderão ser substituídas, a disponibilização de ferramentas aos alunos que permitam o
acompanhamento dos conteúdos ofertados bem como a realização de avaliações
durante o período da autorização (BRASIL, 2020b). Passou a ser o ensino-aprendizagem
do Direito através do sistema EAD (Educação à Distância), uma nova realidade que
impõe aos professores e alunos uma nova forma de estudar e compreender os institutos
jurídicos, com a utilização de plataformas digitais para a realização das aulas,
armazenamento de materiais (apostilas, textos, exercícios, provas virtuais para a
verificação da aprendizagem, entre outras mudanças).

Novos questionamentos passaram a ser feitos a partir dessa nova realidade


experimentadas pelos atores da atividade ensino-aprendizagem: estão os professores
totalmente capacitados para ministrar aulas nessas plataformas digitais? Que estratégias
esses docentes terão que utilizar para prender a atenção de seus discentes? Os alunos
conseguirão se organizar para acompanhar as aulas (sejam essas síncronas ou
assíncronas)? As aulas no sistema EAD mantêm a eficácia do ensino presencial,
principalmente no curso de Direito, em que a realidade social se transforma a todo
momento, exigindo de seus atuais e futuros intérpretes novas formas de interpretação

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 69

do Direito? Esses e outros questionamentos serão alvo de estudo do presente texto, sem
a pretensão de esgotá-los, mas de analisá-los criticamente, a fim de contribuir para um
re(pensar)do ensino jurídico a partir da pandemia (COVID-19), que impôs novas
tecnologias para a educação à distância, evitando o contágio e o perigo à integridade
física e psíquica dos atores do processo ensino-aprendizagem (professores, alunos,
funcionários de escolas e universidades).

2 ENSINO JURÍDICO E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS À INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Iniciam-se estes apontamentos com o registro de que o instrumento de


trabalho do jurista é a palavra. Seja ela escrita ou falada, fundamental é a tarefa
interpretativa para o exercício desse mister.

Diante disso, na dicção de Juarez Freitas (2000, p. 18), “jurista é aquele que,
acima de tudo, sabe eleger diretrizes supremas, notadamente as que compõem a tábua de
critérios interpretativos aptos a presidir todo e qualquer trabalho de aplicação do Direito”.

Desse modo, o intérprete “contamina” os fatos e os direitos que lhe


embasam o desenvolvimento do labor, sepultando o ideal kelseniano de pureza da
Ciência. (KELSEN, 1996).

Com isso, tem-se que, em verdade, o jurista não trabalha com direitos e fatos
e, sim, com versões dos direitos e versões dos fatos. Constroem-se, assim, versões dos
direitos e versões dos fatos que sustentam uma demanda, as quais, inevitavelmente,
carregam conotações valorativas, pré-concepções e defesa de interesses desse intérprete.

Oportuno, nessa linha, invocar os ensinamentos de Gadamer (1977, p. 366),


para quem a verdade de um texto não estará na submissão incondicionada à opinião do
autor nem só nos preconceitos do intérprete, senão na fusão dos horizontes de ambos,
partindo do ponto atual da história do intérprete que se dirige ao passado em que o
autor se expressou.

Assim, a real finalidade da hermenêutica jurídica é “encontrar o Direito”


(seu sentido) na aplicação “produtiva” da norma, pois a compreensão não é um
simples ato reprodutivo do sentido original do texto, senão, também, produtivo.
(GADAMER, 1977, p. 366)

Portanto, está-se diante de incertezas. A visão do intérprete possibilita


recortes diferenciados. A atividade interpretativa, como propõe Juarez Freitas (2010, p.
89-90), inexoravelmente envolve uma tarefa hierarquizante. Essa incerteza é trabalhada
por BAUMAN, quando explica que o contexto em que as coisas se inserem determina a
elas diferentes significados, ou seja, não há certeza absoluta sem se precisar a localização
na ordem das coisas.

Bauman (1998, p. 14) adverte que:

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
70 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes do que elas
ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas,
arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em
que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum
meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir
às coisas seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorre serem aqueles
lugares que elas não preencheriam “naturalmente” por sua livre vontade. O
oposto da “pureza” – o “sujo”, o imundo, os “agentes poluidores” – são coisas
“fora do lugar”. Não são as características intrínsecas das coisas que as
transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização e, mais
precisamente, sua localização na ordem de coisas pelos que procuram a pureza.
As coisas que são “sujas” num contexto podem tornar-se puras exatamente por
serem colocadas num outro lugar – e vice-versa. Sapatos magnificamente
lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições.
Restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza. Uma
omelete, uma obra de arte culinária que dá água na boca quando no prato do
jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro.
(grifos do autor)

Veja-se que cada intérprete observa, pondera e hierarquiza distintamente, ao


se estar diante de inúmeros princípios e regras que são potencialmente aplicáveis no
caso concreto. Ainda mais diante de uma modernidade líquida ou Pós-Modernidade em
que se vive atualmente.

Segundo Bauman (2007, p. 88), líquido-moderna’ seria uma sociedade em


que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do
que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. É
marcada pela instabilidade.

A diferença entre a modernidade e a pós-modernidade estaria presente na


percepção de que na primeira eram as ciências que criavam as verdades e as leis, assim
como a idealização de um bem-comum geral. A dialética era reveladora de saber e
emancipatória, um conhecimento baseado em justificações metafísicas. Enquanto na
segunda, o saber está marcado pela dúvida, desconstrução, perspectiva, desconfiança,
interpretação, não-existência de verdades, suspeitas, construção do conhecimento a
partir da problemática. Existe uma recomendação ao exercício do pensamento e uma
incitação e provocação para a dúvida. (KARASEK, 2010, p. 79-80). Essa pós-modernidade
líquida é trabalhada também por BAUMAN.

Bauman (2008, p. 94-95) assevera que:

as parcerias não se fortalecem, os medos não se dissipam. Tampouco a suspeita


de um mal que espera pacientemente a sua chance. Na pressa, não existe tempo
para descobrir até que ponto a suspeita se fundamenta – muito menos para
impedir o mal que emerge de seu esconderijo. Os habitantes do mundo-líquido
moderno, acostumados a praticar a arte da vida liquido-moderna, tendem a
considerar a fuga do problema como uma aposta melhor do que enfrentá-lo. Ao
primeiro sinal do mal, procuram uma passagem dotada de uma porta
confiavelmente pesada para trancar depois que a atravessaram. A linha divisória
entre os amigos para toda a vida e os inimigos eternos, antes tão claramente

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 71

traçada e tão estritamente vigiada, foi praticamente apagada; o que gera uma
espécie de “zona cinzenta” em que os papéis atribuídos podem ser
intercambiados instantaneamente e com pouco esforço. A fronteira, ou o que
sobrou dela, muda de forma e se move a cada passo, e na vida de um corredor
ainda se espera que haja muitos passos pela frente. Tudo isso se acrescenta à
confusão já considerável e recobre o futuro de uma neblina mais densa. E a
neblina – inescrutável, opaca, impermeável – é (como qualquer criança lhe dirá)
o esconderijo favorito do mal. Feita dos vapores do medo, a neblina exala o mal.

Logo, todo aquele que opera o Direito, na condição de acadêmico ou de


profissional, sempre se dedica a compreender, delimitar, apreender, enfim, interpretar
o sentido que as palavras podem adquirir em um texto. Interpretar é estabelecer o
alcance de uma proposição, revelar o seu sentido.

Destarte, não obstante as contribuições de Kelsen (1996, p. 366) para a


Ciência do Direito, atualmente, como referido, o Direito é “contaminado” por inúmeros
axiomas, proposições valorativas, éticas, morais, entre outras, que, muitas vezes,
representam o momento histórico e as prioridades de determinada sociedade. Ainda,
partindo-se do contributo de Kelsen que estabelece o sistema jurídico com uma
estrutura piramidal, onde a Lei das leis, isto é, a Constituição Federal, situa-se no topo
desse sistema, a interpretação constitucional adquire significativa importância.

Nesse sentido, interpretar a Constituição significa, em última instância, dar


concretude aos direitos fundamentais ali insculpidos. O Texto Maior prescreve os
objetivos e fundamentos da República e todo o ordenamento jurídico
infraconstitucional deve ser interpretado de modo a prestigiar os comandos
constitucionais. Os direitos fundamentais ali prescritos devem ser prioridade absoluta
de realização por parte dos agentes de um Estado que se intitula Democrático de Direito.

Por outro lado, impera salientar, nesse estudo, que, ao almejar-se uma
interpretação concretizante (HESSE, 1991, p. 65) dos preceitos e da axiologia
constitucional presente, em particular, nos seus fundamentos, urge conhecer os vetores
principiológicos contidos na mesma. O Direito atual, acompanhando os ensinamentos
de Alexy (2008, p. 79), cuida de uma rede de princípios e regras. Essa teia de
mandamentos, de densidades e hierarquias distintas, demanda intérpretes preparados
para otimizar-lhes os comandos e produzir a máxima eficácia possível.

Constata-se, pois, a importância da tarefa interpretativa e sua complexidade na


contemporaneidade. Inúmeros interesses a serem atendidos, compreensões divergentes,
prioridades distintas dos mais diversos intérpretes. De qualquer modo, frise-se que o vetor
maior para a interpretação constitucional que envolva direitos fundamentais deve ser, de
modo imperativo, o resultado que produza as menores limitações ou restrições de forma
a prestigiar, o quanto possível, sua maior eficácia possível.
Assinale-se que Freitas (2002, p. 11-23) preceitua que:

Assim, devem ser interpretadas restritivamente as limitações, havendo, a rigor,


regime unitário dos direitos fundamentais das várias gerações, donde segue

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
72 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

que, no âmago, todos os direitos têm eficácia direta e imediata, reclamando


crescente acatamento encontrando-se peremptoriamente vedados os
retrocessos. Com efeito, uma vez reconhecido qualquer direito fundamental, a
sua ablação e a sua inviabilização de exercício mostram-se inconstitucionais.
Nessa ordem de considerações, todo aplicador precisa assumir, especialmente
ao lidar com os direitos fundamentais, que a exegese deve servir como
energético anteparo contra o descumprimento de preceito fundamental, razão
pela qual deve ser evitado qualquer resultado interpretativo que reduza ou
debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos
fundamentais. Em outras palavras, a interpretação deve ser de molde a levar às
últimas consequências a ‘fundamentalidade’ dos direitos, afirmando a unidade
do regime dos direitos das várias gerações, bem como a presença de direitos
fundamentais em qualquer relação jurídica.

Há que se salientar também que, não obstante vários sejam - ou possam ser -
os intérpretes constitucionais, ainda mais em se tratando de um Estado como o brasileiro,
o qual admite o sistema difuso e concentrado de controle de constitucionalidade, o
Judiciário tem a atribuição por excelência de realizar essa insigne tarefa.

Marcelo Figueiredo (2007, p. 40) ressalta o papel do Judiciário, por longa


data, como garantidor dos direitos civis e da liberdade individual, no Estado de
modelagem liberal e o Estado Democrático e de Direito ao qual o Brasil se propõe a ser
exige do Judiciário a tutela dos direitos sociais, sem que isso seja invasão da seara de
competência dos demais poderes.

Entenda-se, ademais, que o Poder Judiciário, além de ser o Poder


constitucionalmente consagrado para a interpretação constitucional, é aquele que
deve possuir imparcialidade ao realizar a prestação jurisdicional. Embora não esteja
ele comprometido com interesses como porventura pode ocorrer com o Executivo e
Legislativo, deve, sim, haver uma atuação afirmativa das Cortes de Justiça no sentido
da promoção dos direitos fundamentais quando de sua atuação. Nesse sentido, pois,
não há que se falar em imparcialidade dos juízes que, antes e acima de tudo, devem
ter compromisso constitucional.

Freitas (2000, p. 29-30) já se manifestava nesse sentido quando assevera que:

Ora, em face de ser o juiz o detentor único da jurisdição, surge o amplo e


irrenunciável direito de amplo acesso à tutela jurisdicional como uma
contrapartida lógica a ser profundamente respeitada, devendo ser proclamado
este outro vetor decisivo no processo de interpretação constitucional: na
dúvida, prefira-se a exegese que amplie o acesso ao Judiciário, por mais
congestionado que este se encontre, sem embargo de providências inteligentes
para desafogá-lo, sobretudo coibindo manobras recursais protelatórias e
estabelecendo que o Supremo Tribunal Federal deva desempenhar
exclusivamente as atribuições relacionadas à condição de Tribunal
Constitucional, sem distraí-lo com tarefas diversas destas, já suficientemente
nevrálgicas para justificar a existência daquela Corte.

Ainda, segundo Freitas (2002, p. 4):

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 73

[...] Almejo, finalmente, deixar consignado que se mostra indispensável apostar


no Poder Judiciário brasileiro, em sua capacidade de dar vida aos preceitos
ilustrativamente formulados e crer na sua fundamentada sensibilidade para o
justo, razão pela qual insisto em proclamar que todos os juízes, sem exceção,
precisam, acima de tudo, ser respeitados, fazendo-se respeitar, como juízes
constitucionais.

Porém, além dos integrantes do Judiciário, importante sublinhar que a


tarefa interpretativa constitucional e infraconstitucional é exercida, de forma
concomitante e constante, também por milhares de estudantes de Direito,
advogados, pareceristas, professores, cientistas do Direito, servidores, entre outros.
Flagrante, pois, diante desse cenário, o fato de que todos esses agentes, de alguma
maneira, interagem no sistema jurídico e contribuem com o aperfeiçoamento do
mesmo, incluindo o sistema estritamente legal.

Nesse passo, diante das considerações aqui tecidas, vislumbrando-se a


importância da interpretação constitucional como instrumento de realização dos
direitos fundamentais, bem como a relevância da tarefa do hermeneuta como um
todo na seara jurídica, entende-se ser imprescindível (re)pensar criticamente o
ensino jurídico no Brasil. Veja-se que, na realidade hodierna, não mais é admissível
que se compreenda a postura do intérprete - qualquer que seja ele - como um mero
reprodutor de textos legais.

É preciso que se formem seres com posturas éticas e crítico-reflexivas, muito


além da estrita observância dos ditames legais. Para tanto, há que se investir, primeiro,
em despertar o gosto pela leitura já na educação nas séries iniciais e durante todo o
ensino fundamental e médio do aluno. Quem muito lê bem escreve e desenvolve
autonomia. Segundo, já nos bancos acadêmicos das Faculdades de Direito Brasil afora,
imprescindível que dos discentes sejam exigidas atividades crítico-reflexivas, além dos
compromissos tradicionais vinculados a aquisição de conhecimentos teóricos e a
correlata aproximação dos mesmos com a prática forense.

Nesse contexto, adequado, ademais, meditar sobre a forma de abordagem e


questionamentos formulados nas Primeiras Fases de Concursos Públicos e Exame de
Ordem, bem como no ENADE. Passar-se-á agora, à análise crítica dos cursos jurídicos
na sociedade da informação.

3 REPENSANDO OS CURSOS DE DIREITO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19)


A PARTIR DAS NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Atualmente, as informações são acessadas pelas pessoas em geral em uma


velocidade enorme. Faz-se preciso, portanto, reconhecer essa nova “era digital” como
nova forma de aquisição e construção do conhecimento ((KLAFKE, 2020, p. 79 e
MORAN et al., 2010, p. 74). Entretanto, isso não traz como consequência jogar fora ou

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
74 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

ignorar o caminho já alcançado pelas linguagens oral e escrita utilizadas no processo


ensino-aprendizagem, nem mesmo quer representar o uso abusivo ou indiscriminado
de computadores no ensino, mas, antes de tudo, requer que se utilize criteriosamente
os recursos eletrônicos como ferramentas para construir processos metodológicos mais
significativos para aprender.

Ora, é forçoso reconhecer que dentro de uma conjuntura em que cada vez mais
há irrestrito acesso à informação e ao conhecimento, principalmente com a utilização da
internet, o desenvolvimento tecnológico advindo das últimas décadas tem ocasionado
importantes ponderações sobre as práticas de ensino na educação de nível superior. Nessa
esteira, frente a essas novas tecnologias e novas fontes de saber da sociedade, os cursos de
Direito não poderão mais ignorar ou desconhecer essas reais e importantes
transformações (FIORILLO; LINHARES, 2013, p. 132). Não é à toa que os cursos jurídicos
terão, agora, que incluírem em seus currículos, novas disciplinas motivadas pelas novas
realidades sociais, como é o caso do Direito Digital e do Direito Financeiro.

Segundo Santos e Jacobs (2019), agora, no curso de graduação em Direito, em


razão do Parecer CNE/CES nº: 757/2020, que alterou o art. 5º da Resolução CNE/CES nº
5/2018, deverão ser incluídos no PPC conteúdos e atividades que atendam às três
seguintes perspectivas formativas:

I - Formação geral: conteúdos que ofereçam ao graduando elementos


fundamentais do Direito (em diálogo com as demais expressões do
conhecimento filosófico e humanístico, das ciências sociais e das novas
tecnologias da informação) e que envolvam saberes de outras áreas formativas
como Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História,
Psicologia e Sociologia;
II - Formação técnico-jurídica: conteúdos que observem as peculiaridades
dos diversos ramos do Direito, estudados sistematicamente e contextualizados
segundo a sua evolução e aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas
e culturais do Brasil e suas relações internacionais. Aqui devem ser incluídos,
necessariamente, conteúdos básicos das áreas de Teoria do Direito, Direito
Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal,
Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional,
Direito Processual; Direito Previdenciário, Direito Financeiro, Direito Digital e
Formas Consensuais de Solução de Conflitos; e
III - Formação prático-profissional: conteúdos que integrem prática e teoria
desenvolvidas nas perspectivas formativas, especialmente nas atividades
relacionadas com a prática jurídica e o TC, além de abranger estudos referentes
ao letramento digital, práticas remotas mediadas por tecnologias de informação
e comunicação.

As atividades de caráter prático-profissional e a ênfase na resolução de


problemas precisam ser presentes em todas as perspectivas de formação e, tendo em
vista a diversificação nos currículos, as Instituições de Ensino Superior poderão
introduzir no Projeto Pedagógico de Curso (PPC) conteúdos e componentes curriculares
que desenvolvam conhecimentos de importância regional, nacional e internacional, bem
como definir ênfases em determinado(s) campo(s) do Direito (SANTOS; JACOBS, 2019).

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 75

Poderão, da mesma forma, articular novas competências e saberes


necessários aos novos desafios que se apresentem ao mundo do Direito, tais como:
Direito Ambiental, Direito Eleitoral, Direito Esportivo, Direitos Humanos, Direito do
Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Agrário, Direito
Cibernético e Direito Portuário.

Assim sendo, os cursos de Direito, ao formarem os seus currículos, não


podem desconhecer essa importante dimensão de sentido dos novos ambientes em que
as tecnologias atuais se desenvolvem. Segundo Kensky (2012, p. 29-30), o amplo acesso
à tecnologia modifica a forma como tradicionalmente acontecia o aprendizado.
Anteriormente, o conhecimento estava ajustado apenas na modalidade presencial, e,
dessa forma, o espaço e o tempo de ensinar eram determinados (a escola, a faculdade,
nas aulas presenciais). A partir das mudanças tecnológicas, atribuem-se novos ritmos e
dimensões no ensino-aprendizagem. Conclui-se, portanto, que ocorreu uma profunda
alteração da concepção de espaço e tempo da atuação dos professores e alunos.

Dessa forma, como pontuam Oliveira e Andrade (2021, p. 888-889):

Além disso, nas práticas de sala de aula, o professor deve estimular os alunos a
exercitarem a empregabilidade e a cidadania, levando-os a agir de forma
correta, pensando nas consequências de seus atos, sendo responsáveis com a
vida no planeta, com a preservação do meio ambiente, com a educação e o
respeito na vida cotidiana, valorizando a pluralidade cultural, tendo controle
sobre sua liberdade, preocupando-se com o bem-estar do outro e do meio
político e social em que vive. Quando o professor trabalha exercitando a
cidadania e a qualificação profissional, promovem-se valores que ajudam o
educando a se aprimorar enquanto pessoa e profissional.
Finalmente podemos afirmar que teria sido um transtorno muito grande a
suspensão total das atividades das aulas da graduação e da pós-graduação, à
semelhança do que ocorreu em parte na educação básica, no entanto não menos
fácil para as gerações que se apresentam como atores deste quadro global.

Dessa forma, a tecnologia digital acaba com a narrativa contínua e


sequenciada dos textos escritos, apresentando-se como um fenômeno descontínuo.
Sendo assim, sua temporalidade e espacialidade, expressa em imagens e textos nas telas,
acontecem na hora de sua apresentação. As aulas expositivas, centradas apenas na
apresentação de conteúdos pelo professor, restam prejudicadas nessa nova realidade
virtual tecnológica, em que a produção do conhecimento pode e deve se dar de múltiplas
formas (rede wireless, uso de tablets e notebooks, aulas construídas com data show,
quadros interativos, entre outros exemplos ocasionados por essa evolução da tecnologia
na produção do conhecimento). Portanto, os professores em geral terão que ter domínio
de todas essas ferramentas, que agora se apresentam como instrumentos de trabalho,
principalmente frente ao COVID-19, que forçou os tradicionais cursos de Direito
presenciais (com, no máximo, 40% de suas disciplinas em EAD, conforme regulamenta
o Ministério da Educação), a serem realizados totalmente à distância, para evitar o
contágio em massa dessa pandemia que assola o mundo desde março de 2020 (portanto,
há quase um ano e meio).

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
76 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

Nesse sentido, aponta Klafke (2020, p. 92):

O uso da tecnologia digital mitiga esse problema por permitir a combinação da


interação entre alunos com o registro da participação. Esse registro permite ao
docente identificar exatamente quando e como o aluno participou da atividade.
Essa informação fica disponível mesmo depois do curso, e é uma garantia de que o
docente poderá indicar para o estudante quando ele demonstrou um
comportamento inadequado ou deixou de mostrar um comportamento adequado.
Também lhe permite acompanhar em tempo real o progresso da turma,
possibilitando-lhe intervir prontamente assim que identificar um problema.
No entanto, é importante notar que os aplicativos mencionados neste ensaio,
como qualquer instrumento de avaliação, devem ser adequados ao ensino que
se deseja praticar. Nesse sentido, destaca-se que todos eles transformam uma
participação que inicialmente seria oral em uma manifestação escrita. Isso pode
atacar alguns problemas de atividades participativas como timidez,
monopolização da fala, competição pelo tempo etc. Contudo, suportam
atividades que trabalham a capacidade cognitiva e interpessoal dos estudantes
de uma forma bem específica (escrita) e podem não atingir determinados
objetivos (por exemplo, desenvolvimento de expressão oral). É possível que a
tecnologia também possa ajudar a comprovar a participação dos alunos em
atividades baseadas em outro tipo de suporte, por exemplo por meio de
gravação dos debates ou disponibilização de canais alternativos de participação
(backchannel) durante uma discussão. Cada opção, porém, traz seus próprios
desafios e exige do docente novas reflexões.

Frente a esse cenário, principalmente com a Pandemia do COVID-19, urgente


se faz um processo de ressignificação de uma nova forma de pensar a profissão docente,
os espaços de aprendizagem, as relações entre professor e aluno, o surgimento de novos
atores no espaço escolar, e as novas metodologias de ensino e aprendizagem,
principalmente nos cursos jurídicos, tão acostumados com a centralidade do professor
em aulas expositivas (com quadros e canetas).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após tais apontamentos, percebe-se flagrantemente que é essencial repensar


o ensino de Direito na contemporaneidade, especialmente em razão das demandas
sociais cada vez mais complexas e heterogêneas. A fim de se atender a tais
reivindicações, é preciso que se dê a máxima eficácia aos direitos fundamentais por meio
da tarefa interpretativa, cabendo esse mister a todos os que, de algum modo, atuam no
mundo jurídico, sejam estudantes, estagiários, servidores, pesquisadores, docentes,
advogados, mediadores, consteladores, juízes etc.

Por isso, urge se (re)pensar criticamente o ensino jurídico no Brasil, tendo


em vista que não é mais possível que os cursos de Direito se limitem a formar bacharéis
que reproduzam única e simplesmente as palavras da lei quando de suas atuações
profissionais. O Estado Democrático de Direito brasileiro e a sociedade nacional,
inseridos em um horizonte de “Constituição Cidadã” e de todas as perspectivas que
disso decorrem, definitivamente, não se coadunam com posturas subservientes dos
intérpretes do Direito, sejam eles quem forem. A necessária transformação perpassa,

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 77

indubitavelmente, por alterações estruturais e pedagógicas no ensino jurídico, há


muito reproduzido acriticamente.

E, com a pandemia (COVID-19), esse repensar o ensino jurídico tornou-se


mais necessário, já que as aulas presenciais foram substituídas pelas aulas EAD
(educação à distância), fazendo com que os professores que não estavam acostumados
a lidar com as novas tecnologias (notebooks, tablets, data show, ambientes virtuais de
aprendizagem – AVA, realização de aulas (síncronas ou assíncronas) muitas vezes sem
a interação dos alunos no momento em que são gravadas e disponibilizadas no ambiente
virtual, entre outros exemplos), fossem obrigados a rapidamente tomar conhecimento e
dominá-las. Não se pode confundir a educação à distância (EAD) com a pandemia. A
relação existente é que a pandemia fez com que as aulas presenciais fossem suspensas
para evitar o contágio entre as pessoas, ainda mais em face da letalidade que envolve a
COVID-19. As aulas passaram a ter que ser ministradas telepresencialmente (EAD). O
fator positivo é que os docentes acabam conhecendo novos métodos de ministrar aulas,
obrigando-os a repensar o processo ensino-aprendizagem. A COVID-19 forçou o
domínio dessa nova tecnologia por parte dos docentes, sobretudo, daqueles
acostumados apenas com aulas presenciais e que, no máximo, usavam o ambiente virtual
para colocarem notas dos alunos ao longo do semestre letivo.

Por outro lado, como fator negativo, tais avanços tecnológicos tornaram a
vida profissional dos professores mais exaustiva, porque além das aulas gravadas
(síncronas e assíncronas) serem mais cansativas, porque muitas vezes os alunos não
interagem da mesma forma como acontecia no ensino presencial, os docentes precisam
postar materiais de apoio para seus discentes, muitas vezes, material inédito, fruto de
seu conhecimento e de sua autoria, sem serem remunerados por tal atividade. Além
disso, o sistema EAD onerou mais os professores em geral, que precisam ter um
notebook ou computador moderno, com internet de alta velocidade, softwares
avançados para a confecção dos materiais de apoio, local de trabalho em casa ou no
escritório adequado, o que representa gastos a mais, nem sempre (quase nunca)
remunerados pelas Instituições de Ensino Superior.

Para os discentes, o sistema EAD permite um conhecimento sem fronteiras,


de qualquer lugar podem acompanhar as aulas, obter os materiais de apoio, sem gastos
de transporte e nem riscos de contágio da COVID-19. Por outro lado, precisam se
organizar para acompanhar as aulas, ler os materiais, realizar as avaliações online. Isso
representará, seja para os próprios alunos, sejam para os seus pais ou responsáveis, mais
gastos com energia elétrica, computadores ou notebooks, internet de alta velocidade,
além do cansaço físico e mental que as novas tecnologias causam (visão cansada pelo
acompanhamento em demasia pelas telas de computadores ou notebooks, falta de
interatividade real com professores e colegas, formaturas online, que não têm a mesma
emoção que as presenciais, entre outros fatores negativos).

Mas o ensino à distância é uma realidade da qual não se pode mais fugir e
nem abrir mão. Mesmo que o Ministério da Educação (MEC) ainda não tenha autorizado

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
78 NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE

cursos de Direito 100% EAD, também por objeção da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), a não ser agora, em tempos de pandemia, para evitar contágio em massa, em um
futuro próximo, os cursos jurídicos serão autorizados e ofertados 100% EAD, para que o
conhecimento seja construído sem fronteiras, e porque o perfil dos jovens brasileiros
mudou, são conectados a essas novas tecnologias.

O momento em que se vive é de interação e interatividade e, como o


Direito é também área do conhecimento humano que permeia e norteia toda a
sociedade e em diversos momentos entra em simbiose com a mesma, não há como
duvidar que deve esta ciência ser uma das precursoras na utilização das novas
tecnologias. Outrossim, é imprescindível referir que o professor é indispensável para
o sucesso da implantação de novo modelo de ensino-aprendizagem e que deve estar
aberto ao uso das novas ferramentas. De outra banda, as instituições não podem
deixar de promover a atualização de seus docentes, em razão de sua responsabilidade
compartilhada na construção do conhecimento.

Nesse sentido, a sala de aula que conhecemos hoje tornou-se mais


moderna, reclamando um conceito que precisa ser revisitado e ressignificado, já que
ela é um espaço, indiscutivelmente, privilegiado, mas não é o único espaço de
educação, de produção de conhecimento.

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Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

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REPENSANDO O ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA PANDEMIA (COVID-19) E AS
NOVAS TECNOLOGIAS PARA A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA CONTEMPORÂNE 79

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VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A
TRANSFORMAÇÃO DIGITAL NOS
CURSOS DE DIREITO

Rodrigo Mioto dos Santos 1


Luiz Magno Pinto Bastos Júnior 2
Alexandre Morais da Rosa 3

RESUMO: Partindo do pressuposto de que os cursos de graduação


em Direito precisam atender a um pressuposto ético fundamental

1
possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2004) e é
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa
RECEBIDO EM: 11/05/21
Catarina (2006). Atualmente é professor do curso de Direito da Universidade do
ACEITO EM: 23/06/21 Vale do Itajaí (UNIVALI), Campus Kobrasol São José. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Filosofia e Teoria do Direito, Teoria e Direito
Constitucional, Processo e Direito Penal bem como Direitos Humanos, atuando
principalmente como os seguintes temas: argumentação jurídica, garantias
processuais penais constitucionais, teoria do delito, Direito Internacional dos
Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos. É, ainda, professor nos
cursos de pós-graduação lato sensu da Escola do Ministério Público de Santa
Catarina e em Direito Constitucional, Gestão Escolar e Psicopedagogia da
Universidade do Vale do Itajaí. Coordena, ademais, o Observatório do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos e o Projeto de Extensão Universitária
Educação em Direitos Humanos. https://orcid.org/0000-0002-7918-2796
2
Pós-Doutor pelo Centro de Direitos Humanos e Pluralismo Jurídico da
Universidade McGill (Montreal, Canadá). Doutor e Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Universidade do Vale do
Itajaí (UNIVALI), nas disciplinas de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e
Direitos Humanos no curso de Graduação em Direito. É advogado militante nas
áreas de direito eleitoral e direito administrativo (Sócio do Escritório Menezes
Niebhur Advogados Associados). Vice-Presidente da Comissão de Direito
Eleitoral da OAB/SC. É membro fundador da Academia Brasileira de Direito
Eleitoral e Político (ABRADEP) e Academia Catarinense de Direito Eleitoral
(ACADE). Coordenador do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos (UNIVALI). Editor-chefe da Revista Resenha Eleitoral (TRE/SC).
https://orcid.org/0000-0001-6054-960X
3
Doutor em Direito (UFPR), com estágio de pós-doutoramento em Direito
(Faculdade de Direito de Coimbra e UNISINOS). Mestre em Direito (UFSC).
Professor Associado de Processo Penal da UFSC. Professor do Programa de
Graduação, Mestrado e Doutorado da UNIVALI. Juiz de Direito do TJSC. Membro
Honorário da Associação Ibero Americana de Direito e Inteligência
Artificial/AID-IA. Pesquisa Novas Tecnologias, Big Data, Jurimetria, Decisão,
Automação e Inteligência Artificial aplicadas ao Direito Judiciário, com
perspectiva transdisciplinar. Coordena o Grupo de Pesquisa SpinLawLab (CNPq
UNIVALI). https://orcid.org/0000-0002-3468-3335

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82 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

de preparar o aluno para o que ele irá, no futuro, realmente enfrentar, o artigo principia
com um resgate histórico da crise do ensino do Direito e de sua permanência na
contemporaneidade, seja do ponto de vista dos conteúdos ensinados, seja do ponto de
vista das metodologias preponderantemente utilizadas. O argumento central do artigo
é que sendo o Direito, em sua essência, uma tentativa de regular boa parte desse mundo
da vida hoje fortemente dominado pela inteligência artificial, ao mesmo tempo que ele
próprio, no seu modus operandi, é por ela atingido, não podem os cursos de Direito
furtarem-se à incumbência de fornecer formação acadêmica que prepare para o que hoje
se tem e para o que brevemente se terá. Nesse sentido, adotando uma lógica de
construção dedutiva, após discorrer sobre a constante e recorrente crise do ensino
jurídico, e de estabelecer a inteligência artificial como um dado do presente e do futuro,
este artigo apresenta algumas propostas, sejam no plano conteudístico, sejam no plano
metodológico, para uma tão urgente quanto necessária reforma do modo como o Direito
é compreendido e, por consequência, ensinado nos cursos jurídicos do País.

PALABRAS CLAVES: ensino jurídico; inteligência artificial; transformação digital;


reforma curricular e metodológica; diretrizes curriculares.

LEGAL EDUCATION AND ARTIFICIAL INTELLIGENCE: TAKING


DIGITAL TRANSFORMATION SERIOUSLY IN LAW COURSES
ABSTRACT: Assuming that undergraduate courses in Law need to meet a fundamental
ethical assumption of preparing students for what they will actually face in the future, the
article begins with a historical review of the crisis in the teaching of Law and its
permanence nowadays, either from the point of view of the contents taught, or from the
point of view of the predominantly used methodologies. The main argument of the article
is that since the Law, in its essence, is an attempt to regulate a large part of this world of
life today strongly dominated by artificial intelligence, at the same time that it, in its
modus operandi, is affected by it, not Law courses can avoid the task of academic training
that prepares itself for what is now available and what will soon be available. In this sense,
adopting a logic of deductive construction, after discussing the constant and recurrent
crisis of legal education, and establishing an artificial intelligence as a data of the present
and the future, this article presents some proposals, whether in the content or in the
methodological plan, for one as urgent as the necessary reform of the way the Law is
understood and, consequently, taught in the country's legal courses.

KEYWORDS: legal education; artificial intelligence; digital transformation; curriculum


and methodological reform; curricular guidelines.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
83 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

EDUCACIÓN JURÍDICA E INTELIGENCIA ARTIFICIAL: TOMAR EN


SERIO LA TRANSFORMACIÓN DIGITAL
EN LOS CURSOS DE DERECHO
RESUMEN: Asumiendo que los cursos de licenciatura en Derecho deben cumplir con un
supuesto ético fundamental de preparar a los estudiantes para lo que realmente
enfrentarán en el futuro, el artículo comienza con una revisión histórica de la crisis en la
enseñanza del Derecho y su permanencia en la contemporaneidad, ya sea desde el punto
de vista desde el punto de vista de los contenidos impartidos, o desde el punto de vista de
las metodologías predominantemente utilizadas. El argumento principal del artículo es
que dado que el Derecho, en su esencia, es un intento de regular gran parte de este mundo
de la vida hoy fuertemente dominado por la inteligencia artificial, al mismo tiempo que, en
su modus operandi, se ve afectado con ella, los cursos de derecho no pueden evitar la tarea
de brindar una formación académica que prepare para lo que ahora está disponible y lo
que pronto estará disponible. En este sentido, adoptando una lógica de construcción
deductiva, luego de discutir la crisis constante y recurrente de la educación jurídica, y
establecer la inteligencia artificial como dato del presente y del futuro, este artículo
presenta algunas propuestas, ya sea en el contenido o en la metodología, para una urgente
y necesaria reforma de la forma en que se entiende el Derecho y, en consecuencia, se
enseña en los cursos jurídicos del país.

PALABRAS CLAVE: educación jurídica; inteligencia artificial; transformación digital;


reforma curricular y metodológica; lineamientos curriculares.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A SEMPRE PRESENTE CRISE DO ENSINO JURÍDICO; 3


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO: O ATUAL (E SEMPRE) DEFASADO ESTADO
DA ARTE; 4 DIRETRIZES NACIONAIS DO DIREITO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:
POSSÍVEIS DIÁLOGOS; 5 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E ENSINO DO DIREITO: DO “O
QUÊ” SE ENSINA AO “COMO” SE ENSINA; 5.1 A revolução tecnológica entre o hoje e o
amanhã do Sapiens e o dever ético das graduações; 5.2 Os conteúdos jurídicos na Era da
Inteligência Artificial; 5.3 As metodologias ativas como trunfos na Era da Inteligência
Artificial; 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

Algoritmos, vieses, heurística, big data e inteligência artificial, de um lado;


exercício sobre contagem de prazo processual, memorização de artigos de leis pouco
aplicados e peças processuais feitas com base em modelos já históricos, de outro.
Enquanto no mundo da vida, a era da inteligência artificial já chegou, os cursos de
Direito pelo Brasil em alguma medida encontram-se na metade do século XX, se é que
em algum momento histórico foi realmente importante dedicar parte da aula para
ensinar alguém a contar prazo.

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84 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

A crise do ensino jurídico parece ter sempre existido. Como adiante será visto,
escritos sobre tal crise são persistentes e recorrentes. E nesse sentido, o passado se faz
presente, insistindo em fazer do ensino do Direito um campo muito fértil para a crítica.
E é aqui, no presente, e logo ali, no futuro, que este artigo se detém. É evidente que a
história não se fragmenta em blocos que são descartados à medida que o tempo avança,
razão pela qual o “Direito de hoje” não supera e ignora o “Direito de ontem”, muito pelo
contrário, pois dele segue bebendo e com ele ainda guarda importantes e originárias
conexões; daí ser tão significativa a alegoria de Ronald Dworkin de que o direito é um
“romance em cadeia”. Mas o fato é que sendo por excelência uma esfera de regulação da
vida, o Direito, assim como o ensino dele, precisam acompanhá-la. E esse, veremos, não
é o quadro atual. E isso, como já exposto, não é novidade.

O ensino sempre deve(ria) prestar contas à realidade. Isso não significa, por
óbvio, que apenas se deva trabalhar a vida como ela é, mas que o que acontece no mundo
da vida precisa fazer com que o ensino faça sentido. Isso para todos os âmbitos do ensino
e, inclusive e talvez especialmente para o superior, que tem como um de seus principais
objetivos a preparação do discente ao mundo do trabalho, pois daquele que deixa a
universidade, não apenas se espera uma especialidade em determinado ramo do saber,
mas especial e significativamente uma capacidade de criticamente pensar esse saber e a
realidade sobre a qual ele atua(rá).

Ocorre que a crise permanente do ensino do Direito é porque ele costuma


estar sempre atrasado, como os zagueiros que enfrentavam Diego Armando Maradona,
para aqui usar uma metáfora futebolística que homenageia um ícone do esporte na
América Latina. E o início do século XXI é prova isso. O ensino ministrado nas
Instituições de Ensino Superior, o Exame de Ordem, os concursos públicos e boa parte
da publicação bibliográfica do mainstream ainda estão, por vezes com roupagens
diversas, na época de Caio, Tício e Mévio. Uma reflexão sempre importante a se fazer é
o quanto alguém que estudou Direito há 25, 50, 100, 200 ou 500 anos talvez não se
sentiria totalmente deslocado em uma sala de aula de Direito do século XXI em terra
brasilis (se desprezássemos alguns poucos recursos tecnológicos que são utilizados para
reproduzirem o modelo professoral de antes).

Este artigo situa-se nesse fértil campo de análise da (persistente) crise do


ensino do Direito, mas com uma hipótese um tanto quanto nova: de que tal crise nunca
foi tão profunda. Isso porque, principiando por um rápido resgate histórico da crise,
defendemos que ela, sim, continua firme entre nós, mas hoje – e especialmente amanhã
– com o acréscimo de uma dose generosa de disrupção: alguns gigabytes e potentes
algoritmos dotados de IA (inteligência artificial) têm colonizado o mundo da vida de
uma maneira surpreendente, e por consequência, o mundo do Direito (ainda que o
próprio Direito, disso muitas vezes nem se dê conta). Em suma: o final do século XX e o
início do XXI têm assistido a um avanço exponencial da inteligência artificial e sua
correlata “colonização do mundo da vida”, o que faz desses tempos atuais de
transformação digital o momento ideal – diríamos, mesmo, o momento fatal – para um
giro paradigmático em matéria de ensino jurídico.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
85 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

Limitando o fenômeno ao caso brasileiro, pode-se dizer que desde o advento


da internet (que por aqui se “populariza” entre o final dos anos 1990 e o início dos anos
2000), o avanço da tecnologia e da inteligência artificial tem transcorrido em uma
velocidade absolutamente incompatível com o gingado jurídico. Faz pouco mais de duas
décadas que surgiram os primeiros provedores de e-mail, a internet com conexão
discada, os armazenamentos de arquivos em disquetes com capacidade de 1.44
megabytes (mal cabia uma única música em mp3) e os poderosos computadores de 100
MHZ, que em matéria da Folha de São Paulo de 19 de fevereiro de 1997 são definidos
como os “topo de linha” de meados de 1996 (100 MHz, 1997). Nessa época, máquinas de
escrever ainda eram bastante presentes no Judiciário. Hoje, na era do processo
eletrônico, há quem esteja ensinando robôs a julgarem (BOEING; MORAIS DA ROSA,
2020), e em que pese toda a discussão sobre as possibilidades reais e normativas de tal
julgamento por inteligência artificial 4, essa discussão tem avançado rapidamente em
nichos específicos ao passo que se encontra absolutamente alheia dos debates travados
nas salas de aula, em sentido metafórico, dos cursos de Direito.

O objetivo, pois, deste artigo, após uma rápida apresentação desta crise do
ensino do Direito e da carga de disrupção provocada pela revolução tecnológica, é
discutir, a título de proposta inicial de debate, quais caminhos podem seguir o ensino
do Direito. Afinal de contas, o diploma entregue ao egresso, após o percurso da
graduação, não pode mais se constituir em um documento que somente ateste que o
mesmo obteve o grau de Bacharel em Direito. A questão que se apresenta às instituições
(e ao ensino do Direito) é muito mais profunda: como a forma de reproduzir o ensino
do direito foi capaz de possibilitar ao seu egresso meios para lidar com o presente-futuro.

Esses caminhos, em verdade, longe de se mostrarem como hipóteses


normativas de como o ensino do Direito deve ser, têm por objetivo refletir sobre como
minimamente adequar-se à disrupção pela qual o próprio Direito tem passado. São, em
suma, algumas hipóteses de trabalho para que aqueles que “ensinam” o Direito com
responsabilidade possam sobre sua práxis refletir, inclusive quanto à impossibilidade
epistemológica de “ensinar” a alguém o Direito que é um porvir.

Como as práticas pedagógicas voltadas ao ensino do Direito serão amanhã,


ainda não sabemos (não podemos saber). Trata-se, pois, de debate em aberto. O que este
pequeno ensaio gostaria de deixar claro, por entender ponto pacífico – ao menos
discursivamente –, é que o ensino de Direito não pode ser nem uma cópia do passado,
tampouco uma repetição dos erros do presente. A Era da Inteligência Artificial
revolucionará todos os âmbitos da vida, inclusive o Direito. Ou as instituições de ensino
se adequam ou deixarão (ainda mais) de fazer sentido.

4
A discussão mais completa sobre a (im)possibilidade normativa de um juiz-robô em língua portuguesa
é feita por GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade: a impossibilidade jurídica do juiz-
robô. São Paulo, SP: Marcial Pons, 2020.

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86 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

2 A SEMPRE PRESENTE CRISE DO ENSINO JURÍDICO

Em 1987, José Eduardo Faria publicava uma obra que se tornaria um clássico
na reflexão sobre o ensino do Direito no Brasil: A Reforma do Ensino Jurídico (FARIA,
1987a). Nela o autor – professor titular de Sociologia Jurídica da USP – fazia a crítica do
modelo de ensino vigente naquele efervescente período pré-1988. 5 O trabalho
condensava resultados de pesquisas iniciadas em 1980, e fora apresentado de forma
resumida em artigo publicado em 1986 6 (FARIA, 1986), ocasião em que o autor já
chamava a atenção para o fato de que a realidade exigia do estudante de Direito “um
saber crescentemente multidisciplinar e anti-formalista” (FARIA, 1986, p. 47). Naquela
ocasião, escreveu José Eduardo Faria:

Não se deve mais manter o ensino jurídico preso e confinado aos limites
estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a
autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite
ao aluno moldar-se ou adaptar-se acriticamente à linguagem da autoridade. Não se trata,
é óbvio, de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de
conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as condições de
aplicação do direito positivo. (FARIA, 1986, p. 48).

O que mais espanta é que hoje, em 2021, essa citação postada em uma rede
social seria seguida de curtidas, comentários de apoio e compartilhamentos, como se de
um diagnóstico atual se tratasse. E estamos, na verdade, falando de um período de quase
40 anos. Todo o texto apresentado por José Eduardo Faria, e que faz o diagnóstico no
contexto de um dos cursos mais tradicionais do Brasil (o da Universidade de São Paulo),
é repleto de críticas à “concepção da cultura jurídica como um simples repertório fixo e
imóvel de dogmas”, à transmissão de “informação de caráter meramente instrumental”,
ao “senso comum teórico dos juristas de ofício” (Warat), à “ilusão de um ensino neutro”,
ao risco de oferecimento aos estudantes somente de “informações a respeito de
institutos jurídicos vinculados a situações e contextos desaparecidos ou em fase de
desaparecimento”, etc., etc., etc. (FARIA, 1986, p. 48-55).

Essa crise que José Eduardo Faria apontava, em uma escola de Direito como
a da USP, nos anos 1980, não só permanece atual como hoje é ainda mais agravada.
Praticamente todas as críticas que se dirigiam ao ensino jurídico naquela época hoje
persistem: (1) grades curriculares burocráticas excessivamente voltadas para o ensino
(sem grandes pitadas de criticidade) da letra da lei (não por acaso ser o vademecum o
“livro sagrado” de parte expressiva dos estudantes); (2) disciplinas propedêuticas de
formação básica indispensáveis para uma real compreensão do fenômeno jurídico
cumprindo funções meramente protocolares na grade – ramos do saber como
antropologia, psicologia, economia, história do direito, ciência política, filosofia e

5
A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) reflete sobre o tema desde muito antes. É
significativo da persistente crise do ensino jurídico um texto de Cesarino Júnior, de 1954, intitulado “O Ensino
do Direito” e que versa, justamente, sobre a tão debatida crise do modelo. Cf. CESARINO JÚNIOR, 1954.
6
O artigo em questão, como explica o próprio autor, é a “Versão condensada do relatório sobre a reforma
do curso jurídico apresentado à Comissão de Ensino da FD-USP em março de 1986”.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
87 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

sociologia por vezes amargam 30h de carga horária, por vezes amargam o status de
optativas, por vezes amargam o destino da disciplina EaD ou, ainda, por vezes amargam
um “destino combo”, que combina duas ou mais das citadas amarguras; (3) grades
estritamente fechadas sem grandes espaços para que estudantes construam seu
currículo de forma mais customizada e condizente com seus anseios formativos; (4)
ausência de pesquisa e extensão formadoras do tripé universitário ao lado do ensino; (5)
professoras e professores sem a devida formação pedagógica, muitas vezes profissionais
liberais ou funcionários públicos que entendem a docência como o lugar de “se passar o
que se sabe”; (6) prática jurídica quase estritamente ligada a ações individuais da área
cível, as quais, em que pese a importância social para quem pelo escritório modelo é
atendido, têm pouco impacto na formação do estudante; (7) professoras e professores
com remuneração restrita à hora-aula em sala de aula, o que inviabiliza qualquer avanço
real e efetivo em termos de metodologias ativas como sala de aula invertida e
aprendizagem baseada em projetos; (8) ausência de estudo aprofundado e crítico das
disciplinas jurídicas de formação (como teoria do direito e direito constitucional), que
abandonaram autores clássicos e densos em detrimento de slides, aulas no YouTube e,
quando muito, livros com propostas esquematizadas ou afins; (9) processos avaliativos
quase que exclusivamente restritos a provas de múltipla escolha com questões
praticamente alheias a qualquer criticidade e geralmente copiadas de sites que oferecem
questões de concursos públicos, e, por fim, (10) um número expressivo de alunas e
alunos com importantes déficits formativos de base e com o único interesse de, com o
diploma, obter aprovação em concurso público, independentemente de uma formação
que permita um exercício republicano daquela função que o cargo exigirá.

Esse quadro, que já seria preocupante há 40 anos, torna-se ainda mais


problemático à medida em que os cursos de Direito lideram as matrículas do ensino
superior no Brasil 7 e que, por exemplo, o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil –
um exame de suficiência que em uma prova exige 50% de acertos e na outra 60% –
somente aprova na primeira tentativa 40% dos participantes (FUNDAÇÃO GETÚLIO
VARGAS, 2020a). 8

E não bastasse a crise antes relatada e os preocupantes números sobre a


qualidade do ensino oferecido, a grande pergunta educacional do início do século XXI,
seja em qual área for, é sobre o que exatamente deve ser ensinado na perspectiva de uma
formação que faça algum sentido para o século que se inicia. Por isso, no contexto
específico do Direito, é bastante pertinente a provocação de Celso Campilongo e José
Eduardo Faria, para os quais:

A reforma do ensino jurídico deve responder a este desafio: colocar a


educação jurídica em condições de oferecer aos estudantes os instrumentos que lhes
permitam entender a realidade da perspectiva especificamente jurídica, mas sem perder

7
Segundo o Censo da Educação Superior de 2017, os cursos de Direito detinham 10,6% das 8,3 milhões de
matrículas do ensino superior brasileiro (879.800).
8
Dados números completos sobre o ensino do Direito e o Exame de Ordem no Brasil podem ser obtidos
no documento Exame de Ordem em Números (Volume 4, 2020), de autoria da OAB e da FGV e que pode
ser acessado aqui: https://www.conjur.com.br/dl/exame-ordem-numeros1.pdf

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88 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

a dimensão do diálogo com os demais saberes. Do contrário, o profissional do Direito


perderá relevância. (CAMPILONGO; FARIA, 2014)

Bem, se essa afirmação está correta, o cenário que será exposto no item a
seguir exigirá “alguma” reflexão por parte de quem pensa o ensino do Direito no Brasil,
pois ninguém quer que o profissional do Direito perca relevância.

3 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO: O ATUAL (E SEMPRE) DEFASADO


ESTADO DA ARTE

Por inteligência artificial, neste artigo, entende-se – na perspectiva de um


autor que a aborda no contexto do direito – “[...] a possibilidade de que as máquinas, em
alguma medida, ‘pensem’, ou melhor, imitem o pensamento humano a partir do
apreender e utilizar as generalizações que nós pessoas utilizamos para tomar nossas
decisões habituais 9” (NIEVA-FENOLL, 2018, p. 20). Como acontece com vários outros
conceitos, o de Jordi Nieva-Fenoll centra-se na figura do agente inteligente não-humano,
ou no “robô” (não necessariamente com a aparência de Robocop) que possa substituir –
muitas vezes com maior eficiência e precisão – o trabalho humano. O tema conta hoje
com uma vasta e cada vez mais pujante bibliografia, desde obras mais técnicas (RUSSEL;
PETER, 2004), a obras mais filosóficas (COPELAND, 1996), por assim dizer.

Os usos da IA no mundo da vida são cada vez mais presentes e


impressionantes: 1) os carros autônomos seguem com rápido desenvolvimento e hoje já
desenvolvem boas tarefas sem a necessidade de controle humano, sendo que os
primeiros caminhões praticamente independentes – de nível 4 numa escala máxima de
5 – já estão entre nós (RAMOS, 2020); 2) o robô Watson, da IBM, já auxilia médicos seus
trabalhos, pois é capaz de ler artigos científicos, vasculhar e interpretar gigantescas bases
de dados e propor diagnósticos; 3) AlphaGo, inteligência artificial desenvolvida pela
Google para jogar o milenar go, derrotou Ke Jie, o até então imbatível campeão mundial;
4) todos os meses, os 115 milhões de usuários do Waze no mundo percorrem em média
28 bilhões de quilômetros e reportam mais de 60 milhões de acidentes; 5) em parceria
com a startup Synthesia, a tradicional e conceituada Reuters criou um apresentador de
TV virtual para um programa esportivo, com capacidade até mesmo para elaborar as
próprias notícias; 6) a farmacêutica japonesa Sumitomo Dainippon Pharma e a startup
britânica Exscientia se uniram e, graças à IA, desenvolveram um medicamento para TOC
(transtorno obsessivo compulsivo) em 12 meses, contra os quatro anos e meio que, em
média, se utiliza com os métodos convencionais.

Esses são apenas alguns, e mais compreensíveis e “midiáticos”, exemplos do


uso atual da IA. E para quem acha que se possa estar exagerando nas potencialidades da
IA no médio e no longo prazo, caberia, por exemplo, mencionar recente pesquisa em
que um robô obteve 90% de êxito no diagnóstico de câncer de pulmão, ao que alguém

9
Tradução livre de: “[...] la posibilidad de que las máquinas, en alguna medida, «piensen», o más bien
imiten el pensamiento humano a base de aprender y utilizar las generalizaciones que las personas usamos
para tomar nuestras decisiones habituales.”

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
89 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

poderia objetar que ainda há 10% de erro. Tudo bem, esses 10% precisam de correção,
mas pelo menos o caminho de aperfeiçoamento do robô é percentualmente menor do
que o dos humanos, pois na mesma pesquisa o índice de êxito de médicos especializados
no diagnóstico foi de bem inferiores 50% (HARARI, 2016, p. 319).

Ou seja, se a IA é capaz de inventar medicamentos, aprender um jogo milenar


mais difícil do que o xadrez e vencer com autoridade o campeão mundial, fazer
diagnóstico médico, conduzir veículos automotores e etc., imagine o que não é
(presente) ou será (futuro) capaz de fazer em campos menos complexos?

Não é objeto de discussão deste ensaio se a IA far-se-á ou não presente no


âmbito do Direito, pois esse é um debate superado 10. Tampouco se debaterá um outro
ponto, em disputa e de extrema relevância, sobre os impactos da IA no mercado de
trabalho 11. O foco aqui é um inventário. O estado – momentâneo e precário – da arte.

Inicialmente, para que se tenha uma ideia do fenômeno local, recente


pesquisa da FGV, divulgada em dezembro de 2020, aponta que existem hoje, dentro do
universo dos Tribunais Superiores (STF, STJ e TST), dos Tribunais Regionais Federais,
dos Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de Justiça, 29 projetos de
Inteligência Artificial em desenvolvimento, 7 experiências piloto e 27 projetos em
produção. O documento mostra um aumento expressivo dessas experiências entre o ano
de 2018 (quando eram quase inexistentes), o ano de 2019 (quando surgem iniciativas que
não chegam a uma dezena) e o ano de 2020, quando se atingem os números acima
expostos. O crescimento é exponencial, e nada indica – pelo contrário – que possa ser
freado (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2020b, p. 66).

Ainda segundo a pesquisa:

De forma geral, os projetos de IA nos tribunais comportaram as seguintes


funcionalidades: verificação das hipóteses de improcedência liminar do pedido
nos moldes enumerados nos incisos do artigo 332 do Código de Processo Civil;

10
Um exemplo ilustra a afirmação: “Carlos Fernando Siqueira Castro, CEO do Siqueira Castro Advogados,
escritório presente em 18 Estados e com 500 mil processos no país, diz que o número de advogados da banca
hoje é menor do que há dez anos. No entanto, o volume de processos é o dobro. Isso se deve, segundo ele,
aos investimentos em tecnologia. O Siqueira Castro possui 50 funcionários na área de tecnologia da
informação, dos quais cinco se dedicam à produção de novos programas. A banca conta com 200 robôs que
controlam atividades específicas. “Fazemos muito mais hoje com menos pessoas, afirma o advogado. ‘É um
caminho sem volta, uma nova fronteira que busca a eficiência pela automação.’” (BAETA, 2019a)
11
Parte importante da literatura que versa sobre IA e Direito é, por um lado, competente em fazer o
inventário do estado da arte sobre sua aplicação no mundo jurídico; mas, por outro, assustadoramente
omissa em problematizar – ainda que en passant – os impactos que o avanço da IA causará no mercado de
trabalho. O lugar-comum sobre as maravilhas do surgimento de novas funções e profissões, muito presente
no discurso daqueles que exploram o potencial econômico da IA, nunca é acompanhado do debate acerca
do número desses postos. Que os carros autônomos, por exemplo, exigirão novos conhecimentos e
profissionais destinados a com eles lidarem, é um consenso; mas ninguém problematiza que cada
profissional desse “substituirá” milhares de motoristas. Um estudo da consultoria McKinsey, divulgado em
2017, projetava que até 800 (oitocentos) milhões de empregos podem ser substituídos por robôs até o não
muito distante ano de 2030. Para uma honesta análise de alguns poucos otimistas prognóstico, conferir em
“Homo Deus” e “21 lições para o século 21” ambos de Harari (2016; 2018, respectivamente).

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90 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

sugestão de minuta; agrupamento por similaridade; realização do juízo de


admissibilidade dos recursos; classificação dos processos por assunto;
tratamento de demandas de massa; penhora on-line; extração de dados de
acórdãos; reconhecimento facial; chatbot; cálculo de probabilidade de reversão
de decisões; classificação de petições; indicação de prescrição; padronização de
documentos; transcrição de audiências; distribuição automatizada; e
classificação de sentenças. (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2020, p. 69)

Em termos regulatórios, cabe mencionar que, em 21 de agosto de 2020, o


Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução nº 332 que “Dispõe sobre a ética, a
transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder
Judiciário e dá outras providências” (BRASIL, 2020). O documento, além de trazer alguns
conceitos, centra sua preocupação nos aspectos de segurança, ética e respeitos aos
direitos fundamentais no plano da utilização da Inteligência Artificial pelo Poder
Judiciário. Mas para os fins deste artigo, talvez o ponto de maior destaque do documento
seja a forma como considera o uso da IA pelo Poder Judiciário um dado da realidade,
não algo que possa vir a ser, mas algo que se fazendo presente dia após dia, precisa de
algumas balizas que a Resolução pretende estabelecer.

Já em nível um pouco mais “global”, em sua obra “Justiça Digital”, Isabela


Ferrari (2020, p. 26-27) aponta significativos espaços de avanço da IA no mundo do
Direito, a começar pelos mecanismos online de resolução de controvérsias, os Online
Dispute Resolution System (ODR), como o desenvolvido pela gigante do comércio
eletrônico eBay, que conecta compradores e vendedores e que, em várias etapas, vai da
tentativa de evitação do conflito, passando por mediação até chegar à arbitragem,
terceira e última etapa e única com intervenção humana. O ODR da eBay enfrenta mais
de 60 milhões de disputas por ano e possui uma taxa de satisfação superior a 90%. E boa
parte desse sucesso é “mérito” da IA.

Mas os ODR não se limitam a ambientes privados (comerciais), havendo um


importante movimento de utilização dessa Inteligência por Estados-nação, no que se
convencionou chamar de Cortes Online, ambientes virtuais com mediação de IA,
geralmente obrigatórios (não há a opção por não os usar), e que têm reduzido tanto o
prazo dos processos, quanto aumentado a qualidade da prestação jurisdicional. Segundo
Isabela Ferrari, há exemplos exitosos na Inglaterra, no Canadá (com o Civil Resolution
Tribunal), em estados dos Estados Unidos, em Cingapura, no Japão, na Dinamarca, na
Austrália (onde 70% das Cortes estão em ambiente virtual) e na China (onde expressivos
75% das Cortes estão “nas nuvens”). (FERRARI, 2020, p. 47-65)

Giovani Ravagnani, ao fazer uma análise sobre “Legal analytics” 12, em textos
publicados na obra antes citada, destaca, ainda, como exemplos do “novo Direito”: (a) a
utilização da tecnologia (IA em especial) para prevenir e evitar conflitos propriamente
judiciais; (b) a questão da IA na prevenção de risco, basicamente demonstrando como
“robôs” conseguem fazer um importante trabalho de dar, ao advogado, diversas variáveis
sobre as possibilidades de êxito em determinado processo; e (c) por fim, a utilização do

Por “Legal Analytics” entende-se o conjunto de soluções tecnológicas que permite a operacionalização
12

do Direito a partir de dados.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
91 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

conceito de volumetria, no essencial, a utilização de soluções inteligentes para ações de


massa (FERRARI, 2020, p. 131-162).

O impacto da IA no Direito, no entanto, não se limita à sua própria utilização


como instrumento que tem permitido uma ressignificação da forma como o Direito se
“operacionaliza”, da forma como ele “acontece”. 13 A inteligência artificial também traz para
o próprio Direito, em diversos aspectos do âmbito regulatório, questões fundamentais:
como proceder à regulação da tecnologia? quais os impactos da IA no âmbito da
privacidade? quais os impactos da IA no plano do direito penal e do respectivo processo? 14

Em suma, não somente se espera que a IA ressignifique a forma como o


Direito se operacionaliza (processos totalmente digitais fortemente influenciados pela
IA e com um mínimo ou nada de relação interpessoal), mas que se torne ela própria, sob
o prisma das funções regulatórias do Direito, um objeto privilegiado de análise.

O objetivo aqui foi demonstrar, dentro dos limites deste texto, o “estado da arte”
da IA no âmbito do Direito. 15 Como dito no início deste item, não se discute aqui se ela
avançará ou não fortemente também no âmbito do direito. Esse avanço é inevitável e já tem
provocado um impacto preocupante no mercado de trabalho (o Brasil tem 1,16 milhão de
inscritos na OAB, um advogado para cada 174 habitantes contra 1 para 246 nos EUA ou 1
para 354 no Reino Unido, por exemplo) (BAETA, 2019a; BAETA 2019b), e com os alunos de
Direito liderando o ranking de matrículas na educação superior16, ou se inicia uma reflexão
(apoiada rapidamente por ações concretas) de atribuição de sentido ao ensino jurídico no
contexto ora exposto, ou tudo indica que a formação desses mais de 1 milhão de alunos hoje
matriculados em cursos de Direito neste País terá sérias dificuldades de corresponder a uma
qualificada e bem-remunerada inserção no mercado de trabalho.

4 DIRETRIZES NACIONAIS DO DIREITO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:


POSSÍVEIS DIÁLOGOS

Desde 2018, o ensino do Direito no Brasil tem novas Diretrizes educacionais.


A Resolução n° 5 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação
institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (BRASIL,

13
Para uma leitura ainda mais abrangente do cenário da IA no sistema de justiça vide PICCOLI, Ademir
Milton. Judiciário Exponencial: sete premissas para acelerar a inovação e o processo de transformação
do ecossistema da justiça. São Paulo: Vidaria Livros, 2018.
14
Em matéria penal, uma discussão que já conta com bom desenvolvimento é a referente à
responsabilidade em caso de acidentes com veículos autônomos, um exemplo muito bom aliás, de como
a falta de regulação pode, mesmo, impedir a chegada da tecnologia ao destinatário final. Sobre o tema:
ESTELLITA; Heloísa; LEITE, Alaor. Veículos autônomos e direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
15
Para uma análise mais detida e pormenorizada sobre os impactos da inteligência artificial no mundo do
Direito conferir: MORAIS DA ROSA, Alexandre. A questão digital: o impacto da inteligência artificial no
Direito. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 02, e259, jul./dez. 2019.
Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/259.
Acesso em: 10 abril 2021. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i02.259
16
Segundo o Censo da Educação Superior de 2017, de responsabilidade do INEP, o número de matrículas
em cursos de direito no Brasil era 1.154.751.

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92 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

2018). Trata-se de normativa à qual todo e qualquer curso de Direito do país deve
obediência, não só formal – como se faz sem grandes preocupações –, mas também
material – em campo já um pouco mais pantanoso.

A carga horária referencial dos cursos de graduação em direito é de 3.700h,


sendo que aproximadamente 3.000h são de disciplinas obrigatórias e eletivas e/ou
optativas cursadas em 10 semestres letivos de aproximadamente 300h cada. É dentro
desse espaço de tempo que a formação jurídica inicial deve acontecer.

E se trata de tarefa bastante árdua, não apenas pelo quadro fático anteriormente
exposto (ao qual poderíamos acrescentar a complexidade social, econômica, política e
cultural de um país como o Brasil), mas sobretudo pelo perfil do egresso altamente exigente
que as diretrizes pedem. Com efeito, segundo o art. 3° do documento:

O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando,


sólida formação geral, humanística, capacidade de análise, domínio de
conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de argumentação,
interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio
das formas consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura
reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a
aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito, à
prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania. (BRASIL, 2018).

As Diretrizes fixam três grandes eixos formativos (Formação geral, Formação


técnico-jurídica e Formação prático-profissional), e ainda que nada impeça que temas
transversais permeiem todos os eixos, o fato é que há uma fortíssima cultura de
disciplinarização dos saberes. É por isso que ao mencionar as áreas de Teoria do Direito,
Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito
Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito
Processual, Direito Previdenciário e Formas Consensuais de Solução de Conflitos no eixo
de formação técnico-jurídica, as Diretrizes provocam (ainda que a intenção pudesse ser
outra) a construção de “grades curriculares” que têm, nos nomes das disciplinas,
exatamente os conteúdos recém-expostos.

Os cursos, no geral, “jogam com o regulamento debaixo do braço”. Se


escolhermos uma grade curricular qualquer, que seja conservadora na “dogmatização”,
ela terá, pelo menos, as cadeiras de Teoria do Direito, Direito Constitucional I e II,
Direito Administrativo I e II, Direito Tributário I e II, Direito Penal I, II e III, Direito Civil
I, II, III, IV e V, Direito Empresarial I e II, Direito do Trabalho I e II, Direito Processual
Civil I, II e III, Direito Processual Penal I e II, Direito Processual do Trabalho, Direito
Internacional, Direito Previdenciário e Formas Consensuais de Solução de Conflitos. Se
pensarmos em disciplinas de 60h, já temos aqui 1.620h, ou mais de 50% da carga horária
de disciplinas teóricas do curso. A previsão dos clássicos ramos do direito sem maiores
detalhamentos, leva a grades que são praticamente padronizadas.

Em um contexto global em que a qualidade do ensino do direito é colocada


em xeque (na medida em que a aprovação média no Exame de Ordem – que é uma prova

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
93 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

de suficiência – fica na casa de 40% 17), as Diretrizes são altamente exigentes no que se
refere às habilidades e competências que se esperam do egresso dos cursos. O art. 4° do
documento elenca nada menos que 14 (catorze) “competências cognitivas, instrumentais
e interpessoais” que os cursos devem oferecer a seus estudantes, dentre as quais ao que
nos interessa aqui destacamos quatro:

VIII - atuar em diferentes instâncias extrajudiciais, administrativas ou judiciais,


com a devida utilização de processos, atos e procedimentos;

XI - compreender o impacto das novas tecnologias na área jurídica;

XII - possuir o domínio de tecnologias e métodos para permanente


compreensão e aplicação do Direito;

XIII - desenvolver a capacidade de trabalhar em grupos formados por


profissionais do Direito ou de caráter interdisciplinar. (BRASIL, 2018)

Mais recentemente, a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional


de Educação publicou a Resolução n°. 2, de 19 de abril de 2021, que, por um lado, incluiu
dois novos conteúdos obrigatórios (o Direito Digital e o Direito Financeiro), e que, por
outro, estabeleceu que a perspectiva da formação prático-profissional deve abranger
“[...] estudos referentes ao letramento digital, práticas remotas mediadas por tecnologias
de informação e comunicação.” (BRASIL, 2021)

Ainda que se possa considerar uma alteração louvável e que vem em


momento oportuno, cabe destacar que não se trata de mudança decorrente de mais
aprofundados debates sobre o tema, como se percebe da análise do Parecer CNE/CES n°
757/2020 (BRASIL, 2020), que se limita a mencionar que a inclusão do Direito Financeiro
partiu de solicitação do Ministério da Justiça e que, no que se refere ao Direito e ao
letramento digital, sequer os justifica, havendo sobre tal alteração somente o seguinte:

Nessa ocasião, igualmente, ampliamos o escopo das proposições no artigo 5° da


referida DCN, no sentido de fortalecer os esforços referentes ao letramento
digital e às práticas de comunicação e informação, que expressam as tecnologias
educacionais e que devem permear a formação, inclusive presencial, no sentido
de adotar as competências vinculadas a essas mediações, especialmente em
práticas e interações remotas relacionadas ao aprendizado. (BRASIL, 2020)

Ou seja, o que poderia ser o indício de uma guinada das Diretrizes


rumo ao séc. XXI não passa de um ajuste pontual que, não bastasse a ausência de
justificativa pelo Parecer, ainda pegou carona em uma outra mudança circunstancial que
atendeu a pedido do Ministério da Justiça.

Como em termos de regulação educacional, geralmente grandes


alterações levam tempo expressivo para refletir no cotidiano escolar, há bons motivos
para crer que uma alteração pontual e quase despretensiosa tenha ainda mais

17
Dados números completos sobre o ensino do Direito e o Exame de Ordem no Brasil podem ser obtidos
no documento Exame de Ordem em Números (Volume 4, 2020), de autoria da OAB e da FGV e que pode
ser acessado aqui: https://www.conjur.com.br/dl/exame-ordem-numeros1.pdf

CERS | REVISTA CIENTÍFICA DISRUPTIVA | VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021


94 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

dificuldades para gerar impactos. Não seria de espantar que a inclusão de uma unidade
de aprendizagem com o nome “Direito Financeiro” dentro da disciplina de “Direito
Tributário” e um ou dois acessos ao PJe 18 no curso da prática jurídica servissem ao
preenchimento das inovações que as Diretrizes recentemente sofreram.

No entanto, em que pese a pouca expressividade do “movimento”


que levou à recente alteração nas Diretrizes, o fato é que as competências do art. 4° das
Diretrizes acima elencadas, bem como as menções ao Direito Digital e ao Direito
Cibernético (que as Diretrizes não diferenciam) e a exigência de letramento digital,
formam um conjunto que, se não exige, pelo menos permite algumas correções que são
tão necessárias quanto urgentes no plano do ensino jurídico.

Desse modo, se o diagnóstico apresentado no item anterior está


minimamente correto, e se de fato letramento digital, Direito Digital, Direito
Cibernético e as quatro competências acima destacadas devem ser ofertadas ao
estudante ao longo do curso de graduação em Direito, os cursos de Direito precisam –
para dizer o mínimo – de algumas reformulações. Algumas sugestões nesse sentido
serão esboçadas no item a seguir.

5 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E ENSINO DO DIREITO: DO “O QUÊ” SE ENSINA


AO “COMO” SE ENSINA

Iniciemos esta última seção com uma precisa síntese do Professor José Garcez
Ghirardi que fornece um valiosíssimo quadro metodológico dentro do qual os currículos
dos cursos de Direito deve(ria)m fazer as suas escolhas:

Uma das principais funções dos cursos jurídicos é a de formar a representação


que os alunos farão do direito e do lugar que ele ocupa na vida social e política
do país. A seleção de temas que o espaço universitário opera (o que ensinar?), a
ordem de apresentação que propõe (quando ensinar?), a relevância relativa que
estabelece entre áreas (quanto e com que profundidade ensinar diferentes
temas?) e a forma de aferir a efetividade da formação (como avaliar?) articulam-
se para formar um quadro que evidencia a noção de direito que se abraça em
cada instituição. Essa noção fundamental, inscrita na estrutura profunda dos
cursos e determinando cada aspecto de sua lógica de desenvolvimento, será
decisiva para estabelecer a matriz a partir da qual os estudantes pensarão o
direito e articularão sua prática profissional. (GHIRARDI, 2010, p. 3)

“Uma das principais funções dos cursos jurídicos é a de formar a


representação que os alunos farão do direito e do lugar que ele ocupa na vida social e
política do país”, diz o Professor Ghirardi (2010, p. 3). Na mesma linha, o perfil do
graduando – exposto no item anterior – exigido pelo art. 3° das Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Direito. E na linha das referências que abriram

18
O PJe é o sistema de tramitação de processos judiciais capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça
(http://www.pje.jus.br/navegador/) que está presente em todos os Estados da Federação. Outros sistemas,
porém, ainda que presentes em menos Estados, também são utilizados, como por exemplo, o Projudi, e-
Proc, e-SAJ, Apolo, Creta e E-Jur.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
95 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

este artigo e que desde os anos 1980 exigiam um ensino social e realisticamente com
sentido, o quadro exposto no segundo item deste artigo exige uma radical reformulação
da forma como os cursos de Direito do País se organizam.

Uma rápida capacidade evolutiva não é propriamente o forte dos currículos


dos cursos de direito no Brasil. Um exemplo talvez ilustre esse quadro. No site da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão é possível acessar a matriz
curricular aprovada em 1970 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO, 1970).
Tratava-se de matriz com 3135h mínimas e 8 períodos para vencê-la. Se somarmos a
carga horária das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, Direito
Constitucional, Direito Civil, Direito Penal, Direito do Trabalho, Direito Comercial,
Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho, Direito Financeiro, Direito Internacional
e Direito Previdenciário, chegamos a 1860h, ou aproximadamente 60% da carga horária
total do curso. Outros 10% (315h) eram de prática. Já a atual matriz, de 2015
(UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO, 2015), tem 4320h a serem vencidas em
10 períodos, sendo que as disciplinas de Introdução e Teoria do Direito, Direito Civil,
Direito Penal, Direito do Trabalho, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito
Financeiro, Direito Empresarial, Direito Internacional, Direito Previdenciário e de
Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho somam 2340h, ou 54% do total da grade.
A prática totaliza 360h, ou pouco mais de 8%.

Obviamente é possível dizer que os conteúdos programáticos mudaram, assim


como também podem ter mudado as metodologias e tratamentos transversais nessas
disciplinas. Mas é sintomático que se siga pautando os cursos de Direito pela dogmática
dos ramos mais clássicos do Direito, que talvez hoje não tenham a importância de outrora.
O modelo parece esgotado. E as novas Diretrizes antes expostas associadas ao quadro da
revolução tecnológica também delimitado, exigem alguma reformulação.

Diante de todo o exposto, entendemos que o ensino jurídico precisa avançar


três passos: (1) o passo da compreensão da revolução tecnológica, (2) o passo da
compreensão do Direito no contexto dessa revolução e (3) o passo da revolução na forma
de ensinar (e de aprender). E isso porque, voltando à análise crítica de José Eduardo Faria,
o diagnóstico de outrora, em boa medida, ainda permanece e precisa ser enfrentado:

Em vez de apresentar institutos jurídicos como formas de soluções de conflitos


com raízes no processo das relações sociais, valoriza-se quase exclusivamente
uma abordagem sistemática e lógico-dedutiva, privilegiando-se o princípio da
autoridade – isto é, a opinião dos “preclaros mestres” –, dos “insignes doutores”,
dos “notáveis educadores”, dos “doutos colegas”, todos muitas vezes citados aos
borbotões e usados como pretexto para demonstração de uma erudição sem
peso teórico, recheando manuais e livros – isto quando não servindo para
engrossar teses acadêmicas de professores pouco criativos e sem inspiração,
abrindo caminho para que o “pedantismo da ligeireza” sirva de critério para o
prevalecimento, no âmbito do corpo docente, de um tipo modal de mestre
acrítico, burocrático e subserviente aos clichês e estereótipos predominantes
entre os juristas de ofício. (FARIA, 1986, p. 53)

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96 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

E no contexto do avanço tecnológico no mundo jurídico anteriormente


exposto, há talvez uma ainda mais problemática substituição da autoridade da opinião
dos “preclaros mestres” pela força mais ou menos vinculante da opinião da “uníssona
jurisprudência” e dos “eminentes julgadores” e dos “egrégios tribunais”. Desse modo, à
medida que a autoridade jurisprudencial se agiganta como nunca antes, paralelamente
ao momento em que ocorre um expressivo aumento de uma IA que cada vez mais
aprende com tal jurisprudência, aumenta-se o risco de um engessamento do direito que
se mostra ainda mais impeditivo de uma concepção de “institutos jurídicos como formas
de soluções de conflitos com raízes no processo das relações sociais” (FARIA, 1986, p.
53), especificamente em uma sociedade complexa, diversa e plural como a brasileira.

Problematizemos, pois, os passos, os caminhos, os algoritmos que os


currículos dos cursos de Direito precisam seguir para que o ensino significativo não seja
apenas um discurso retórico.

5.1 A revolução tecnológica entre o hoje e o amanhã do Sapiens e o dever ético


das graduações

A obra Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari


(2020), não se tornou um best-seller por acaso. Uma narrativa envolvente e um estilo
literário que destoa da cartilha cientificista da escrita tendem a potencializar o sucesso de
uma obra. Mas tais méritos não bastam. Ainda que a forma seja bastante envolvente, o que
define o sucesso da obra é o seu conteúdo, seja a rápida e competente evolução histórica
que Harari desenvolve, passando pelas denominadas revoluções cognitiva, agrícola e
científica, que historicamente são hoje fáceis de se vislumbrar, afinal é sempre mais fácil ler
o “presente” quando ele já é “passado”, seja pelo prognóstico, tão aberto quanto instigante,
que a obra provoca. Passando o Sapiens da revolução científica para a revolução tecnológica,
o que virá pela frente? Ou até o mesmo: o que já estamos vivenciando?

Harari apresenta possíveis respostas a tais questionamentos fundamentais


em suas duas mais recentes obras, ‘Homo Deus’ e ‘21 Lições para o século XXI’. E ainda
que alguns possam pensar que o Século XXI só termina em 2100, é importante destacar
que já estamos em 2021. Vinte e um por cento do caminho já fora percorrido. O quadro
atual, para elencar aqui alguns pontos sensíveis, aponta para (a) a ciência de dados a
cada dia com um maior volume de dados a trabalhar (o Big Data), (b) a dimensão
econômica dos dados e do desacoplamento entre os seus titulares e aqueles que os detêm
e os manipulam; (c) a neurociência, que na atual configuração de análise do cérebro
humano tem pouco mais de 50 anos, já descobriu mais sobre a engenharia dos neurônios
do que toda a anterior história da humanidade, (d) a biotecnologia avança muito
rapidamente ao mesmo tempo que levanta grandes discussões éticas, (e) a inteligência
artificial, em particular, e a automação, em geral, passam a dominar, dia após dia, mais
e mais tarefas até então privativas dos humanos, e, por fim, (f) especialmente o último
ponto levantado pressiona fortemente não só os empregos da indústria, mas também e
inovadoramente os do setor de serviços, levando ao risco do surgimento de uma classe
que alguns inclusive já denominaram: os inúteis.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
97 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

Um mundo que a cada dia produz e analisa mais dados, entende o


funcionamento do cérebro humano, avança em biotecnologia e se automatiza e gera
desemprego. Eis o mundo de hoje, que é bastante distinto do de ontem. Mas há quem
ainda preveja mais, como Harari. Segundo o autor de ‘Homo Deus’, o liberalismo pode
sofrer um duro golpe no século que se desenvolve 19, e isso em razão de três fatores:

1. Os humanos perderão sua utilidade econômica e militar e, em decorrência, o


sistema econômico e político deixará de lhes atribuir muito valor.

2. O sistema ainda dará valor aos humanos coletivamente, mas não a indivíduos
únicos.

3. O sistema ainda dará valor a alguns indivíduos únicos, mas estes constituirão
uma nova elite de super-humanos avançados e não a massa da população.
(HARARI, 2016, p. 309)

Se esse é minimante o quadro e se tais questionamentos são minimamente


importantes, aquele que se forma em Direito, e que, portanto o mundo da vida pretende
regular, deve esse mundo da vida minimamente conhecer. Não se trata, ainda, de atualizar
o Direito para sintonizá-lo com esse quadro. Trata-se apenas e tão-somente de incluir tais
análises no eixo de formação geral, que segundo as próprias Diretrizes dos Cursos de
Direito, busca “[...] oferecer ao graduando os elementos fundamentais do Direito, em
diálogo com as demais expressões do conhecimento filosófico e humanístico, das ciências
sociais e das novas tecnologias da informação.” (BRASIL, 2018).

Transcende os objetivos deste escrito desenvolver as inúmeras facetas em que


essas mudanças do presente e do futuro aqui expostas deveriam acarretar de alterações
naquilo que se ensina nos cursos de Direito. Mas, a título de exemplo, caberia levantar: (a)
a necessidade de se conhecer minimamente o modus operandi (para usar uma expressão
cara ao Direito) da IA 20, (b) a compreensão da rápida alteração (potencializada pela
pandemia do novo coronavírus) pela qual passa o mundo do trabalho, (c) a problematização
das implicações das descobertas da neurociência em matéria de responsabilidade pessoal;
(d) o que é Big Data, como esses dados são tratados e quais as implicações para a autonomia
e a privacidade das pessoas; e (e) a dimensão econômica dos dados e do desacoplamento
entre os seus titulares e aqueles que os detêm e os manipulam.

E essas e outras alterações não dependeriam de novas Diretrizes, nova


matriz ou novo currículo. Disciplinas como História do Direito, Sociologia,
Antropologia, Ciência Política, Filosofia, Economia, Introdução ao Estudo do Direito e

19
O fenômeno da globalização, no plano político e econômico, e da transnacionalidade, no plano jurídico,
já vinham abalando os alicerces do clássico estado constitucional soberano desde a parte final do século
passado como se depreende da minuciosa análise de Bastos Junior (2014; 2019). Ocorre que a revolução
tecnológica ora em curso não apenas subtrair poder decisório do Estado-nação em um nível local, mas
também o retira quando da consideração dos Estados no plano internacional, à medida que radicaliza o
poder político e econômico de empresas e outros agentes não-estatais.
20
Nesse contexto, disciplinas minimamente introdutórias da área de tecnologia precisam ser oferecidas,
ainda que inicialmente na forma de optativas ou eletivas, pois mesmo que não se espere que todos os
bacharéis sejam engenheiros-jurídicos, é minimamente preciso saber como os robôs funcionam.

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98 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

outras poderiam facilmente contemplar essas novas lentes pelas quais o mundo precisa
ser lido. Basta que quem tem responsabilidade sobre a gestão de tais cursos, conheça
o presente e o futuro do mundo em que vivemos.

5.2 Os conteúdos jurídicos na Era da Inteligência Artificial

No item anterior tratamos de alguns conhecimentos prévios,


anteriores, mesmo, “ao ingresso no mundo jurídico”, de temas que são como condição
de possibilidade para a compreensão do Direito no Séc. XXI. Ocorre que o giro
paradigmático pelo qual estamos passando exige mais, muito mais.

As Diretrizes Curriculares, ao versarem sobre o eixo da “formação técnico-


jurídica”, afirmam que ele abrange a dogmática de ramos essenciais do Direito, que
precisam, no entanto, ser “[...] estudados sistematicamente e contextualizados
segundo a sua evolução e aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e
culturais do Brasil e suas relações internacionais” (BRASIL, 2018). Ou seja, mais uma
vez, agora ao tratar da formação técnico-jurídica, as Diretrizes clamam por um ensino
significativo que entenda o passado, sim, mas que sobretudo compreenda o presente
e consiga prospectar o futuro.

Tem se mostrado recorrente hoje o argumento segundo o qual, pela primeira


vez na história da humanidade, ninguém tem exata clareza sobre o que deve ser
ensinado nas instituições educacionais, ao mesmo tempo que se torna quase consensual
a ideia segundo a qual o menos importante do processo é informar, justamente em vista
do excesso de e facílimo acesso à informação que a contemporaneidade conhece. Daí a
tese segundo a qual “[...] as pessoas precisam de capacidade para extrair um sentido da
informação, para perceber a diferença entre o que é importante e o que não é, e acima
de tudo combinar os muitos fragmentos de informação num amplo quadro do mundo.”
(HARARI, 2018, p. 321-322)

Se a Era da IA chegou (está chegando) também ao mundo do Direito, faz-se


necessário que os cursos de graduação da área dominem, e com isso discutam e
apresentem aos alunos, o “estado da arte” dessa revolução, como anteriormente se
defendeu. Pois ainda que esta afirmação não possa aqui ser referendada por uma
pesquisa, os quase 200 mil bacharéis/ano que o Brasil entregará ao mercado de trabalho
nos próximos tempos estão, salvo raras exceções confirmatórias da regra, alheios a tudo
isso, convictos de que a habilidade de bem construir um Recurso Especial ou um Recurso
Extraordinário é a chave do sucesso, ainda que desconheçam por completo que a
admissibilidade desses recursos hoje está nas mãos da IA, para fornecer um exemplo
trivial, mas emblemático.

Compreendido o “estado da arte” – que como defendido precisa ser incluído


nas disciplinas que são a porta de entrada dos cursos, ou mesmo talvez precise ser
incluído, de modo geral, nas primeiras fases de toda e qualquer graduação, pois
praticamente ninguém está ou ficará imune a essa revolução –, compete aos cursos de

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
99 DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

graduação em Direito efetuar as reformulações de grade e de conteúdos programáticos


que comecem a atribuir ao Direito um novo sentido que se conecte ao momento atual.

Nesses termos, tanto o eixo de formação técnico-jurídica, como igualmente


o eixo de “formação prático-profissional”, precisam abarcar conteúdos que
especificamente conectem o Direito à Era da IA, o que não necessariamente exige a
criação de disciplinas como “Direito Digital” ou “Direito Cibernético” – ainda que
disciplinas assim possam aumentar o foco e a especificação do debate –, sendo suficiente
que os conteúdos programáticos das disciplinas sejam ressignificados à luz da IA. Ou
seja, do mesmo modo que a Educação das Relações Étnico-Raciais, a Educação em
Direitos Humanos e a Educação de Gênero, por exemplo, não exigem propriamente
disciplinas com tais nomenclaturas, também o “Direito Digital” não o exige, seja do
ponto de vista normativo (Diretrizes), seja do ponto de vista pedagógico. E isso ocorre
porque mesmo antes de existir um “Direito Digital”, como ramo autônomo, é o próprio
Direito que é atravessado pelo meio digital. Por exemplo, ainda que as disciplinas de
processo o ignorem, o digital hoje domina o processo.

No entanto, desde a reforma de abril de 2021, as Diretrizes passaram a


exigir o letramento digital, sendo que o podemos conceituar, com Maria Teresa
Freitas (2010, p. 339-340):

[...] como o conjunto de competências necessárias para que um indivíduo


entenda e use a informação de maneira crítica e estratégica, em formatos
múltiplos, vinda de variadas fontes e apresentada por meio do computador-
internet, sendo capaz de atingir seus objetivos, muitas vezes compartilhados
social e culturalmente.

Nesse sentido, considerando-se que hoje é, por um lado, praticamente


impossível operar o Direito sem um computador e, por outro, praticamente possível operá-
lo integralmente apenas pelo computador, o letramento digital se faz imprescindível.

Em apertada síntese, o foco deve ser a revisão dos conteúdos programáticos


em conexão com a Era da IA. Responsabilidade civil e penal de “robôs” ou de quem os
opera ou programa, meios de prova digitais, processos totalmente digitais, a dinâmica
de funcionamento de robôs que fazem a admissibilidade de recursos, as implicações da
IA no mundo do trabalho e no Direito do Trabalho, moedas digitais, privacidade,
contratos, transações econômicas e comerciais digitais, cortes digitais e etc. Um curso
de Direito somente situa-se, de fato, no século XXI, à medida que o eixo de formação
teórica está conectado materialmente ao presente.

Por fim, ainda que não haja uma relação exatamente direta entre o tema e os
objetivos deste artigo, cabe resgatar o “passado” para defender a indispensabilidade de
uma base teórica pautada nos clássicos com vistas a uma adequada compreensão do
presente e do futuro, pois como nos recorda Ronald Dworkin:

Raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos


específicos [...] uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de
moralidade política. Na prática, é impossível refletir sobre a resposta correta a

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100 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

questões de direito a menos que se tenha refletido profundamente (ou se esteja


disposto a fazê-lo) sobre um vasto e abrangente sistema teórico de princípios
complexos acerca do significado da liberdade de expressão em uma democracia,
ou da melhor compreensão do direito à liberdade de consciência e à tomada de
decisões éticas pessoais. (DWORKIN, 2010, p. 72-73)

Tudo leva a crer que a Inteligência Artificial se apoderará de muitas funções


também no mundo do Direito. De formulação de petições simples, ao domínio rigoroso
do controle dos atos processuais até mesmo à admissibilidade de recursos e à verificação
de respeito a precedentes por parte de decisões judiciais, os avanços tecnológicos
apontam para um domínio cada vez mais significativo por parte da IA daquelas funções
jurídicas que possuem maior padronização e, portanto, potencial para a repetição.

Por outro lado, por enquanto, a IA “não pensa” 21, razão pela qual não
consegue “ler” o Direito sob uma perspectiva mais aberta e principiológica, e é aqui onde
o Sapiens – por ora – está à frente. Não bastasse a própria primazia dos juristas de carne
e osso para com questões mais complexas lidar, há ainda um ponto central: as mais
delicadas questões éticas e jurídicas que a IA suscitará nos próximos anos, perpassarão
de forma significativa os direitos humanos e fundamentais.

Em suma, sendo o nicho da base principiológica do Direito uma das áreas


mais imunes aos impactos diretos da IA, afigura-se estratégico que os cursos de Direito
a ela dediquem especial relevância.

5.3 As metodologias ativas como trunfos na Era da Inteligência Artificial

Por fim, situado o estudante no “estado da arte” da revolução tecnológica e


adequada a grade e os conteúdos ao presente-futuro, cabe – no terceiro passo –
ressignificar a forma como se “ensina o Direito”.

E nesse ponto, um aspecto que tem sido apontado por vários analistas do
tema é o referente ao solipsismo do trabalho docente. Mesmo em instituições públicas
ou em privadas com ensino de maior qualidade, a tônica do modus operandi docente
tem se caracterizado por um trabalho individual, isolado e, portanto, absurdamente
fragmentado. Se determinado curso possui as disciplinas A, B e C referentes a
determinado ramo do Direito, não será raro (porque é regra) que os três professores das
disciplinas mal se conheçam e que, desenvolvam seus planos de ensino, o planejamento
e execução dessas disciplinas, à revelia do trabalho dos outros dois colegas. Esse quadro
é a pá de cal sobre uma matriz altamente fragmentada e desconexa 22.

21
Nessa seara, vale a observação de Boeing e Morais da Rosa (2020, p. 79), para os quais “[...] deve-se fazer
a ressalva de que tais tecnologias ainda estão aquém do nível de compreensão humano da linguagem.
Captar o contexto textual das palavras não necessariamente significa compreender a linguagem como uma
forma de vida, tampouco ser capaz de ‘jogar seus jogos’”.
22
O problema da cruzada solitária docente é um dos pontos mais destacados quando do Workshop sobre
ensino do Direito no Brasil realizado pela e na Fundação Getúlio Vargas. Cf. GHIRARDI, José Garcez
(coord.); DIAS DE LIMA, Ieda; SICA, Ligia Paula P. Pinto; RAMOS, Luciana Oliveira. Metodologia de

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO 101

Com isso, a formação continuada docente que avance na perspectiva de dar


ao corpo docente os instrumentais que permitam a inserção qualitativa de metodologias
ativas é fundamental, visto que tão ou mais importante do que os conteúdos ministrados
é a forma como são ministrados, não porque exatamente a forma A ou B tenha maior
capacidade de levar ao aprendizado do conteúdo, mas porque a própria forma de ensinar
quando bem assimilada, é ela mesma um aprendizado dos mais valiosos.

O papel do docente no processo formativo jamais pode ser subestimado, pois


são elas e eles que dão o tom do processo de ensino-aprendizagem. E é evidente que
uma reformulação significativa nos currículos dos cursos de Direito deve acarretar
mudanças expressivas no processo de formação continuada docente, fundamentalmente
no que se refere às metodologias.

Existe hoje um quase consenso sobre a necessidade de um investimento


pedagógico nas chamadas metodologias ativas, sendo emblemático que a área da Saúde,
pioneira na educação superior brasileira nesse tema e onde se situam alguns dos mais
concorridos cursos de nível superior, produza expressivamente sobre tal necessidade 23.
Ocorre que tal mudança não é possível sem o investimento na formação continuada
docente, bem como se não se pautar em uma mínima reformulação do comportamento
discente (LACERDA; SANTOS, 2018).

Nesse sentido, por um lado, faz-se necessário que as Instituições de Ensino


Superior invistam em formação continuada docente de caráter preponderantemente
disruptivo, vale dizer, que ressignifiquem o ato de ensinar para muito além de uma
transmissão privilegiada e estanque de conteúdos; por outro, as IES precisam contribuir
para a criação de uma cultura discente que assuma boa parte da responsabilidade por
sua própria formação, afinal de contas o êxito da utilização de metodologias ativas liga-
se fortemente a uma concepção de estudante que entenda o desafio.

Na literatura especializada, duas metodologias têm recebido destaque 24, a


aprendizagem baseada em problema e a aprendizagem baseada em projeto, que ainda
que possuam vários pontos de conexão e similitudes, são metodologias distintas:

Os dois métodos se diferenciam quanto à possibilidade de origem dos


questionamentos, sua abordagem (na relação teoria e prática) e sua escolha, na
duração, na sistematização das fases, na proposta e na finalidade. Ambos estão
ligados ao mundo do trabalho, à educação contextualizada e significativa,
requerendo de estudantes e professores uma abordagem que possibilite a

ensino jurídico no Brasil: estado da arte e perspectiva. Exposições, debates e relatos do Workshop Nacional
de Metodologia de Ensino. Cadernos DIREITO GV. São Paulo: DIREITO GV, v. 6, n. 5, set. 2009.
23
A prevalência das metodologias ativas nos cursos de graduação da área da Saúde pode ser constata em:
MITRE; et al, 2008, SOBRAL; CAMPOS, 2012 e COLARES; OLIVEIRA, 2019.
24
Várias outras metodologias também têm sido utilizadas, sendo que a “primazia” aqui defendida da
aprendizagem baseada em problemas e em projetos se deve, basicamente, pela preponderância história
no rompimento com metodologias tradicionais e pela consequente maior produção bibliográfica sobre os
métodos. Para uma mais completa visão das novas metodologias cf. HORN; STAKER, 2015 e BACICH;
MORAN, 2018.

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102 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

interdisciplinaridade e a criatividade com práticas centradas no estudante.


(ANTUNES el. al., 2019, p. 118)

Ocorre que a aprendizagem baseada em problemas e em projetos, ainda que


não sejam novidades em outras áreas, como já apontado, e ainda que sejam
metodologias altamente condizentes com a “natureza” do Direito (ou haveria assim
tanta diferença entre Direito e Medicina no que se refere à logica de prever e solucionar
problemas?), talvez signifiquem uma dose perigosa de disrupção quando comparadas à
centenária aula expositivo-dialogada, que tem pouco de diálogo e muito de exposição.
Para quem se acostumou, seja na educação básica, seja na superior, com aquela aula em
que basta que alunas e alunos se sentem de forma enfileirada e disciplinada para ouvir
os “preclaros mestres”, uma aula em que um tutor “apenas” apresente um problema e
auxilie no caminho por opções de soluções, pode ser um choque bastante significativo. 25

Em um contexto em que a IA caminha soberana em direção a atividades e


funções que há não muito tempo eram exclusivas do Sapiens (imaginemos – caso
consigamos – os processos físicos durante anos e anos foram os únicos existentes, com
suas juntadas, carimbos e tramitações literalmente manuais) as habilidades e
competências exigidas de quem deixa um curso superior serão cada vez mais
relacionadas a uma capacidade de pensar complexa e interdisciplinariamente. Nesse
sentido, um recurso como a aprendizagem baseada em projetos, definida como a
“utilização de projetos autênticos e realistas, baseados em uma questão, tarefa ou
problema altamente motivador e envolvente, para ensinar conteúdos acadêmicos [...] no
contexto do trabalho cooperativo para a resolução de problemas” (BENDER, 2014, p. 15)
parece fazer muito mais sentido pedagógico do que uma aula expositiva, ainda que
dessa, em parte, ainda se siga valendo. O raciocínio é simples: à medida que as máquinas
avançam, devem igualmente avançar um ensino que forneça a quem aprende
ferramentas que não apenas permitam entender as máquinas, mas especialmente agir
onde elas não agem.

Nesse contexto em que autonomia formativa é expressão de ordem, uma


outra metodologia ativa, igualmente impactante, plenamente conciliável com as demais
em uma cesta de possibilidades metodológicas, mas mais fácil de implementar em um
processo de transição (tendo em vista que a forma parece mais próxima daquilo com o
que nos acostumamos) é a sala de aula invertida.

A sala de aula invertida, que ganhou notoriedade e sistematicidade com os


trabalhos de dois professores de química estadunidenses (Jonathan Bergmann e Aaron
Sams) por volta de 2007, consiste em um modelo que altera radicalmente os papéis de
professores e alunos. O ensino não invertido, por assim dizer, conforma-se
perfeitamente com um docente que se limita a ministrar aulas expositivas e elaborar e

25
Esse tensionamento entre passado e futuro no plano das metodologias, atinge não apenas os alunos,
que por questões culturais nem sempre assimilam bem a proposta, mas também os docentes, seja porque
as propostas os retiram de uma zona de conforto onde há muito se encontram, seja porque as condições
de trabalho para as metodologias ativas também exigem uma pequena revolução. O tema do tempo do
trabalho docente na perspectiva das metodologias ativas, cabe ressaltar, ainda carece de maior de debate.

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ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO 103

aplicar avaliações (não raro somente com questões de múltipla escolha) e com um aluno
que, absolutamente passivo, assiste às aulas (não raro somente de corpo presente) e o
mais próximo da prova possível “estuda” o conteúdo com o único fim de memorizar o
essencial e obter uma nota minimamente razoável. Já a sala de aula invertida, em linhas
gerais, torna o professor um tutor do processo de aprendizagem dos alunos, levantando
as principais questões e indicando os textos fundamentais para o aprendizado
(BERGMANN; SAMS, 2019). No essencial, o aluno tem alguma carga de estudo antes da
aula, ficando o momento específico da aula reservado a atividades práticas, discussões
ou outras dinâmicas de caráter construtivo e participativo. Trata-se, pois, de um
privilegiado instrumento de transição entre a clássica concepção de sala de aula e
metodologias ainda mais inovadoras, o que em absoluto descaracteriza a sala de aula
invertida como dotada de méritos e autonomia próprios.

Por derradeiro, não bastassem os argumentos pedagógicos acima expostos,


cabe frisar que as Diretrizes Curriculares para os cursos de Direito estabelecem que
o que o Projeto Pedagógico do Curso terá, dentre seus elementos estruturais, “modos
de integração entre teoria e prática, especificando as metodologias ativas utilizadas”
(art. 2°, §1, VI) (BRASIL, 2018). Ou seja, há, ainda, um argumento normativo para essa
necessária transformação.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em entrevista ao Programa da TV Cultura Roda Viva, o professor de história


da universidade hebraica de Jerusalém, Yuval Noah Harari, ao ser questionado sobre a
responsabilidade das empresas sobre as tecnologias por elas desenvolvidas e
manuseadas, diz que não é responsabilidade dessas empresas fazer a regulamentação
dessas tecnologias, mas do sistema político, democrático e para tanto legitimado. Mas
Harari diz que essa não é a principal questão: “O problema, aqui, é que muita gente,
inclusive muitos políticos, não entende as novas tecnologias o suficiente, não entende o
seu potencial para o futuro, e eu gostaria de enfatizar que nós ainda não vimos nada.”
(FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA, 2020). E sentencia: “Todos os escândalos recentes,
como o da Cambridge Analytica nos EUA, todos esses escândalos são só a pontinha do
iceberg.” (FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA, 2020).

Se Yuval Noah Harari entende alguma coisa sobre a passagem do Homo Sapiens
para o Homo Deus, como suas obras fazem parecer, é preciso reconhecer que o ensino – em
geral – e o ensino do Direito, em específico, precisam de uma urgente reformulação.

Guardados os devidos ajustes históricos, seja na educação em geral, seja


especificamente na educação jurídica, não há muita diferença entre uma sala de aula de
meio século atrás e uma de hoje. E esse é um grave problema em um mundo que se
ressignifica com uma velocidade e uma intensidade inéditas.

Como visto, a crise do ensino jurídico é de uma inacreditável recorrência, se


arrastando, pelo que este estudo pode mapear, por pelo menos sessenta ou setenta anos.
“Crise” aqui, sempre significou, na essência, descompasso com a realidade, mas mais

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104 ENSINO JURÍDICO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: LEVANDO A SÉRIO A TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL NOS CURSOS DE DIREITO

com a realidade sócio-político-econômica brasileira, do que propriamente como uma


realidade global. A Era da Inteligência Artificial e a rápida e intensa transformação
digital que se está a operar levam a crise a patamares inéditos. Não por acaso disrupção
é uma palavra tão em voga, e séries televisas como Black Mirror seduzem e assustam.
Nesse contexto, ou as escolas, em geral, e as escolas jurídicas no que aqui interessa,
compreendem o processo e se readéquam, ou correm o sério risco de ingressarem no
catálogo daquelas e daqueles que não compreenderam aquela que pode ser a maior crise
paradigmática da história da humanidade.

À escola, em sentido lato, são permitidas várias ações com vistas ao


atingimento de seu fim formativo. Mas à escola não é dado mentir. Não apenas porque
“mentir é errado”, mas porque a mentira é o oposto da verdade, da razão, da
compreensão da realidade que é aquilo que deve mover o processo formativo de
qualquer estudante que seja. Por isso, diante da crise persistente e da transformação
digital que avança rápida e intensamente, é preciso não apenas uma nova forma de
ensinar, mas sobretudo novos conteúdos a serem ensinados, pois é óbvio que não
queremos correr o risco que o Professor José Eduardo Faria temia em 1986 para os
egressos do cursos de Direito: “a amargura de descobrir o descompasso entre a
(in)formação profissional recebida e o universo de conflitos reais”, sem “preparação
teórica e prática suficientes para reordenar os seus conceitos e se ajustarem a uma
realidade nova e responsável por inúmeras transformações nas funções do direito”
(FARIA, 1986, p. 55). Evitar essa “amargura” deve ser um compromisso ético e
educacional dos cursos de Direito, especialmente no século que (ainda) se inicia, mas
que não tardará em ressignificar boa parte do mundo que conhecemos até hoje.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO
VOLUME III | NÚMERO 1 | JAN-JUN / 2021
PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO
NO DIREITO

Silvano José Gomes Flumignan 1

RESUMO: O ensaio expõe como o direito italiano trata a


mitigação do prejuízo e como ela pode influenciar o direito
brasileiro. O problema identificado na pesquisa diz respeito à
ausência de disciplina do comportamento da vítima no direito
brasileiro. O trabalho buscará responder de que maneira o
direito italiano pode colaborar para uma disciplina legislativa
sobre a matéria. A análise crítica do direito italiano pode
colaborar para eventual alteração do texto legal brasileiro. O
trabalho foi dividido em cinco partes. Em todas, analisam-se as
RECEBIDO EM: 13/06/21 regras previstas no art. 1227 do Código Civil italiano. Em um
ACEITO EM: 25/06/21 primeiro momento, é verificada a noção de culpa concorrente
em comparação com o art. 945 do Código Civil brasileiro.
Posteriormente, será verificada a regra referente à mitigação do
prejuízo, seus fundamentos e características. A conclusão
abordará a inconveniência de disciplinar a matéria no mesmo
artigo da culpa concorrente. A metodologia emprega no
trabalho foi dogmática, com a análise dos artigos 1227 do
Código Civil italiano e 945 do Código Civil brasileiro e
doutrinária com a verificação de textos que abordam a
disciplina no direito italiano.

PALAVRAS-CHAVE: responsabilidade civil; dano; mitigação


do prejuízo; direito italiano.

1
Doutor e Mestre pela USP. Professor do Mestrado do Cers. Professor da UPE
e da Asces/UNITA. Procurador do Estado de Pernambuvo (cedido ao STJ).
Assessor de Ministro do STJ. https://orcid.org/0000-0002-1003-2415

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110 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

THE LESSONS OF ITALIAN LAW FOR THE MITIGATION


OF DAMAGE IN BRAZILIAN LAW
ABSTRACT: The essay exposes how Italian Law deals with the mitigation of damage and
how it can influence Brazilian law. The problem identified in this research concerns the
lack of discipline of victim behavior in Brazilian law. The work will seek to answer how
Italian law can contribute to a legislative discipline on the matter. A critical analysis of
Italian Law can contribute to a possible change in the Brazilian legal text. The work was
divided into five parts. In all of them, the parts provided from art. 1227 of the Italian Civil
Code. At first, the notion of concurrent fault is verified in comparison with 945 article of
the Brazilian Civil Code. Subsequently, the rule regarding the mitigation of damage, its
foundations and characteristics will be verified. The conclusion will address the
inconvenience of disciplining the matter in the same article as the concurrent fault. The
methodology employed in the work was dogmatic, with the analysis of articles 1227 of the
Italian Civil Code and 945 of the Brazilian Civil Code, and doctrinal with the verification
of texts that address the discipline in Italian law.

KEYWORDS: tort law; damage; mitigation of damage; Italian Law.

LAS LECCIONES DE LA LEY ITALIANA PARA LA


MITIGACIÓN DEL DAÑO EN LA LEY BRASILEÑA
RESÚMEN: El ensayo expone cómo la ley italiana trata la mitigación de lesiones y cómo
puede influir en la ley brasileña. El problema identificado en la investigación se refiere a la
falta de disciplina del comportamiento de la víctima en la ley brasileña. El trabajo tratará
de responder cómo la legislación italiana puede contribuir a una disciplina legislativa
sobre el tema. El análisis crítico de la legislación italiana puede contribuir a la posible
alteración del texto jurídico brasileño. La obra se dividió en cinco partes. En total, se
analizan las normas establecidas en el artículo 1227 del Código Civil italiano. En un primer
momento, la noción de culpabilidad concurrente se verifica en comparación con el artículo
945 del Código Civil brasileño. Posteriormente, se verificará la norma relativa a la
mitigación de la lesión, sus fundamentos y características. La conclusión abordará la
inconveniencia de disciplinar el asunto en el mismo artículo de culpabilidad concurrente.
La metodología empleada en el trabajo fue dogmática, con el análisis de los artículos 1227
del Código Civil italiano y 945 del Código Civil brasileño y doctrinal con la verificación de
textos que abordan la disciplina en el derecho italiano.

PALABRAS CLAVE: responsabilidad civil; daños; mitigación de lesiones; Ley italiana.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 111

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A REGRA GERAL DE MITIGAÇÃO PREVISTA NO


DIREITO ITALIANO; 3 A DIFERENCIAÇÃO DAS DUAS REGRAS PREVISTAS NO ART.
1.227 DO CÓDIGO CIVIL ITALIANO A PARTIR DA DOUTRINA DO DANO-EVENTO E
DO DANO-PREJUÍZO; 4 A DIFERENCIAÇÃO ENTRE AS REGRAS DO ART. 1.227 DO
CÓDIGO CIVIL ITALIANO A PARTIR DO CARÁTER SUCESSIVO ENTRE OS TEXTOS;
5 O FUNDAMENTO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO ITALIANO; 6
ASPECTOS RELEVANTES DA MITIGAÇÃO (DILIGÊNCIA ORDINÁRIA,
COMPORTAMENTO DOLOSO E CUSTOS DA MITIGAÇÃO); 7 CONCLUSÕES;
REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

A análise do comportamento da vítima, ou parte credora, após o evento


danoso não é disciplinado pelo Código Civil brasileiro. No entanto, a evitabilidade dos
efeitos está presente no Tratado de Compra e Venda Internacional de Mercadorias e já
foi objeto de julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça.

Essa lacuna do direito brasileiro é o problema básico da pesquisa.


Ela vem sendo preenchida basicamente com a aplicação do princípio da boa-fé
objetiva, mas sua utilização tem sido restrita, quase que exclusivamente, ao direito
contratual (FRADERA, 2011, p. 109-119).

A hipótese que se pretende provar é que a análise comparativa pode ser


extremamente importante para uma eventual iniciativa brasileira no sentido de
positivar a aplicação do instituto. Nessa seara, o direito italiano mostra-se relevante
por ter regra expressa nesse sentido no Código Civil italiano de 1942, que, inclusive,
influenciou o Código Civil brasileiro.

A verificação dos acertos e desacertos será importante para que os eventuais


equívocos encontrados não sejam repetidos caso o legislador brasileiro opte pela
previsão expressa da mitigação.

Para tanto, o trabalho será dividido em cinco partes. Na primeira, será


observada a previsão legislativa do art. 1227 do Código Civil italiano. Após essa verificação,
buscar-se-á distinguir as duas regras previstas no dispositivo a partir de critérios distintos.
Com a observação dos critérios, será possível a análise dos fundamentos da mitigação e de
alguns elementos previstos pelo legislador para a sua aplicação.

A metodologia empregada no trabalho foi dogmática a partir da análise do


texto legislativo e da bibliografia referente à matéria.

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112 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

2 A REGRA GERAL DE MITIGAÇÃO PREVISTA NO DIREITO ITALIANO

O direito italiano aborda a doutrina da mitigação no dispositivo destinado à


culpa concorrente. O texto prevê duas regras no art. 1227:

Art. 1227 do Código Civil italiano. Concorrência de culpa do lesado. Se o fato


culposo do credor concorreu para causar o dano, o ressarcimento é diminuído
segundo a gravidade da culpa e a abrangência das consequências que lhe são
derivadas. O ressarcimento não é devido para os danos que o credor poderia ter
evitado usando a diligência ordinária (2056 e seguintes). 2 (ITALIA, 1942)

A primeira regra refere-se à culpa concorrente e a segunda relaciona-se ao


comportamento da vítima, mesmo que inseridas sob a rubrica da “culpa concorrente”
(BENEDETTI, 2012, p. 358-370; BIANCA, 1994, p. 136; CATTANEO, 1967, p. 460; CUPIS,
1970, p. 966; DISTASO, 1970, p. 444; FRANZONI, 1996, p. 63; GABRIELLI, 1998, p. 467;
LONGO, 1950, p. 348; SAPONE, 2007, p. 5-24; VISINTINI, 2005, p. 692).

A culpa concorrente, prevista na primeira regra, é, inclusive, muito


semelhante ao art. 945 do CC brasileiro 3:

Art. 945 do CC/02. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento


danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua
culpa em confronto com a do autor do dano. (LOPES, 2011, p. 162)

A segunda regra, no entanto, não foi tratada na legislação codificada brasileira.

3 A DIFERENCIAÇÃO DAS DUAS REGRAS PREVISTAS NO ART. 1.227 DO


CÓDIGO CIVIL ITALIANO A PARTIR DA DOUTRINA DO DANO-EVENTO E DO
DANO-PREJUÍZO

A maioria dos julgados italianos diferencia os dois parágrafos do art. 1.227 a


partir da concepção de dano-evento e de dano-prejuízo:

1.1. Distinção entre danos-evento e danos-consequência. [...] A jurisprudência


majoritária, para individualizar o discrimen entre o primeiro e o segundo
parágrafo, baseia a distinção entre causalidade de fato, que se relaciona ao
primeiro parágrafo, e casualidade jurídica, que diz respeito ao segundo parágrafo.
Verifica-se, portanto, de acordo com esta tese, o primeiro parágrafo quando a
conduta do lesado é inerente à fase produtiva do evento lesivo (o termo deve ser

2 Art. 1227 Concorso del fatto colposo del creditore


Se il fatto colposo del creditore ha concorso a cagionare il danno, il risarcimento è diminuito secondo la
gravità della colpa e l'entità delle conseguenze che ne sono derivate.
Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza
(2056 e seguenti)
3
“Apesar de a evitabilidade estar prevista em um artigo cujo título indica que trataria da matéria de culpa
concorrente, a doutrina e a jurisprudência italianas firmaram entendimento de que esse artigo trata de
duas hipóteses diferentes. No primeiro parágrafo, cuida propriamente da culpa concorrente, em que o ato
culposo do credor intervém para a produção do evento danoso. Nesse caso, o juiz terá discricionariedade
para fixar o valor da indenização tendo em vista o grau relativo de culpa das partes e o papel que o ato de
cada uma delas teve na causação do dano”.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 113

compreendido como sinônimo de evento danoso ou de evento de dano). O


segundo parágrafo diz respeito ao nexo entre o evento danoso e as singulares
consequências danosas (os danos-consequência). 4 (SAPONE, 2007, p. 7)

De fato, a culpa concorrente prevista no primeiro parágrafo insere-se na


discussão sobre o nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Neste panorama, a
verificação sobre o comportamento do lesado é estritamente ligada à causalidade fática.

Também não é equivocado se afirmar que, para a análise do segundo


parágrafo, seria imprescindível a verificação das diversas consequências lesivas.

A decisão abaixo colacionada bem demonstra o afirmado:

[...] O primeiro parágrafo do art. 1227 do Código Civil diz respeito à


concorrência culposa do lesado na produção do evento que configura o
inadimplemento [...] enquanto no segundo parágrafo, o dano é originariamente
imputável ao causador, mas as consequências danosas do mesmo poderiam ter
sido evitadas ou atenuadas por um comportamento diligente do lesado. 5

Os adeptos dessa associação limitam a análise da causalidade ao primeiro


parágrafo e deixam para o segundo, que aborda precisamente a doutrina da mitigação
do prejuízo por parte da vítima, a análise tão-somente das consequências danosas.

[...] o primeiro parágrafo regula a concorrência do lesado na produção do fato


danoso e tem como consequência uma repartição de responsabilidade [...] na
qual um dos coautores do fato danoso é o mesmo lesado [...]. Uma situação
bastante diferente é, ao contrário, disciplinada no segundo parágrafo da norma
reclamada: aqui não existe um problema etiológico ou causal, mas somente de
extensão do dano [...]. 6

Essa primeira interpretação estabelece que a regra do primeiro parágrafo se


associa à concepção clássica de responsabilidade civil com a previsão de que o dano
indenizável tenha que necessariamente ter relação causal com a conduta; enquanto o
segundo visa determinar a entidade do dano ressarcível (CATTANEO, 1967, p. 460) 7.

4
“Distinzione tra danni-evento e danni-consequenza [...]
La giurisprudenza maggioritaria, per individuare il discrimen tra primo e secondo comma, fa perno sulla
distinzione tra causalità in fatto, cui ha riguardo il primo comma, e causalità giuridica, a cui attiene il
secondo comma. Opera quindo, secondo questa tesi, il primo comma quando il fatto del danneggiato inerisce
alla fase produttiva dell’evento lesivo (termine da intendersi quale sinonimo di evento dannoso o di evento-
di-danno). Il secondo comma riguarda invece il nesso che intercorre tra l’evento lesivo e le singole
conseguenze dannose (i danni-conseguenza”.
5
Cass. 16/06/2003, n. 9629. “il primo comma dell’art. 1227c.c. concerne il concorso colposo del danneggiato
nella produzione dell’evento che configura l’inadempimento [...] mentre nel secondo comma il danno è
eziologicamente imputabile al dannegiante, ma le conseguenze dannose dello stesso avrebbero potuto essere
impedite o attenuate da un comportamento diligente del danneggiato”.
6
Cass. 04/05/1990, n. 3729. “Il primo comma regola il concorso del dannegiato nella produzione del fato danoso
ed ha come conseguenza una ripartizione di responsabilità [...] nella quale uno dei coautori del fatto dannoso
è lo stesso danneggiato. [...] Una situazione del tutto diversa è invece disciplinata dal secondo comma della
norma richiamata: qui non v’è un problema eziologico o causale, ma solo di estensione del danno”.
7
O autor chega a afirmar que o dano “evitável” não seria um dano no sentido jurídico.

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114 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

O resultado dessa tentativa de distinção é associar o primeiro parágrafo ao


dano-evento e o segundo ao dano-prejuízo (SAPONE, 2007, p. 10).

De fato, o fenômeno do dano pode ser compreendido em dois momentos:


como pressuposto do dever de indenizar e como parâmetro para se fixar a indenização.

O primeiro envolve a demonstração dos pressupostos da responsabilidade


(dano, nexo causal e culpa, quando não dispensada, nas hipóteses objetivas).
[...] E, uma vez superado esse primeiro plano (an debeatur), voltam-se as
atenções ao tema da avaliação, da quantificação dos danos já então
reconhecidos. Eis o segundo momento na ordem de considerações sucessivas
constante das ações de responsabilidade civil (quantum debeatur), ao qual se
chegará tão-somente após se lograr êxito na caracterização dos pressupostos.
(MONTEIRO FILHO, 2000, p. 124-125)

Essa corrente doutrinária e jurisprudencial italiana, no entanto, ao comentar o


art. 1.227 do Código Civil italiano, atribui o primeiro momento de análise do dano somente
ao primeiro parágrafo. No parágrafo seguinte, caberia a análise do segundo momento.

Mais do que isso, tal corrente pressupõe que somente o dano-evento entraria
na cadeia causal gerada pela conduta e que o dano-prejuízo não poderia ser analisado do
ponto de vista do nexo de causalidade. Tais conclusões, no entanto, parecem equivocadas.

Não perceberam os autores que tanto o dano-evento como o dano-prejuízo


são resultados da conduta e integram a cadeia causal da conduta gerada.

O dano compreendido a partir da noção de dano-evento e dano-prejuízo não


permite a confusão entre a conduta com o seu resultado.

A conduta é o comportamento humano voluntário exteriorizado por uma ação


ou omissão. É composta pelo elemento objetivo e subjetivo. O objetivo é a
exteriorização (ação ou omissão). O subjetivo é composto pelo dolo e pela
culpa. O dano-evento não se confunde com a conduta. É o resultado de uma
ação ou omissão que viola direito subjetivo ou interesse juridicamente
relevante. Ele deve ser acompanhado com o dano-prejuízo, o segundo
momento da caracterização do dano, que é a consequência de ordem
patrimonial ou extrapatrimonial correlacionada diretamente à violação do
direito ou do interesse. (FLUMIGNAN, 2015, p. 192)

Isso fica claro com o seguinte exemplo: “Se uma pessoa excede o limite de
velocidade em seu automóvel, comete um ato ilícito. Porém, apenas será possível falar
em responsabilidade civil se esse ato gerar algum dano” (FLUMIGNAN, 2009, p. 42) 8.

O dano-evento e o dano-prejuízo constituem um fenômeno unitário que


somente pode ser distinto em dois momentos no plano ideológico. A unitariedade
não impede o problema normativo da distinção entre o dano-evento e o dano-
prejuízo (SALVI, 1989, p. 63).

8
O problema do ato ilícito na responsabilidade se expressa de diversas formas. O fato jurídico sempre será
ilícito, pois o dano-evento sempre será antijurídico.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 115

“O dano-evento constitui-se pela lesão a um direito subjetivo ou a um


interesse juridicamente relevante e o dano-prejuízo é a consequência patrimonial ou
extrapatrimonial da lesão.” (FLUMIGNAN, 2015, p. 193)

A aparente ambiguidade entre os termos dano-evento e o dano-prejuízo pode


ter fundamento na origem etimológica. As línguas latinas costumam atribuir aos termos
lesão e dano o significado que se pretende com os termos dano-evento e dano-prejuízo
(Azevedo, 2004, p. 289 e ss.). Philippe le Tourneau e Loïc Cadiet (1998, p. 193), por exemplo,
mencionam os termos dommage (originada do vocábulo latino damnum) e préjudice.

Antônio Junqueira de Azevedo (2004, p. 289 e ss.) expõe ser ideal a referência
precisa dos dois momentos para a caracterização do dano: o dano-evento (primeiro
momento) e o dano-prejuízo (segundo momento). A noção de dois momentos não
implica, necessariamente, um lapso temporal entre um e outro. A simultaneidade é
perfeitamente possível 9.

Mesmo existindo dois momentos do ponto de vista teórico, não se pode


afirmar que apenas o dano-evento integraria a cadeia causal, pois a distinção ocorre
apenas no plano teórico. Como fenômeno, o dano-evento e o dano-prejuízo constituem
o resultado da conduta.

De qualquer forma, a corrente que prevalece é a que associa o primeiro


parágrafo ao dano-evento e o segundo ao dano-prejuízo. Contudo, existem
entendimentos contrários. Tais previsões associam o segundo parágrafo, o que aplica à
doutrina da mitigação de maneira mais categórica, também à noção de evento danoso:

Também sobre o tema do segundo parágrafo existem conclusões


jurisprudenciais da opinião que sustenta a irrelevância entre danos-evento e
danos-prejuízo. [...] A teoria predominante - que se sustenta na distinção entre
danos-evento e danos-prejuízo e que nos leva a considerar necessariamente
sucessivo ao evento danoso o comportamento da vítima relevante no sentido
do segundo parágrafo - foi negada em outro caso, decidido pela Cass.
09/04/1996, n. 3250, MGC 1996, 519. O autor havia acionado a administração
provincial porque alguns animais, mantidos pela própria Administração em
uma área de repovoamento e de captura, tinham invadido um pomar de sua
propriedade, causando vários danos; tais danos, de acordo com o autor, seriam
imputáveis à Administração que não tinha conseguido isolar adequadamente a
área de repovoamento: O Tribunal acolheu a demanda de ressarcimento
fundamentando que não havendo a Administração provido o isolamento da
área de forma adequada, não tinha o autor o dever de prevenir no sentido da

9
De acordo com o autor, a natureza do dano-evento não necessariamente será a do dano-prejuízo. “Pode
haver lesão à integridade física de uma pessoa e as principais consequências não serem de ordem pessoal,
e sim patrimonial - por exemplo, se a vítima perdeu total ou parcialmente sua capacidade laborativa; ou,
inversamente, a lesão pode ser numa coisa que está no patrimônio de alguém e a consequência ser
principalmente um prejuízo não-patrimonial (dano moral), - por exemplo, se o dono tinha, pela coisa,
valor de afeição... Portanto, o dano-evento, ou lesão, pode ser no corpo ou no patrimônio e, quer numa
hipótese quer noutra, o dano-prejuízo ser patrimonial ou não-patrimonial: um dano ao corpo pode ter
consequências patrimoniais ou não-patrimoniais e um dano ao patrimônio também pode ter
consequências patrimoniais ou não-patrimoniais” (AZEVEDO, 2004, p. 291)

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116 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

art. 1227, segundo parágrafo, do CC (como havia sustentado o Magistrado)


porque ele deveria exercer uma atividade extraordinária significativa ou
desembolsar despesas consideráveis, tais como as resultantes do encerramento
do fundo dos artigos 841 e 842 do Código Civil. 10 (SAPONE, 2007, p. 16)

Dessa forma, a análise da culpa concorrente é uma verificação de causalidade.


O nexo de causalidade liga a conduta ao resultado danoso, que pode ser desdobrado em
dano-evento e dano-prejuízo. A mitigação ocorre na apuração do quantum indenizável.
Logo, é posterior a verificação do dano-prejuízo.

4 A DIFERENCIAÇÃO ENTRE AS REGRAS DO ART. 1.227 DO CÓDIGO CIVIL


ITALIANO A PARTIR DO CARÁTER SUCESSIVO ENTRE OS TEXTOS

Outra tentativa de diferenciação entre a culpa concorrente, prevista no


primeiro parágrafo do Código Civil italiano, e a mitigação do prejuízo, diz respeito ao
caráter sucessivo entre as duas regras.

Sapone (2007, p. 10 e ss), por exemplo, sustenta que o caráter omissivo do


comportamento do lesado levaria necessariamente a uma análise posterior ao evento lesivo11.

A crítica que se faz a esse entendimento é que ele não explica o fato de o
comportamento de mitigação do prejuízo poder ser exigido também como conduta
preventiva, ou seja, anterior à ocorrência do dano (SAPONE, 2007, p. 18).

Christian Sahb Batista Lopes, ao comentar o direito italiano, não discorre


sobre essas várias interpretações possíveis de distinção entre os parágrafos do art. 1227
do Código Civil italiano. Em verdade, deixa transparecer a existência de apenas uma
interpretação. Para o autor, somente existiria uma causa para o dano no segundo
parágrafo; já em relação ao primeiro parágrafo haveria mais de uma causa. A doutrina
da mitigação prevista no segundo parágrafo teria o condão de interromper o nexo de
causalidade em relação aos danos que poderiam ter sido evitados:

10
“Anche sotto il versante del secondo comma vi sono riscontri giurisprudenziali all’opinione che afferma
l’irrilevanza tra danni-evento e danni-conseguenza. [...]
La tesi prevalente - che fa leva sulla distizione tra danni-evento e danni-conseguenza e che porta a
considerare necessariamente successivo all’evento dannoso il comportamento della vittima rilevante ai sensi
del secondo comma – è stata smentita anche in altro caso, deciso da Cass. 9.4.1996, n. 3250, MGC 1996, 519.
L’attore aveva agito nei confronti dell’amministrazione provinciale perché alcuni animale, tenuti
dall’Amministrazione stessa in una zona di ripopolamento e cattura, avevano invaso un frutteto di sua
proprietà, provocando molteplici danni; tali danni, secondo l’attore , erano addebitabili all’Amministrazione
che non aveva provveduto a recintare adeguantamente la zona di ripopolamento: Il Tribunale ha accolto la
domanda di risarcimento ritenendo che non avendo l’Amministrazione provveduto a recintare
adeguatamente tale zone, non aveva l’attore il dovere di provvedervi ai senso dell’art. 1227 secondo comma
c.c. (come aveva invece sostenuto il Pretore) perché avrebbe dovuto esplicare un’ attività straordinaria
abnorme, o sostenendo esborsi di spese considerevoli, quali quelle derivanti dalla chiusura del fondo ex artt.
841 e 842 C.C”.
11
Neste ponto, cabe ressaltar que como evento lesivo, a doutrina italiana trabalha com a noção de dano-
evento (Cass. 10/12/1986, n. 7319; Cass. 09/05/2000, n. 5883).

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 117

A hipótese prevista no parágrafo segundo “pressupõe que o comportamento do


autor tenha sido a única causa eficiente do referido evento, e se refere às
consequências posteriores que, devido à falta de ordinária diligência da parte
do credor prejudicado, agravaram o dano.” Portanto, reconhecem-se haver
diferenças entre as duas normas previstas no art. 1.227. Na primeira delas, há
mais de uma causa para a ocorrência do evento danoso. Na segunda, que trata
realmente da minimização dos danos, há apenas uma causa para o evento
danoso. Entretanto, entende-se que a falta de uso da ordinária diligência do
credor para evitar danos interrompe o nexo de causalidade com relação aos
danos que poderiam ter sido evitados. Desta forma, a lei atribui uma
consequência para essa segunda hipótese que é diferente daquela prevista para
a primeira: o credor não poderá ser indenizado pelos danos que poderia ter
evitado. (LOPES, 2011, p. 62)

Tal concepção encontra algumas restrições. Embora se afaste da ideia


equivocada de distinção entre os parágrafos com base na noção de dano-evento e de
dano-prejuízo 12, não explica a questão da mitigação preventiva do dano ao falar em
“quebra da causalidade”. Tal ideia necessariamente implica o caráter sucessivo do dano
e gera uma espécie de confusão conceitual. Ela prevê que a “causa” dos danos evitáveis
seria o comportamento da vítima ou da parte credora o que não condiz, em absoluto,
com a realidade. A “causa” do prejuízo continua sendo a conduta do autor do dano 13.

5 O FUNDAMENTO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO ITALIANO

Resta saber, no direito italiano, o fundamento de aplicação desse instituto.


Natalino Sapone tenta estabelecer o fundamento do segundo parágrafo. Para tanto,
enquadra o direito italiano em três grandes correntes doutrinárias: boa-fé objetiva;
causalidade e eclética (2007, p. 285 e ss.).

A que se funda na boa-fé objetiva sustenta que o comportamento do lesado na


mitigação do prejuízo que lhe foi causado é fato impeditivo da responsabilidade do causador
do dano. Tal efeito constitui sanção pela violação do dever jurídico de lealdade e do
desrespeito à concepção de solidariedade nas relações jurídicas (BIANCA, 1994, p. 143).

Restaria saber se esse impedimento seria total ou parcial. A jurisprudência


italiana já se pronunciou pela parcialidade do impedimento devido ao fato de subsistir
a responsabilidade do causador do dano e que o impedimento somente seria gerado no
caso de omissão do credor ou vítima 14. Cesare Massimo Bianca, por outro lado, defende
12
Até porque tanto o dano-evento como o dano-prejuízo integram a causalidade do fato gerador do dano.
13
Aliás, esse parece ser o entendimento da jurisprudência italiana há algum tempo: Cass. 13/12/1980, n.
6430 - “Il secondo comma (dell’ art. 1227, n.d.r.) prende in considerazione la condotta del danneggiante
posteriore all’evento lesivo, già determinatosi per fatto esclusivo del debitore o del responsabile; in questa
seconda fase del rapporto, il creditore o il danneggiato hanno il dovere di adottare le misure [...] opportune
per ridurre o comunque per non aggavare le conseguenze dannose dell’inadempimento ovvero del fatto
illecito” (O segundo parágrafo (do art. 1227) leva em consideração a conduta do causador do dano posterior
ao evento lesivo, já determinado por fato exclusivo do devedor ou do responsável; nesta segunda fase da
relação, o credor ou o lesado tem o dever de adotar as medidas adequadas [...] necessárias para reduzir
ou, pelo menos, para não agravar as consequências danosas do inadimplemento ou do fato ilícito).
14
Cass. 15/10/2004, n. 20324.

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118 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

a possibilidade de imputação total ou parcial por se tratar de uma sanção imposta ao


descumprimento de dever oriundo da boa-fé objetiva (BIANCA, 1994, p. 143).

No que se refere à possibilidade de impedimento total ou parcial, parece que


a razão está com quem admite a total. O Código Civil italiano não restringe o efeito do
descumprimento do parágrafo segundo apenas à parcial redução da indenização. Ele
afirma apenas que o ressarcimento não será devido se for possível a atuação do credor
ou da vítima para mitigar os efeitos de um prejuízo causado. Essa, claro, não será a regra,
mas, a depender do caso concreto, poderá ocorrer.

Sobre essa possibilidade, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou pela


possibilidade de afastamento total da indenização no direito brasileiro:

RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA PUBLICADA ERRONEAMENTE.


CONDENAÇÃO DO ESTADO A MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.
INFORMAÇÃO EQUIVOCADA. AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM
FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. DANO MORAL.
PROCURADOR DO ESTADO. INEXISTÊNCIA. MERO DISSABOR.
APLICAÇÃO, ADEMAIS, DO PRINCÍPIO DO DUTY TO MITIGATE THE LOSS.
BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO DANO. [...] 4. Não fosse
por isso, é incontroverso nos autos que o recorrente, depois da publicação
equivocada, manejou embargos contra a sentença sem nada mencionar quanto
ao erro, não fez também nenhuma menção na apelação que se seguiu e não
requereu administrativamente a correção da publicação. Assim, aplica-se
magistério de doutrina de vanguarda e a jurisprudência que têm reconhecido
como decorrência da boa-fé objetiva o princípio do Duty to mitigate the loss,
um dever de mitigar o próprio dano, segundo o qual a parte que invoca
violações a um dever legal ou contratual deve proceder a medidas possíveis e
razoáveis para limitar seu prejuízo. É consectário direto dos deveres conexos à
boa-fé o encargo de que a parte a quem a perda aproveita não se mantenha
inerte diante da possibilidade de agravamento desnecessário do próprio dano,
na esperança de se ressarcir posteriormente com uma ação indenizatória,
comportamento esse que afronta, a toda evidência, os deveres de cooperação e
de eticidade. (BRASIL, STJ, Resp 1325862/PR, rel. Ministro Luis Felipe Salomão,
Órgão Julgador: Quarta Turma, j. em 05/09/13.)

Para essa corrente, portanto, não haveria um juízo de causalidade entre a


conduta do causador do dano e o prejuízo evitável, haveria simplesmente uma sanção
pela não observância da boa-fé objetiva.

A corrente que se baseia na causalidade, por outro lado, entende que o


parágrafo segundo excluiria o dever de indenizar pela conduta inerte do credor ou da
vítima, porque os danos decorrentes da falha na mitigação não seriam “causados” direta
e imediatamente pela conduta do autor do dano 15.

Tal concepção não parece ser a correta, pois um dos principais fatores de
diferenciação entre a culpa concorrente e a doutrina da mitigação é que a primeira
trabalha com mais de uma “causa” a produzir o resultado danoso.

15
Cass. 09/02/2004, n. 2422.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 119

Ademais, ao se admitir a mitigação do prejuízo como uma quebra da


causalidade, confunde-se o duty to mitigate com a culpa ou fato exclusivo da vítima,
como que se o “prejuízo” causado pela evitabilidade do dano fosse de responsabilidade
exclusiva da vítima ou parte credora, o que não pode ser aceitável.

A solução eclética tenta combinar as concepções “patrimonialista” 16 e


causalista. Para essa ideia, as duas soluções não seriam incompatíveis ou excludentes. Em
verdade, o parágrafo segundo somente seria possível como resultado da convergência da
boa-fé com a causalidade que teria ampliado as situações de diligência ordinária.

Esta reconstrução une o nexo de causalidade com o dever de boa-fé. Não são
somente duas chaves de leitura compatíveis, mas – nesta visão – dois planos
que não podem ficar separados. A ampliação da diligência ordinária prevista no
art. 1227, §2º, constitui o resultado da convergência do plano da causalidade e
da boa-fé. 17 (SAPONE, 2007, p. 291)

A teoria tem o condão de afastar, tal qual a ideia prevista no Código Civil de
Quebec, a disseminação de um fundamento único para a mitigação do prejuízo.

Todavia, a teoria eclética peca em alguns aspectos com a regra prevista


no art. 1227.

Ao se prever uma regra específica sobre mitigação do prejuízo no Código


Civil, afasta-se a necessidade de se recorrer à principiologia da boa-fé objetiva. O
legislador italiano, quando quis prever a aplicação da boa-fé-objetiva, assim o fez.
Além disso, o critério da diligência ordinária não se identifica por completo com a
lealdade da boa-fé objetiva.

Em verdade, o comportamento da vítima ou da parte credora que opta por


permanecer inerte após sofrer um prejuízo não viola diretamente o direito na
legislação italiana.

Como mencionado, o autor acredita que a disposição é uma expressão do


princípio da auto-responsabilidade; mas não no sentido da violação do dever
primário de boa-fé, mas como um conceito contrário àquele de hetero-
responsabilidade em relação a si mesmo. O que significa que o segundo
parágrafo não se refere à violação de um dever primário de comportamento;
subjacente ao segundo parágrafo está um comportamento em si livre, portanto,
não antijurídico. 18 (SAPONE, 2007, p. 292)

16
Tal denominação da corrente doutrinária foi dada por Sapone (2007, p. 286-288).
17
“Questa riconstruzione salda il rapporto di casualità con il dovere di buona fede. Non sono solo due chiavi
di lettura compatibili, mas - in questa visione – due piani che non possono procedere separati. L’ ampiezza
dell’ordinaria diligenza di cui all’art. 1227 secondo comma costituisce la risultante della convergenza del
piano della causalità e della buona fede”.
18
“Come già detto, chi scrive ritiene che la disposizione costituisca espressione del principio di
autoresponsabilità; ma non nel senso di violazione del dovere primario di buona fede, ma come concetto
contrapposto a quelo di etero-responsabilità verso se stesso. Il che vuol dire che il secondo comma non si
riferisce alla violazione di un dovere primario di comportamento; sotteso al secondo comma è un
comportamento di per sé libero, dunque non antigiuridico”.

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120 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

Como se observou, a aplicação da teoria do dano-evento e do dano-prejuízo


não ajuda muito a explicar a diferença entre os parágrafos do art. 1227, pois parte de
premissas erradas. Ela é relevante, no entanto, para se verificar que as consequências
lesivas da conduta serão importantes para a quantificação do dano indenizável e do dano
evitado ou evitável.

Da mesma forma, o caráter sucessivo para diferenciar a culpa concorrente


da mitigação do prejuízo não esclarece, por exemplo, a questão da mitigação em
caráter preventivo.

A teoria que prega ser a causalidade o fator decisivo para a mitigação não
observa que de fato as consequências lesivas não foram causadas pela vítima, mas
pelo autor do dano.

A boa-fé também não encontra completa aplicação na mitigação já que o


legislador italiano, quando quis tratar da boa-fé o fez expressamente. Além disso, a
lealdade, como padrão de comportamento, não se enquadra por completo no conceito
de “diligência normal ou ordinária” do segundo parágrafo do art. 1227.

A teoria eclética, por ser uma combinação da teoria da causalidade com a da


boa-fé, agrega as críticas de ambas as correntes; tem, contudo, uma importante
vantagem de admitir que um instituto jurídico não necessariamente tenha apenas um
fundamento. É perfeitamente possível a aplicação de mais de um a depender da situação
concreta que exija a sua tutela.

Ao se analisar o texto do segundo parágrafo, percebe-se que a vítima ou parte


credora pode optar por permanecer inerte sem que isso represente uma violação da
ordem jurídica. A consequência apenas é que ela não receberá o valor da indenização de
maneira integral. Tal previsão se enquadra perfeitamente na noção de ônus jurídico,
sendo que o benefício para aquele que o cumpre é justamente a reparação integral (parte
ressarcida pelo causador do dano – prejuízos não evitáveis; parte pela sua própria
atuação – mitigação do prejuízo). “Essa conduta é transformada pela disposição em
questão em ônus, tendo por objeto a utilização da diligência ordinária nos termos do
art. 1176 do Código Civil, colocado para proteger o interesse de outrem” 19 (SAPONE,
2007, p. 292).

6 ASPECTOS RELEVANTES DA MITIGAÇÃO (DILIGÊNCIA ORDINÁRIA,


COMPORTAMENTO DOLOSO E CUSTOS DA MITIGAÇÃO)

Resta ainda a análise de alguns pontos do dispositivo. O art. 1227, §2º, prevê
a denominada “diligência ordinária”. O dispositivo não aborda expressamente a
razoabilidade e nem tal noção assume o protagonismo do instituto.

19
“Tale comportamento libero viene trasformato dalla norma in questione in onere, avente as oggetto l’uso
dell’ordinaria diligenza di cui all’art. 1176 c.c., posta a tutela dell’interesse altrui”.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 121

O termo “diligência ordinária” pode ser compreendido em um aspecto


negativo e positivo. Do ponto de vista negativo, significa que a atuação esperada da
vítima ou da parte credora não pode ser gravosa ou extraordinária 20.

Em relação ao aspecto positivo, deve-se atentar para o custo moderado da


mitigação, a necessidade de assunção de riscos e o sacrifício esperado.

Assim, existem três critérios fundamentais que devem ser utilizados para
delimitar o dever (rectious, o ônus) de diligência ordinária prevista no art. 1227,
segundo parágrafo: despesas significativas de dinheiro, assunção de riscos,
sacrifícios significativos. 21 (SAPONE, 2007, p. 295)

A análise da razoabilidade encontra limitação no caráter extraordinário dos


gastos e das medidas de mitigação. Tais elementos somente podem ser verificados no caso
concreto, o que leva, ainda que não expressamente, à noção de razoabilidade discutida no
direito canadense. Uma razoabilidade verificada em concreto segundo as circunstâncias
do caso. É o que se depreende do seguinte julgado do Tribunal de Rovereto:

O ônus da diligência ordinária exigido do art. 1227, parágrafo 2º, do Código Civil,
ao credor para limitar o dano pelo inadimplemento deve ser alargado também
para aqueles comportamentos positivos através do qual o dano possa ser
evitado ou reduzido com certeza 22

A razoabilidade depende da análise do comportamento e da situação


específica de dano. Assim, a circunstância das partes envolvidas, características pessoais,
o dano causado e até mesmo circunstâncias alheias às partes e ao negócio específico
como a infraestrutura do local da ocorrência do dano podem ser levadas em conta na
análise da diligência ordinária.

Outro ponto relevante diz respeito ao momento em que se espera a conduta


da vítima ou parte credora. Já se expôs que pode haver a aplicação da mitigação do
prejuízo em caráter antecipado, ou seja, antes da ocorrência do dano. Isso ocorre porque
o fator desencadeador do art. 1227, parágrafo segundo, é a evitabilidade das
consequências danosas. Se for possível a mitigação de forma preventiva, é possível a
aplicação da regra do parágrafo.

Essa discussão leva à outra. É preciso a certeza da ocorrência do prejuízo?


Neste caso, mesmo a mitigação em caráter preventivo, parece exigir que o dano ocorra

20
Cass. 20/11/1991, n. 12439.
21
Dunque, tre sono i fondamentali critério cui far ricorso per perimetrare il dovere (rectious, l’onere)
dell’ordinaria diligenza di cui all’ art. 1227 secondo comma: esborsi apprezzabili di denaro, assunzione di
rischi, apprezzabili sacrifici.
22
Trib. Rovereto 16/03/98, pres. ed est. Di Fazio, in D&L 1998, 1013 – apud http://www.di-
elle.it/giurisprudenza/63-risarcimento-danni/danni-in-genere/424-danni-in-genere acesso em 01/05/2015.
“L’onere di ordinaria diligenza richiesto ex art. 1227, 2° comma, c.c. al creditore per limitare il danno da
inadempimento va esteso anche a quei comportamenti positivi attraverso cui il danno possa essere evitato
o ridotto con certezza.”

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122 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

com certo grau de certeza ainda que ele seja projetado para o futuro, pois, sem dano,
não há o que se indenizar.

Questão diversa é saber se somente o comportamento exigível da vítima ou


parte credora é aquele que necessariamente leve à mitigação ou se o juízo de
probabilidade é suficiente. As condutas que necessariamente levam à mitigação serão
relevantes para a aplicação do instituto. A dúvida surge em relação a condutas que geram
um juízo de probabilidade de mitigação. Cesare Massimo Bianca sustenta que o “dever”
ou “ônus” de agir surge quando ocorre razoável probabilidade de sucesso (1994, p. 144).
Porém, o autor não aprofunda a questão. Neste ponto, o direito canadense abordou o
tema de maneira mais específica e razoável ao determinar que o grau de probabilidade
de mitigação do dano será analisado no cálculo do prejuízo evitável e a porcentagem de
probabilidade de êxito pode influenciar no cálculo da indenização 23.

Um tema extremamente importante no direito italiano diz respeito à


possibilidade de aplicação da doutrina da mitigação para os casos em que o causador do
dano agiu de maneira dolosa.

Parte da doutrina sustenta que esse seria o limite para a aplicação do parágrafo
segundo do art. 1227 (BELLANTUONO, 2001, p. 581). O argumento seria de que a intenção
deliberada de descumprir a relação jurídica, por exemplo, para auferir maiores lucros em
nova negociação, geraria um bloqueio à aplicação da doutrina da mitigação. Caso o
entendimento fosse contrário, poderia levar a grande “injustiça” na prática.

Todavia, o termo “injustiça” é empregado sem qualquer respaldo técnico e


apenas de acordo com o entendimento dos defensores. Fato é que os atos dolosos não
encontram ressalva na aplicação da mitigação do prejuízo. Ademais, o fundamento
máximo da mitigação, mesmo no direito italiano, é constitucional, cujo efeito é repartir
as consequências dos efeitos danosos, sendo a aplicação decorrente da noção
constitucional de “solidariedade”.

Isso, no entanto, não impede que, no campo do dever de mitigação se possa


atribuir qualquer importância ao dolo. Se o art. 1227 for lido também à luz do
princípio constitucional de solidariedade, a tal ponto que é em razão deste
princípio que se justifica a ampliação do conteúdo da diligência ordinária
também para o comportamento positivo, não parece implausível estabelecer
que este princípio (de solidariedade) não tenha razão de existir em face de um
inadimplemento doloso. 24 (SAPONE, 2007, p. 323)

23
Janiak v Ippolito [1985] 1 SCR 146.
24
“Ció comunque non preclude che nel perimetrare il dovere di mitigazione si possa attribuire un qualche
rilievo al dolo. Se l’art. 1227 va letto anche ala luce del principio costituzionale di solidarietà, al ta punto che
è in forza di tale principio che si giustifica l’ampliamento del contenuto dell’ordinaria diligenza anche ai
comportamento positivo, non appare implausibili stabilire che tale principio (di solidarietà) non ha più
ragion d’essere a fronte di un inadempimento doloso”.

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AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO 123

Não se quer afirmar que o dolo é irrelevante ou não possa ser levado em
consideração para a doutrina da mitigação, mas que o agir doloso por parte do causador
do dano não justificaria outra atuação atentatória aos interesses da própria sociedade.

Ainda que se possa argumentar que a aplicação da teoria da mitigação se faça


com reservas, o comportamento doloso deve produzir efeitos relativos em relação ao
comportamento omissivo da vítima ao da parte credora, gerando, por exemplo, uma
interpretação restritiva da mitigação. Entretanto, sob qualquer hipótese, não poderia
servir de fundamento a permitir comportamento positivo da parte credora ou vítima que
aumente as consequências danosas 25 (SAPONE, 2007, p. 323).

Finalmente, outro importante ponto do direito italiano é a questão dos custos


da mitigação. A vítima ou parte credora podem empreender esforços para mitigar as
consequências do ilícito e incluir os custos no montante da reparação. Resta saber se
qualquer custo poderá ser repassado. Neste caso, a jurisprudência e a doutrina italiana
utilizam como baliza o prejuízo evitável. Isso significa que, na responsabilidade contratual,
por exemplo, o custo da mitigação poderia ultrapassar o valor da prestação originária 26.

7 CONCLUSÕES

A discussão e a previsão do direito italiano como ônus são importantes para


revelar uma proposta de previsão legislativa para o direito brasileiro.

Como se percebeu, o problema das tentativas de diferenciação dos dois


parágrafos do art. 1227 do Código Civil italiano é que se tenta utilizar o mesmo critério
para tratar de assuntos que são distintos.

A inconveniência de se prever institutos diversos em um mesmo dispositivo


(culpa concorrente e mitigação do prejuízo) é uma importante experiência que pode
também servir de exemplo para eventual disciplina legislativa brasileira. Isso sem falar
que a discussão travada para distinguir os dois parágrafos do art. 1227 ajuda a distinguir
o instituto da mitigação da previsão do art. 945 do CC/02.

Ao se pensar na solução atual e em uma eventual proposta de alteração


legislativa, deve-se levar em conta a inconveniência de se tratar em um mesmo

25
“Cosicché viene a ridursi lo spazio dell’ordinaria diligenza. Si può in questo modo giungere a sostenere che
in caso di dolo l’ordinaria diligenza è da intendersi limitata ad un contegno omissivo. Il dovere di mitigazione
pertanto in caso di inadempimento intenzionale o dettato da motivi speculativi può essere configurato
restrittivamente, vale a dire como onere di non adottare comportamenti positivi che aggravino le
conseguenze dannose e non anche como onere di attivarsi per elidere o attenuare le conseguenze dannose”
(Por isso, para se reduzir o espaço da diligência ordinária. Pode-se, deste modo, vir a argumentar que em
caso de dolo a diligência ordinária deve ser considerada limitada a um comportamento omissivo. O dever
de mitigação, portanto, em caso de inadimplemento intencional ou ditado por motivos especulativos pode
ser configurado de forma restritiva, ou seja, como ônus de não adotar comportamentos positivos que
agravam as consequências danosas e também não como ônus de atuar para elidir ou atenuar as
consequências prejudiciais).
26
Cass. 12/04/1980, n. 2331. Vide também: FRANZONI (1996, p. 127).

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124 AS LIÇÕES DO DIREITO ITALIANO PARA A MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO

dispositivo a mitigação do prejuízo e a culpa concorrente sem desprezar o debate da


solução proposta como ônus jurídico.

A previsão do direito italiano como ônus não significa que o direito


brasileiro, caso venha a disciplinar a matéria de maneira expressa, proceda da mesma
maneira. Pode-se optar pela solução do dever jurídico ou até mesmo pela aplicação da
boa-fé de maneira abrangente.

Outra importante contribuição do direito italiano diz respeito aos


fundamentos para aplicação da teoria. A discussão sobre a causalidade, a boa-fé objetiva,
a possibilidade de mais de um fundamento, como sustenta a teoria eclética, ajudam no
debate do direito brasileiro.

Finalmente, as consequências dos resultados do fundamento e a natureza


jurídica como sanção ou ônus ajudarão a construir o instituto no Brasil.

Em relação à aplicação detalhada do instituto, destaca-se a discussão sobre a


influência do dolo e a probabilidade de êxito na atenuação dos danos evitáveis.

O direito italiano desconsidera a probabilidade de êxito na mitigação. Essa


não parece ser a melhor solução. Ela desconsidera que uma situação pode representar
grande probabilidade de eficácia caso sejam tomadas medidas para atenuar as
consequências danosas e que em outra, ainda que haja atuação específica, o objetivo de
reduzir as consequências danosas dificilmente seria alcançado. O tratamento não
deveria ser o mesmo para as duas situações.

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