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CADEIA DE CUSTÓDIA DO VESTÍGIO DIGITAL: A TECNOLOGIA COMO

POTÊNCIA DEFENSIVA

CHAIN OF CUSTODY OF THE DIGITAL TRACE: THE TECHNOLOGY AS


DEFENSIVE POWER

Matias Hillesheim Stecker1


Felipe Bochi Damian2

RESUMO
Observando as alterações legislativas do processo penal brasileiro e as transformações na
sociedade contemporânea, este artigo analisa a positivação do procedimento da cadeia de
custódia da prova, advinda com a Lei n. 13.964/2019, possuindo como recorte o vestígio
digital e suas particularidades frente a tecnoinvestigação criminal. Desenvolve-se a partir do
uso da tecnologia como uma forma (potência) defensiva no controle da legalidade e da
fiabilidade probatória do caso penal, numa leitura instrumental e garantista, com base na
perspectiva estatal do seu dever ético na legitimidade da persecução penal e do controle do
poder punitivo.
Palavras-chave: cadeia de custódia; prova penal digital; garantismo.

ABSTRACT
Observing the legislative changes in the Brazilian criminal process and the transformations of
contemporary society, this article analyzes the introducing of the evidence chain of custody
procedure, arising from Law n. 13.964/2019, having as a cut the digital trace and its
particularities against the criminal techno-investigation. It develops from the use of
technology as a defensive expression (power) of the legality control and probative reliability
of the criminal case, in an instrumental and guaranteeing reading, based on the state
perspective of its ethical duty in the legitimacy of criminal prosecution and the control of the
punitive power.
Keywords: chain of custody; digital criminal evidence; guarantee.

1 INTRODUÇÃO

Quando falamos de processo penal consequentemente falamos de prova, mas também


de tempo, visto que o processo penal – como parte do Direito – se encontra na sociedade. A
visão de “tempo” e “prova” podem ser percebidas, nos ensinamentos de Aury Lopes Jr, visto

1
Mestrando em Ciências Criminais e Especializando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. Advogado. https://orcid.org/0000-0003-1910-8401. E-mail: steckermatias@outlook.com.
2
Especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado.
https://orcid.org/0000-0003-0863-0157. E-mail: bochidamian@gmail.com.
que o processo penal será “um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido
num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem)
e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã)3”.
Evidente que os efeitos do tempo de uma sociedade da simultaneidade absoluta, onde
nosso mundo se tornou o da presença virtual, sendo possível tal percepção através da
circulação expressiva e relação humana por meio de dados digitais (informações através de
dispositivos eletrônicos4), acabam sendo transferidos, também, ao processo penal,
transformando a urgência – temporalidade do excepcional – em regra5.
Diante da aceleração e urgência, é necessário a estrita observância das regras do jogo6
(devido processo legal), e mais do que isso, um respeito real e profundo aos valores em jogo7.
É importante destacar que os valores em jogo, ou melhor, a lei – especialmente a processual
penal – serve para o mais fraco no processo, de forma que possa garantir a máxima eficácia
dos direitos fundamentais diante do poder e arbitrariedades do Estado frente a persecução
penal8.
Nesse passo, é preciso compreender uma nova realidade que é o uso da tecnologia no
processo penal, tanto com as provas digitais quanto com a tecnoinvestigação. O controle da
legalidade e da fiabilidade probatória se torna imprescindível frente a prova digital, tendo em
vista a sua facilidade de alteração, substituição, manipulação, contaminação ou destruição.
A partir desse fragmento, portanto, observa-se a importância do procedimento da
cadeia de custódia da prova, especialmente do vestígio digital, como possibilidade de efetivar
a igualdade substancial do contraditório e, consequentemente, o controle da fiabilidade
probatória. A tecnologia pode e deve ser uma potência a favor da defesa, como técnica que
permita o controle, a auditabilidade e a verificação da cadeia de custódia da prova digital.

2 CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA

3
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 383.
4
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 347-349.
5
OST, François. Op. Cit. p. 358-360.
6
CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco, Revista di Diritto Processuale, Padova, 1950, v.5, parte I
apud LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 66.
7
IBAÑEZ, Andrés Perfecto. Garantismo y processo penal, Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad
de Granada, n. 2, Granada, 1999, p. 49 apud LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2020. p. 66.
8
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Trad. Andrés Ibáñez et al. Madrid:
Editorial Trotta, 1995. p. 335-336.
O procedimento da cadeia de custódia foi positivado no Código de Processo Penal
brasileiro, através da Lei n. 13.964/2019 (popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”),
estabelecendo critérios – gerais – que auxiliam tanto na teoria quanto na prática, visto que as
normativas técnicas são determinadas pelos competentes órgãos técnico-científicos.
Tal procedimento está, hoje, consagrado no artigo 158-A ao artigo 158-F do Código de
Processo Penal, estabelecendo o seu conceito jurídico9 (CPP, art. 158-A), a forma de
rastreamento do vestígio10 (CPP, art. 158-B), a coleta do vestígio deve ser – preferencialmente
– realizada por perito oficial (CPP, art. 158-C), o recipiente para acondicionamento do
vestígio será determinado pela natureza do material (CPP, art. 158-D) e, também, sobre a
necessidade de uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios (CPP, art.
158-E e art. 158-F).
A cadeia de custódia da prova é a documentação cronológica que registra a sequência
de custódia, controle, transferência, análise e disposição das provas físicas e eletrônicas.
Também documenta cada pessoa que manuseou a prova, na data e hora em que foram
coletadas ou transferidas, bem como o propósito da transferência, de forma que a integridade
dos vestígios seja preservada, evitando-se alteração, substituição, manipulação, contaminação
ou destruição, para que seja admissível em juízo11.
Deriva dos princípios da legalidade e do contraditório, mas também podemos destacar
outros dois princípios que o fundamentam, quais sejam: mesmidade e desconfiança. O
princípio da mesmidade determina que o mesmo vestígio que foi encontrado na cena do
crime, ou produzido posteriormente como potencial prova, seja o “mesmo” que será admitido
e que fará parte do conjunto probatório no processo e, consequentemente, será valorado por
uma decisão judicial, ou seja, para que não haja alteração, ou caso haja, para que seja possível
a identificação dessa não mesmidade do vestígio. Já o princípio da desconfiança
fundamenta-se pela necessidade de demonstração da fiabilidade do elemento probatório,
especialmente das provas produzidas “fora” do processo12.

9
Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e
documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua
posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
10
Art. 158-B. A cadeia de custódia compreende o rastreamento do vestígio nas seguintes etapas: I -
reconhecimento; II - isolamento; III - fixação; IV - coleta; V - acondicionamento; VI - transporte; VII -
recebimento; VIII - processamento; IX - armazenamento; X - descarte.
11
CARIA, Giovanni. Le quatro fasi dell´analisi forense: identificazione, acquisizione, analisi, reporting. In:
IASELLI, Michele (Org.). Investigazioni digitali. Milão: Giuffrè Francis Lefebvre, 2020. p. 6. (Tradução livre).
12
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p.
94-97.
Nesse ponto, observa-se que todas as provas são indiretas, tendo em vista que
consistem em signos do suposto fato13, sendo nesse cenário imprescindível a questão
relacionada a fiabilidade probatória, a qual está diretamente ligada com a admissibilidade do
vestígio ao conjunto probatório, referindo-se também a questão dos controles epistêmicos14.
Interrogar acerca da fiabilidade probatória é constatar a autenticidade da prova e, para além
disso, se sua obtenção/produção fora de forma lícita – dentro dos limites legais. É importante
esclarecer que nada tem a ver acerca do “peso” da prova, em outras palavras, não se trata da
fase de valoração da prova pelo juiz.
Isso porque, em matéria penal, não é possível presumir a legitimidade dos atos de
investigação, ou seja, é necessária a demonstração da autenticidade da prova para que possa
ser reconhecida sua fiabilidade e, posteriormente, sua admissibilidade e sua valoração. A
legitimidade e preservação da cadeia de custódia da prova serve para demonstrar ao juízo que
a prova apresentada para ser valorada é a mesma que diz respeito ao caso penal15.
A legitimidade da persecução penal estatal deve respeitar os limites – constitucionais e
processuais penais – que lhes são impostos, conforme determina o princípio da legalidade. O
processo e a pena (incluindo a “não pena”), para que sejam aplicáveis, estão resguardados
pelas balizas constitucionais e pelas formas processuais penais.
Outrossim, esclarecem Federico Lucio Godino e Christian Andrés Pérez Sasso:
La cadena de custodia forma parte de este debido proceso legal: como uma garantía
del acusado y una obligación del representante de la vindicta pública, ya que, de no
ser así, se expondría a la regla de la exclusión porbatoria. Es decir, la cadena de
custodia no solamente permite confirmar la integridad y conservación de la prueba,
sino también, garantizar la identidad fenomenológica para utilizar esa prueba em el
debate oral16.

A concepção que o procedimento da cadeia de custódia forma parte do devido


processo legal não só é necessário como também traz uma nova mentalidade à teoria da
prova. Isto é, busca fortalecer a fiabilidade probatória e o controle do poder punitivo. É
importante destacar o efeito dissuasório que o procedimento possui, pois serve de desestímulo
às agencias penais quanto a tentação de recorrerem a práticas ilegais para obter a punição17.

13
CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Bogotá: Temis, 2000. p. 3. apud LOPES JR,
Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 384.
14
PRADO, Geraldo. Op cit. p. 88.
15
TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e verdade. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020. p. 81-83.
16
PRADO, Geraldo. Op cit. p. 39.
17
PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das
provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 92.
Nesse campo, ainda, é imprescindível a reflexão de Janaína Matilda e Caio Badaró
sobre o exame da cadeia de custódia da prova ser prejudicial a toda e qualquer decisão
racional sobre fatos no processo penal18. Coerentemente há, também, uma necessidade do
devido aceso ao procedimento à defesa, como consectário lógico da possibilidade de
verificabilidade e de exercer o confronto.
Embora, no Brasil, o tema da cadeia de custódia não seja totalmente novo e a
consequência jurídica da quebra/violação do procedimento não seja a finalidade do presente
trabalho, observa-se que na legislação processual penal brasileira não há o tratamento
explícito sobre.
Dito isso, cabe explicitarmos rapidamente os três entendimentos encontrados e que
podem oferecer a consequência jurídica à quebra/violação.
O primeiro entendimento19, a qual nos filiamos, sustenta que a quebra da cadeia de
custódia implica o tratamento de prova ilícita e de sua inadmissibilidade no processo20. O
segundo entendimento21, defende que a violação se trataria de um tipo de irregularidade/vício
que deve ser tratado no campo da valoração da prova pelo magistrado22. Já o terceiro

18
Ver: BADARÓ, Caio; MATIDA, Janaína. Exame da cadeia de custódia é prejudicial a todas as decisões sobre
fatos. Consultor Jurídico, São Paulo, 13 ago. 2021. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-ago-13/limite-penal-exame-cadeia-custodia-prejudicial-todas-decisoes-fatos.
19
Na jurisprudência: STJ – HC 160.662, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Sexta Turma, DJe de 17/03/2014;
STJ – REsp 1.795.341, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe de 14/05/2019. Na doutrina: PRADO,
Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 128; ROSA,
Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Florianópolis: Empório
do Direito, 2016. p. 244; TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e verdade. São Paulo: Tirant Lo Blanch,
2020. p. 83; EBERHARDT, Marcos. Provas no processo penal: análise crítica, doutrinária e jurisprudencial.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 223; AZEVEDO, Yuri; VASCONCELOS, Caroline Regina
Oliveira. Ensaios sobre a cadeia de custódia das provas no processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório
do Direito, 2017. p. 109; MATILDA, Janaína. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos
riscos de condenações de inocentes. In: Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul [online]
– Ano 11, n. 27 (jul./dez.2020). – Porto Alegre: DPE, 2014. p. 18. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/revista-da-defensoria; entre outros.
20
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as
obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
21
BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES,
Anderson Bezerra. Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D’Placido,
2017. p. 535. Ver também: DALLAGNOL, D, M.; Câmara, J. de A.S.R. A cadeia de custódia da prova. In: A
prova no enfrentamento à macrocriminalidade. (org. Daniel Salgado de Resende e Ronaldo Pinheiro de Queiroz).
Salvador: Juspodivm, 2016.
22
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não
podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação,
ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
entendimento23, entende que a quebra deve possuir o tratamento dado a questão da nulidade
processual relativa e conforme a teoria do prejuízo24.
Em relação a prova digital (vestígio digital) é importante esclarecer que a posição
majoritária é a referida no primeiro entendimento, qual seja, implicará no tratamento de prova
ilícita e de sua inadmissibilidade no processo. Tal entendimento também passou a ser
defendido por Gustavo Badaró, em se tratando da cadeia de custódia da prova digital (vestígio
digital)25, embora se filie ao segundo entendimento relacionado aos outros vestígios.
Em apertada síntese, a cadeia de custódia da prova penal é um conjunto de práticas
que possui como finalidade recolher vestígios encontrados (ou com ligação) ao crime,
custodiar e assegurar a sua mesmidade, para que não sofra nenhuma alteração, substituição,
manipulação, contaminação ou destruição, sendo que todas as ações pertinentes a este
procedimento devem permanecer conectadas entre si, de tal forma que, desde a primeira até a
última fase, não se detecte um vazio ou interrupção do seu rastreamento26.

3 PROVA DIGITAL (VESTÍGIO DIGITAL) E TECNOLOGIA NO PROCESSO


PENAL

Os avanços tecnológicos na sociedade possibilitaram, e não por menos, a introdução


da tecnologia no campo das ciências criminais. Disso, o processo penal é parte e, hoje, se
torna cada vez mais comum o uso de tecnologia tanto no procedimento (processo eletrônico,
audiências virtuais etc.) quanto no campo investigativo (tecnoinvestigação, provas digitais
etc.), em outras palavras, o campo do processo penal se encontra cada vez mais dentro de uma
realidade imaterial.

23
Relacionamos este terceiro entendimento com base na “live” realizada pela Associação do Ministério Público
do Rio Grande do Sul (AMP/RS), nomeada de “Cadeia de custódia de prova penal”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=De8ombCXo98.
24
Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a
defesa.
25
BADARÓ, Gustavo. Os standards metodológicos de produção na prova digital e a importância da cadeia
de custódia. In: Boletim IBCCRIM – n. 343 – Junho de 2021.
26
GUTIÉRREZ SANZ, María Rosa. La cadena de custodia en el processo penal español. Madrid: Thomson
Reuters, 2016. p. 25.
Sinteticamente, como observa Caio Badaró27, “as vantagens promovidas pelo uso
dessas novas tecnologias são acompanhadas de novos problemas e riscos”, continua, “alguns
desses riscos são epistêmicos e decorrem do próprio funcionamento dessas novas tecnologias,
sobre o qual o operador jurídico normalmente pouco ou nada sabe”.
Esta realidade cada vez mais presente traz consigo investigações que utilizam métodos
a partir do uso da tecnologia e, com isso, buscam fontes de provas digitais. O emprego de tais
recursos tendem a violar direitos fundamentais e garantias processuais, visto que a definição
de critérios não acompanha as práticas28.
Um potencial exemplo são os aparelhos telefônicos (smartphones), especialmente as
conversas no aplicativo WhatsApp29, sempre presentes nas requisições de busca e apreensão
ou acesso, assim como nas decorrentes prisões em flagrantes.
A partir dessas pistas, cabe trazermos alguns pontos acerca da categoria prova digital,
para que, de alguma forma, possamos especificá-la e conceituá-la.
Para Denise Vaz, a prova digital são “dados em forma digital (no sistema binário)
constantes de um suporte eletrônico ou transmitidos em rede de comunicação, os quais
contêm a representação de fatos ou ideias30”. Ainda, traz quatro características da prova
digital e que merecem a observação, sendo: 1) a Imaterialidade; 2) a Volatilidade; 3) a
Suscetibilidade de Clonagem; e 4) a Necessidade de Intermediação31.
Observa-se que a imaterialidade é uma característica fundante da prova digital, tendo
em vista que ela se dá por dados em bits sequenciais e embora exista independente do suporte
físico (eletrônico), ela necessita de um transportador, mas não se resume nem se limita a tal
suporte. Ainda, é necessário apontar a volatilidade e fragilidade dela, tendo em vista que há

27
MASSENA, Caio Badaró. Inteligência artificial e prova penal. Trincheira Democrática – Boletim Revista do
Instituto Baiano de Direito Processual Penal, ano 2, n. 6, Salvador, IBADPP, p. 28-32, dezembro de 2019.
Disponível em http://www.ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2020/01/BOLETIM-DEZ-WEB-V4.pdf. p.
31.
28
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons,
2021. p. 176.
29
Ver: EBERHARDT, Marcos; PIPPI, Marcos. Prova criminal: WhatsApp e cadeia de custódia. Consultor
Jurídico, São Paulo, 13 out. 2021. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-out-13/eberhardt-pippi-prova-criminal-whatsapp-cadeia-custodia.
30
VAZ, Denise Provasi. Provas digitais no processo penal: formulação do conceito, definição das
características e sistematização do procedimento probatório. Tese de doutorado. Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. p. 63.
31
Ibidem. p. 67-70.
uma facilidade de desaparecimento, bem como para a grande possibilidade de contaminação
dos dados que se pretende coletar32.
Diante dos riscos citados, atentando-se para a impossibilidade do uso de analogias do
tratamento dado para as provas físicas, é imperioso que, além de requisitos formais, a cadeia
de custódia da prova penal digital seja levada a sério, com as devidas proporções, como forma
de garantir e preservar a fiabilidade probatória (fonte da prova)33, a fim de possibilitar o
contraditório e a sua admissibilidade ou não no processo.
Quando se trata da cadeia de custódia do vestígio digital, cabe observar que se tratará
de duas etapas, ou melhor, devem incidir duas cadeias de custódias. Uma sobre o
dispositivo/suporte físico (eletrônico) e outra sobre os próprios dados/informações (vestígios
digitais)34.
Nesse ponto, evidente que as medidas de caráter técnico são imprescindíveis para
assegurar a integridade e garantir a autenticidade do vestígio digital, tendo em vista que sem
tais cuidados estaremos diante de informações sem valor probatório. O cálculo hash e a
criação de cópia lógica e cópia espelho são algumas destas medidas de caráter técnico e que
asseguram a integridade e garantem a autenticidade, a fim de possibilitar a
verificabilidade/auditabilidade, possibilitando uma forma de contraditório35.
Ademais, é para o vestígio digital que a cadeia de custódia da prova deve ter o seu
efetivo respeito, pois, devido a suas características, possui facilidade na alteração,
substituição, manipulação, contaminação ou destruição. Levar a sério a sensibilidade do
vestígio digital é uma das grandes demandas do momento, buscando evitar – ou pelo menos
diminuir – a violação dos direitos fundamentais do indivíduo e da legalidade da persecução
penal, os valores em jogo.
Entretanto, é importante observar a crítica abordada em relação a definição legislativa
muito estrita dada a categoria “vestígio”, tendo em vista não abordar expressamente objetos
imateriais, mas que, com toda a certeza, também devem ser reconhecidos como “vestígios”

32
MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. Tecnoinvestigação criminal: entre a proteção de dados e a
infiltração por software. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 137.
33
Ibidem. p. 137-138.
34
POLANSKY, Jonathan. Garantías constitucionales del procedimento penal en el entorno digital. Buenos
Aires: Hammurabi, 2020. p. 168.
35
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons,
2021. p. 193.
que se relacionam à infração penal36, ou seja, as provas digitais também possuem a
abrangência do instituto processual da cadeia de custódia e devem possuir a sua preservação.
A preocupação acerca da digital evidence (vestígio digital37) é possível observar que as
diretrizes e orientações da Internet Engineering Task Force (IETF) estabelecem que o
“vestígio digital” precisa ser: 1) admissível (em consonância com as regras legais que validem
sua admissão em juízo); 2) autêntico ou íntegro (ser o mesmo vestígio coletado originalmente
no local do evento); 3) completo (permitir a narrativa de todo o evento, e não somente uma
visão particular do observador); 4) confiável (ter a capacidade de gerar crenças verdadeiras); e
5) crível (compreensível pelos seus destinatários)38.
No Brasil, embora o Código de Processo Penal não trate especificadamente, podemos
constatar a abordagem da cadeia de custódia da prova digital pelas diretrizes estabelecidas
pela ABNT (ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013), e, também, pelo Ministério da Justiça
(Procedimento Operacional Padrão. Perícia Criminal. p. 87-91). Cabe mencionar a excelente
sugestão do Grupo de Trabalho de apoio à Comissão Especial do Código39, a qual traz
delimitações e especificações acerca especificadamente da cadeia de custódia da prova digital.
Como adverte Geraldo Prado, “a preservação das fontes de prova é concebida como
remédio jurídico-processual contra o desequilíbrio inquisitório, caracterizado pela seleção e
uso arbitrário de elementos pelas agências repressivas40”.
A título sumário, como defendido anteriormente e somada as constatações sobre as
particularidades do vestígio digital, se constatada a quebra/violação da sua cadeia de custódia,
impõe-se o tratamento de prova ilícita, sua não admissibilidade e sua exclusão do processo,
bem como as que dela decorrem41.

36
MATILDA, Janaína. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de
inocentes. In: Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul [online] – Ano 11, n. 27
(jul./dez.2020). – Porto Alegre: DPE, 2014. p. 19. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/revista-da-defensoria.
37
Acerca do termo, acreditamos que, no Brasil, é necessário que tratemos como “vestígio digital”, tendo em vista
a crítica que o Prof. Rui Cunha Martins traz sobre a questão da “evidência”. Ver: CUNHA MARTINS, Rui. O
ponto cego do direito: the Brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 3.
38
IETFC. RFC 3227 – Guidelines for Evidence Collection and Archiving. 4.1 Chain of Custody. Disponível
em: https://www.ietf.org/rfc/rfc3227.txt.
39
MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan; SULOCKI, Victória-Amália de Barros Godawa; PRADO,
Geraldo; CHOUKR, Fauzi Hassan (coord.). Novo Código Processual Penal: sugestões do Grupo de Trabalho de
apoio à Comissão Especial do Código. Processo em audiências. Disposições transitórias. Brasília: [s.n.], 2020. p.
31. Disponível em: https://www.professorfauzi.pro.br/grupo-de-trabalho-processo-penal.
40
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons,
2021. p. 191.
41
Ibidem. p. 204.
Para além do estabelecimento de diretrizes para o procedimento, é imprescindível o
debate e o uso da tecnologia para a racionalização da cadeia de custódia42, especialmente do
vestígio digital, mas a tecnologia como potência defensiva.

4 CONCLUSÃO

Estes breves apontamentos não esgotam o tema, há muito para se tratar, porém,
buscamos de alguma forma contribuir para o debate, de forma a entender que a tecnologia já
está inserida no campo criminal e necessitamos compreender este fenômeno, especialmente o
uso da tecnologia como potência a maximizar a eficácia dos direitos fundamentais e as
garantias processuais do acusado frente a persecução penal.
O marco legislativo (Lei n. 13.964/2019) com a positivação da cadeia de custódia no
código de processo penal brasileiro introduz não apenas uma regra processual, um
procedimento a ser respeitado, mas, principalmente, uma nova mentalidade e método a ser
incorporado na teoria da prova. Isso quer dizer, o cuidado e o rastreamento do vestígio
possuem importância de regra processual penal, a partir dos determinados procedimentos
utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio, especialmente o
digital, de forma que não ocorra qualquer alteração, substituição, manipulação, contaminação
ou destruição.
Consequentemente, tal procedimento se torna ainda mais relevante dentro da
sociedade digital em que vivemos, esta que introduz e gera efeitos, também, nos casos penais.
O vestígio digital pode se tornar (ou já se tornou) o elemento principal no conjunto probatório
dos processos penais. É diante da volatilidade e fragilidade dos vestígios – mormente o digital
– que a cadeia de custódia da prova se fundamenta, de forma a assegurar a integralidade
(princípio da mesmidade) e garantir a autenticidade do vestígio, por meio do devido “registro
histórico”, desde o seu reconhecimento até o descarte.
A cadeia de custódia é um instrumento defensivo pelo qual a defesa pode exercer
efetivamente o contraditório, a fim de averiguar a fiabilidade probatória da acusação e a
legalidade dos atos realizados na investigação. O acesso integral é imprescindível à defesa,

42
Ver: CANI, Luiz Eduardo; ROSA, Alexandre Morais da. Podem os algoritmos racionalizar a cadeia de
custódia digital. Consultor Jurídico, São Paulo, 2 abr. 2021. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-abr-02/limite-penal-podem-algoritmos-racionalizar-cadeia-custodia-digital.
uma verdadeira garantia processual, não só sustentada pela ampla defesa e pelo contraditório,
mas, também, pela paridade de armas, especialmente no vestígio digital.
O presente trabalho não tem por finalidade a resposta ou a identificação de uma
tecnologia que possa dar conta da complexidade que envolve a cadeia de custódia do vestígio
digital, mas possibilitar e instigar o debate de uma “racionalização” por vir.
Cumpre destacarmos a paridade de armas dentro da cadeia de custódia das provas
digitais, visto que o acesso integral e o contraditório – possível – sem uma potência
tecnológica igualitária, entre acusação e defesa, é apenas ficção. O processo penal como
ficção é um esvaziamento democrático.
No pretendido Estado Democrático de Direito brasileiro, faz-se fundamental o
cumprimento das regras processuais penais, a concretização de um sistema processual de
linha acusatória se faz com o devido respeito aos direitos fundamentais consagrados em nosso
ordenamento constitucional. Entretanto, é evidente que não se pode esquecer da matriz
processual penal brasileira. A superação da mentalidade inquisitória passa pela resistência e
crítica constante.
Concluindo, a tecnologia pode (e deve) servir como potência defensiva, como técnica
que possibilita o acesso e análise de forma igualitária, ou seja, que se tenha disponível a
mesma ou similar tecnologia (utilizada pela acusação) à defesa.

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