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LAÇOS FAMILIARES E DE COMPADRIO ESCRAVO NUMA FREGUESIA

PIAUIENSE (SÃO RAIMUNDO NONATO, SÉCULO XIX)

Déborah Gonçalves Silva


(Doutoranda em História/UFPA)
Antonio Otaviano Vieira Júnior (orientador)

Escravidão. Família. Compadrio

Nosso objetivo, neste texto, ​consiste em destacar as relações familiares e de


parentesco envolvendo escravos, livres e libertos na Freguesia de São Raimundo
Nonato, localizada no sudeste do Piauí, durante a segunda metade do século XIX. ​Por
meio da análise serial dos registros eclesiásticos de batismo, matrimônio e óbito (fontes
principais), e do cruzamento destas com as informações constantes em outras fontes,
tais como os inventários ​post-mortem, censos e levantamentos populacionais situados
no período em estudo, buscamos investigar de que maneira homens e mulheres escravos
estabeleceram relações familiares e de parentesco entre si e com indivíduos livres e
libertos nessa região.
Com base nas informações individuais e específicas constantes na documentação
analisada, identificamos as tendências em relação as uniões matrimoniais entre cativos
de diferentes propriedades, as preferências por padrinhos e madrinhas de condições
jurídicas e sociais distintas e a formação de famílias escravas.
O recorte temporal analisado compreende aos anos de 1837 a 1886, um
momento singular, especialmente devido às leis instituídas no período que avançavam
mesmo que de forma gradual para a abolição da escravidão. Período marcado por
fatores que, no contexto nacional (o fim do tráfico de africanos, a Lei do Ventre Livre, a
intensificação do tráfico interprovincial) e regional (como as fortes secas que atingiram
a região no início da década de 70), foram responsáveis por provocar algumas
transformações na vida social e material desses indivíduos e que, hoje, possibilitam a
análise das implicações causadas pela conjuntura da época para a vida da população
dessa região.
Tomamos, como contexto espacial, a Vila de São Raimundo Nonato, hoje atual
Município homônimo, localizado no Sudeste do Estado do Piauí. Durante o século XIX,
a região em estudo caracterizou-se por uma produção voltada, principalmente, para o
mercado interno, através da agricultura de subsistência e da pecuária. Além disso, é
necessário salientar que essas características tornaram o modelo de produção peculiar
em relação às regiões de grandes plantéis voltadas essencialmente para o mercado
externo, e refletiram diretamente no regime escravista local, marcada por uma estrutura
de posse escrava com pequeno número de cativos por propriedade.
De acordo com o Relatório do Presidente da Província João José de Oliveira
Junqueira, datado de 1858, existiam 284 fazendas na região de São Raimundo Nonato,
1
sendo que a maioria dos inventariados possuía mais de uma posse de terra na região.
Além disso, a análise das informações contidas nos inventários, indica propriedades que
possuíam de 6 a 10 escravos, outras em menor número com 11 a 20 cativos, porém a
maioria dos escravos concentrava-se em pequenos sítios e fazendas com até 5 cativos.
A partir da análise de um conjunto de fontes, identificamos que a reprodução
natural entre a população escrava de São Raimundo Nonato pode ter sido utilizada
como um mecanismo para a manutenção da posse escrava, visto que a partir da
proibição do tráfico atlântico ocorreu a intensificação do tráfico interprovincial e,
consequentemente, o aumento da venda de escravos das regiões de economia de
2
subsistência para áreas voltadas para a agricultura exportadora .

A família escrava em São Raimundo Nonato

Estudar o casamento de escravos torna-se um grande desafio quando se


considera a limitação das fontes históricas, pois o registro de casamento só ocorria
quando este era oficializado pela igreja. Nesse caso, as uniões consensuais entre cativos
não eram reconhecidas e consequentemente, não havia registro documental das mesmas.
No esforço de compreender a dinâmica do matrimônio entre escravos, buscamos
nos livros de registros de casamento da Paróquia de São Raimundo Nonato, datados de

1
Pessoas falecidas com bens a serem arrolados em inventários.
2
Sobre essa possibilidade ver: GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa economia
não-exportadora: Paraná 1800-1830. Revista de Estudos Econômicos. São Paulo: 17 (2), 1987.
1837 a 1886, informações a respeito da oficialização do matrimônio. Assim como, a
partir do cruzamento desses dados com outras fontes, - inventários ​post-mortem e
assentos de batismo -, identificar a existência dessas famílias.
As alianças matrimoniais podem ser utilizadas pelos diferentes grupos sociais,
como estratégia de ampliação das redes de relações, bem como um arranjo de
sobrevivência. Para Daniel Barroso (2012, p.66), “casar-se poderia ser,
concomitantemente, um mecanismo de inserção social e uma estratégia de
sobrevivência, sem que ambas estas facetas fossem, todavia, antagônicas entre si”.
De acordo com o Censo de 1872, do total de 526 escravos em São Raimundo
Nonato, 228 eram homens e 298 mulheres. Nota-se que 57% dos escravos da região
eram do sexo feminino. O censo também apresenta 12 escravos como casados naquele
período, sendo 04 homens e 08 mulheres. É importante destacar que, apenas as uniões
oficializadas eram reconhecidas.
Os dados da tabela abaixo demonstram uma variação em relação ao matrimônio
de livres e escravos entre os períodos de 1837 e 1886 em São Raimundo Nonato. Dos
1.732 registros de matrimônio, 96,3% envolvem pessoas livres e 3,7% de escravos. É
preciso considerar que devido as barreiras que limitavam o matrimônio, como os custos
e a apresentação de licenças de impedimento, os escravos tinham menos acesso a
oficialização da união do que a população livre. Além disso, a desproporcionalidade
entre número de homens e de mulheres e os plantéis com pequena posse escrava (média
entre dois e três escravos por propriedade) pode ter sido também um fator que limitava
o estabelecimento desses laços.
TABELA 01
PARTICIPAÇÃO DE LIVRES E ESCRAVOS NOS CASAMENTOS NA FREGUESIA DE
SÃO RAIMUNDO NONATO (1837-1886)
Casamentos Casamentos Total
Período Escravos % Livres % no Período %
1837 - 1847 16 (0,9) 213 (12,3) 229 (13,2)
1848 - 1858 15 (0,9) 359 (20,7) 374 (21,6)
1859 – 1869 10 (0,6) 430 (24,8) 440 (25,4)
1870 – 1886 23 (1,3) 666 (38,5) 689 (39,8)
TOTAL 64 (3,7) 1668 (96,3) 1732
Fonte: Livros de registros paroquiais de casamento da Freguesia de São Raimundo Nonato-PI
Quanto a sazonalidade das uniões matrimoniais de escravos, para o período
estudado, estas ocorreram com maior incidência entre os meses de janeiro e julho. A
predominância dos dois meses, podem estar relacionadas às questões religiosas e de
produção agrícola, respectivamente.
O mês de janeiro surge como o preferencial quando se trata das uniões
matrimoniais de escravos, possivelmente por se tratar do mês posterior ao período de
restrição para celebração de matrimônios, ou seja, do primeiro Domingo do Advento até
o dia da Epifania, seis de janeiro. Julho, por sua vez, marca o período posterior a
colheita dos gêneros agrícolas, provavelmente seria um mês propício para o casamento.
Essa questão da sazonalidade das uniões matrimoniais ainda necessita de maiores
estudos, porém, é possível perceber que tanto para livres, como para escravos, o
calendário litúrgico e o período de produção e colheita dos gêneros agrícolas podiam de
alguma maneira influenciar na escolha dos nubentes sobre o período em que deveriam
contrair o matrimônio.
A documentação sugere que as dificuldades em sacramentar as uniões também
podem estar relacionadas à posse escrava nos pequenos plantéis, isto é, com um número
reduzido de escravos nas propriedades, as condições para a constituição de famílias e de
garantia da estabilidade, eram menores. Stuart Schwartz (1998) e Robert Slenes (1999),
explicam que o casamento entre escravos era mais comum nos grandes plantéis e que,
os cativos das pequenas propriedades também teriam menor possibilidade em
estabelecer laços através do casamento, em razão da dificuldade em casar com escravos
de outras propriedades. “Conforme vai aumentando os tamanhos dos plantéis se nota
uma diminuição dessa participação e consequente aumento dos pais casados e viúvos e
dos filhos, ou seja, as famílias estão mais representadas em plantéis maiores” (SILVA,
2003, p. 58).
Para Florentino e Goés (1997, p.177), o casamento foi uma maneira utilizada
pelos cativos para evitar a separação destes, bem como de seus filhos. Sheila Faria
(1998, p. 304), também considera que: “casar-se significava buscar uma estabilidade
familiar e um respeito social, [...] estratégico, no caso de escravos, forros e mestiços”. A
tabela abaixo apresenta os arranjos matrimoniais mistos, isto é, envolvendo nubentes de
diferentes condições jurídicas.
TABELA 02
ARRANJOS MATRIMONIAIS ENTRE ESCRAVOS, LIVRES E LIBERTOS NA
FREGUESIA DE SÃO RAIMUNDO NONATO (1837-1886)
Escravo Liberto Livre Liberto
Casais + + + +
Escravo Escravo Escravo Liberta Total
Número de casamentos 45 11 2 6 64

Porcentagem (%) 70,3 17,2 3,1 9,4 100,0


Fonte: livros de registros paroquiais de casamento da Freguesia de São Raimundo Nonato-PI

A tabela acima reúne algumas informações a respeito dos arranjos matrimoniais


envolvendo escravos, livres e libertos e evidenciam que os escravos se envolveram com
indivíduos de mesma condição jurídica, em sua maioria, escravos pertencentes do
mesmo proprietário ou de familiares deste. Mas também ocorreram arranjos
matrimoniais mistos, ou seja, libertos casaram-se com libertas e com escravas; assim
como indivíduos livres casaram-se com escravas.
Ao tratar do trabalho escravo e dos sacramentos batismais e matrimoniais na
Província do Piauí, Miridan Falci (1995) observou a formação de três tipos de família
3
escrava: nuclear, matrifocal e solitária entre os escravos do sertão do Piauí. Mas que
tipo de família predominava entre os escravizados de São Raimundo Nonato?
Atualmente, já não se discute sobre a existência ou não da família escrava,
principalmente porque estudos recentes têm mostrado que a estruturação familiar de
escravos foi uma realidade no contexto escravista. Compreender o seu significado para
cativos e senhores tem sido a grande questão nos estudos da escravidão. Entender quais
as estratégias utilizadas pelos cativos quanto às alianças de parentesco e, especialmente,
qual o significado da família para cativos e senhores faz parte do conjunto de questões
pertinentes a essa temática.

Experiências de famílias escravas e de compadrio

3
De acordo com Antonia Mota, as famílias nucleares são entendidas como as que são formadas pelo casal
e um ou mais filhos. Aquelas formadas apenas pelo casal, são as famílias solitárias. As famílias
matrifocais, apresentam apenas a mãe e seus filhos (MOTA, 2012).
Ao analisarmos a tabela que segue (tabela 3), notamos que a ilegitimidade entre
os nascimentos de filhos de escravas em São Raimundo Nonato era expressiva. Pouco
mais de 90% dos rebentos foram considerados filhos ilegítimos. Mas até que ponto o
alto índice de filhos naturais pode revelar a realidade das uniões entre escravos?
Miridan Falci (1995, p. 77), ao analisar as taxas de natalidade para o século XIX, no
Piauí, identificou que, praticamente, 100% dos escravos eram ilegítimos, concluindo
que essa alta taxa não se fazia por “casamento legítimo”, porém a autora não descarta a
possibilidade de permanência das uniões consensuais envolvendo escravos.

TABELA 3
FILIAÇÃO LEGÍTIMA OU NATURAL DOS BATIZADOS. PARÓQUIA DE SÃO
RAIMUNDO NONATO, 1871-1888
FILIAÇÃO NÚMEROS PORCENTAGEM (%)
ABSOLUTOS
Legítima 23 6,6
Natural 326 93,4
Total 349 100
Fonte: Livro de registro de batismo de filhos de escravos de São Raimundo Nonato – PI (1871-1888).

Se as taxas de ilegitimidade entre escravos eram elevadas, para a população livre


ocorre o contrário, os números de filhos naturais eram modestos. Devemos considerar
que essa questão da ilegitimidade é algo que deve ser relativizada, principalmente se
analisarmos algumas situações que giram em torno do cotidiano desses sujeitos
escravizados. Em primeiro lugar, podemos supor que, em alguns casos, o rebento era
filho de pais pertencentes a diferentes senhores, residindo em fazendas diferentes, o que
nos leva a “imaginar as dificuldades que podiam surgir quando este tipo de união
ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre tratamento humano e
direitos de propriedade” (SCHWARTZ, 1988, p. 313). Nesse caso, inúmeras questões,
além do fato de não terem oficializado a união, poderiam atuar como empecilho para a
presença do pai do rebento no ato de batismo do seu filho.
FIGURA 1 – Família do casal de cativos Zacarias e Maria.

O primeiro filho do casal de escravos Zacarias e Maria, foi Raimunda, nascida em


dezesseis de fevereiro de 1872, foi levada a pia batismal em vinte e um de março do
mesmo ano. Raimunda teve como padrinhos um casal de condição jurídica livre,
Jerônimo de Sousa Nogueira Boson e Lima e Francisca Adelino Lopes de Sousa Lima,
ambos possivelmente parentes do proprietário do casal, pois ocorre repetição de
sobrenomes em três casos de apadrinhamento. Pouco mais de um ano depois, nasceu
Joaquina, a segunda filha do casal que foi batizada em maio de 1873 por pessoas de
condição livre, Licurgo de Paiva e Maria Constantina Boson e Lima.
As duas últimas filhas do casal receberam o nome de Maria. A primeira nasceu
em dezembro de 1876 e foi batizada em fevereiro de 1877, tendo como padrinho o
proprietário de escravos Luís Correia Lima e, como madrinha, a escrava Laurinda,
cativa de Luís Correia Lima. Essas informações revelam que havia possibilidade de
estabelecer relações de parentesco com pessoas livres ou escravas de diferentes
propriedades e, sobretudo, que a escolha de compadres e comadres partia de uma rede
de relações e de interesses bem mais complexas, visto que para a mesma família, por
exemplo, ocorrem relações de parentesco entre pessoas de condições jurídicas diferentes
e, em alguns casos, envolvendo o senhor do próprio escravo. A quarta filha do casal,
que também recebeu o nome de Maria, nasceu em abril de 1879 e foi batizada dois
meses depois pelo casal Constatino de Souza Nogueira Boson e Lima e Guilhermina
Constantina Boson e Lima, ambos eram pessoas livres e proprietários de escravos.
Consideramos que havia o interesse por parte do casal Zacarias e Maria de
estabelecer laços com pessoas de condição jurídica diferente, nesse caso, a rede de
parentesco com pessoas livres esteve praticamente concentrada na família Boson e
Lima. Não é possível afirmar sobre as razões destas escolhas, mas certamente havia um
jogo de interesses tanto por parte dos cativos como pelo seu proprietário ou ainda pelos
padrinhos, o que se nota é que os Boson e Lima possuíam relações de parentesco com o
Pe. Sebastião Ribeiro Lima, e que isso pode ter influenciado o casal de escravos na
escolha dos padrinhos de seus filhos.
Possivelmente, entre os interesses contidos no estabelecimento de relações de
compadrio com pessoas livres, estava o de proteção, pois “[...] a possibilidade da
separação de familiares através da venda, na segunda metade do século XIX, existia e
amedrontava principalmente os escravos que viviam em pequenas propriedades”
(ROCHA, 1999, p. 127). Tecer essas redes de parentesco tanto com outros escravos,
como pessoas livres, proporcionava ampliar o raio de proteção e solidariedade.
No que concerne à única madrinha com a mesma condição jurídica do casal,
observamos a estratégia de garantir a manutenção das relações existentes entre os
mesmos e, ao mesmo tempo, a possibilidade de que seus filhos pudessem ser ajudados
pela comadre Laurinda, caso precisassem. Essa tentativa pode ser percebida também na
escolha das testemunhas do casamento do casal, ambas eram escravos e pertencentes a
outros proprietários de diferentes propriedades, ocorrendo, portanto, uma tentativa de
ampliação das redes de solidariedade entre a comunidade escrava nos dois casos.
A cativa Maria, por exemplo, também apadrinhou três rebentos, filhos de
escravas que pertenciam a diferentes proprietários e que viviam em outras propriedades,
o que demonstra a possibilidade que o cativo tinha de ultrapassar as barreiras da
propriedade em que vivia e estabelecer relações com outros cativos para além dos
limites da fazenda. Como destacam Florentino e Goés “[...] na verdade, o que se
buscava era aumentar o raio social das alianças políticas e, assim, de solidariedade e
proteção, para o que se contava inclusive com ex-escravos, escravos pertencentes a
outros senhores e, em casos eventuais, com alguns proprietários”
(GOÈS;FLORENTINO, 1997, P. 90).
Outro caso de formação familiar e estabelecimento de parentesco é o da cativa
Amância, escrava de Jorge Ferreira de Oliveira, proprietário da Fazenda Tigre. Além de
Amância, foram encontrados registros de mais quartro cativas pertencentes a Jorge
Ferreira de Oliveira e todas elas possuíam, em média, cinco filhos cada uma. Amância
batizou seis filhos entre 1873 e 1884, sendo que dois destes eram do sexo masculino e
os demais do sexo feminino.
Nesse caso, a família de Amância seria considerada matrifocal, pois a formação
desta está em torno apenas da figura da mãe e dos filhos, em razão da ausência da
paternidade dos rebentos nos assentos de batismo. Porém, é necessário ressaltar, mais
uma vez, que a ausência do pai nos registros de batismo está relacionada principalmente
ao não reconhecimento pela igreja das relações consensuais existentes entre os pais das
crianças, o que não significa que a cativa Amância não possuía um companheiro.
Entretanto, outras questões podem explicar a ausência da paternidade nos
registros. Uma delas diz respeito a separação do casal principalmente por venda,
considerando a possibilidade de venda de cativos do sexo masculino em grande número
para outras regiões do país, principalmente para a região Sudeste. Destarte, ocorre a
impossibilidade de afirmar a presença da parternidade, visto que não foi possível
localizar o registro de casamento de Amância, pois pode ser que a mesma não tenha
oficializado a união com o pai das crianças, se for considerado o fato de que muitos
proprietários de escravos não apoiavam o casamento a fim de não enfrentarem
problemas com a lei, caso desejassem, futuramente, vender um dos cônjuges.
Além da formação familiar, o parentesco ritual estabelecido através do batismo
pode ser investigado no sentido de identificar a utilização do mesmo como uma
estratégia de sobrevivência, mobilidade social e proteção. A documentação evidencia a
predominância de pessoas livres para apadrinharem os filhos das cativas, sendo que
poucos são os registros em que libertos apadrinham filhos de escravos e nenhum caso
(do escopo documental utilizado por esta pesquisa) em que um escravo serve como
padrinho de filhos de libertos ou livres.
Para o recorte temporal estudado em São Raimundo Nonato, grande parte das
cativas preferia pessoas livres ou libertas para apadrinharem os seus filhos, como foi o
caso da escrava Amância (figura 2).
FIGURA 2 – Família da Cativa Amância.

Essa maioria de padrinhos e madrinhas livres é evidente no caso da cativa


Amância. Mas, quais foram as estratégias utilizadas por Amância quanto ao parentesco
ritual estabelecido pelo batismo? Dos seis filhos batizados, apenas dois tiveram, pelo
menos, um dos padrinhos na condição de escravo. João, cabra, nascido em março de
1875, foi batizado, em junho de 1877, pelo escravo Manoel da Cruz e por Savina Maria
de Jesus, de condição livre. Manoel da Cruz era cativo de Antonio da Costa Passos,
proprietário da Fazenda Caldeirão e casado desde outubro de 1852 com Savina Maria.
Percebemos, nesse caso, uma aliança de ​parentesco através do compadrio que envolvia
escravos e livres e acreditamos que, ao escolher o casal de padrinhos de João, a mãe do
rebento procurou ampliar o raio de relações existentes entre eles e, principalmente,
garantir a proteção do filho, caso necessitasse.
Boaventura, parda, nascida em 1882, foi batizada em outubro do mesmo ano e
teve como padrinho Manoel de Araújo, de condição jurídica livre, e, como madrinha, a
escrava Emília. O interessante em relação às escolhas dos padrinhos, é que mesmo os
padrinhos escravos pertenciam a outras propriedades e, portanto, eram cativos de outros
senhores. Amância não estabeleceu o compadrio com nenhuma das quatro cativas que
também viviam na mesma propriedade, ou seja, seus filhos não foram apadrinhados
pelas outras cativas da propriedade e Amância também não serviu como madrinha de
nenhuma das crianças que eram filhas das demais escravas. Pode ser que todas as
escravas, inclusive Amância, preferiram estabelecer alianças de parentesco fora da
propriedade onde viviam, fortalecendo os vínculos com pessoas de mesma condição
social e, portanto, com interesse em garantir os laços de solidariedade entre os mesmos.
E no caso dos padrinhos livres? O que Amância esperava ao estabelecer o
compadrio com pessoas de condição jurídica diferente? Maria, a primeira filha de
Amância, nasceu em 1873 e também teve como padrinhos um casal de condição jurídica
livre, Antônio José dos Passos e Ana Maria do Espírito Santo, no registro de casamento
4
dos mesmos, Antônio é citado como proprietário .

O casal Nicolau Carlos da Mota e Idalina Maria da Conceição, ambos livres,


foram os padrinhos do rebento Agostinho e levaram o afilhado a pia batismal em junho
de 1877. Evarista, nascida em 1884, teve como padrinhos um casal de livres, Gervásio
Vicente de Oliveira e Emília Maria de Oliveira. Em agosto de 1880, Maria, a quarta
filha da cativa Amância, foi apadrinhada por pessoas livres, Vitoriano Pereira de Araújo
5
e Maria das Neves, costureira.

Obviamente, que além da desejada proteção de sua família, a cativa Amância


possuía anseios em relação à conquista de algumas vantagens, como sua liberdade ou
uma possível mobilidade social, visto que “[...] para os cativos, possuir um padrinho ou
compadre livre nas imediações significava vatagens que podiam sobrepujar as
associações internas ou desejo por laços familiares mais amplos” (SCHWARTZ, 1998,
p. 332).
Casos como o do casal Zacarias e Maria e da família de Amância saltam aos
olhos na documentação, revelando a existência e manutenção das famílias e de suas
redes de sociabilidade no sertão piauiense do século XIX.

4
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo, nº 14.
5
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo, nº 14
Considerações Finais

Apesar das limitações das fontes, que dificultam acompanhar a trajetória dos
padrinhos, em alguns casos, o estado civil e a profissão são mencionados nos registros.
Essas informações podem ajudar a compreender que tipo de expectativas essas mães
cativas possuíam em relação à escolha de compadres e comadres. É possível que um dos
significados dessas estratégias para estabelecer relações de parentesco esteja relacionada
à posição social que os padrinhos ocupavam naquele momento, pois, além de serem
livres, estes possuíam alguma profissão ou mesmo eram proprietários de terras.
A preferência por compadres de condição sociojurídica diferente, pode ter sido
também uma medida de proteção. Mesmo que as crianças fossem livres em
consequência da Lei de 1871, havia os riscos de serem separadas de suas mães que
ainda eram escravizadas pelos seus senhores. Nesse caso, os padrinhos, que pelas
normas da igreja seriam os “pais espirituais” da criança, poderiam atuar nessa rede de
proteção e solidariedade, caso fosse necessário.
O compadrio foi um importante mecanismo na formação das redes de relações
sociais e familiares no sertão do Piauí na segunda metade do século XIX. Servindo
como um elemento de inserção desses sujeitos em outros grupos sociais e também
permitindo experiências com outros escravos para além do plantel a que pertenciam.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Daniel Souza. ​Casamento e compadrio em Belém nos meados do


Oitocentos. ​Dissertação (Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará,
2012.

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no norte de Minas Gerais no século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1994, p. 127
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1826-1888. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995.

FARIA, Sheila de Castro. ​A Colônia em Movimento: ​fortuna e família no cotidiano


colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

GOÉS, José Roberto Pinto de. FLORENTINO, Manolo. ​A paz das senzalas: ​famílias
escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 – 1850. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997, p. 90.

GUTIÉRREZ, Horácio. ​Demografia escrava numa economia não-exportadora​: Paraná


1800-1830. Revista de Estudos Econômicos. São Paulo: 17 (2), 1987, p. 297-314.

MOTA, Antonia da Silva. ​As famílias principais:​ redes de poder no Maranhão colonial.
São Luís: EDUFMA, 2012.

ROCHA, Cristiany Miranda. ​Histórias de Famílias Escravas em Campinas ao longo do


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SCHWARTZ, Stuart. ​Segredos Internos:​ engenhos e escravos na Sociedade Colonial:


1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia Das Letras/CNPq, 1988.

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classificação dos escravos (1874-1877). (Monografia). Departamento de Economia,
USP: Ribeirão Preto, 2003.

SLENES, Robert W. ​Na Senzala uma Flor:​ esperanças e recordações na formação da


família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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