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1.

ª Bienal de
ANOS DE CDB
Jurisprudência em

Direito da Medicina

Cadernos da Lex Medicinae


Lex Medicinae Supplements 1
Cadernos da Lex Medicinae

1.ª Bienal de Jurisprudência


em
Direito da Medicina

a tas
“Vulnerabilidade e Direito” / Instituto Jurídico da Facul-
dade de Direito da Universidade de Coimbra, integradas no
Projecto “Desafios sociais, incerteza e direito”
(UID/DIR04643/2013)

V U L N E R A B I L I DA D E & D I R E I TO

Ficha Técnica
Coordenação Editorial da Coleção
João Carlos Loureiro
André Dias Pereira
Carla Barbosa
Propriedade
Centro de Direito Biomédico
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Pátio das Escolas
3004-528 Coimbra
Telef./Fax: 239 821 043
cdb@fd.uc.pt
www.centrodedireitobiomedico.org
Editor
Instituto Jurídico | Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra
Cadernos da Lex Medicinae n.º 1 · 2018 O Centro de Direito Biomédico, fundado em 1988, é uma associação privada sem fins
lucrativos, com sede na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que se dedica
à promoção do direito da saúde entendido num sentido amplo, que abrange designada-
Execução gráfica mente, o direito da medicina e o direito da farmácia e do medicamento. Para satisfa-
Ana Paula Silva zer este propósito, desenvolve acções de formação pós-graduada e profissional; promove
reuniões científicas; estimula a investigação e a publicação de textos; organiza uma
ISBN 978-989-8891-18-1 biblioteca especializada; e colabora com outras instituições portuguesas e estrangeiras.
Sumário

Cadernos Lex Medicinae: Algumas Palavras em Torno de um Consentimento Informado e


Projeto Editorial ................................................. 5 Problemas Penais de Direito Médico......................... 47

Responsabilidade Civil Médica I


Introdução .......................................................... 7
Pressupostos da Responsabilidade Civil;
Ilicitude e Culpa; Obrigações de Meios e Obrigações de
Programa ........................................................... 9 Resultado ..........................................................55

Responsabilidade Civil Médica Responsabilidade Extracontratual do Estado e


I — Pressupostos da Responsabilidade Civil; Outros Entes Públicos e Funcionamento Anormal do
Nexo de Causalidade............................................ 13 Serviço e Perda de Chance..........................................73

Problemas Penais do Direito Médico ........................ 27

3
CADERNOS LEX MEDICINAE: ALGUMAS PALAVRAS EM TORNO DE UM
PROJETO EDITORIAL

João Carlos Loureiro

Cadernos da Lex Medicinae é uma nova série que tando também já em fase de composição o n.º 2,
se centrará na publicação dos resultados de projetos consagrado a Direito e Cancro; o n.º 3, em princípio,
de investigação ou de contribuições apresentadas reunirá as comunicações do Congresso Saúde, novas
em seminários, organizados no quadro do Centro tecnologias e responsabilidade: perspetivas contemporâ-
de Direito Biomédico e/ou do antigo grupo (agora neas, sob o mote Comemorando os 30 anos do Centro
rebatizado de área) Vulnerabilidade e Direito, do Ins- de Direito Biomédico.
tituto Jurídico da Faculdade de Direito da Univer- Procura-se, assim, um alargamento do territó-
sidade de Coimbra. Regularizada a edição da revis- rio editorial com a assinatura cdb, até agora cor-
ta, tendo sido publicado há alguns anos um número porizado na Lex Medicinae — Revista Portuguesa de 5
especial (dedicado à IV EAHL Conference on European Direito da Saúde, e em livros (em regra, em cole-
Law and Patient Safety), entendemos que tem senti- ção desde as três obras com capas em vermelho e
do e é oportuno criar uma linha centrada em te- negro, próprias de um direito que, como a perso-
mas. Às fontes de textos referidas poderão acrescer nagem de Stendhal na obra homónima, procura
outras incursões no direito da saúde, num mundo conquistar um lugar, aqui no quadro dos saberes
onde partilha e circulação são palavras-chave. jurídicos, até aos 25 títulos da coleção, primeira-
A nossa proposta de criação desta nova coleção mente com a chancela da Coimbra Editora e agora
mereceu imediato acolhimento pelo Senhor Dou- da Petrony), sem prejuízo de título “robinsoniano”
tor André Dias Pereira, Presidente da Direção do (Genome Analysis: legal rules, practical applications: re-
Centro de Direito Biomédico. A Mestre Carla Bar- ports of the workshop, 1992, Coimbra, 1994) ou de
bosa assegurou o cuidado paciente da preparação volumes ligados pelo vínculo de amiga e associativa
dos textos, com a sua sabedoria tecida no construir celebração e da unidade temática (Direito da Saúde
de imprescindíveis pontes com os autores. Hon- — Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme
rados, mais uma vez, com a chancela editorial do de Oliveira, com a marca da Almedina). Nascidos de
Instituto Jurídico, não queremos deixar de assina- uma revista, os Cadernos não são, no entanto, uma
lar e agradecer a pronta disponibilidade do Senhor publicação dessa natureza, não estando amarrados
Doutor Aroso Linhares, Presidente do Conselho às obrigações de periodicidade, figurando antes no
Coordenador. Este caderno de estreia é dedicado domínio dos “calhanários”, engenhosa e subtil clas-
à Bienal de Jurisprudência em Direito da Medicina, es- sificação de Barbosa de Melo.
1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA

Uma breve referência ao título Caderno, que do Centro de Direito Biomédico, a Conferência da
em inglês aparece, com bastante liberdade, como prestigiada European Health Law Association, mate-
Supplements. A palavra cadernos reveste-se de plas- rializando firme empenho do Senhor Doutor Gui-
ticidade suficiente para acomodar escritos com di- lherme de Oliveira, pioneiro entre os pioneiros do
ferente natureza e extensão. Mergulhando as suas Centro, que aqui também honramos, todos e cada
raízes em quaternus (de quatro em quatro), evoca um, na singularidade e na diferença das suas contri-
usos diversos que se adequam à natureza do em- buições. Este primeiro Caderno apresenta também o
preendimento. Desde logo, o caderno é lugar de tom engalanado da festa, agora dos 30 anos, sendo
esquissos, de esboços, correspondendo ao caráter as velas símbolo de serviço prestado e tentativa de
de alguns textos que, face a uma biomedicina frené- entrever o futuro, animados pelos ventos da refle-
tica, se limitam a aproximações. O caderno é tam- xão intelectual séria que não os da efemeridade das
bém um espaço onde se tomam notas e, assim, se modas. Preferimos antes a permanente monda do
deixam intencionalmente em branco folhas, reco- discurso e do texto, a revisão dos caminhos trilha-
mendando generosidade no comprimento das mar- dos, os ensaios clínicos — aqui traduzidos na ideia
gens (que o digital potencia), e convidando o leitor de experimentação (“a experiência é madre das
a um diálogo com os autores. O caderno (Heft, em cousas”) e na clínica (remetendo literalmente para
alemão) abre para um suplemento (Beiheft), permi- um inclinar-se em registo de cuidado). Na barca
tindo outras incursões que excederiam o número entram cultores mais académicos e outros mais
6 de páginas da revista. A ideia de caderno convoca práticos; juristas e outros profissionais dedicados
também a do caderno de encargos da investigação, às artes no campo da saúde; autores consagrados
em termos coletivos ou pessoais. Cadernos de in- e neófitos; nacionais e estrangeiros (mas não “es-
vestigação, seguramente, não um exercício de li- tranhos”); irmanados pela língua portuguesa, na
teratura no registo de diário entendido como “um divers(un)idade dos seus sotaques ou pelo espa-
romance com uma só personagem” (Saramago, Ca- nhol, nesta ibericidade que não traduz “jangada de
dernos de Lanzarote: Diário — I, 9) ou, mergulhando pedra”, mas mundialização primeira cerzidora de
no século xix, Cadernos da Casa morta (Dostoievski). continentes; ou ainda no mundo plural dos idio-
Por último, mas não menos importante: aprou- mas, um ecumenismo traçado num inglês reinven-
ve a Kronos traçar um outro elo de união entre o tado pela necessidade esperançosa da comunicação.
referido número especial da Revista (uma espécie Aos leitores caberá a próxima palavra sobre o
de número 0 destes Cadernos) e o primeiro desta sentido do projeto e também contributo não despi-
série. Com efeito, publicado em 2014, espelhava ciendo para o seu futuro.
um evento que celebrava os 25 anos da fundação
Apresentação da Obra

ATAS DA 1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA

André Gonçalo Dias Pereira


Presidente da Direção do Centro de Direito Biomédico
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Numa organização conjunta do Centro de Direito incluindo Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal
Biomédico, do Centro de Estudos Judiciários e da Ordem de Justiça e do Tribunal Constitucional.
dos Advogados reunimos em Coimbra especialistas A culminar esta jornada de trabalho contámos
em Direito da Medicina e Responsabilidade médi- com notáveis conferências do Prof. Nelson Rosen-
ca, em algumas das suas vertentes: a responsabilidade vald, Promotor de Justiça de Minas Gerais e re-
civil no âmbito da medicina privada, a responsabilidade putado autor nas áreas da responsabilidade civil no
civil extracontratual do Estado e outros entes públicos no Brasil, e do Prof. Donal Nolan, Professor da reno-
âmbito da medicina pública e a responsabilidade penal, mada Universidade de Oxford, na Inglaterra.
para além de mesas especiais sobre temas candentes Uma palavra de agradecimento é devida a to- 7
como o consentimento informado e a “perda de chance”. dos os membros da Comissão Executiva, em espe-
Tivemos a honra de contar, na abertura da Bie- cial aos representantes dos parceiros Ordem dos
nal, com uma conferência do Senhor Presidente do Advogados e Centro de Estudos Judiciários e ao
Supremo Tribunal de Justiça, o Dr. António Henri- dinamismo da Dr.ª Carla Barbosa, Secretária exe-
ques Gaspar, autor pioneiro desta temática que em cutiva do Centro de Direito Biomédico.
1978 publicou o artigo “A responsabilidade Civil Uma palavra de apreço e publico reconheci-
do Médico”, na Coletânea de Jurisprudência, Ano III. mento ainda para os relatores da Bienal, mestran-
Foram apresentados e discutidos 28 casos da dos e doutorandos da FDUC: Dr. Abel Chicunha,
jurisprudência. Assistiram e participaram na dis- Mestre Andreia Costa Andrade, Mestre Ana Lopes
cussão mais de 80 participantes — juízes, advoga- Chaves e Mestre Mafalda de Sá, cujo trabalho pri-
dos e académicos — portugueses e estrangeiros, moroso que alia a capacidade de síntese com o rigor
entre os quais 30 participantes brasileiros. jurídico permitem trazer até ao leitor esta obra.
Durante a jornada de trabalho, verificou-se um É ainda de realçar o contributo da Fundação
debate franco e aberto, com advogados, magistrados, Luso Americana para o Desenvolvimento, Funda-
professores de direito e alguns médicos, num ambien- ção Eng. António de Almeida e Direção Geral de
te científico marcado pela liberdade e pela confiança, Saúde essenciais, à realização deste encontro.
onde cada um pôde debater os casos selecionados pe- Se esta primeira edição decorreu com tanta
los apresentadores, portugueses e brasileiros, os quais qualidade, a tal não é alheia a experiência que parte
foram escolhidos pela sua reconhecida competência, da equipa organizadora já tinha das várias Bienais de
1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA

Direito da Família, que em boa hora o Senhor Prof.


Doutor Guilherme de Oliveira lançou para aquele
amplo e prático ramo do Direito.
Por isso, ao lançador de sementes e Presidente
Honorário do Centro de Direito Biomédico, Dou-
tor Guilherme Freire Falcão de Oliveira, dedicamos a
publicação desta 1.ª Bienal de Jurisprudência em
Direito da Medicina.

Coimbra, 17 de julho de 2018

André Gonçalo Dias Pereira

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1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA
20 janeiro de 2017 · Hotel D. Luís · Coimbra

9h00m · Sessão de Abertura sala de celas

sala coimbra Presidente da Mesa:


Francisco Caetano | Juiz Conselheiro do STJ
Comunicação:
Juiz Conselheiro António Henriques Gaspar Relatores:
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC
Abel Chicunha | Mestrando da FDUC
Presenças confirmadas:
Procuradora-Geral da República Apresentantes:
Marcos Vinicius Coltri | Advogado
Prof. Doutor José Manuel Silva 9
Bastonário da Ordem dos Médicos José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Dr. Rui Lopes | Ordem dos Notários Juiz Desembargador
Dr. Paulo Guerra | Centro de Estudos Judiciários Paula Natércia Mendes Moreira Rocha
Procurador-Geral Distrital Juíza de Direito
Dr. Carlos Diogo Cortes | Ordem dos Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Médicos · Secção Regional do Centro Juíza Desembargadora
da Ordem dos Médicos Carlos Gabriel Donoso Castelo Branco
Juiz de Direito e Secretário do
9h30 · 13h30 Conselho Superior da Magistratura
João Pires da Rosa | Juiz Conselheiro
mesas temáticas
Jubilado (STJ)
1. Responsabilidade Civil Médica Nelson Rosenvald | Investigador
I – Pressupostos da Responsabilidade Civil;
Nexo de Causalidade
1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA Programa

2. e 3. 14h30 · 17h30
Consentimento Informado e
Problemas Penais de Direito Médico 4.
Responsabilidade Civil Médica I –
sala santa clara
pressupostos da responsabilidade civil;
Presidentes da Mesa: ilicitude e culpa; obrigações de meios e
Helena Moniz | Juíza Conselheira do STJ obrigações de resultado
André Dias Pereira | Professor Universitário sala santa cruz
Diretor do Centro de Direito Biomédico
Presidente da Mesa:
Relatores: Luís Filipe Pires de Sousa | Juiz Desembargador
Andreia da Costa Andrade | Doutoranda da FDUC Tribunal da Relação de Lisboa
Apresentantes: Relatores:
Orlando Manuel Jorge Gonçalves | Juiz Ana Lopes Chaves | Advogada
Desembargador · Tribunal da Relação de Apresentantes:
Coimbra
Andreia da Costa Andrade | Advogada estagiária e Maria da Graça Trigo | Juíza Conselheira (STJ)
10
Doutoranda FDUC Cristina Isabel Santos Coelho Ferreira Neves
Juíza de Direito
Afonso Luís Torneiro Pedrosa | Advogado
Maria Fernanda Almeida | Juíza de Direito
Arthur Kullok | Doutorando FDUC Filomena Girão | Advogada
Luís Farinha Rosa | Procurador-Geral Adjunto · Ana Elisabete Ferreira | Advogada
Tribunal da Relação de Coimbra Gabriela de Fátima Marques | Juíza de Direito
Olga Maurício | Juíza Desembargadora do
Tribunal da Relação de Coimbra 5. e 6.
Catarina Fernandes | Procuradora da República Responsabilidade Extracontratual
Maria Clara Sottomayor | Juíza do Tribunal do Estado e Outros Entes Públicos e
Constitucional Funcionamento Anormal do Serviço
Sephora Marchesini | Advogada e Perda de Chance
sala coimbra
13h30
Almoço Presidente da Mesa:
JoãoVaz Rodrigues |Advogado e Professor da U. Évora
Programa 1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA

Relatores: Conferencista:
Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC; Abel Donal Nolan - Professor of Private Law,
Chicunha | Mestrando da FDUC University of Oxford
Apresentantes: English cases on medical negligence
Rafael Vale e Reis | Assistente convidado da Comissão Executiva:
FDUC e Advogado Álvaro da Cunha RODRIGUES, André DIAS
Sérgio Nuno Coimbra Castanheira | Advogado PEREIRA, Carla BARBOSA, Carla MORGADO,
Higina Orvalho Castelo | Juíza Desembargadora no Francisco CAETANO, Helena MONIZ, João Vaz
Tribunal de Relação Guimarães RODRIGUES, Luís Filipe PIRES DE SOUSA, Mónica
Rute Teixeira Pedro | Professora Auxiliar da QUINTELA, Paulo SANCHO
FDUP e investigadora do CIJE
Informações:
18h00 · 18h30 Centro de Direito Biomédico
Tel. 239821043 · E-mail: cdb@fd.uc.pt
Sessão de encerramento:
Apoios:
Presidente da Mesa
Fundação Luso-Americana 11
Prof. Doutor Sinde Monteiro | Professor da
Fundação Eng. António Eugénio de Almeida
FDUC/CDB
Direção Geral da Saúde
Moderador:
Prof. Doutor João Loureiro – Professor da
FDUC/CDB/IJ

Agradecimentos:
Mesa 1
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
I — PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL; NEXO DE CAUSALIDADE
Presidente da Mesa: Francisco Caetano |Juíz Conselheiro do STJ
Relatores: Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC · Abel Chicunha | Mestrando da FDUC

CASO 1 vi) A autora consultou um outro médico,


a quem pediu que, durante o parto do
APRESENTADO PELO DR. MARCOS seu quarto filho, procedesse a uma nova
VINICIUS COLTRI — ADVOGADO laqueação.
A. Identificação da decisão: recurso de apelação vii) A primeira intervenção de laqueação foi
— Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo — correctamente executada.
2.ª Câmara de Direito Privado
viii) É, ainda assim, possível que, no seguimen-
B. Palavras-chave: esterilização por laqueação das to de tal procedimento, ocorra reanasto-
trompas — nova gravidez — consentimento informado mose espontânea das trompas, podendo a
— prova
mulher voltar a engravidar. 13
C. Os factos, o Direito e a Decisão
2. O Direito
1. Os factos A esterilização voluntária no Brasil está regu-
i) A autora, mulher grávida pela terceira vez lada na Lei n.º 9.263, de 12 de janeiro de 1996. O
e com dois filhos vivos, pede à sua médica artigo 10.º exige que a pessoa em causa tenha ca-
obstetra que proceda a uma esterilização pacidade civil plena e seja maior de vinte e cinco
através de laqueação das trompas. anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos. É ainda
ii) O procedimento foi realizado no segui- necessário, que decorra um período mínimo de ses-
mento do parto. senta dias entre a manifestação de vontade e o acto
iii) Aproximadamente um ano e oito meses cirúrgico. Durante esse período, deverá ser dado
depois, a autora engravidou novamente. acesso a um serviço de acompanhamento com o in-
tuito de desincentivar uma esterilização precoce.
iv) O consentimento para o procedimento de A norma estabelece, ademais, que é condição
laqueação não foi reduzido a escrito. da esterilização a redução a documento escrito e
v) De acordo com a prova testemunhal de outras assinado da manifestação de vontade, após ser dada
mulheres seguidas pela mesma médica obste- informação sobre os riscos da cirurgia, possíveis
tra, todas elas foram informadas da possibili- efeitos colaterais, dificuldade da reversão do pro-
dade de, após a realização do procedimento de cedimento e opções de contracepção reversíveis
esterilização, poder ocorrer uma nova gravidez. existentes.
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

3. A Decisão A quem compete o ónus da prova da existên-


A sentença do tribunal de primeira instância, cia de um consentimento informado, ao médico ou
confirmada em recurso, analisou as duas questões ao paciente? Entre nós tem-se entendido que deve
invocadas na petição inicial a título de causas de caber ao médico, não só pelos conhecimentos téc-
pedir, a saber, erro médico na execução da cirurgia nicos de que dispõe, mas também porque a solução
de esterilização e ausência de informação. contrária exigiria ao paciente uma prova negativa
Quanto ao erro médico, a decisão baseou-se na e, por conseguinte, extremamente difícil.
prova pericial realizada aquando do quarto parto Para além da questão do ónus da prova, a deci-
e antes de se proceder à segunda cirurgia de es- são é particularmente controversa pelo facto de se
terilização, tendo sido pedida e concedia anteci- basear em prova testemunhal de outras doentes da
pação da produção de prova. O relatório pericial médica. Estes testemunhos, relativos à informação
concluiu que a laqueação tinha sido correctamen- que fora transmitida a outras doentes pela médica
te executada e que a posterior reanastomose das ré, foram valorados de modo a formular um juízo
trompas ocorreu espontaneamente, tratando-se sobre o que provavelmente fora informado à auto-
de um efeito raro, mas possível e estatisticamente ra. A admissibilidade desta prova é ainda mais con-
comprovado. testável num caso em que é a própria lei que exige,
Em relação à ausência de informação, o tribu- como condição da intervenção, um consentimento
nal entendeu que recaía sobre a autora o ónus da por escrito.
14 prova de que não lhe tinha sido transmitida uma A discussão realçou, ainda, a problemática em
informação completa sobre a cirurgia, em parti- torno da materialidade do consentimento e a sua
cular sobre o risco de reversibilidade espontânea relação com a realidade. Na verdade, pode existir
do procedimento. Não só a autora não logrou em um consentimento por escrito que mais não é do
demonstrar a ausência de informação, como o tri- que uma mera formalidade, tendo a paciente assi-
bunal tomou em consideração prova testemunhal, nado sem a informação lhe ter sido transmitida de
prestada por outras doentes, no sentido de que a forma a que pudesse verdadeiramente assimilá-la.
ré as informou dessa possibilidade antes de realizar Em contraposição, é igualmente possível que, tam-
a cirurgia. bém na ausência de documento escrito, o médico
tenha diligentemente informado o seu paciente de
D. Problemas jurídicos discutidos na ses- toda a informação relevante e este o venha negar.
são, soluções e sugestões apresentadas Nesta perspectiva, o que deve ser o consentimen-
to — um documento formal ou uma realidade
Esta decisão suscita, sobretudo, a questão da substancial?
validade do consentimento e da sua prova. Estava De todo o modo, sustentar a prova do consen-
em causa não o consentimento para a cirurgia em timento em testemunhas, que são muito falíveis, é
si, mas saber se se tratava de um consentimento deveras arriscado, sendo, contudo, certo que a lei
informado, quanto à possibilidade de não se alcan- portuguesa apenas exige consentimento por escri-
çar o resultado pretendido, que era não voltar a to em casos muito específicos.
engravidar.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

CASO 2 viii) Chegado às urgências, foi visto por


um terceiro médico que pediu exames
APRESENTADO PELO DR. JOSÉ MANUEL bioquímicos, cujo resultado foi equivalen-
COSTA GALO TOMÉ DE CARVALHO — te aos anteriormente realizados.
JUÍZ DESEMBARGADOR
ix) Assim, e apesar da recomendação do mé-
A. Identificação da decisão: processo cri- dico de família, não realizou electrocar-
me comum — 2.º Juízo do Tribunal Judicial de diograma e deu alta ao doente.
Portalegre
x) Já no dia 28 de Maio, o doente voltou ao
B. Palavras-chave: homicídio negligente — nexo centro de saúde, onde o médico de família,
de causalidade — interrupção do nexo causal — apesar de entender que o mesmo quadro se
nexo causal objectivo mantinha, não o voltou a reencaminhar para
C. Os factos, o Direito e a Decisão as urgências, alertando, porém, que se o
doente piorasse se deveria dirigir ao hospital.
1. Os factos xi) Nessa noite, o estado de saúde do doen-
i) A 26 de Maio, o autor deslocou-se às te piorou, acabando por falecer enquan-
urgências de um hospital por ter vindo a to era transportado para o hospital numa
sentir progressivas dores no peito e difi- ambulância.
culdades respiratórias. xii) A autópsia determinou que a causa de 15
ii) O primeiro médico que o observou na morte foi um enfarte agudo do miocárdio.
triagem pediu exames radiológicos e
bioquímicos. 2. O Direito
iii) Como dos últimos resultavam valores nor- Estava em causa, nesta acção, o apuramento da
mais, não realizou um electrocardiograma e responsabilidade criminal dos três médicos que esta-
diagnosticou uma patologia gástrica, reen- vam de urgência no hospital e que viram o doente em
caminhando o doente para a cirurgia geral. causa, tendo sido acusados, em autoria material e em
iv) Neste serviço, o doente foi visto por um concurso real, da prática de um crime de homicídio
segundo médico que receitou medicação e por negligência, na forma omissiva, nos termos do ar-
deu alta. tigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, com referência aos
artigos 10.º e 15.º do mesmo diploma.
v) Mantendo-se o estado de dor, o doente diri-
giu-se, no dia seguinte, ao centro de saúde. 3. A Decisão
vi) O seu médico de família e suspeitou da ocor- Quanto aos elementos objectivos do tipo de
rência de um enfarte agudo do miocárdio. crime, entendeu o tribunal que a actuação dos três
vii) Encaminhou-o, de ambulância, para as médicos não correspondeu à que lhes era exigida e
urgências do hospital com uma carta de que o resultado morte poderia não se ter produzi-
referência onde indicou essa suspeita e re- do caso a actuação tivesse sido a correcta. Contu-
comendou internamento. do, estabelecido este nexo causal, o tribunal ques-
tionou, separadamente, se haveria uma imputação
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

objectiva, isto é, se a conduta era susceptível de vel e em processo penal, quanto à sua suficiência
causar, por omissão, a morte da vítima. enquanto critério de imputabilidade e quanto à sua
O segundo médico foi absolvido, na medida em aplicabilidade a vários intervenientes.
que actuou no seguimento de uma triagem que ha- 1. Quanto ao primeiro ponto, avançou-se a
via, embora erradamente, despistado a hipótese de perspectiva de que em ambos os ramos do direi-
um problema cardíaco e reencaminhado o doente to a causalidade adequada visa responder à mesma
com indicação de resolução de uma patologia gás- questão e é mobilizada através de um mesmo tipo
trica. Nestas circunstâncias, a actuação do agente de raciocínio. A diferença reside, apenas, no facto
foi condicionada por um erro sobre a ilicitude que de em penal vigorar a presunção de inocência. De
exclui a censurabilidade do facto. notar que, frequentemente, uma condenação em
O terceiro e último médico que assistiu a ví- processo penal será a base para um processo cível.
tima foi condenado por homicídio negligente por 2. Já quanto à questão da adequação do crité-
omissão. A sua actuação mereceu particular censu- rio, a causalidade adequada tem vindo a ser con-
ra pelo facto de ter sido precedida de um diagnós- testada por ser desadequada para os casos de res-
tico e de uma recomendação efectuados pelo mé- ponsabilidade médica, tanto cível, como penal. A
dico de família. Exigia-se-lhe que tivesse efectuado intervenção médica é particularmente moldada
um electrocardiograma e que tivesse procedido ao pelo risco. O próprio corpo humano é uma álea
internamento do doente. que pode, por si mesmo, alterar o resultado, in-
16 Já à actuação do primeiro médico não foi impu- dependentemente da actuação médica ser a mais
tado o resultado morte, pois apesar de existir uma
relação de causalidade naturalística, não se pode diligente possível. Ora, o critério da causalidade
fazer um juízo de imputação objectiva, já que a adequada pode conduzir a uma imputação do dano
posterior actuação do terceiro médico deu origem à conduta, globalmente considerada, mas falhar ao
a uma interrupção do nexo causal. Nestas circuns- nível de uma imputação objectiva a um concreto
tâncias, interrompeu-se o processo de formação indivíduo — e esta é que deve ser relevante. As-
da vontade criminosa e o desvalor da sua actuação sim, avançou-se a ideia de que devemos recorrer à
foi absorvido pelo perigo directo de produção do causalidade adequada objectiva, sopesada por um
dano associado à conduta posterior. A final, a sua critério do risco e atendendo às leges artis.
conduta foi subsumida no crime de ofensa à inte- 3. As intervenções médicas colectivas aumen-
gridade física por negligência, nos termos do arti- tam a dificuldade no apuramento do concreto nexo
go 148.º, n.º 1, do Código Penal, já que a conduta de causalidade. A tentação natural é considerar to-
aumentou o risco de realização do evento danoso e dos responsáveis pela totalidade do resultado, mas
causou dores e mal-estar físico e psicológico. na realidade cada interveniente pode ter uma res-
ponsabilidade parcial do resultado final ou de um
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- resultado intermédio ou simplesmente não ter res-
são, soluções e sugestões apresentadas ponsabilidade nenhuma. Por outro lado, a pré-se-
A apresentação deste caso deu origem a um lecção de indivíduos potencialmente responsáveis,
debate sobre a causalidade adequada, nomeada- a título de réus/arguidos, pode deixar de lado ou-
mente quanto à sua diferenciação em processo cí- tros intervenientes que seriam relevantes.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

Por todas estas considerações, e outras, con- iv) A cirurgia foi realizada no hospital priva-
cluiu-se que, na apreciação do nexo causal, é do, por dois cirurgiões ortopédicos.
fundamental a prova realizada no processo e o v) O pós-operatório durou seis dias, durante
modo como o juiz a gere e valora. É necessário os quais apresentou algumas queixas, que
que os juristas e, em especial, os magistrados foram desvalorizadas.
compreendam os conceitos médicos em causa e vi) Nas consultas de seguimento, com dife-
a realidade clínica subjacente. Como exemplo, a rentes médicos, a autora apresentava sem-
prova pericial é essencial, mas está dependente pre as mesmas queixas e, inicialmente, os
de serem feitas as perguntas certeiras às pessoas exames médicos estavam normais.
correctas. Depende, igualmente, da capacidade
de isenção tanto das testemunhas, como dos in- vii) Nas últimas consultas, apresentava já uma
tervenientes processuais no âmbito de processos marcha claudicante progressiva, com défi-
mediáticos. ce muscular no membro inferior direito.
viii) Veio a ser diagnosticada uma lesão parcial
CASO 3 e irreversível dos nervos crural e ciático.
APRESENTADO PELA DRA. PAULA NATÉR- ix) Lesão esta que foi provocada pela inter-
CIA MENDES MOREIRA ROCHA — JUÍZA venção cirúrgica.
DE DIREITO x) Conduzindo a marcha claudicante e dese-
quilibrada, limitada mobilidade no pé di- 17
A) Identificação da decisão: acção declarativa reito, atrofia muscular no membro inferior
de condenação
direito, cansaço ao andar e dores na coluna.
B) Palavras-chave: responsabilidade extracontra-
tual ­— cirurgia de colocação de prótese da anca xi) A autora deixou de realizar algumas tare-
— lesão nos nervos crural e ciático fas básicas, como conduzir, e não conse-
C) Os factos, o Direito e a Decisão guiu retomar a actividade profissional.
xii) Reformou-se por invalidez.
1. Os factos
2. O Direito
i) A autora, acompanhada no seu centro de
saúde, foi diagnosticada com coxartrose na A acção de indemnização foi proposta contra
anca direita. os dois cirurgiões, os médicos que a atenderam nas
consultas de seguimento e a sociedade gestora do
ii) Em virtude de um acordo de coopera- hospital privado. A sentença foi decidida com base
ção com um hospital privado, foi para aí nos pressupostos da responsabilidade extracontra-
reencaminhada. tual e com recurso ao artigo 70.º do CCiv.
iii) Um médico ortopedista confirmou o diag-
nóstico e afirmou a necessidade de sujei- 3. A Decisão
ção a uma cirurgia para colocação de pró- Foi mobilizado o instituto da responsabilidade ci-
tese total da anca (artroplastia). vil extracontratual pelo facto de a cirurgia apenas ter
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

ocorrido no hospital privado em virtude de um proto- De um modo geral, concluiu-se que devemos
colo com o hospital público, não por escolha da doente. aceitar que os pressupostos da responsabilidade ci-
Assim, e centrando-se na actuação do cirurgião vil não são conceitos estanques, antes dinâmicos e
que efectuou a operação, considerou-se existir ili- que devemos rever e estudar de modo a serem o
citude pela existência de lesão correspondente a mais possível adequados e operativos.
ofensas à integridade física, tratando-se, portan- Como nota para o futuro, foi referida a possi-
to, da violação de um direito absoluto contido no bilidade de virmos a abdicar da ideia de perseguir o
direito geral de personalidade do artigo 70.º do agente, em prol de nos centrarmos no erro, visan-
CCiv. A lesão em causa é decorrente da interven- do, sobretudo, que ele não se repita. Esta pode ser
ção cirúrgica a que a autora foi submetida, assim ou não uma melhor via de avaliação da responsabi-
se estabelecendo o nexo de causalidade. Quanto à lidade, mas o certo é que exigiria uma mudança de
culpa, considerou-se não agir de acordo com a leges mentalidade.
artis o cirurgião que, ao proceder a uma artroplas-
tia total da anca direita, lesiona simultaneamente o CASO 4
nervo crural e o ciático.
A autora logrou fazer prova de que o médi- APRESENTADA PELA DRA. ISABEL DE
co realizou de forma deficiente ou errada o acto MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO — JUÍZA
médico e que tal produziu o dano, condenando- DESEMBARGADORA
18 -se o réu a indemnizar a autora. Além dos danos A) Identificação da decisão: acção declarativa
patrimoniais, foram considerados os seguintes de condenação — 8.ª Vara Cível de Lisboa
danos não patrimoniais: tristeza, angústia, frusta-
ção, desgosto, dores sofridas, incómodos ou difi- B) Palavras-chave: parto realizado tardiamente
— responsabilidade contratual — responsabilidade
culdades no seu quotidiano em face das limitações extracontratual
físicas de que ficou a padecer — conducentes a
uma indemnização de 25.000 euros. C) Os factos, o Direito e a Decisão

D) Problemas jurídicos discutidos na ses- 1. Os factos


são, soluções e sugestões apresentadas i) A autora, mulher grávida, tinha o parto
Esta sentença traz à colação a questão do nexo programado num hospital privado com o
de causalidade, em particular as suas consequên- médico que seguiu a sua gravidez.
cias ao nível de ónus probatório. Foi entendido ii) Este médico não integrava os quadros do
que, logrando a autora a prova do nexo de causali- hospital, sendo um médico externo.
dade entre o facto e o dano, deve caber ao médico iii) A mulher chegou ao hospital à hora previs-
afastar a ilicitude e a culpa da sua actuação. A teoria ta, pelas 12 horas, tendo-lhe sido colocado
da causalidade adequada tem vindo a ser questio- um sensor da frequência cardíaca do feto,
nada, sendo certo que o nexo tem um papel de mas não um sensor de contrações.
extrema relevância, assumindo a dupla função de iv) Queixou-se de dores, para as quais foi ad-
fundamento e pressuposto da responsabilidade. ministrada anestesia.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

v) As dores permaneceram e foram extracontratual.


desvalorizadas.
3. A Decisão
vi) Pelas 15h30, verificou-se uma desacelera-
ção da frequência cardíaca fetal. Como questão prévia, a sentença determinou
que os contratos supra referidos não eram extensí-
vii) O registo cardiotocográfico do feto extra- veis ao filho nascido, na medida em que, à data da
viou-se, mas diversos médicos testemu- celebração, era apenas um feto. Como tal, não tem
nharam neste sentido. personalidade jurídica e não é titular de direitos
viii) A extracção fetal ocorreu apenas às 17h15. próprios, pelo que fica, igualmente, afastada a pos-
ix) O feto foi sujeito a um sofrimento sustido sibilidade de os seus pais terem actuado como seus
e prolongado decorrente de falta de oxige- representantes na relação contratual.
nação, desde as 15h30 até às 17h15. A actuação relevante era apenas a do médico,
x) Como consequência da falta de oxigenação na qualidade de especialista de ginecologia e obs-
e da extracção não atempada, o bebé nas- tetrícia, pois competia-lhe a direcção e vigilância
ceu inanimado e com diversas lesões. aquando do trabalho de parto, da realização do
xi) Tinha de ser alimentado por sonda, não parto e do pós-parto. Os demais profissionais de
chorava, não abria totalmente os olhos, ti- saúde actuaram sob as suas instruções.
nha poucos movimentos e descoordenados. Quanto à responsabilidade, tanto contratual,
como extracontratual, o tribunal considerou esta- 19
xii) Foi sujeito a diversas intervenções cirúrgi- rem preenchidos todos os pressupostos, condenan-
cas e tratamentos. do o réu aos seguintes montante indemnizatórios:
xiii) Passado três anos, acabou por falecer. 1. Danos não patrimoniais (i) do pai —
2. O Direito €50.000; (ii) da mãe — €80.000 (superior pelo
facto de ter abdicado da sua actividade profissional
Estavam em causa dois tipos de contrato. Por para dedicar-se em exclusivo a cuidar do filho) e
um lado, um contrato de prestação de serviços (iii) do filho — €300.000.
médicos entre os progenitores e o médico com a
especialidade de ginecologia e obstetrícia, aplican- 2. Danos patrimoniais dos pais — €30.639,19.
do-se-lhe os pressupostos gerais da responsabilida- Não havia danos patrimoniais do filho, na medida
de contratual. Por outro, o contrato com o hospi- em que todos os custos foram suportados pelos
tal privado é um contrato misto de prestação de pais, não havendo lugar a danos futuros pelo facto
serviços médicos, paramédicos e de internamente, de ter vindo a falecer na pendência da acção.
sendo tal entidade responsabilizada pela actuação D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
dos seus profissionais de saúde por via do artigo são, soluções e sugestões apresentadas
800.º, n.º 1, do CCiv.
Quanto à criança nascida e que veio a fale- O caso suscitou considerações interessantes
cer, que também constava da acção como au- quanto à averiguação do preenchimento dos pres-
tor, recorreu-se ao instituto da responsabilidade supostos dos dois tipos de responsabilidade.
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

1. Ilicitude contexto, o critério do bom pai de família do


a) Responsabilidade contratual: O ónus da prova artigo 487.º, n.º 2, do CCiv é substituído pelo
de que o tratamento ou a intervenção foram critério do bom profissional da categoria e espe-
omitidos ou que os meios utilizados foram de- cialidade de devedor à data da prática do acto.
ficientes ou errados, assim se concluindo por b) Responsabilidade extracontratual: O ónus da pro-
incumprimento da obrigação contratual, im- va impende sobre o médico, enquanto réu, sendo
pende sobre os autores. No caso, o feto esteve que do quadro factual dado como provado resulta
sujeito a sofrimento fetal sustido e prolongado demonstrado que a actuação médica foi culposa.
decorrente da falta de oxigenação, o que tem
expressão na frequência cardíaca fetal. Assim, 3. Nexo de causalidade e danos
é manifesto que este dado não foi devidamente O nexo de causalidade adequada implica sem-
considerado pelo réu, o que conduziu à omis- pre o exercício de um juízo de prognose objectivo
são de actos necessários e adequados à situação formulado a partir das circunstâncias conhecidas
clínica, de tal modo que a posterior interven- e cognoscíveis a um observador experimentado.
ção cirúrgica não foi tempestiva. Também na responsabilidade contratual devem ser
b) Responsabilidade extracontratual: A actuação considerados os danos não patrimoniais, aplicando-
negligente do médico réu é ilícita por ter viola- -se o artigo 496.º do CCiv. O autor tem direito a
do o disposto nos artigos 70º, n.º 1, e 486.º do ser compensado pelas dores e sofrimento de que
20 CCiv — violação de direitos de personalidade padeceu, assim como por ter sido privado do gozo
por omissão. O feto foi sujeito a falta de oxige- da vida na sua plenitude, estando em causa danos ir-
nação, o que lhe causou um sofrimento sustido reversíveis e violação de direitos de personalidade.
e prolongado e implicou directamente as lesões
irreversíveis com que nasceu. Considerou-se CASO 5
que o bem jurídico protegido pelos direitos
de personalidade é, em última análise, o pró- APRESENTADA PELO DR. CARLOS GA-
prio ser da pessoa e que o nascituro deve estarBRIEL DONOSO CASTELO BRANCO —
abrangido pela norma. É um ente humano com JUIZ DE DIREITO E SECRETÁRIO DO CON-
estrutura própria, ainda que funcionalmente SELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
dependente da sua mãe, encontrando apoio na A) Identificação da decisão: acção declarativa
letra do artigo 70.º, n.º1, na parte em que se de condenação — 1.ª Vara Cível de Lisboa
refere à protecção de “indivíduos”.
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual —
2. Culpa afastamento da presunção de culpa - wrongful birth
a) Responsabilidade contratual: Perante a diver- C) Os factos, o Direito e a Decisão
gência doutrinal quanto ao ónus da prova da 1. Os factos
culpa, considerou o tribunal que cabe ao médico
demonstrar que utilizou, em tempo oportuno, i) Mulher grávida, autora, realizou várias
todas as técnicas adequadas à situação. Neste ecografias com diferentes médicos.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

ii) A ecografia realizada às 12 semanas 2. O Direito


pelo médico réu não detectou nenhuma A acção foi intentada contra o médico por
malformação. ter realizado exames sem a diligência necessária,
iii) Às 18 semanas um outro médico fez eco- omitindo o diagnóstico de malformação congéni-
grafia e sugeriu que a autora procedesse a ta (HDC) e contra tanto o médico, como o hospi-
uma ecografia morfológica. tal pela recusa em proceder a uma interrupção da
iv) Esta veio a ser realizada pelo réu às 21 gravidez.
semanas. O tribunal socorreu-se dos pressupostos da
v) As imagens desta ecografia sugeriram sus- responsabilidade civil contratual, embora quanto à
peita de desvio do coração da sua posição culpa tenha lançado mão do artigo 487.º, n.º 1, do
normal. CCiv.
Quanto à interrupção voluntária da gravidez,
vi) Este desvio é um dos elementos para o diagnós- relevava especificamente a alínea c) do n.º 1 do ar-
tico de hérnia diafragmática congénita (HDC) tigo 142.º do Código Penal, que dispõe que aquela
e que aconselharia a realização de um estudo é possível se “houver seguros motivos para prever
aprofundado desta estrutura anatómica. que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável,
vii) Do relatório desta ecografia consta a men- de grave doença ou malformação congénita, e for
ção “aparentemente sem malformações”. realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez,
viii) Às 30 semanas, uma nova ecografia mor- excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, 21
fológica foi realizada por um médico dife- caso em que a interrupção poderá ser praticada a
rente, na qual se detectou uma HDC. todo o tempo”. De acordo com o artigo 20.º da
ix) O diafragma, enquanto estrutura anató- Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Julho, a averi-
mica, contribui para que as vísceras não guação da existência da situação descrita compete
subam até ao tórax, sem o qual, apesar de a uma comissão técnica de certificação. O modo de
o feto continuar a desenvolver-se, terá difi- consentimento informado está regulado na circular
culdades respiratórias quando nascer. informativa n.º 20/SR, de 18/07/2007.
x) A HDC pode ser resolvida intrauterina- 3. A Decisão
mente ou nas 24 horas a seguir ao parto. O acto médico em causa foi a realização de um
xi) Detectada esta malformação, é pedido ao exame ecográfico às 21 semanas de gravidez, que
réu nova ecografia morfológica, que vem a se consubstancia numa obrigação de meios. Do re-
confirmar o diagnóstico. latório desta ecografia não consta referência a um
xii) A autora pediu ao réu que interrompesse a diagnóstico de malformação congénita, que veio,
gravidez, pedido por este recusado. contudo, a ser detectada posteriormente, às 30 se-
xiii) A criança vem a nascer e, posteriormen- manas de gravidez, por um outro médico.
te, a falecer, ainda no mesmo dia, devido A sentença considerou que tal omissão não
a hipoplasia pulmonar grave causada pela corresponde a uma actuação ilícita, nem culposa,
HDC. atendendo a que: (i) resultava do consentimento
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

informado assinado pela autora o facto de a ecogra- escolher o tipo de responsabilidade, contratual ou
fia ser uma técnica limitada; (ii) a detecção da ano- extracontratual, que lhe for mais favorável. Esta
malia em questão não depende apenas da formação conclusão é relevante porque, se em relação à mãe
do diafragma, mas também de outros indícios (tal era inequívoca a existência de um contrato de pres-
como a presença de órgãos abdominais no tórax); tação de serviços, este não fora celebrado com o pai.
(iii) o diagnóstico de HDC surge, em percenta- Uma particularidade foi a consideração de que,
gem não desprezível, apenas em fase muito tardia apesar de se tratar de responsabilidade contratual,
da gravidez ou mesmo após o nascimento; (iv) não o pressuposto da culpa não poderia ser aferido pela
resultava dos autos nenhum elemento que pudesse presunção do artigo 799.º, n.º 1, do CCiv, antes
fazer o médico réu suspeitar, aquando da realização tendo de ser demonstrado por via do regime apli-
da ecografia, da existência de HDC. cável à responsabilidade civil extracontratual, nos
De todo o modo, não existia nexo de causalida- termos do artigo 487.º, n.º 1 do CCiv.
de com o dano, pois os autores não demonstraram Já quanto à questão ligada ao wrongful birth, a
que se o réu tivesse detectado a HDC aquando da- autora alega que lhe foi retirada a possibilidade de
quela ecografia o dano não viria, com toda a proba- optar atempadamente pela interrupção voluntária
bilidade, a produzir-se.Também não demonstraram da gravidez. Contudo, esta não está apenas depen-
que se a HDC tivesse sido detectada antes das 24 dente de um requisito temporal, em termos de
semanas de gravidez a opção dos autores teria sido semanas de gravidez, mas igualmente dependente
22 a de realizar uma interrupção da gravidez. de um determinado diagnóstico feito ao feto, exi-
Nem sequer se demonstrou que, se detectada gindo-se que haja motivos médicos seguros para
atempadamente, se estaria em condições de rea- prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incu-
lizar a interrupção da gravidez de acordo com o rável, de grave doença ou malformação congénita.
artigo 142.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal e Daqui resulta, para resolução destes casos, a ques-
que a oportunidade de a realizar tenha sido perdi- tão fundamental de saber se a patologia em causa
da. Com efeito, mesmo que o diagnóstico tivesse determina ou não a inviabilidade do feto.
sido feito antes das 24 semanas, não seria possível
concluir que a anomalia fosse incurável, desde logo CASO 6
porque existem opções terapêuticas. Não é possí- APRESENTADA PELO DR. JOÃO PIRES DA ROSA
vel afirmar que aos autores tenha sido retirada a — JUIZ CONSELHEIRO JUBILADO — STJ
capacidade de poderem optar por interromper a
gravidez. A) Identificação da decisão: recurso de revista
Assim, declarou o tribunal a acção improcedente. — Supremo Tribunal de Justiça
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- — não detecção de malformações congénitas
são, soluções e sugestões apresentadas graves — interrupção voluntária da gravidez
A primeira questão suscitada pela sentença foi — wrongful birth — wrongful life
a do tipo de responsabilidade em causa e o regi-
me aplicável. A sentença afirmou que o autor pode
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

C) Os factos, o Direito e a Decisão pendente dos cuidados permanentes da


1. Os factos segunda autora para a execução das mais
básicas tarefas do quotidiano.
i) Uma mulher grávida, segunda autora, di-
rigiu-se a uma clínica de radiologia para xi) O seu desenvolvimento mental é, aparen-
realizar ecografias. temente, normal, o que o levará a ter pro-
gressivamente maior consciência das suas
ii) Foram realizadas duas ecografias por profundas malformações e corresponden-
médico com especialidade de ginecologia tes limitações.
e obstetrícia, réu, respectivamente às 12 e
às 19 semanas de gravidez. xii) Necessitará de acompanhamento clínico
permanente e, para sua instrução e educa-
iii) Do primeiro exame concluiu-se exis- ção, serão necessários professores, técni-
tir uma gravidez normal com evolução cos e materiais especialmente direcionados
favorável. ao seu estado clínico.
iv) O segundo exame foi uma ecografia morfo- xiii) Caso a segunda autora tivesse tido conheci-
lógica, a qual analisa toda a anatomia fetal e mento das patologias do seu filho aquando da
detecta a maioria das malformações graves. realização das ecografias, teria optado por in-
v) O segundo relatório ecográfico indica, no- terromper voluntariamente a gravidez.
vamente, um desenvolvimento normal do xiv) Após o nascimento do filho, a segunda au-
feto, com expressa menção de não terem 23
tora deixou de ter emprego e dedica-se em
sido evidenciadas anomalias morfofuncio- exclusivo a cuidar do primeiro autor,
nais e de terem sido visualizados cabeça,
coluna e membros. xv) Tem, ainda, a seu cargo um outro filho
mais velho e a sua mãe.
vi) As ecografias foram realizadas de acordo
com os parâmetros exigidos. 2. O Direito
vii) Confiando no diagnóstico do réu, a segun- O presente caso exigiu a mobilização de regras
da autora não repetiu o exame, nem adop- da responsabilidade contratual, conjugadas com as
tou nenhum cuidado médico especial. regras da interrupção voluntária da gravidez, em
viii) O filho, primeiro autor, nasceu com sín- especial a alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º do Có-
drome polimalformativo, em virtude do digo Penal. Implicou, ainda e aprofundadamente,
qual sempre padecerá de uma multiplicida- uma análise das categorias dogmáticas de wrongful
de de patologias definitivas e irreversíveis. birth e wrongful life.
ix) De entre as quais a agenesia de ambos os an- 3. A Decisão
tebraços e braços, hipogenesia dos membros, O Supremo teve de se pronunciar sobre dois
deficit de crescimento de 70%, dificuldades recursos de revista, interpostos, respectivamente,
respiratórias e incapacidade de falar. pelos réus e pelos autores, rejeitando ambos como
x) O primeiro autor nunca poderá ter uma improcedentes.
vida normal, estando absolutamente de-
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

1. Recurso dos réus — pressupostos da interesses juridicamente protegidos.


responsabilidade contratual Nestas circunstâncias, atendendo a que, se devi-
damente informada, a segunda autora teria optado
A actuação do médico foi ilícita por violar o pela interrupção da gravidez, o dano não se limita à
dever de cuidado aquando da execução do diagnós- não prestação de informação por parte do médico.
tico quanto ao desenvolvimento fetal. Atendendo à Todos os custos adicionais resultantes da deficiên-
correcção dos meios empregues e à especial capa- cia da criança nascida são danos patrimoniais que
cidade e preparação do réu, uma correcta leitura cabem dentro da obrigação de indemnizar.
das ecografias deveria ter conduzido a um diagnós-
tico de malformações congénitas. O erro médico 2. Recurso dos autores — ressarcibi-
consistiu na deformada representação da realidade lidade dos danos do próprio filho
imagiológica decorrente das ecografias. nascido
A presunção de culpa do artigo 799.º, n.º 1,
do CCiv não foi ilidida. Antes de mais, o Supremo distinguiu a referi-
A errada representação da realidade fetal con- da pretensão do caso de wrongful birth, pelo qual
tribuiu decisivamente para que a segunda autora se aceita, se aceitou no caso concreto, responsabi-
levasse a gravidez até ao fim, tendo tal conduta pos- lidade médica pelos danos, suportados pela mãe,
sibilitado o nascimento da criança com as suas mal- decorrentes da gravidez, e pelos danos decorrentes
formações. Este resultado não teria ocorrido se os das necessidades especiais da criança nascida. O fi-
24 lho, enquanto tal, não tem uma pretensão autóno-
relatórios ecográficos tivessem sido diligentemente
elaborados, pelo que há nexo de causalidade. ma por ser inadmissível a consideração do facto de
O facto de ser legalmente permitido à primeira se ter nascido como um dano (wrongful life).
autora interromper a gravidez não consubstancia Para tal militam diversos factores, desde logo
uma quebra do nexo de causalidade entre a con- a impossibilidade de quantificar o valor vida e as
duta médica e o resultado. Pelo contrário, o facto questões em torno da consideração de uma vida
de existir essa possibilidade legal integra o nexo com deficiência como menos valiosa. Consagrar
causal, na medida em que o recurso a esta opção um “direito à não vida” levar-nos-ia, igualmente,
só é possível com base em informação adequada e a questionar outras situações, como a eutanásia
obtida através de um acto médico. e o suicídio. A protecção da dignidade, inviola-
Quanto aos danos a indemnizar, o Supremo, bilidade e integridade da vida humana, tal como
começando por afirmar a inexistência de um autên- constitucionalmente consagradas, opõem-se ao
tico direito a interromper a gravidez, sublinha que é reconhecimento daquele direito. Admitindo uma
uma possibilidade concedida pela lei em certos ca- pretensão autónoma da criança contra o médico,
sos. Em particular na previsão da alínea c) do n.º 1 abrir-se-ia a porta para considerar a possibilidade
do artigo 142.º do Código Penal, essa possibilidade de a criança intentar uma acção contra a sua mãe
assenta num juízo de certeza de que o feto padece quando ela tivesse tido a oportunidade de inter-
de doença e/ou malformação, de tal modo que a in- romper a gravidez.
terrupção consubstancia o único meio de tutela dos Também em termos de pressupostos da res-
ponsabilidade não seria possível dar uma resposta
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

afirmativa. Por um lado, não existiu um facto ilíci- mas com uma mulher grávida e foi, aliás, celebrado
to e culposo que se pudesse considerar como cau- precisamente pela sua condição de grávida. Nes-
salmente ligado às malformações. Por outro lado, tas circunstâncias, a contraparte contratual é uma
o filho nascido não era parte no contrato em causa, unidade constituída pela mãe e pelo seu feto. En-
mas apenas a sua mãe. A invocação do instituto do quanto durar a gravidez, são um só, ou seja, o feto
contrato com eficácia de protecção de terceiro foi já era relevante na relação contratual. O feto só se
rejeitada, pois um feto, sem personalidade jurídica, autonomiza e, concomitantemente, adquire perso-
não pode ser havido como terceiro. nalidade jurídica com o nascimento com vida, por-
que só aqui deixa de estar dependente da sua mãe.
D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
são, soluções e sugestões apresentadas 3. Direito do próprio feto: na perspectiva
acima referida, a mãe e o seu feto foram, ambos e
O Juiz Conselheiro Jubilado Pires da Rosa vo- sendo um só, atingidos no seu direito de poderem
tou vencido no caso em apreço, por considerar jus- optar pelo não nascimento, por uma mesma e única
tificado o ressarcimento do filho pelos seus danos violação contratual. O direito que assiste ao filho
não patrimoniais próprios. A apresentação desen- não é outro nem é diferente, antes resulta daquela
rolou-se em jeito de refutação dos diversos argu- violação contratual, na parte em que atingiu o feto
mentos apresentados contra a admissibilidade da e já nessa altura existente. Vem, posteriormente, a
acção de wrongful life, seguida de uma discussão que autonomizar-se no património da criança quando
mobilizou argumentos tanto a favor, como contra. ela nascer, passando a ser ele o único titular da in- 25
1. Direito à não existência: antes de mais, demnização. O nascimento autonomiza a criança,
a problemática do reconhecimento a um direito a mas surge na continuidade da relação contratual
não viver, ou a não existir é extremamente sensível previamente estabelecida.
e de impossível consenso. É, todavia, concebível, Esta concepção tem em atenção o facto de o
em tese, reconhecer um direito à não existência, direito em causa ter um tempo muito limitado, es-
desde logo atendendo à possibilidade dada pelo le- pecificamente definido no artigo 142.º do Código
gislador português no artigo 142.º do Código Pe- Penal. Esta norma dá à mãe a possibilidade de exer-
nal, a qual coloca a vida nas mãos da mulher-mãe. cer um direito em nome e em representação do seu
filho, que, na altura relevante para o seu exercício,
2. Relação contratual: este caso pode ser é apenas um feto. Ora, um direito que só existe
analisado sem recurso a um direito à não existên- enquanto o filho é feto não pode, em nome de uma
cia, mas tão-só com base na concreta violação con- qualquer dignidade, ser deixado para uma altura
tratual por parte do médico obstetra ao ler mal as em que ele já não é feto.
ecografias.
Neste âmbito, e quanto à questão de sa- 4. Natureza da obrigação: é discutível se a
ber quem era a parte visada no contrato, não é obrigação do médico era de meios, como decidiu o
necessário recorrer ao instituto do contrato com acórdão, ou de resultado. Ao realizar uma ecografia
eficácia de protecção para terceiro. O contrato em e fazer um diagnóstico com base nela, pode conside-
causa foi celebrado, não com uma qualquer mulher, rar-se que o médico se vincula a um resultado, que
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1

é o de correcta interpretação da ecografia — nem visam despesas com a saúde, a educação e o bem-
que essa interpretação não permitisse afirmar mais -estar da criança à mãe pode ser um risco. Ao inte-
do que a impossibilidade de observar o que quer que grar o seu património, o montante indemnizatório
seja. Ora, no caso afirmou-se terem-se visto os bra- não só fica à mercê da actuação da mãe, como fica
ços de um feto, quando este feto nunca os teve. exposto aos seus credores e, ainda, à eventualida-
5. Critérios de fixação do montante do de da morte da mãe, havendo outros sucessores.
dano: Quanto à fixação do montante do dano, Discutiu-se, nesta sede, a possibilidade de a indem-
o acórdão invoca as dificuldades que esse exercí- nização dever ser fixada sob a forma de renda e,
cio implicaria, desde logo pela possibilidade de se bem assim, a necessidade de se repensar o instituto
considerar uma vida com deficiência como uma do trust, para acautelar estas situações e permitir a
vida menos valiosa. É, desde logo, difícil saber constituição de patrimónios separados.
que ponderação se deve fazer: contraposição entre 7. Natureza da interrupção voluntária
não-vida e vida sem qualidade? Ou entre vida com da gravidez: o debate não podia deixar de passar
qualidade e vida sem qualidade? Se na primeira pela discussão em torno da natureza da interrupção
emerge a questão de um direito à não-existência, voluntária da gravidez, mormente a sua considera-
na segunda pode objectar-se com ausência de nexo ção ou não como um direito da mulher e, nos ter-
causal, já que, no caso sub iudice, as malformações mos supra expostos, até como um direito do feto.
não foram causadas pelo médico e ele nada poderia Questiona-se, ainda, se poderá ser concebido como
26 fazer para as eliminar. Isto é, uma vida com quali- um dever da mãe legitimador de uma pretensão
dade nunca foi uma hipótese real para esta criança. ressarcitória de um filho contra a sua progenitora,
Acresce que se pode alegar ser atentatório da pelo facto de ter nascido.
dignidade do filho nascido considerar a sua vida 8. Prova da escolha pela interrupção
com deficiência como um dano. Em contraposição, voluntária da gravidez: um outro elemento
não será verdadeira indignidade recusar a este fi- essencial neste tipo de casos é o de saber se a res-
lho, pela via indemnizatória, uma quantia que lhe ponsabilidade para com a mãe, e ainda que apenas
permita suportar o encargo da sua condição, preci- para com ela, poderá ficar dependente da alegação
samente de forma mais digna? e demonstração de que, tivesse ela tido conheci-
6. Titularidade dos danos patrimoniais: mento das malformações do feto, teria optado pela
admitindo a ressarcibilidade dos danos do filho, se- interrupção da gravidez. Se, por um lado, pode ser
riam apenas os danos não patrimoniais. A total au- difícil de provar, por outro pode ser tão fácil quan-
sência de autonomia actual e futura faz recair sobre to aceitar a alegação da mãe. Fará sentido impor
a sua mãe a necessidade de patrimonializar em si este requisito? Ou deverá esta prova ser dispensa-
própria o montante de que necessitará para garan- da, relevando tão-só o dano de remoção da possibi-
tir a dignidade mínima da vida do filho. lidade de escolha, ainda que não se possa saber que
Contudo, a atribuição destes montantes, que escolha teria sido feita?
Mesa 2

PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO


Presidente da Mesa: Helena Moniz |Juíza Conselheira do STJ
Relatores: Andreia Costa Andrade | Doutoranda da FDUC

CASO 1 iii) No percurso até ao hospital a J vomitou,


já no Hospital foi atendida e observada pelo
APRESENTADO PELO DR. ORLANDO arguido A, que se encontrava no serviço de
MANUEL JORGE GONÇALVES | JUIZ urgência a prestar serviço como médico. J
DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DA apresentava vómitos, cefaleias e tonturas.
RELAÇÃO DE COIMBRA Ainda informou o médico que sofria de
A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção Hipertensão Arterial, mas o arguido A limi-
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra tou-se na respetiva ficha de atendimento a
B. Palavras-chave: homicídio, omissão, negligência, descrever os seus sintomas e sinais clínicos
princípio da confiança, leges artis não realizou qualquer diagnóstico ainda que 27
provisório em relação à doente nem solici-
C. Os factos, o Direito e a Decisão tou a realização de qualquer exame.
1. Os factos iv) Perante os níveis de glicemia e sinais vi-
i) Foram submetidos a julgamento em pro- tais, inscritos na ficha da doente, o arguido
cesso comum, com intervenção do Tri- instituiu como terapêutica que lhe fosse
bunal Singular, os arguidos A, B, C, e D, administrada a seguinte medicação: «1f de
todos médicos, imputando-se a cada um Ranitidina diluída em 100cc de soro fisio-
dos arguidos, como autores materiais, a lógico; 1 f ev de Metoclopramida; 1 f ev
prática de um crime de homicídio por ne- de Buscopan». E mais tarde determinou
gligência (por omissão), previsto e punido a administração de 5mg de Adalat sublin-
pelas disposições conjugadas dos artigos gual. Após a administração deste último
10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e 137.º, n.º 1, todos fármaco verificou-se uma melhoria da
do Código Penal. sintomatologia apresentada pela doente
(TA=132/89 mmHg; P = 79bpm – dados
ii) Porquanto: no dia 25 de Setembro de estes inscritos na ficha da doente).
2004, a J sentiu-se subitamente indisposta,
com náuseas e com fortes dores na zona v) Ainda assim, o arguido A sugeriu à pacien-
da nuca e na cabeça, tendo sido conduzida te J a sua transferência para o Hospital,
pelas 21H45, em ambulância, ao Hospital, mas esta recusou e regressou ao respec-
na companhia do marido. tivo domicílio, dando o arguido A indica-
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

ções aos familiares daquela que poderiam ticando-lhe um problema gastro-intesti-


administrar-lhe «Brufen 400» para alívio nal, manteve-a no serviço de urgência para
das cefaleias. Já em casa, a J apresentou observação e administração de soro para a
movimentos comprometidos aparentando desidratação. Também a arguida B não fez
um estado sonolento e cambaleante. Após nem solicitou qualquer observação neuro-
medição da tensão arterial e novo contac- lógica da J.
to com o Hospital, o arguido A resolveu viii) Foi com a referência de problemas gastro-
então optar pela sua transferência para o -intestinais que a doente foi depois trans-
Hospital, para observação e para realiza- ferida para o médico C, assistente de clíni-
ção de análises, sem jamais fazer qualquer ca geral, tendo este entrado ao serviço no
diagnóstico ainda que de presunção em mesmo hospital, pelas 00H00 do referido
relação à mesma. No Boletim de transfe- dia 26 de Setembro de 2004. Este arguido,
rência o arguido manuscreveu as seguintes também observou a doente, e recolheu jun-
informações: que o seu diagnóstico foi em to desta informação sobre as razões da sua
relação à doente «Má disposição, vómi- ida ao Hospital e sintomas que tinha apre-
tos alimentares, cefaleias e tonturas, páli- sentado anteriormente. Soube pela mesma
da» e que a mesma «Fez: Glicemia: 112; e respectivos familiares da situação de súbi-
TA 148/105 P: 79bpm» e que havia sido ta ocorrência de cefaleias intensas, náuseas,
28 medicada com “Metoclopramida”, “Bus- tonturas e vómitos. Soube da medicação an-
copan”, “Ranitidina” e “Adalat” sublíngual teriormente prescrita pela arguida B
para a hipertensão arterial». ix) Pelas 05H00 do referido dia 26 de Setem-
vi) A J foi então transportada de ambulância bro de 2004, este arguido deu alta à J, uma
para o Hospital, onde deu entrada pelas vez que esta teria estado a dormir desde as
00H30 do dia 26 de Setembro de 2004, 00H30, sem qualquer alteração do seu es-
e encaminhada para o serviço de urgência tado. Também este não efectuou qualquer
onde foi atendida pela arguida B. O bole- diagnóstico ainda que de presunção, não
tim de transferência remetido pelo arguido obstante, ter observado a doente e ter tido
A não chegou ao conhecimento dos médi- acesso à sua ficha clínica e a informações
cos que assistiram a paciente J no Hospital. prestadas pessoalmente pela mesma e pe-
vii) Como a doente apresentasse vómitos à en- los seus familiares.
trada no serviço, e bem assim náuseas, a x) No boletim clínico o arguido C diagnosti-
arguida B após observar a doente e a in- cou à J uma «dispepsia», e medicou a mes-
dagar sobre os sintomas que apresentou ma com «Primperan». No percurso do hos-
anteriormente e que levaram à sua condu- pital até casa a J apresentou um quadro de
ção ao hospital, medicou a J com «Primpe- algias generalizadas e vómitos, razão pela
ran» - medicamento destinado a prevenir qual regressou ao serviço de urgências do
ou evitar náuseas - e com soro fisiológico hospital, cerca das 5 horas e 30 minutos.
para uma eventual desidratação. Diagnos-
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

xi) Pelas 9H00 da manhã a J foi conduzida Central onde foi confirmado o diagnóstico
numa cadeira de rodas à presença do médi- de hemorragia subarcanoideia, revelando a
co de serviço, o arguido D, assistente gra- TAC: «extenso hematoma lobar temporal
duado de clínica geral que se inteirou da fi- direito, com rotura para o sistema ventri-
cha clínica da doente, efectuou observação cular e espaço subaracnoideu, condicio-
da mesma e determinou que esta fizesse nando efeito de massa e desvio das estru-
análises ao sangue, mas não realizou qual- turas da linha média.».
quer diagnóstico de encefalopatia hiper- xv) Dada a gravidade da situação neurológica
tensiva, ainda que de presunção. Na pre- não foi possível encarar a hipótese de in-
sença deste médico a J voltou a vomitar. tervenção neurocirúrgica. A doente fale-
xii) Depois de ter verificado que não havia ne- ceu pelas 22 horas e 30 minutos do mesmo
nhum registo fora dos parâmetros de nor- dia 26 de Setembro de 2004, sendo indica-
malidade nos resultados das análises reali- da como causa da sua morte «hemorragia
zadas, este médico deu indicações à filha sub-aracnoideia». A J sofria de hipertensão
de J que iria dar alta a esta. Face às reser- arterial estando devidamente medicada,
vas apresentadas pela filha, em levar a mãe facto este que os familiares comunicaram
para casa, interpelando o arguido D no aos vários médicos que observaram aque-
sentido de saber se não seria adequado su- la, e designadamente aos arguidos.
jeitar a sua mãe a uma T.A.C. (tomografia 29
computarizada craneoencefálica), o mes- 2. O Direito
mo referiu que tais exames ali não se reali- As questões suscitadas pelo presente caso en-
zavam. Face à insistência dos familiares, D volvem essencialmente a interpretação do tipo
acabou por manter J em observação. legal de crime de homicídio por negligência (por
xiii) Pelas 12H30, J apresentou um quadro de omissão), previsto e punido pelas disposições con-
tremores seguido de cianose marcada dos jugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e 137.º,
lábios, mãos e dedos acompanhado de in- n.º 1 todos do Código Penal.
continência dos esfíncteres. Conduzida à 3. A decisão
sala de emergência, verificou-se que J so- O Tribunal Singular, por sentença proferida em
freu paragem respiratória, tendo o médico Julho de 2009 e confirmada pelo Tribunal da Re-
de serviço requisitado a sua transferência lação de Coimbra, instado a pronunciar-se pelos
imediata para o Hospital Central para rea- arguidos C e D, decidiu:
lizar TAC e para observação em Neurolo-
gia (Neurocirurgia). A doente foi medi- • Absolver o arguido A da prática do crime de
cada com Manitol a 20%, Dexametasona, homicídio por negligência (por omissão),
Dopamina e Haemacel e foi transportada previsto e punido pelas disposições conjuga-
já em coma e sob ventilação artificial. das dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e 137.º,
n.º 1 todos do Código Penal que lhe era
xiv) Deu entrada pelas 15H40, no Hospital imputado na douta acusação pública;
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

• Absolver a arguida B da prática do crime de vição teve por fundamento a inexigência


homicídio por negligência (por omissão), de actuação diferente por parte dos argui-
previsto e punido pelas disposições conju- dos em causa visto que não dispunham de
gadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e meios para a realização do dito exame.
137.º, n.º 1 todos do Código Penal que lhe ii) Em sede de recurso, os arguidos C e D
era imputado na douta acusação pública. fundamentaram as suas alegações com base
• Condenar o arguido Jorge C pela prática na quebra do nexo de causalidade entre a
do crime de homicídio por negligência sua conduta e o evento morte. A discus-
(por omissão), previsto e punido pelas dis- são centrou-se pois na conduta de cada um
posições conjugadas dos artigos 10.º, n.ºs dos arguidos e contributo das mesmas para
1 e 2, 15.º e 137.º, n.º 1 todos do Código o desfecho, tendo sido introduzido nesta
Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) sede o Princípio da Confiança, as suas li-
dias de multa, à razão diária de € 20,00 mitações e necessária articulação com as
(vinte euros), o que perfaz a quantia de € leges artis médicas.
2.800,00 (dois mil e oitocentos euros).
• Condenar o arguido D pela prática do CASO2
crime de homicídio por negligência (por
omissão), previsto e punido pelas dispo- APRESENTADO (APRESENTADO PELA DRA.
30 sições conjugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 ANA ELISABETE FERREIRA — ADVOGADA
e 2, 15.º e 137.º, n.º 1 todos do Código E DOUTORANDA PELA FDUC
Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta A. Identificação da decisão: Decisão da Secção
euros), à razão diária de € 20,00 (vinte eu- de Instrução Criminal da Instância Central do Tribu-
ros), o que perfaz a quantia 3.000,00 (três nal da Comarca de Viseu
mil euros). B. Palavras-chave: crime de aborto, homicídio ne-
D. Problemas jurídicos discutidos na ses- gligente, intervenções e tratamentos médico-cirúrgi-
cos com violação das leges artis
são, soluções e sugestões apresentadas
C. Os factos, o Direito e a Decisão
Após a exposição dos factos e da decisão toma-
da e confirmada sobre eles, a discussão centrou-se 1. Os factos
sobre dois aspetos essenciais: i) A assistente, A, estava grávida de gémeos,
i) A decisão de absolvição dos arguidos A e uma gravidez de risco, tendo-se deslocado
B da prática do crime que lhes era imputa- várias vezes ao hospital e à maternidade.
do pela acusação proferida pelo Ministério No dia 14 de Novembro de 2010, deu en-
Público seria adequada tendo em conta que trada no serviço de urgência do hospital,
em sede de produção dos meios prova foi no serviço de obstetrícia com corrimento
afirmado pelo Perito que no caso concre- líquido, tendo sido observada pelo médico
to e perante a sintomatologia apresentada, M, ora arguido, que depois de ter auscul-
se imputa já a realização de TAC. A absol- tado os corações dos fetos, disse estar tudo
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

bem e mandou a assistente para casa. A pe- 3. A Decisão


rícia médica realizada à posteriori também A assistente requereu a abertura de instrução,
entendeu que não havia razão objectiva fase facultativa do processo criminal que visa a
para internar a grávida. comprovação judicial da decisão que pôs termo ao
ii) Mais tarde, no mesmo dia, A deu entrada inquérito, determinando no caso concreto o arqui-
no mesmo serviço de urgência, com as vamento. Perante a prova produzida, o Juiz de Ins-
mesmas queixas, tendo desta feita o ar- trução criminal concluiu que a morte de qualquer
guido solicitado a uma enfermeira a rea- um dos fetos não poderia ser imputada ao arguido.
lização de exames, após os quais encami- Todas as testemunhas e pareceres técnicos foram
nhou a assistente para a maternidade. Não unânimes em concluir que o Dr. M, ora arguido
foi efectuada ecografia fetal, mas não era quer no primeiro, quer no segundo episódio de ur-
obrigatória, não só porque a grávida estava gência, utilizou os procedimentos correctos e que
bem estudada sob o ponto de vista ecográ- se impunham, não existindo qualquer violação de
fico, mas também por a frequência cardía- leges artis, nem qualquer negligência médica, pelo
ca de ambos os fetos serem audíveis. que proferiu despacho de não pronúncia.
iii) Já na maternidade, um dos fetos nasceu
sem vida e o outro morreu 17 minutos D. Problemas jurídicos discutidos na ses-
após o nascimento, sendo que a morte do são, soluções e sugestões apresentadas
segundo ficou a dever-se ao longo período 31
que o primeiro permaneceu sem vida no Após a exposição dos factos e da decisão to-
interior da barriga da assistente. mada sobre eles, a discussão na sessão centrou-se
iv) Em face da prova documental, pericial e sobre os elementos probatórios relativos ao pri-
testemunhal produzida em sede de inqué- meiro episódio de urgência, disponíveis nos autos
rito, o Ministério Público proferiu despa- e desconsiderados para efeitos de apreciação do
cho de arquivamento dos autos. crime de violação dolosa das leges artis nos ter-
mos do artigo 150.º, n.º2 do C.P.. De facto, desde
v) A assistente requereu a abertura de instru- logo, foi afastado o enquadramento dos factos pela
ção, fase facultativo do processo criminal perspetiva do tipo de ilícito criminal de aborto. A
que visa a comprovação judicial da decisão questão mais debatida pelos auditores foi antes a
que não consideração da realização de mais exames ou
2. O Direito transferência da assistente para hospital central a
O circunstancialismo concreto do caso im- fim de os realizar, já que seria impossível realizá-
plicam a interpretação dos tipos legais previstos -los naquele serviço, mas determinante para em
e punidos nos artigos 140.º, n.º 1 e 150.º, n.º 2 concreto avaliar o verdadeiro estado dos fetos. Sa-
ambos do Código Penal, respetivamente um crime ber se essa transferência cabia ou não no conceito
de aborto e de intervenções médicas com violação de leges artis e se consistia a não transferência uma
dolosa das leges artis. violação das mesmas, foi pois o foco principal da
sessão de debate.
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

CASO2 cusa de auxílio médico p. e p. no artigo


284º do Código Penal.
APRESENTADO PELO DR. ARTHUR
KULLOK — DOUTORANDO FDUC iv) No âmbito de processo disciplinar que
decorreu junto da Ordem dos Médicos,
A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção o Conselho de Especialidade de Oftalmo-
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra logia emitiu parecer em que conclui pela
B. Palavras-chave: recusa de médico, tipo objectivo, culpa do médico. Considera o Conselho
dolo de perigo, direito de queixa que no acto da primeira consulta ocorrida
C. Os factos, o Direito e a Decisão em 10 de Agosto de 2004, nada fazia supor
ter havido qualquer erro ou acto negligen-
1. Os factos te pois a conduta técnica é a correcta. Na
segunda consulta datada de 27 de Abril de
i) No presente caso, A, o denunciante que 2005 considera incorrecto que perante
entretanto se constituiu assistente, apre- uma situação em que o glaucoma no OD
sentou queixa contra B, médico especia- ao doente não tenha ficado marcada con-
lista de oftalmologia, imputando-lhe res- sulta para o máximo de uma semana de-
ponsabilidades pela cegueira no seu olho pois. Menciona o referido parecer que não
direito, sem aludir a um específico tipo é aceitável que uma situação com uma gra-
32 legal de crime. De facto, o paciente foi vidade destas o doente só tenha sido ob-
acompanhado pelo médico oftalmologista servado 5 meses depois ou mesmo naquela
em três consultas, tendo na última delas altura transferi-lo de imediato para uma
constatado a cegueira e encaminhado para estrutura hospitalar com carta de referen-
a médica de família. ciação. Tal procedimento só veio a ser feito
ii) Findo o inquérito, e depois de considerar na consulta de 14 de Setembro de 2005,
que os factos investigados seriam suscep- quase cinco meses depois e considera
tíveis de integrar, em abstrato, o crime de completamente desajustada a transferên-
intervenções e tratamentos médico-cirúr- cia do processo para a médica de família,
gicos p. e p. pelo artigo 150º nºs 1 e 2 do pois poderia e devia-se logo enviar o doen-
Código Penal, pelo Ministério Público foi te directamente para o hospital, deixando
proferido despacho em que, declarando os processos burocráticos para depois.
extinto, por prescrição o procedimento v) A decisão de não pronúncia proferida pelo
criminal, determinou o arquivamento dos Juiz de instrução criminal no término da
autos. Instrução, considerou que não resulta in-
iii) Não se conformando com o teor diciariamente preenchido o necessário
de tal despacho, A requereu a constituição elemento subjectivo do crime de recusa de
de assistente (que entretanto foi admitida) médico p. e p. art. 284º do C. P., visto que
e a abertura de instrução, pugnando pela se trata de um crime doloso, bem como o
pronúncia do arguido por um crime de re- crime de intervenções e tratamento médi-
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

co p. e p. art. l50º do C.P., pois ambos os através da assinatura do AR respeitante à carta re-
casos se exige como elemento subjectivo gistada que continha o despacho de acusação do ar-
do tipo, o dolo ainda que em qualquer das guido (no âmbito do processo disciplinar do Con-
suas modalidades. E qualifica-se juridica- selho Disciplinar da Ordem Médicos). De modo
mente a conduta do arguido como subsu- que, independentemente do desfecho final que e
mível ao crime de ofensas à integridade quando venha a ter o procedimento disciplinar,
física por negligência, agravadas pelo re- ao ter apresentado a queixa que deu origem aos
sultado, p. e p. art. 148º n.º 1 e 3 do C.P. presentes autos apenas no dia 05/03/2010, resul-
Porém, considerou-se ainda que o referido ta para o tribunal ad quem que essa apresentação
crime depende de queixa, tratando-se o foi após o prazo legal de 6 meses a que alude o
crime previsto no art. 148.º n.º 1 e 3 do nº 1 do artigo 115º do Código Penal, prazo esse
CP um crime semipúblico e nesta medida que havia terminado em 26/12/2011. Naquela
porque a queixa foi apenas apresentada em data (05/03/2010) já havia caducado o referido
5 de Março de 2010, tinha já passado os prazo, pelo que a queixa foi extemporaneamente
seis meses que a lei prevê para a sua apre- apresentada. Faltando, pois, uma condição de pro-
sentação, desde a notificação do Assistente cedibilidade – a apresentação de queixa dentro do
do Parecer do Colégio de especialidade de prazo imposto por lei – jamais o arguido poderia
oftalmologia, a 26 de Junho de 2009. ser pronunciado pelo crime de ofensa à integrida-
de física p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código 33
2. O Direito Penal, crime este que, como dizemos no item an-
O caso concreto suscitou a apreciação da ver- terior, reveste natureza semipública.
tente processual e formal dos factos, procurando
aferir se verdadeiramente havia decorrido prescri- D. Problemas jurídicos discutidos na ses-
ção do procedimento criminal em relação aos cri- são, soluções e sugestões apresentadas
mes de recusa de médico (art. 284.º do CP) e de Além da questão relativa à efetiva prescrição
ofensa à integridade física agravada pelo resultado ou não do procedimento criminal pelo enquadra-
(art. 147.º do CP). mento possível no crime de ofensas à integridade
3. Da Decisão física agravada pelo resultado, de recusa de médico
Independentemente da questão de saber se nos ou de intervenções médico-cirúrgicas com viola-
presentes autos se estaria (ou não) perante um cri- ção dolosa das leges artis, a discussão centrou-se
me de ofensa à integridade física por negligência p. nas propostas de alteração da lei apresentadas pelo
e p. pelo artigo 148º nº 1 e 3 do Código Penal, e orador, tendo em conta o regime estabelecido pelo
depois de analisados os documentos constantes dos regime jurídico de criação, organização e funciona-
autos e mencionados na decisão recorrida, consi- mento das associações públicas profissionais, a Lei
derou que o prazo de seis meses para o exercício n.º 2/2013, de 10 de Janeiro. De facto, foi enten-
do direito de queixa se iniciou com a notificação dimento geral que este regime, conjugado com a
feita ao ofendido em 26/06/2009, concretizada denúncia obrigatória prevista no artigo 242.º do
Código de Processo Penal, deveria determinar a
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

obrigação de denúncia pela Ordem dos Médicos, correr aos serviços clínicos da companhia
em face da conclusão do processo disciplinar pela de seguros no dia 26 de Junho de 2006.
culpa do médico. iii) O arguido fez constar no regis-
to de observação clínica do doente que o
CASO 4 mesmo apresentava laceração conjuntival e
hiferna do OD, não tendo feito quaisquer
referências às circunstâncias em que ocor-
APRESENTADO PELO DR. LUÍS FARINHA reu o traumatismo referido pela enfermei-
ROSA – PROCURADOR GERAL ADJUNTO ra na triagem e reafirmado pelo doente ao
— TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA arguido aquando da sua observação, nem
A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção fez constar o resultado de qualquer exame
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra oftalmológico efectuado, nomeadamente
do fundo ocular, bem como não procedeu
B. Palavras-chave: ofensa à integridade física por negli- à realização de qualquer exame comple-
gência – acto médico – imputação objetiva do resultado
mentar de diagnóstico, nomeadamente,
C. Os factos, o Direito e a Decisão radiografia do globo ocular, TAC ou eco-
grafia ocular.
1. Os factos iv) Face ao agravamento das dores, no dia 26
34 i) No dia 22 de Junho de 2006, C desempe- de Junho de 2006, o C dirigiu-se á Clínica
nhava as funções de carpinteiro quando ao L onde funcionavam os serviços médicos
apertar uma castanha da cofragem metálica da companhia de seguros para quem a sua
de uma pilar, soltou-se um estilhaço que se entidade empregadora havia transferido a
introduziu no seu olho direito, tendo-lhe responsabilidade por acidentes de traba-
provocado fortes dores. Transportado ao lho. Ali foi-lhe recomendado, depois de
serviço de urgência, queixando-se de ter ter entrado em contacto telefónico com o
sido atingido no olho direito por um esti- arguido, que também ali prestava serviço
lhaço metálico que estava a montar, pelo como médico especialista em oftalmolo-
que lhe foi atribuído a prioridade laranja gia, para se dirigir às Urgências do Hospi-
pela enfermeira da triagem por traumatis- tal o que ele fez de imediato.
mo ocular penetrante. v) No serviço de Urgência o ofendido foi ob-
ii) De seguida o C foi observado pelo arguido, servado pelo Dr. H assistente graduado de
médico especialista em oftalmologia, que oftalmologia, que constatou que o doente
prestava serviço no Hospital como assis- tinha uma endoftalmite, tendo requisitado
tente de oftalmologia, que procedeu à vi- uma radiografia da órbita, através da qual
sualização directa do referido olho e, após, detetou um corpo metálico intra-ocular
prescrever antibióticos, penso oclusivo, si- no OD do ofendido. De seguida medicou
cloplégico e corticosteroides dando alta ao o doente com antibiótico sistémico e or-
doente no mesmo dia com indicação de re-
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

denou a transferência para os Hospitais da viii) Em 16 de Outubro de 2010, o ofendido


Universidade de Coimbra, com vista a ser foi observado pelo Dr. J médico especia-
submetido a intervenção cirúrgica. Nesse lista de oftalmologia na Clínica de M em
mesmo dia, foi realizado uma TAC e uma Coimbra, apresentando ausência de visão
radiografia ocular, tendo resultado que o do OD, hemorragia da camara anterior e
doente apresentada “OD – Corpo estranho posterior e uma leva inflamação revelando
intra-ocular na cavidade vítrea inferior, às uma acuidade visual do OE 10/10, tendo
7h com 96h de evolução e endoftalmite, sido medicado com gotas anti-inflamató-
membrana inflamatória espessa, pupilar, rias. O ofendido voltou a ser observado
com sedusão e edema da córnea”. No mes- pelo Dr. J no dia 7 de Novembro de 2006,
mo dia, o doente foi submetido a extração permanecendo o OD sem visão, com he-
do corpo estranho intra-ocular com elec- morragia intra-ocular em reabsorção e
troíman, via para plana e foi efectuada an- uma baixa de visão do OE de 4/10 com
tibacteria terapia tópica e sistémica. Após a edema da papíla e da mácula desencadeado
cirurgia e depois da observação oftalmoló- pelo processo inflamatório geral.
gica, foi concluído que o doente apresen- ix) Em consequência da inflamação geral que
tava membrana inflamatória na câmara an- atingia o OE, o doente foi medicado com
terior catarata e organização do vítreo por elevadas doses de cortisona e no dia 29 de
endoftalmite. Por essa razão, no dia 30 de Novembro de 2006, submetido anucleação 35
Junho de 2006, o ofendido foi submetido (remoção) do olho cego e colocada uma
a uma faco facofagia e a uma vitrectomia prótese artificial em sua substituição. Por
posterior. outro lado em Janeiro de 2007, o OE ainda
vi) No dia 9 de Julho de 2006, o ofendido teve revelava um edema macular apresentando
alta daquele hospital quando já apresenta- por fim, em 2 de Dezembro de 2008, uma
va ausência da perceção luminosa e a exis- acuidade visual do OE de 9/10, sem lente
tência de um descolamento total da reti- data em que teve alta clínica.
na com vitreorretinopatia proliferativa de x) Consideradas as queixas apresentadas pelo
grau D3, sem solução cirúrgica, (ceguei- doente/ofendido, a indicação feita na tria-
ra do olho direito e sinais de inflamação gem de traumatismo ocular penetrante e,
geral). conforme as regras da praxis médica, que
vii) Após aquela data o ofendido continuou a o arguido bem conhecia, perante qualquer
necessitar de tratamento médico, pelo que traumatismo ocular, o arguido podia e de-
passou a ser acompanhado na Clínica L, via ter feito um interrogatório pormenori-
pelo arguido até 28 de Setembro de 2006, zado sobre as circunstâncias em que ocor-
continuando sem percepção luminosa do reu o traumatismo, bem como, não tendo
OD e uma acuidade visual de 9/10 sem sido possível a visualização directa de um
correção do OE, sendo o prognóstico do corpo estranho intra-ocular, podia e devia
OD praticamente nulo. o arguido ter procedido a exames comple-
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

mentar de diagnóstico que o detectariam, D. Problemas jurídicos discutidos na sessão,


designadamente radiografia do globo ocu- soluções e sugestões apresentadas
lar, TAC ou ecografia ocular.
Importa pois reflectir sobre a noção de negli-
xi) Ao não proceder desta forma pro- gência constante do art.10.º do CP, sem olvidar a
vocou um atraso de 4 dias na detecção e imputação de um resultado danoso a uma omissão
remoção do corpo estranho no OD, agra- de dever segundo as leges artis, na medida em que
vando por isso o risco de complicações, essa omissão aumentou ou incrementou um risco
nomeadamente infeciosas que tiveram proibido, sem sequer ser necessário ter a certeza
como consequência as lesões descritas e do tratamento adequado e omitido. Dito de outro
descriminadas nos relatórios periciais, as modo, só não será censurável plenamente por ne-
quais foram causa directa e necessária de gligência uma omissão que tenha sido questionada
894 dias de doença sendo 21 dias com que de facto não tenha aumentado, incrementado
afectação da capacidade de trabalho geral ou criado um risco proibido para o bem jurídico
e 112 dias com afectação da capacidade protegido pelo tipo de ilícito.
profissional, tendo ainda resultado doença
particularmente dolorosa e a perda de um CASO 5
importa órgão, no caso, o OD.

36 2. Do Direito APRESENTADO PELA DRA. OLGA MAURÍCIO


O caso em análise suscita a aplicação de normas — JUÍZA DESEMBARGADORA — TRIBU-
de Direito Penal, nomeadamente as concernentes à NAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
prática de crimes negligentes e não apenas na de- A. Identificação da decisão: Acórdão da 4.ª
terminação dos requisitos formais que determinam Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
a responsabilidade civil em resultado de acto médico.B. Palavras-chave: recusa de médico; violação das
leges artis; potenciação do risco
3. Da Decisão
Acusado o arguido, médico no serviço de ur- C. Os factos, o Direito e a Decisão
gência, pela prática de um crime de ofensa à in-
tegridade física por negligência, p. e p. pelo art. 1. Os factos
148.º, n.º 1 e 3 do CP, foi o mesmo condenado i) No dia 20 de Maio de 2007, o assistente
numa pena de 200 dias de multa à taxa diária de D teve um acidente de viação, quando o
€ 25,00. Foi ainda condenado o Centro Hospita- veículo automóvel onde seguia se despis-
lar onde foi prestada assistência médica ao doen- tou e foi embater contra um muro. Devi-
te/vítima do crime, no pagamento da quantia de do aos ferimentos sofridos, foi socorrido e
€ 50.000,00 a título de danos não patrimoniais, transportado pelo INEM ao hospital. Apre-
acrescida dos juros de mora legais e ainda da quan- sentava traumatismo do membro superior
tia de € 88.305,78 a título de danos patrimoniais direito, com fracturas. Deu entrada nos
pela incapacidade para o trabalho, acrescida dos ju- serviços de urgência do Hospital, foi-lhe
ros de mora legais. atribuída prioridade vermelha, com queixa
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

inicial de “acidente de viação com esfacelo ganizava a escala de serviço e pagava aos
do braço direito” e “hemorragia exsangui- médicos, não exercendo qualquer con-
nante”. Foi encaminhado imediatamente trolo quanto à forma como o serviço era
para a sala de emergência. Aí, foi obser- efetuado, dentro da instituição hospitalar.
vado pelo médico especialista em cirurgia No serviço de urgência não existia a espe-
geral Luís, assistido pela enfermeira Cátia. cialidade de cirurgia plástica. Após obser-
Foram colocadas talas a imobilizar mem- vação, foram identificadas pelos arguidos
bro superior direito, que se apresentava no membro superior direito do assistente
sangrante. Foi efectuado raio-x ao tórax e as seguintes lesões: fractura exposta grau
ao membro superior direito. Foi-lhe colo- III do cotovelo, fractura do terço inferior
cada sonda nasogástrica, por se apresentar diáfise umeral, fractura multiesquilorosa
nauseado. Foi-lhe administrada medicação supra e intracondiliana do úmero, fractura
e identificado esfacelo grave do membro cominutiva do terço proximal do cúbito,
superior direito com fractura exposta e fractura do taciculo radial, lesão do nervo
muito complexa do cotovelo. Encontrava- radial e esfacelo extenso com perda consi-
-se estável a nível hemodinânico e foram derável de substância da região posterior
excluídas lesões traumáticas crâneo-ence- do cotovelo.
fálicas, abdominais ou torácicas que pu- iii) A descrita fractura exposta de grau III
sessem em perigo a vida do assistente nos constitui uma urgência ortopédica e, se- 37
momentos ou horas imediatas e excluídas gundo a boa prática médica, deve ser ime-
lesões passíveis ou a carecer de tratamento diatamente (logo de início) estabilizada
por cirurgia geral. com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgi-
ii) Assim, após observação, dada a inexistên- ca (desbridamento), feita mediante aneste-
cia de lesões do foro de cirurgia geral e a sia e no bloco operatório. Esse tratamento
necessidade de tratamento das lesões des- deve ser efetuado no mais curto espaço de
critas por ortopedia, foi encaminhado para tempo possível, sendo de preferência efe-
esta especialidade. Nessa noite, no serviço tuado antes de decorridas 6 horas. O de-
de urgência de ortopedia do hospital en- curso do tempo sem o tratamento descrito
contravam-se de serviço o arguido Carlos potencia o aparecimento de lesões seque-
e o arguido Alexandre, médicos especia- lares e ficam também potenciados os riscos
listas em ortopedia, aos quais coube toda hemorrágicos, neurológicos e infecciosos,
a observação do assistente e a determina- sendo que a taxa de infecção chega a atin-
ção da assistência médica e da medicação a gir 40%, na ausência de tratamento. O
efectuar. Os dois arguidos não pertenciam afastamento desses riscos e lesões só podia
aos quadros do hospital e iam aí prestar ser efectuado com a realização imediata da
serviço de ortopedia através da empresa cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a
H, sendo inclusivamente esta empresa que estabilização da fractura mediante a colo-
procedia à sua selecção, recrutamento, or- cação de fixadores provisórios no membro
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

superior direito, ainda que a imobilização vi) Como o assistente foi sem qualquer con-
com tala gessada, a limpeza da ferida feita tacto prévio do hospital de Aveiro, o ar-
com soro e desinfectante e a administração guido José falou telefonicamente com o
de antibiótico diminua, temporariamente, arguido Alexandre que lhe afirmou que
esses riscos. lhe enviava o assistente porque carecia de
iv) Observado o assistente, foram efectuados cuidados de cirurgia plástica. Informou
penso, limpeza e lavagem da ferida e imo- o colega de Aveiro que o serviço de ur-
bilização gessada do membro superior di- gência dos Hospitais da Universidade de
reito. A final, os arguidos não efectuaram Coimbra não tinha cirurgia plástica entre
o internamento imediato do assistente em as 0h e as 9h e que, se o tivesse contactado
ortopedia para ser sujeito a cirurgia para previamente, não se teria justificado esse
limpeza cirúrgica e para estabilização da envio. Disse-lhe ainda que, após avaliação
fractura com osteotaxia, quando o deviam do assistente, se não se justificasse uma ac-
e podiam ter feito, porquanto tinham co- tuação emergente da parte da equipa de
nhecimentos para tal e existiam todas as ortopedia dos Hospitais da Universidade
condições para o efeito, decorrido que de Coimbra lho iria devolver e reforçou a
fosse o prazo de seis a oito horas após a necessidade de o mesmo ser operado e de
ingestão de alimentos. Resolveram, antes, lhe serem aplicados fixadores externos.
38 transferi-lo para os Hospitais da Univer- vii) Posto isto, o assistente regressou de ambu-
sidade de Coimbra por entenderem que lância ao hospital de Aveiro, onde chegou
carecia de cuidados de cirurgia plástica. às 5h 28m. É encaminhado para o servi-
Antes da transferência, não diligenciaram ço de urgência de ortopedia onde ainda se
no sentido de averiguar se estes hospitais encontravam em funções o arguido Carlos
dispunham dessa especialidade. O serviço e o arguido Alexandre e o enfermeiro Ri-
de urgência dos HUC não tinha cirurgia cardo. Estes dois arguidos não efectuaram
plástica entre as 0h e as 9h. novamente o internamento imediato do
v) Pela 1h 20m, foi transportado em assistente em ortopedia para ser sujeito a
ambulância medicalizada, com acompa- cirurgia para limpeza cirúrgica e para esta-
nhamento pelo enfermeiro Ricardo, aos bilização da fractura com osteotaxia, quan-
Hospitais da Universidade de Coimbra, do o deviam e podiam ter feito, porquanto
onde chegou às 2h05m. Foi observado em tinham conhecimentos para tal e existiam
cirurgia geral pela médica interna que lhe todas as condições para o efeito. Resolve-
deu alta e pediu orientação pelos colegas ram, antes e tão-só, prescrever medicação
de ortopedia. Foi, então, encaminhado e deixar os cuidados médicos a prestar ao
para o serviço de ortopedia onde se en- assistente, designadamente, a realização da
contrava de serviço, na qualidade de chefe cirurgia e a estabilização com osteotaxia,
de equipa de ortopedia, o arguido José, es- para os colegas da nova equipa do serviço
pecialista em ortopedia. de urgência de ortopedia que entraria de
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

serviço às oito horas da manhã. terço superior da face posterior do ante-


viii) Às 8 horas, houve mudança na escala da braço com 14cmx12cm, que inclui enxer-
equipa médica no serviço de urgência de to cutâneo; apenas 30º de extensão e cerca
ortopedia e entraram ao serviço o médico de 90º de flexão do antebraço; atrofia mus-
especialista em ortopedia Miguel e o mé- cular do braço e do antebraço; três cicatri-
dico especialista assistente graduado em zes operatórias verticais, no braço, a maior
ortopedia José, que pelas 9h 15m, decidiu com 15cm, posterior, do terço médio ao
pelo internamento imediato do assistente cotovelo; cicatriz operatória no antebra-
em ortopedia para ser sujeito a cirurgia. A ço, no terço médio do bordo lateral com
cirurgia teve início às 9h 25m, e nela inter- 9,5cmx1,5cm. O assistente ficou, assim,
vieram como operador o médico Manuel com sequelas que afectam de modo grave a
e como ajudante, entre outros, o referido utilização do seu corpo e a sua capacidade
médico Miguel. Foram efectuados limpeza de trabalho, para além de o desfigurarem
e desbridamento cirúrgico, osteotaxia do de forma grave e permanente.
úmero e encavilhamento do cúbito. xi) Os arguidos representaram o pe-
ix) Foi sujeito a nova operação em 28/06/2007 rigo de grave lesão da integridade física
e a outra operação em 27/07/2007, pri- do assistente, tinham consciência da indis-
meiro para estabilização definitiva das frac- pensabilidade e da adequação dos cuidados
turas e posteriormente para remoção da médicos que deviam ter prestado e omiti- 39
osteotaxia mantida. Teve alta a 8 de Agos- ram e, dessa forma, violaram o dever que
to de 2007. Foi tratado na Clínica C de lhes incumbia de proceder de imediato a
23/10/2007 a 15/05/2008, data da alta limpeza cirúrgica e à estabilização da frac-
definitiva. Aí foi operado novamente em tura com osteotaxia e de, assim, prestar a
21/11/2007 e em 27/02/2008. Fez fisio- concreta assistência médica que se lhes im-
terapia para recuperação da mobilidade e punha de acordo com o conjunto de regras
força muscular. Em 11/03/2009, consta- recomendadas pela ciência e técnica médi-
ta-se consolidação da fractura do úmero cas, e, não obstante isso, conformaram-se
com placas e parafusos, fractura do coto- com esse perigo, demonstrando uma atitu-
velo que teve perda de osso no rádio e no de de indiferença perante a situação.
cúbito e grandes perdas de partes moles, xii) O Tribunal de primeira instância decidiu
pseudoartrose grave do cotovelo com ins- condenar os arguidos Alexandre, Carlos e
tabilidade articular e rigidez na extensão José nas penas de, respetivamente, 10 me-
que só atinge 120º. ses de prisão, substituída por 300 dias de
x) Em 14/10/2010, foi sujeito a multa à taxa diária de 15 €, 10 meses de
exame médico-legal, constatando-se que o prisão, substituída por 300 dias de multa
assistente apresentava as seguintes lesões: à taxa diária de 15 €, e 5 meses de prisão,
cicatriz com depressão profunda e perda substituída por 150 dias de multa à taxa
de massa muscular, abaixo do cotovelo, no diária de 15 €, pela prática de um crime de
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

recusa de médico, do art. 284º do Código dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia
Penal. de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à es-
tabilização da fractura com osteotaxia e de, assim,
2. Do Direito prestar a concreta assistência médica que se lhes
O caso em análise suscita a análise e aplicação impunha de acordo com o conjunto de regras re-
do tipo legal de crime previsto e púnico pelo artigo comendadas pela ciência e técnica médicas, e, não
284.º do Código Penal, havendo que ponderar os obstante isso, conformaram-se com esse perigo,
elementos do tipo objetivo, ou seja a conduta de demonstrando uma atitude de indiferença peran-
recusa do auxílio, o perigo para a vida ou perigo te a situação. Agiram livre, voluntária e conscien-
grave para a integridade física de outra pessoa, que temente, bem sabendo que as suas condutas eram
não possa ser removido de outra maneira. punidas e proibidas pela penal. Pelo que, decidiu
3. Da Decisão absolver o Arguido José da prática do crime de re-
cusa de médico e da condenação em indemnização
O Tribunal da Relação entendeu que os argui- civil, em que havia sido condenado; e condenar os
dos sabiam que, na situação concreta, conhecidas arguidos Alexandre e Carlos pela prática de um cri-
as lesões e a situação de perigo, os únicos cuida- me de recusa de médico, condenar cada um deles
dos médicos susceptíveis de eliminar esse perigo na pena de 6 meses de prisão, substituídos por 180
eram a sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e dias de multa, à taxa diária de €15.
a estabilização com osteotaxia e que tinham o de-
40 ver específico de os prestar, por ser a única forma D. Problemas jurídicos discutidos na ses-
de afastar tal perigo e por terem os conhecimen- são, soluções e sugestões apresentadas
tos para os prestar. Os arguidos Alexandre e Car- Na sessão, após a apresentação dos factos e da
los e José não prestaram esses cuidados médicos decisão que compõem o caso, foi analisada à luz
imediatos quando o assistente entrou no hospital das leges artis médicas a conduta dos médicos aqui
de Aveiro pela primeira vez e no hospital de e com- arguidos, sendo unânime o entendimento de que
portamento omissivo que os mesmos arguidos ti- se tratou de uma violação, visto que optaram pela
veram quando assistiram o assistente pela segunda transferência do paciente para outro serviço hospi-
vez quando, reenviado de Coimbra, nada fizeram e talar a fim de realizar uma intervenção considera-
o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo da secundária sem que tenham actuado, como era
que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca seu dever, de modo a reduzir o perigo para a vida
de onze horas depois da produção das lesões e da e para a integridade física do assistente. De facto,
entrada do assistente no Serviço de Urgência do considerou-se que este o elemento chave para a
Hospital de Aveiro. Os arguidos representaram o integração do crime de recusa de médico, pois a
perigo de grave lesão da integridade física do assis- conduta omissa é evidente e incrementou um risco
tente, tinham consciência da indispensabilidade e para os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento
da adequação daqueles cuidados médicos e ao não jurídico-criminal.
os terem prestado quando o assistente regressou ao
hospital de Aveiro os arguidos Alexandre e Carlos,
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

CASO 6 trial e estendendo-se até ao istmo, tendo


sido realizada uma histerotomia de 7cm,
APRESENTADO PELA DRA. CATARINA dilatação do canal cervical até à vela núme-
FERNANDES ­— PROCURADORA DA ro 10, tendo-se procedido a polipectomia
REPÚBLICA por histeroscopia”.
iii) Acontece, porém, que, no decurso do pro-
A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção cedimento cirúrgico ocorreu uma perfura-
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra ção no útero, uma lesão no recto, lacera-
B. Palavras-chave: homicídio por negligência gros- ção da vagina e ruptura do quisto no ovário
seira, violação das leges artis Nesse mesmo dia (10/01/2007), cerca das
C. Os factos, o Direito e a Decisão 12:00 horas, Maria regressou à enferma-
ria, referindo queixas álgicas abdominais
1. Os factos ligeiras. Às 15:00 horas, não apresentava
i) Maria, de 59 anos, obesa, hipertensa, dia- perdas temáticas vaginais e estava ansiosa
bética tipo II insulinodependente, tomava por fumar. Às 16:00 horas não estava no
medicação com antiagregantes plaqueta- leito, porque tinha ido fumar. Às 17:00 ho-
res, fumadora. Era seguida numa clínica ras alimentou-se sozinha e mostrou-se sa-
privada, por A (a sua médica assistente). tisfeita. Às 17:30 horas queixou-se de do-
No final do ano de 2006, fez exames com- res abdominais moderadas, tendo-lhe sido 41
plementares de diagnóstico, dos quais re- administrado analgésico. Às 18:30 horas
sultava que tinha uma “volumosa massa de continuava a queixar-se de dores e não quis
limites bem definidos com 7,7cmX5,6cm jantar. O médico B mandou administrar 5u
de conteúdo liquido e gordura sugestiva de de atrapid e 1 amp de diclofenac IM. Duran-
teratoma no ovário esquerdo”, além de um te a visita, Maria referiu aos familiares que
quisto no ovário esquerdo. tinha dores e vomitou na sua presença, uma
ii) A encaminhou-a para o Serviço de Gineco- substancia de cor verde/castanha Na noite
logia do hospital distrital a fim de ser sub- de 10 para 11 /01/2007, Maria esteve apa-
metida a ressectoscopia para polipectomia rentemente calma, dormindo por períodos,
e manter vigilância clínica e ecográfica do mas mantinha dores intensas, abdómen tim-
quisto Em 07/01/2007, Maria foi interna- panizado, sem perdas hemáticas vaginais.
da no Serviço de Ginecologia, tendo sido iv) Na manhã de 11/01/2007 (quinta-feira),
recebida pela médica A (sua médica assis- Maria mantinha o mesmo quadro (dores
tente). Em 10/01/2007 (quarta-feira), nível abdominais e no epigastro nível 10 e
cerca das 08:15 horas, Maria foi submetida abdómen timpanizado), apesar de lhe ser
a ressectoscopia para polipectomia, pelo administrado diclofenac 75mg via IM. Pe-
médico B. Do relato operatório resulta que las 12:20 horas, foi administrado buscopan
foi encontrado “volumoso pólipo endome- EV e 2 microcliesteres via anal, por indi-
trial ocupando toda a cavidade endome- cação da médica C (interna), sob orien-
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

tação da médica D (chefe de enfermaria). manhã de 12/01/2007 (sexta-feira), Ma-


Às 13:00 horas, a estimulação intestinal ria mantinha o mesmo quadro (dores nível
não tinha surtido efeito, nem a analgesia abdominais e no epigastro nível 10 e ab-
e a doente mantinha-se apelativa, hipergli- dómen timpanizado), apesar da medicação.
cémica e recusava alimentar-se. Às 14:20 Às 11:00 horas foi administrada terapêuti-
horas, foi administrado 1 amp de Nolotil, ca SOS, devido às dores. Às 12:00 horas,
via endovenosa, por indicação da médica foi observada pelo médica A, que notou:
C, sob orientação da médica D. Apesar dis- “doente muito indisciplinada, sendo difícil
so, Maria manteve as mesmas queixas. Às de controlar a alimentação; contacto endo-
18:00 horas, Maria foi observada pela mé- crinologista”. Foi observada por endocri-
dica E (especialista em serviço de urgên- nologista, que alterou a prescrição.
cia), acompanhada pela médica C, que no- vi) Durante a tarde, manteve-se o mesmo qua-
tou “doente com comportamento alterado, dro (dores, apertava e com falta de apetite)
agressiva, com dores abdominais dispersas teve um vómito abundante, de caracterís-
e timpanismo; recusou medicação (para- ticas biliares. Às 16:30 horas, a médica A
cetamol) prescrita; foi observada, eviden- voltou a observar Maria, e notou “2º DPO;
ciando agressividade e não tendo deixado apirética; muito queixosa, com dores abdo-
efectuar o exame fisico necessário, razão minais generalizadas; Não obstante a esti-
42 pela qual foi prescrito enteroclitor e dia- mulação, transito intestinal não restabele-
zepan 10 mg im; contacta-se psiquiatra”. cido; Altero tabela de acordo com esquema
C, por indicação de E, mandou suspender insulinico prescrito por endocrinologista;
alimentação, colocar soro e determinou dada a comorbilidade da doente, de acor-
uma anelise à glaciemia, constatando que do com CDT realizada em 31/10/2006,
estava muito elevada (235mg/dl), bem fica sob controlo clinico e ecográfico; mar-
como solicitou que a doente fosse obser- co ecoaria e consulta de ginecologia geral
vada por psiquiatra e endocrinologista, o para 31/05/2007”. Às 17:30 horas, Maria
que sucedeu. mantinha dor moderada a nível abdominal
v) No mesmo contexto, C determinou anali- e do estômago e tinha reacções defensivas,
ses bioquímicas urgentes. Pelas 21:59 ho- mostrando-se muito debilitada Pelas 18:00
ras, chegaram os resultados das análises, de horas de 12/01/2007, perante a médica A
onde constava o marcador Creatin Kinasa e na presença dos seus familiares, Maria ma-
(CK) alterado C e E viram os resultados das nifestou intenção de assinar alta com termo
análises, mas nada determinaram Na noi- de responsabilidade, argumentando que, “se
te de 11 para 12 /01/2007, Maria esteve era para morrer, queria ir morrer a casa”.
aparentemente mais calma, dormindo por vii) Pelas 19:00 horas, trouxeram-lhe o docu-
períodos, mas mantinha dores intensas, ab- mento respectivo, no qual a sobrinha de
dómen timpanizado, sem perdas hemáticas Maria escreveu “solicito a alta apesar de
vaginais e teve pequeno vómito biliar. Na indicação médica em contrário”, a pedido
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

de Maria que não conseguia escrever, sen- 3. Da Decisão


do que Maria apenas assinou, com grandes O inquérito foi arquivado relativamente ao
dificuldades. Às 19:30 horas foi removi- médico B. As médicas A, C e E foram acusadas, pela
do cateter e suspenso soro, sendo que a prática de um crime de homicídio por negligência
doente mantinha. As mesmas queixas álgi- grosseira, previsto e punido no artigo 137º, nº1 e
cas. Às 21:00 horas abandonou o serviço, nº2 do CP. A, C e E requereram a abertura de ins-
numa ambulância. Às 22:00 horas, Maria trução, que tendo sido admitida determinou a não
chegou a casa. Às 23:00 horas, Maria foi pronúncia, por se entender que o processo clínico
observada por F, seu médico de família, a da doente foi atípico e imprevisível, que a actua-
quem referiu as mesmas dores abdominais ção/omissão das arguidas não foi causa da morte de
e desconforto geral e apresentou hemorra- Maria e que a morte ocorreu em virtude de Maria
gia ginecológica. ter abandonado o hospital, de o seu estado se ter
viii) Pelas 00:00 horas de 13/01/2007, Maria agravado subitamente depois disso, e de ter sido
piorou subitamente: dificuldades de lo- impossível a actuação dos médicos. O Ministério
comoção, discurso desconexo, voz baixa Público recorreu. O Tribunal da Relação de Coim-
e arrastada; por diversas vezes, vomitou bra não deu provimento ao recurso e manteve a
uma água escura, acastanhada, com aspecto decisão de não pronúncia.
e cheiro a fezes. Pela manhã desse mesmo D. Problemas jurídicos discutidos na sessão,
dia, Maria foi novamente observada por F: soluções e sugestões apresentadas 43
estava em estado comatoso/inconsciente
e foi encaminhada para o Centro de Saú- Os factos expostos foram apreciados no enqua-
de, onde chegou cadáver, pelas 13:30 ho- dramento legal do crime de homicídio por negli-
ras. Do relatório de autópsia resulta que gência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º,
a morte de Maria foi devida à perfuração n.º1 do Código Penal. A análise centrou-se pois na
do útero, à lesão no recto e à laceração da verificação dos pressupostos do tipo de ilícito, mas
vagina, lesões essas causadas no decurso da não foi olvidado o facto de em momento algum se
ressectoscopia a que tinha sido submetida enquadrar a factualidade em sede da cláusula de ex-
e que por não terem sido, como deviam, clusão da ilicitude estabelecida no art. 150.º, n.º1
detectadas e devidamente tratadas, evoluí- do Código, como seria expectável.
ram para peritonite.
CASO 7
2. Do Direito
O caso implica a apreciação dos elementos do APRESENTADO PELA DRA. ANDREIA
tipo legal de crime de homicídio por negligência DA COSTA ANDRADE — ADVOGADA E
grosseira, previsto e punido no artigo 137º, nº1 e DOUTORANDA FDUC
nº2 do Código Penal. A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2

B. Palavras-chave: intervenções e tratamentos médi- do a doente com saturação de 98%, bem


co-cirúrgicos; leges artis; dolo; negligência; violação como por esta foi verificado drenos e pen-
do dever de cuidado sos, tendo verificado vestígios de sangue.
C. Os factos, o Direito e a Decisão vii) Pelas 22.00h. ocorre um pico de febre as-
sociada à saída de 400 cc de sangue com
1. Os factos ar. Intervêm Dra. M... e Dra. H... e como
i) A 25 de novembro de 2011, A... deu entra- procedimento é dada medicação para a fe-
da no bloco operatório do Centro Hospita- bre e dores e administrado o corante azul
lar (...) para colocação de banda gástrica. de metileno pelas 23.00h. Pelas 2.00h foi
ii) Por não ter sido possível visualizar a pon- verificada a inexistência de qualquer saída
ta do “goldfinger” pelo estômago que era de metileno.
muito volumoso e por dificuldade de viii) Pelas 5.00h. foi verificada a inexistência
pneumoperitoneu adequado concluiu-se de qualquer saída de metileno, apesar do
pela impossibilidade de colocação da ban- mau estar da doente. Pelas 6.00h. a doen-
da gástrica. te é observada, detectandose hipertensão,
iii) Entretanto foi lacerado um pequeno vaso taquicardia, e hipertermia, diminuição da
aquando da abordagem à pars flácida o saturação de oxigénio e azul de metileno
que causou hemorragia, laqueando-se com no dreno.
44
agrafos. ix) Ao longo do pós-operatório é verificado
iv) A Dra. I... diligenciou pela lavagem peri- dreno com conteúdo hemático e ar de 400
toneal e aspiração, realização da prova de cc até às 22h. do dia 26 e 1000cc pelas
estanquicidade com soro e betadine, veri- 00.00 do dia 27, dor abdominal, diminui-
ficação de inexistência de extravasamento ção de saturação de oxigénio, agitação pso-
do líquido utilizado para a cavidade abdo- comotora, hipotensão, vestígios de sangue,
minal, e colocação de dreno abdominal dispneica, apelativa e mau estar. É efectua-
para drenagem de soro e sangue. Tendo a da laparotomia exploradora por suspeita
doente ficado sob vigilância. de perfuração de víscera oca e consequente
reparação, e pelas 8.00h. Dr. Q... Colocou
v) Pelas 14.00h. do dia 26 de novembro, o en- cateter central, tendo a doente entrado em
fermeiro E... observa 400 cc na drenagem paragem cardíaca.
de conteúdo do dreno e contactou Dra.
M... , a qual ficou de contactar o médico x) Às 8.40h. A... falece devido a perfuração
assistente. A Dra. I... constatou drenagem gástrica aguda complicada de peritonite
com conteúdo hemático e ar, e não mais produzida no contexto da operação cirúr-
contactou a doente. gica aludida.
vi) Entretanto estava a parte respiratória nos 2. Do Direito
94% de saturação tendo sido colocada son- No caso sub judice, importa determinar se os
da nasal por parte da enfermeira F... fican-
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO

factos provados consubstanciam a prática do tipo à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra,


de crime p. e p. pelo artigo 150º, n.º 2, ou pelo entendeu-se que «…apontando a prova indiciária re-
artigo 137.º, n.º 1, ambos do Código Penal. colhida, tanto no inquérito como na instrução, no sentido
de que as arguidas agiram com respeito pelas regras téc-
3. Da Decisão nicas adequadas aos procedimentos exigíveis, impunha-se
No termo do inquérito o Ministério Público a não pronúncia das arguidas». Pelo que, se revogou
proferiu Despacho de Arquivamento por enten- «a decisão instrutória, na parte em que pronunciou as
der que «compulsados os autos e, designadamente os arguidas I... e M... pela prática de um crime de homicídio
elementos probatórios reunidos de natureza clínica, ex- por negligência inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º
trai-se dos mesmos o entendimento de que, na presente 1 e 15º al. b) do Código Penal».
situação, houve um estudo prévio e um acompanhamento
certos e uma prática operatória e de seguimento de A... D. Problemas jurídicos discutidos na sessão,
corretas. Os quais afastam a ocorrência no presente caso soluções e sugestões apresentadas
de eventual omissão do dever de cuidado ou de violação
das denominadas legis artis, seja por acção seja por omis- Na discussão, incidente sobre da factualidade e
são, por parte dos vários intervenientes hospitalares, entre da decisão tomada em cada fase do processo pe-
estes se contando médicos, enfermeiros e demais pessoal a nal sobre a mesma, durante a sessão procurou-se
prestar serviço no Centro Hospitalar de (...) , EPE, que, determinar se os factos provados consubstanciam
porventura, tivesse causado a morte de A... .». Os Assis- a prática do tipo de crime p. e p. pelo artigo 150º,
n.º 2, ou pelo artigo 137.º, n.º 1, ambos do Código 45
tentes apresentaram requerimento de abertura da
Instrução imputando às médicas intervenientes na Penal. Antes de mais importa demonstrar que não
1ª cirurgia, pós-operatório e 2ª intervenção cirúr- existe um verdadeiro concurso de normas entre os
gica, I... e M... , a prática do crime de homicídio dois tipos legais. A aplicação do artigo 150.º, n.º2
negligente p. e p. pelo artigo 137º, n.º 2 do Código do CP pressupõe a compreensão dos requisitos
Penal e do crime de omissão de tratamento médi- previstos no n.º1 do mesmo artigo. Elemento fun-
co-cirúrgico por violação das leges artis p. e p. pelo damental de ambos são as leges artis médicas. De
facto, o tipo de crime do artigo
artigo 150º, n.º 2, do mesmo Código. Finda a Ins- CP, corporiza crime doloso, exigindo que o médi- 150.º, n.º 2, do
trução foi proferido Despacho de Pronúncia por se co conheça e deseje a violação das legis artis e, para
entender que: «Não cuidaram as arguidas de detectar além disso, conheça e queira a criação do perigo
a tempo, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem em previsto naquela norma. Diferente é o caminho
face disso realizar a prova da estanquicidade gástrica com para a aplicação do tipo legal de crime do 137.º,
azul de metileno, quando haviam tido em consideração n.º1, visto que no campo de análise de compor-
tal perfuração ao procederem à lavagem peritoneal e aspi- tamento negligente, o cumprimento das legis artis
ração e colocação do dreno de soro e sangue. Bem como no afasta inexoravelmente qualquer averiguação quan-
pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela to à observância, ou não, do dever de cuidado, por
realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de entender, por força do art. 150.º, n.º 1, do
ser de prever que em face da perfuração surgisse um agra- CP, que se trata de um comportamento irrelevante
vamento a reparar com urgência». Apresentado o caso para o direito penal.
Mesas 2 e 3*

CONSENTIMENTO INFORMADO E PROBLEMAS PENAIS DE DIREITO MÉDICO


Presidente da Mesa: Helena Moniz |Juíza Conselheira do STJ
Relatores: Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC · Abel Chicunha | Mestrando da FDUC

CASO 1 (1) com vista a extirpar a hérnica discal e eli-


minar a dor ciática.
APRESENTADO PELA DRA. SEPHORA iv) Realizada a cirurgia, permaneceram, con-
MARCHESINI — ADVOGADA tudo, as queixas de dores.
A) Identificação das decisões: (A) recurso de v) O réu aconselhou nova intervenção cirúr-
revista – Supremo Tribunal de Justiça; (B) recurso gica com o intuito de eliminar a persisten-
de apelação –Tribunal da Relação de Lisboa te dor ciática.
B) Palavras-chave: consentimento informado – vi) Também esta não logrou atingir a finalida-
obrigação de informação – riscos previsíveis e sérios de terapêutica, subsistindo as dores lom-
bares, que lhe impossibilitam o desempe- 47
C) Os factos, o Direito e a Decisão
nho da sua actividade profissional.
1.Os factos vii) As dores não foram consequência da erra-
(A) da execução das cirurgias, tendo o réu ac-
tuado com os melhores cuidados possíveis
i) O autor, em virtude de um acidente no e segundo as leges artis.
exercício da sua profissão de pedreiro, fi- viii) Sempre foi comunicado ao autor, pelo réu,
cou com uma entorse lombar e uma hérnia que a intervenção cirúrgica era o único
discal. meio adequado a corrigir a lesão resultan-
ii) Consultado pelo réu, médico da especia- te do acidente.
lidade de neurocirurgia, foi inicialmente ix) Além de que era de realização simples e
tratado através de medicação. apresentava um quadro bastante favorável
iii) Revelando-se a medicação ineficaz, o réu de recuperação.
aconselhou a realização de cirurgia lombar x) Nunca lhe foi referido pelos médicos que
o seguiram que da mesma poderia resultar
* Os seguintes casos pertencem às Mesas um agravamento da sua situação.
2 e 3, cujas apresentações decorreram de manhã,
mas apenas foram apresentados à tarde, a seguir às
apresentações das Mesas 5 e 6.
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 1

(B) ix) Tem dificuldade no exercício da sua pro-


fissão, necessitando, para tarefas de maior
i) O autor, electricista, foi diagnosticado precisão, de recorrer ao auxílio de colegas.
com astigmatismo visual e miopia.
ii) Sujeitou-se a uma intervenção cirúrgi- 2. O Direito
ca denominada queratotomia radiária, Em ambos os casos estava em causa a aprecia-
realizada pela médica ré. ção da responsabilidade contratual dos médicos
que realizaram as intervenções cirúrgicas na pers-
iii) A ré informou o autor que cerca de 98% pectiva do consentimento informado.
dos doentes que se submetem a esta in-
tervenção cirúrgica melhoram os pro- 3.A Decisão
blemas de astigmatismo visual e miopia, Os dois acórdãos negaram o recurso interpos-
deixando de necessitar de lentes de con- to, confirmando-se as decisões de absolver os réus
tacto e necessitando de usar óculos apenas em causa.
ocasionalmente. (A)
iv) Após a intervenção, o autor ficou
a ver pior do que via anteriormente com o A invocação de responsabilidade civil do mé-
recurso ao uso de óculos. dico fundou-se, exclusivamente, na violação do
dever de informação, enquanto pressuposto fun-
48 v) A mesma médica realizou outras duas damental do consentimento informado, alegando
intervenções cirúrgicas para efeitos de que o autor não tinha sido alertado para o risco de
refinamento das incisões previamente a intervenção cirúrgica não produzir os efeitos de-
realizadas. sejados no seu estado de saúde ou mesmo de este
vi) Em virtude das cicatrizes que o poder piorar em consequência da intervenção. O
autor apresenta nas córneas, por força das acórdão analisou, assim, a definição da validade do
referidas intervenções cirúrgicas, e de pa- consentimento informado, o conteúdo mínimo do
decer de queratoconos bilateral, as suas di- direito à informação relevante e o ónus da prova:
ficuldades de visão apenas podem ser cor- 1. O consentimento livre, consciente e escla-
rigidas com recurso a lentes de contacto. recido é uma causa justificativa que exclui
vii) Contudo, e em virtude da mesma a ilicitude de uma intervenção médico-
condição, não suporta a utilização de len- cirúrgica enquanto violação objectiva do
tes de contacto por período superior a 8 direito à integridade física e moral do
horas seguidas. doente. Só será válido e eficaz quando o
viii) Acresce que se tem vindo a verificar o en- doente tiver sido devidamente esclarecido
curvamento bilateral das córneas, o que sobre o diagnóstico e a necessidade, na-
pode, no futuro, vir a impossibilitar a uti- tureza e riscos da intervenção, sendo-lhe
lização de lentes de contacto e exigir um fornecidos os elementos suficientes para
transplante das córneas. que a capacidade de decidir se revele cons-
ciente e livre. O dever de informação será
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

cumprido quando tenha sido previamente terminada taxa de sucesso relativamente a esse ob-
fornecida a informação tida por relevante, jectivo pretendido. Acresce que não ficou demons-
não podendo o posterior consentimento trado o nexo de causalidade entre o acto médico e
estar afectado por vícios de vontade. o resultado danoso.
2. O conteúdo desta obrigação de informa- Quanto ao consentimento, cabendo ao médi-
ção compreende os riscos tidos como pre- co o ónus de prestar a informação relevante para
visíveis e sérios, admitindo-se que, em a obtenção do consentimento, cabe, contudo, ao
intervenções de particular grau de risco, doente alegar e demonstrar que o risco de cuja ve-
se comuniquem ao doente os riscos graves rificação resultaram os danos era um dos riscos ra-
(como morte ou invalidez permanente), zoáveis, previsíveis e significativos que lhe deviam
ainda que de ocorrência excepcional. ter sido transmitidos. Não está provado que o dano
3. O ónus da prova do cumprimento da obri- de que o autor padece decorreu de um risco razoa-
gação de informação cabe ao médico, no- velmente previsível, ou seja, de que é uma conse-
meadamente por ser mais fácil para este, quência de que era suposto, por ser suficientemen-
enquanto que para o doente seria necessá- te frequente, o autor ter sido informado antes da
ria a difícil prova de um facto negativo realização da cirurgia.
No caso, o réu prestou ao autor todos os ele- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
mentos de informação tidos como necessários. Ale- são, soluções e sugestões apresentadas
gar a necessidade de informar sobre a possibilidade 49
de o seu estado de saúde não melhorar ou mesmo A questão prévia à do consentimento é de que
piorar é passar para o plano da informação sobre modo deve ele ser informado. A doutrina tende a
o a probabilidade de obtenção do resultado. Ora, exigir que os riscos previsíveis e sérios sejam trans-
no âmbito de uma cirurgia curativa ou assistencial, mitidos, bem como o dano da morte e de invalidez.
em que a obrigação é apenas de meios, o dever de Ora, a dificuldade está em determinar, na
informação não pode ser alargado nesse sentido. perspectiva dos médicos, qual a informação que
Apenas nos casos em que o médico se comprometa devem ou não transmitir, não sendo necessaria-
com um determinado resultado, por exemplo e no mente perceptível a que correspondem, na práti-
contexto de cirurgias plásticas ou dentárias, é que ca e em cada caso concreto, os riscos previsíveis e
se exigirá a advertência sobre a probabilidade de sérios. Por este motivo, é recomendável que haja
sucesso/insucesso. um maior diálogo entre médicos e juristas, não só
para aqueles saberem como devem agir, mas tam-
(B) bém para que estes saibam concretizar conceitos
indeterminados com conhecimento da realidade
Não ficou provado nenhum erro médico na médica subjacente.
execução da cirurgia e a obrigação em causa era Um outro aspecto que foi discutido foi o facto
tão-só de meios. O réu não se obrigou a que o au- de ser contraproducente uma tendência no sentido
tor deixasse definitivamente de usar óculos, mas de exigir a transmissão do máximo de informação
tão-só a realizar uma operação que tinha uma de- possível. Além de não ser facticamente possível
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 1

informar sobre absolutamente tudo, não é fomen- vi) Seguido de uma cirurgia de lifting crural,
tando uma atitude de cautela extrema por parte destinada a “subir” as cicatrizes utilizando
dos médicos, fazendo-os aumentar a lista de da- o excesso de pele resultante da anterior
dos prévios ao consentimento, que o doente fica- lipoaspiração.
rá, necessariamente, mais esclarecido em termos vii) A primeira intervenção foi marcada e
substanciais. realizada, tendo a autora tido alta no dia
CASO 2 seguinte.
viii) Durante a operação, o réu apercebeu-se de
APRESENTADO PELA DOUTORA MARIA que a elasticidade da pele das regiões ope-
CLARA SOTTOMAYOR – JUÍZA DO radas era inferior à esperada, pelo que não
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL seria suficiente para obter o efeito preten-
dido no segundo momento operatório.
A) Identificação da decisão: recurso de revista – ix) Assim, decidiu aproveitar algum tecido
Supremo Tribunal de Justiça adiposo, extraído por lipoaspiração, para
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual – injectá-lo nos grandes lábios.
cirurgia plástica – obrigação de quase-resultado –
tipos de consentimento x) Este procedimento designa-se por vulvoplastia.
C) Os factos, o Direito e a Decisão xi) Assim, tentou num só momento
50 operatório restaurar a anatomia da região
1.Os factos e elevar as cicatrizes.
i) A autora tinha sido diagnosticada com hi- xii) No dia seguinte, a autora encontrou-se
drosadenite supurativa crónica, para a qual com o cirurgião, que a informou que tinha
realizou diferentes tratamentos e duas resolvido o problema numa só cirurgia.
cirurgias. xiii) Informou, ainda, que, uma vez que os
ii) Em virtude destas intervenções, apresen- grandes lábios tinham quase desaparecido,
tava cicatrizes em toda a zona inguinal, em virtude de operações anteriores, apro-
visíveis em época balnear quando usava veitou a gordura resultante da lipoaspira-
fato-de-banho. ção para a injectar nos grandes lábios.
iii) Com o intuito de disfarçar tais cicatrizes, xiv) A possibilidade de enchimento dos gran-
“subindo-as” de forma a que deixassem de des lábios não tinha sido anteriormente
ser visíveis em época balnear, consultou o discutida.
réu, cirurgião plástico. xv) Desde o dia a seguir à intervenção e duran-
iv) Acordou com este a realização de uma in- te vários dias depois, a autora queixou-se
tervenção em dois momentos temporais de dores intensas.
distintos. xvi) Consultou, em diversas ocasiões, o réu,
v) Um primeiro consistente numa li- que reafirmou estar tudo a correr normal-
poaspiração à parte interna das coxas. mente e receitou medicação.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

xvii) Quase duas semanas depois da interven- 1. Responsabilidade


ção, consultou o réu, com queixas de do-
res insuportáveis, tendo o réu dito que ha- O Supremo entendeu existir um concurso entre
via apenas duas opções: aguentar as dores responsabilidade contratual e extracontratual, pois
ou retirar o enxerto, sendo que esta opção estava em causa tanto um incumprimento ou cumpri-
estragaria o resultado pretendido com a mento defeituoso da prestação de serviços médicos,
operação. como a violação de direitos subjectivos à integridade
física e moral, ao livre desenvolvimento da personali-
xviii) Nesse dia, o réu aspirou o pus existente dade e à autodeterminação (artigos 25.º, n.º 1, e 26.º,
e injectou, através de uma seringa, água n.º1, da CRP e 70.º, n.º 1, do Código Civil). Deve
oxigenada. aplicar-se o princípio da consumpção, prevalecendo o
xix) No dia seguinte, a autora consultou um regime da responsabilidade contratual por ser o mais
dermatologista que lhe diagnosticou uma favorável aos interesses do lesado e mais conforme ao
reacção alérgica ao material de enchimento princípio geral da autonomia privada.
xx) Passado mais um dia, foi vista por um ou- Quanto à obrigação em causa, tratando-se de
tro cirurgião plástico que lhe diagnosticou uma cirurgia estética, é de uma obrigação de qua-
um abcesso do grande lábio vulvar direito se-resultado, pois é uma situação em que apenas o
e eritema inflamatório do grande lábio es- resultado vale a pena. A ausência de resultado ou
querdo, que terão ocorrido no pós-opera- um resultado inteiramente desajustado são evidên-
51
tório da intervenção cirúrgica. cia de um incumprimento ou cumprimento defei-
xxi) No próprio dia e dois dias depois, este tuoso, cabendo ao médico o ónus da prova de que
cirurgião procedeu a uma drenagem dos tal resultado não procedeu de culpa sua.
grandes lábios. 2. Consentimento
xxii) A autora esteve 28 dias impossibilitada de
realizar a sua vida normal. Tomou-se em consideração que um consenti-
xxiii) As cicatrizes que pretendia esconder man- mento inexistente ou ineficaz conduz à ilicitude
têm-se visíveis. da actuação por violação do direito à autodeter-
minação. Correrão por conta do médico os danos
xxiv) Anatomicamente ficou no mesmo estado decorrentes dessa actuação – e isto mesmo que
em que se encontrava anteriormente. não haja danos à saúde, pois protege-se a autode-
2. O Direito terminação e o direito à disposição sobre o próprio
O caso foi resolvido com base no regime corpo. Aquela violação é um dano em si. De subli-
da responsabilidade contratual e, particularmente, nhar que, pelas especificidades da cirurgia estética,
do consentimento informado, sendo analisadas as exige-se um mais intenso e mais rigoroso dever de
diversas modalidades de consentimento. esclarecimento, pelo facto de serem intervenções
não necessárias do ponto de vista da saúde (tal
3. A Decisão como a doação de órgãos para transplante e a par-
ticipação em ensaios clínicos).
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 1

A questão central era a de saber se houve- operação estética, que contende com a
ra ou não algum tipo de consentimento quanto à imagem da pessoa e com a relação consigo
vulvoplastia. mesma, não é possível que se verifiquem
a) Consentimento escrito: a cláusula “au- os pressupostos do consentimento presu-
torizo o médico responsável e seus assis- mido, pois este instituto visa fazer face a
tentes a fazerem tudo o que for necessário, situações em que há riscos para a vida ou
incluindo operações ou procedimentos di- a saúde que requerem uma intervenção
ferentes dos acima discriminados, na even- médica absolutamente inadiável. Ao médi-
tualidade da ocorrência de complicações co é exigido que dê prioridade à possibili-
no decurso daqueles” apenas legitimava dade de escolha do doente, face à incomo-
intervenções não autorizadas urgentes e didade de se repetir a intervenção.
imprescindíveis para proteger a saúde da e) Consentimento hipotético: quanto à
autora e para fazer face a circunstâncias alegação de que, se a autora tivesse sabido
supervenientes ocorridas durante a ope- da possibilidade da vulvoplastia, não a teria
ração susceptíveis de causar perigo para recusado, o ónus da prova cabe ao médico.
a saúde ou para a vida. Uma cirurgia es- De todo o modo, este instituto só pode
tética, sendo voluntária e não curativa ser mobilizado para violações menos gra-
ou assistencial, não pode considerar-se ves do dever de informação, não em casos
52 abrangida no contrato. de violações graves – como a omissão de
b) Consentimento verbal: a alegação de esclarecimento sobre riscos significativos
que teria sido dado consentimento verbal- e, por maioria de razão, os casos em que
mente e que tal decorreria da relação de falta de todo a prestação de consentimento
confiança médico-doente não só não tinha (intervenções não autorizadas).
reflexo na matéria de facto, como aque- f) Ónus da prova do consentimento: o
la relação de confiança tem de passar pelo ónus da prova impende sobre o médico,
respeito total e escrupuloso do princípio pois se coubesse ao paciente implicaria a
da autonomia do paciente e do seu direito prova de um facto negativo, com ineren-
à autodeterminação. tes dificuldades probatórias, enquanto
c) Consentimento tácito (artigo 219.º, que para o médico, perito, será mais fácil
n.º 1, 2.ª parte, do CCiv): a matéria de proceder a essa prova. Além disso, sendo
facto não refere a existência de qualquer o consentimento uma causa de justificação
conversa sobre a possibilidade ou necessi- que exclui a ilicitude da violação da inte-
dade de uma vulvoplastia, nem qualquer gridade física, a parte que recorre a essa
comportamento da autora do qual se pu- defesa é que o deve provar enquanto facto
desse deduzir tal consentimento. impeditivo do direito o autor.
d) Consentimento presumido (artigo
340.º, n.º 3, do CCiv): tratando-se de uma
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

D) Problemas jurídicos discutidos na ses- ração que, uma segunda intervenção, exigiria nova
são, soluções e sugestões apresentadas anestesia e novos riscos. Sendo um ponto válido, o
risco da anestesia em si não tende a ser muito ele-
A discussão iniciou-se em torno da determina- vado, o que é atestado pelo facto de não se exigir
ção da natureza da intervenção cirúrgica em causa. consentimento por escrito.
Foi suscitada a questão de não se tratar de uma ci- Com referência a um possível paternalismo
rurgia estética, mas antes de uma cirurgia recons- médico, a concepção actual dita que devemos re-
trutiva, pois estava em causa o tratamento de te- jeitar, dando verdadeiro relevo à autodeterminação
cidos doentes. Por outro lado, o intuito da doente dos pacientes – sendo certo que, em jeito de pro-
era, sem dúvida, estético. vocação, este direito “imposto” pode não se com-
Foi contra-alegado que essa qualificação era ir- paginar com o direito de o doente não querer saber
relevante, já que tanto a cirurgia estética como a todos os riscos que está a assumir.
reconstrutiva consubstanciam, para o médico, uma Por fim, abordou-se a questão da definição
obrigação de quase-resultado. Sobre este ponto, do consentimento informado substancial, que é,
foi dada opinião no sentido de que a diferenciação na verdade, avesso à transmissão excessiva de in-
entre obrigação de meios/ resultado/ quase-resul- formação, pois conduz a um incremento do des-
tado não parece ter verdadeiro reflexo na realidade fasamento entre informação dada e informação
médica e pode estar em desarmonia com o que deve efectivamente assimilada. O que se pretende é um
efectivamente ser exigido aos profissionais de saúde. consentimento perceptível para uma pessoa média. 53
Sendo uma categoria dogmática pouco tratada, Contudo, não pode deixar de ficar absoluta-
a obrigação de quase-resultado é invocada quando mente esclarecido o risco, por exemplo, de vir a
a operação, não sendo estritamente necessária para sofrer dores intensas e prolongadas – sem ter de
a saúde ou vida, é realizada apenas em vista de um explicar, medicamente, em que consistem e por-
determinado resultado. Em termos de consenti- que surgem. Esta necessidade assume particular
mento, cabe ao médico explicar com rigor qual a relevância num contexto estético, pois munido de
probabilidade de esse resultado ser atingido e quais toda a informação, o doente pode repensar e deci-
as consequências negativas que poderão advir. dir qual o seu interesse que pesa mais. Porque não
Já quanto à questão central do acórdão, os ti- é uma cirurgia necessária, a liberdade do doente
pos de consentimento, questionou-se se um con- tem de ser significativamente maior do que nos ca-
sentimento não expresso, presumido, deveria ser sos em que uma intervenção cirúrgica é necessária
admitido atendendo a um intuito de prevenção do para garantir a sua vida.
risco de anestesia. O médico tomaria em conside-
Mesa 4
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL; ILICITUDE E CULPA; OBRI-
GAÇÕES DE MEIOS E OBRIGAÇÕES DE RESULTADO
Presidente da Mesa: Luís Filipe Pires de Sousa | Juíz Desembargador — Tribunal da Relação de Lisboa
Relatora: Ana Lopes Chaves | Advogada
CASO 1 ta contactada pelo réu, que a informou do
quadro clínico da Autora (pré-existência
APRESENTADO PELA DRA. GABRIELA DE da paralisia cerebral), bem como da esco-
FÁTIMA MARQUES — JUÍZA DE DIREITO lha pela A. da anestesia dita epidural.
— JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA d) No relatório elaborado, o médico Réu fez
constar, além do mais que “No pós-opera-
A) Identificação da decisão: acção declarativa tório entre as 24 e as 48 horas detectou-se
de processo comum um quadro de parésia do membro inferior
b) Palavras — chave: responsabilidade contratual/ esquerdo e défice sensitivo do mesmo”, e
extracontratual, obrigação de meios/obrigação de re- tendo-se ainda afirmado que “foram ex-
sultado, presunção de culpa, consentimento informado 55
cluídas outras causas, pensando que se tra-
c) Os factos, o Direito e a Decisão tou de uma reacção excessiva da Anestesias
e/ou DIB epidural”;
1. Os factos e) A A. regressou a casa com esvaziamento
a) A A. foi sujeita a uma intervenção cirúrgi- vesical diário, mantendo o programa de
ca da especialidade de ortopedia realizada reabilitação, e apoio domiciliário para hi-
pelo réu (médico) no estabelecimento da giene pessoal; passou a necessitar de ajuda
ré (estabelecimento de saúde privado), de terceira pessoa para os actos normais
a qual consistiu no alongamento do ten- da vida corrente; passou ainda a padecer
dão de Aquiles a céu aberto, osteotomia de infecções urinárias de repetição; passou
do primeiro metatarso e alongamento a ter que usar fraldas; apenas se pode des-
tendinoso. locar na via pública com o auxílio da sua
b) A intervenção cirúrgica foi realizada pelo cadeira de rodas;
réu sob Anestesia loco-regional adminis- f) Na sequência da intervenção cirúrgica a
trada pela médica anestesista, que presta A. ficou portadora de sequelas anátoma-
serviço regular junto da primeira Ré. -funcionais que lhe conferem uma incapa-
c) A A. antes da cirurgia não teve qualquer cidade geral parcial e permanente de 50%,
consulta pré-anestésica, sendo a anestesis- sendo esta incompatível com o exercício
da sua profissão de professora de música e é
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

actualmente portadora de uma incapacida- rido, pois a A. já padecia de paralisia cere-


de permanente de 85% bral, decorrente da sua gestação ou parto,
g) À data da cirurgia, a A. era já portadora e já se encontrava afectada na sua capacida-
de uma IPP de 70%, sofrendo de paralisia de motora com uma incapacidade de 70%,
cerebral, mas tal não a impedia de reali- bem como uma fractura mal consolidada
zar as suas tarefas do dia-a-dia, nem a sua no pé direito, motivo pelo qual foi propos-
actividade profissional, auferindo mensal- ta a cirurgia em causa. Alegou ainda que
mente no exercício das referidas funções a a A. pretendia a anestesia epidural, dado
quantia de €900,27. o pavor que tinha da geral. A A. foi sujei-
h) Foi na sequência da intervenção cirúrgica ta a uma consulta de anestesia prévia, e a
que ficou incapacitada dessa forma e a ne- cirurgia realizou-se normalmente e atingiu
cessitar do auxílio de terceira pessoa. os seus objectivos relativamente ao mem-
bro objecto da cirurgia. Pediu a intervenção
i) A incapacidade de que sofre e tudo o ocor- principal ou acessória da anestesista, pois a
rido a partir da cirurgia causou e causa à A. actuação do réu não pode ter originado as
grande sofrimento, alterando por completo lesões alegadas pela A.
a sua vida de forma a não mais poder ser au-
tónoma como até aí tinha sido, não obstante m) Foi admitida a intervenção acessória da
a paralisia cerebral de que sofria, tendo dei- médica anestesista. A interveniente apre-
56
xado de auferir o valor referido, deduzido sentou articulado dizendo, em suma, que
que foi o valor da pensão entretanto atri- a intervenção da mesma foi apropriada e
buída à A pela CGA, no valor de 546,89€. autónoma em relação ao réu, pelo que não
existe qualquer motivo para o seu chama-
j) Na sequência destes acontecimentos a A. mento nem principal, nem acessório, nem
propôs acção de responsabilidade civil existe qualquer responsabilidade da mes-
contra a clinica e contra o médico ortope- ma, uma vez que respeitou cautelosamen-
dista, imputando-lhes a responsabilidade te as regras da arte.
pelos danos de que passou a padecer, na
sequência da intervenção cirúrgica. 2. O Direito
k) A Ré (clínica) pugnou pela sua ilegitimi- Entendeu-se estarmos perante um caso de res-
dade, uma vez que o médico apenas mar- ponsabilidade contratual, decorrente de um con-
cou a cirurgia nas instalações da Ré, sem trato de prestação de serviços médicos. Porém,
qualquer intervenção desta. Deduziu ain- não existindo aqui qualquer situação de respon-
da pedido reconvencional pelos serviços sabilidade pelo risco (ou seja, independente de
prestados à A. culpa), uma vez que esta só existiria caso estivesse
l) O Réu (médico ortopedista) que procedeu especificada na lei. O que não sucede.
à intervenção cirúrgica em causa, também Discutia-se igualmente a questão da culpa. A
contestou dizendo que não lhe pode ser as- sentença entendeu aplicar à responsabilidade con-
sacada qualquer responsabilidade no ocor- tratual médica a presunção de culpa contida no
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

artigo 799º nº 1 do CC, pois não existe, nesta si- de operações seria de índole extra-contratual ou
tuação, qualquer razão específica que justifique o aquiliana.
afastamento dessa regra.Todavia, a verificação de Não ficou provado que a médica anestesista ou
todos os outros pressupostos para fazer acionar a o réu tenha informado a A. dos riscos que advi-
responsabilidade civil (o facto ilícito, o dano, e o nham para a mesma, pelo que faltará desde logo
nexo de causalidade entre o facto e o dano) e bem esse esclarecimento (e esse nem sequer existe por
assim, a prova da existência do vínculo contratual e banda da interveniente que se limitou a efectuar
da verificação dos factos demonstrativos do incum- um questionário à A., sem aferir dos riscos exis-
primento ou cumprimento defeituoso do médico tentes, riscos esses que se revelaram no caso con-
competirá sempre ao Autor. creto da A. pois da anestesia resultou uma lesão
Por outro lado, concluiu-se que a obrigação do medular e que constituem os danos da A).
médico era uma obrigação de meios e não de resul- Por outro lado, foi imputada responsabilidade
tado, uma vez que apenas se compromete a desen- ao médico ortopedista, pela conduta levada a cabo
volver prudente e diligentemente certa actividade pela médica anestesista, pois por força do disposto
para a obtenção de determinado efeito, mas sem no art. 800º, nº 1, do Código Civil, «o médico é
assegurar que o mesmo se produza. responsável pelos actos das pessoas que utilizou no
A questão do consentimento informado como cumprimento das suas obrigações como se fossem
dever autónomo do médico: o médico tem o dever praticados por si próprio».
de dar ao paciente um total e consciente esclareci- 57
mento sobre o acto médico que nele se vai realizar, 3. A decisão
suas características, o grau de dificuldade de O médico e o hospital foram condenados e a A.
necessidade ou desnecessidade, suas consequências foi absolvida do pedido reconvencional.
e, acima de tudo, sobre o risco envolvente do re- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
ferido acto médico; por outro lado, o paciente são, soluções e sugestões apresentadas
deve fornecer colaboração ao médico, revelando-
lhe qualquer facto da sua história clínica, com A apresentante informou que a decisão de 1.ª
relevância para promover o sucesso ou evitar o Instância, confirmada pelo Tribunal da Relação,
insucesso do mesmo acto médico. acabou por ser alterada em sede de recurso, uma
Existia consentimento informado da paciente. vez que o Supremo Tribunal de Justiça apenas con-
Provou-se em sede de julgamento que o médico denou o Hospital.
tinha transmitido à anestesista a informação de que Entendeu-se que o médico ortopedista deu co-
a A só aceitaria a epidural e jamais a anestesia geral. nhecimento à médica anestesista de toda a infor-
A médica anestesista não examinou a A. antes mação relevante, tendo esta conhecimento de todo
da intervenção cirúrgica a que esta ia submeter-se, o historial da paciente.
antes tomou a seu cargo a doente apenas na altu- O STJ, apesar de entender que o médico-ci-
ra da cirúrgia efectuando um questionário prévio, rurgião pode ser responsabilizado pela conduta da-
pelo que a sua responsabilidade civil por quaisquer queles que sejam auxiliares de cumprimento, por
danos advenientes da sua actuação dentro da sala aplicação do art. 800º, nº 1, do CC, considerou
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

que o médico anestesista não está subordinado ao locação de prótese no fémur (que se re-
cirurgião. Apenas seria de responsabilizar o cirur- porta ao caso 5)
gião pela conduta da anestesista se se apurasse que Com a sua intervenção pretendeu abordar os
esta última era, em concreto, uma auxiliar, ainda seguintes pontos:
que independente, de cumprimento das obriga- 1. Opção entre o regime da responsabilidade
ções de que aquele é devedor. Concluiu que não civil contratual e extracontratual;
tendo tal prova sido feita, o médico-cirurgião não 2. Utilização/distinção da classificação en-
poderia ser responsabilizado pela conduta da anes- tre obrigação de meios e obrigação de
tesista. Coisa diversa se entendeu relativamente ao resultado
hospital, pois este será responsabilizado pela obri- 3. Recurso à utilização dos deveres objectivos
gação de prestação de serviços médicos de todos de cuidado.
os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, en-
fermeiros e outros) 1) Os três acórdãos aplicam a responsabilidade
civil contratual, uma vez que estamos no âmbito
CASO 2 da medicina privada, mobilizando os argumentos
da autonomia privada e do regime mais favorável
APRESENTADO PELA DRA. MARIA DA para o lesado
GRAÇA TRIGO ­— JUÍZA CONSELHEIRA — A apresentante introduziu a questão do princí-
58 SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA pio da consunção no direito Português da respon-
sabilidade civil contratual pela responsabilidade ci-
A) Identificação da decisão: Três acórdãos do vil extracontratual. No Ac. do STJ de 26/04/2016
Supremos Tribunal de Justiça (STJ) acerca de respon- aborda-se esta questão.
sabilidade médica
B) Palavras — chave: ilicitude, culpa, obrigação 2) Sobre a obrigação de meios/obrigação de
de meios/obrigação de resultado, deveres acessórios resultado, tem-se concluído que as prestações de
do contrato serviços médicos são obrigações de meios.
C) Os factos, o Direito e a Decisão Tal categorização torna-se relevante quando
pensamos, por exemplo, que nas obrigações de re-
A apresentante subordinou a sua intervenção sultado, não se provando a realização do resultado,
ao tema “Ilicitude e culpa: dicotomia entre obriga- fica provado o preenchimento do pressuposto da
ção de meios e obrigação de resultado”. ilicitude; o que já não sucede quando nos encontra-
Para o efeito debruçou-se sobre três acórdãos mos perante uma obrigação de meios.
do STJ, proferidos no ano de 2015 e 2016, a saber: No Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a
• Ac. STJ de 01/10/2015: colonoscopia em concluir o seguinte: as prestações de serviços mé-
que ocorreu a perfuração do intestino dicos com funções curativas são, em regra, obriga-
• Ac. STJ de 28/01/2016: Cirurgia de de- ções de meios; mas outras há que são de resultado:
feito ortopédico, com lesão da medula certas cirurgias estéticas, exames laboratoriais e
(que se reporta ao caso 1) radiológicos, etc.
• Ac. STJ de 26/04/2016: Cirurgia para co- Por exemplo, a prótese mamária tem sido en-
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

tendida como uma “obrigação quase de resultado”. nervo ciático. Todavia, o excesso de comprimento
Porém, nada impede que dos contratos de da haste metálica inexistia, pelo que não conseguiu
serviços médicos possam nascer obrigações de a autora fazer a prova, que lhe competia, da inade-
resultado. quada conduta que imputa ao réu e que integra a
O Ac. do STJ de 26/04/2016, apesar de co- causa de pedir.
meçar por dizer que o contrato de prestação de Também não invocou a autora nos seus articu-
serviços médicos, ao ter como obrigação principal lados, nem ficou provada, a violação de qualquer
a obrigação de tratamento, é de qualificar, como obrigação de meios.
obrigação de meios, e não de resultado, por o mé- 3) Nos Acórdãos do STJ de 01/10/2015 e de
dico não se ter vinculado a obter a cura do pacien- 28/01/2016, mobiliza-se a doutrina dos deveres
te, mas apenas a tentá-la por meio do tratamento acessórios do contrato, da doutrina germânica, e
que os seus específicos conhecimentos científicos que são abordados por Carlos Alberto Mota Pinto.
e técnicos lhe apontem como adequado, refere Integram os deveres acessórios do contrato os
depois que, no caso em apreço (artroplastia para deveres de informação, de lealdade, de protecção.
colocação de uma prótese total da anca de longa A lesão da integridade física, ocorrida no âm-
duração), estaríamos perante uma obrigação de re- bito e por causa da execução do contrato, pode
sultado no que à colocação de uma haste metálica conduzir a uma violação de deveres de protecção.
no interior do fémur diz respeito, o que efetiva- O que constitui uma obrigação de resultado, apli-
mente implicaria o recurso à presunção de culpa cando-se, por conseguinte a presunção de culpa da 59
consagrada no art.º 799º, n.º 1, do Cód. Civil. responsabilidade contratual.
Citando Rute Teixeira Pedro in “A responsa- O recurso aos deveres acessórios de cuidado é
bilidade civil do médico”, pág. 100, refere que a muito útil para a decisão sobre a ilicitude e a culpa.
aplicação de próteses é apresentada como exemplo
de uma intervenção em que o médico se vincula à D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
consecução de um resultado, pois na atividade de são, soluções e sugestões apresentadas
elaboração da prótese, o médico compromete-se a
elaborar um dispositivo que se adequa à anatomia a) O problema de determinar os sujeitos da
do concreto doente, de acordo com regras técnicas responsabilidade civil. Designadamente, o
precisas. Porém, já no que respeita à actividade de problema das equipas médicas: umas vezes
aplicação da prótese no organismo do paciente, na a equipa médica é trazida pelo médico, ou-
medida em que a aceitação ou rejeição de um cor- tras vezes é trazida pelo Hospital.
po estranho pelo organismo depende de um con- b) A diferença entre a jurisdição cível e a ju-
junto de fatores que o profissional não consegue risdição penal. Na jurisdição cível há mui-
controlar, a obrigação assumida deverá qualificar- tas vezes a dificuldade da investigação e a
-se como obrigação de meios.    dificuldade de manter a história. Na juris-
No caso concreto dos autos, tal haste metáli- dição penal, a investigação é feita a priori,
ca, com mais 2 cm do que o necessário, segundo com perícias médicas.
alegação da autora, terá provocado estiramento do c) A questão da inversão do ónus da prova —
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

existem já muitos actos que têm que ser causalidade


provados pelos médicos. C) Os factos, o Direito e a Decisão
d) Cada médico é autónomo naquilo que faz.
Um anestesista, por exemplo, é perfeita- 1. Os factos
mente autónomo. O art. 800.º do Código a) Os AA. são ambos portadores de fibrose
Civil (“actos dos auxiliares”) foi uma so- quística, facto que descobriram após o nas-
lução para a situação em que a anestesista cimento da primeira filha.
não era parte na acção. Alguém que é res-
ponsável por uma conduta que não é sua, b) Desejavam ter um novo filho, mas apenas
mas de outros. Se o hospital é responsável se lhes fosse garantido, através de diag-
por toda a operação, então responde por nóstico pré-natal, que o mesmo não iria
todos os intervenientes na operação (se- sofrer da doença. Caso durante o diagnós-
jam dependentes ou não dependentes). O tico pré-natal fosse detectado que o feto
cirurgião é responsável não só por si, mas padecia da doença, os AA. recorreriam à
também por outros. O facto do anestesis- interrupção voluntária da gravidez (IVG).
ta ser técnica e cientificamente autónomo c) Foi-lhes assegurado pelo serviço de diag-
(quando auxiliar de médico-cirugião), não nóstico pré-natal da maternidade a pos-
torna o médico cirurgião irresponsável. sibilidade de proceder ao diagnóstico em
60 e) A Sra. Juíza Conselheira avançou com uma causa.
categorização dos contratos em matéria de d) No decorrer da gravidez, efectuado o
actos médicos: diagnóstico pré-natal, através da recolha e
• Contrato de serviços hospitalares análise das vilosidades coriónicas (porque
divididos era o método que mais precocemente dava
• Contrato de serviços hospitalares resultados) foi informado aos AA. que o
totais feto seria normal, não padecendo da aludi-
• Contrato total de escolha de médico da doença, pelo que não se recorreu à IVG.
e) A análise das vilosidades coriónicas foi
CASO 3 feita num Instituto (INSA) que não a
maternidade.
APRESENTADO PELA DRA. ANA f) Sucede que, após o nascimento veio a verifi-
ELISABETE FERREIRA — ADVOGADA car-se que a criança era portadora de fibro-
A) Identificação da decisão: Tribunal Adminis- se quística, o que veio a gerar complicações
trativo e Fiscal de Coimbra — Erro no diagnóstico de diversa ordem, não só para os AA., como
Pré-Natal — Wrongful birth e wrongful life para a própria criança, que veio a falecer 3
B) Palavras — chave: Wrongful birth, wrongful anos depois, na sequência da doença.
life, erro de diagnóstico pré-natal, responsabilida- g) Os AA. peticionaram a quantia de
de extracontratual do Estado, legis artis, nexo de 390 031,87€ por todos os prejuízos que
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

sofreram na sequência do erro de diagnós- indevido (wrongful birth), tal como decorre da
tico pré-natal. terminologia avançada pelo Prof. Doutor Antó-
h) Os RR. vieram defender-se por excepção, nio Pinto Monteiro, na Anotação ao Ac. do STJ de
invocando a prescrição do direito, bem 19/06/2001, in RLJ n.º 134, de 01/04/2002. Tal
como por impugnação, sustentando que como os AA. configuram a acção, o que está em
não ocorreu qualquer erro de diagnóstico causa é um erro de diagnóstico que conduziu a que
pré-natal e que os eventuais danos sofri- a A. mulher não interrompesse voluntariamente a
dos não se deveram ao alegado diagnóstico gravidez, o que pretendia, caso soubesse que o feto
pré-natal, mas sim à doença de que a crian- era portador da aludida doença.
ça era portadora. No caso das acções de wrongful birth, o que
está em causa é o direito de os pais virem reclamar
2. O Direito danos por eles sofridos, enquanto pais, por uma si-
Os AA. vieram peticionar a atribuição de uma tuação que afecta a filha. Nas acções de wrongul life
indemnização por danos patrimoniais e não patri- o que está em causa são os danos sofridos pela pró-
moniais, decorrentes de um nascimento indevido pria criança por ter nascido com deficiência, sendo
(wrongful birth) da sua filha que veio a falecer três que é ela própria que pretende ser indemnizada.
anos após o nascimento. De facto, e atenta a tese dos À semelhança do que ocorre no direito privado,
AA., sabendo estes que eram portadores de fibrose só existe responsabilidade civil do Estado, por ac-
quística, apenas pretendiam ter um novo filho caso tos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, 61
pudessem ter a certeza, através de diagnóstico pré- mediante a verificação dos cumulativa dos seguintes
-natal, que o feto não viria a sofrer da doença. pressupostos: facto, ilícito, culposo, existência de um
Na sequência do diagnóstico pré-natal efectua- dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
do, apurou-se que o feto era portador da doença, A sentença proferida pelo TAF de Coimbra
mas não era doente, razão pela qual os AA. não op- concluiu ter havido uma actuação ilícita e culposa
taram pela interrupção voluntária da gravidez. do Réu INSA, ao ter omitido informação essencial
Sucede que, após o nascimento veio a consta- para as tomadas de decisão posteriores. De facto,
tar-se que, afinal, a criança era portadora da doen- apesar de aquele Instituto ter procedido a todas as
ça de fibrose quística, concluindo assim os AA. que análises necessárias às vilosidades coriónicas, omi-
houve erro no diagnóstico pré-natal. tiu a informação de que não era possível excluir a
Tal situação conduziu, até à morte da criança, contaminação materna do material analisado. Con-
a inúmero sofrimento, desgosto e despesas, decor- cluiu-se ter havido uma violação das legis artis por
rente do aludido erro de diagnóstico. parte dos profissionais médicos daquele Instituto,
Na sentença que serviu de base a este tercei- que transmitiram informação incompleta à Mater-
ro caso, concluiu-se estarmos perante um caso de nidade (que, por sua vez, transmitiu informação
responsabilidade civil extracontratual do Estado incompleta à A.).
por factos ilícitos, no âmbito da responsabilida- A A. decidiu avançar com a gravidez, em face
de médica, mais concretamente, perante uma ac- daquela informação incompleta, não lhe tendo sido
ção de responsabilidade fundada em nascimento facultada a possibilidade de optar pela interrupção
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

voluntária da gravidez, violando-se assim o seu di- teriam verificado os danos que vêm invocar. Pelo
reito à autodeterminação. que se entendeu não existir nexo de causalidade
A sentença em análise debruçou-se ainda so- entre estes danos e o facto ilícito e culposo.
bre a questão do nexo de causalidade nas acções de Sobre os danos não patrimoniais peticionados
wrongful birth e wrongful life, uma vez que neste em nome da filha, a sentença em apreço convocou
tipo de acções os danos podem não ser causados para a discussão o Acórdão da Cour de Cassation Fran-
directamente pela actuação dos profissionais de cesa, de 17/11/2000 — Arrêt Perruche —, onde
saúde. É fácil constatar que no caso dos autos, não se entendeu ter a criança o direito de ser indemni-
foi a forma incorrecta como a informação foi trans- zada nas acções de wrongful life, e o Acórdão do
mitida que levou a que a filha dos autores ficasse STJ de 19/06/2001, que entendeu que não pode
com a doença. a criança nascida com deficiência e no âmbito das
No caso dos autos, os AA. vieram solicitar a acções de wrongful life solicitar o ressarcimento
indemnização por danos patrimoniais e não patri- dos danos não patrimoniais por si sofridos, porque
moniais por si sofridos — situação típica de wron- não pode ser invocado o “direito a não nascer” , não
gful birth — e também a indemnização por danos existindo um “dano vida”.
patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela filha. A sentença recorrida adopta o entendimento de
A sentença em análise entendeu serem indem- Paulo Mota Pinto sobre esta situação, que entende
nizáveis os danos sofridos pelos AA., uma vez que que deve existir também o ressarcimento dos danos
62 o fundamento para a sua indemnização é o facto da própria criança, por necessidades acrescidas e até
de ter sido violado o seu direito à autodetermina- por danos não patrimoniais. Isto desde logo porque
ção, designadamente, o direito de interromper a quando, em consequência do erro médico, ocorre o
gravidez atento o diagnóstico pré-natal efectuado. nascimento de uma criança deficiente, o primeiro e
Entendeu assim existir nexo de causalidade entre mais directo visado é desde logo a própria criança.
o facto ilícito e culposo e o dano não patrimonial
sofrido pelos AA. Mais se considerou serem danos 3. A decisão
patrimoniais indemnizáveis as despesas com via- Apenas o R. INSA foi condenado, tendo sido
gens, medicamentos e funeral da filha dos AA. (já absolvidos todos os demais.
que se tratam de despesas que ocorreram devido ao Todavia, e tendo em conta o pedido inicial,
nascimento indevido da criança). a condenação acabou por ser bastante modesta
Quanto aos danos patrimoniais peticionados (25.000,00€ para cada um dos AA. e 25.000,00€
em nome da filha (rendimentos que deixou de au- para a filha dos autores).
ferir se tivesse saúde e uma vida normal de traba- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
lho) a sentença em apreço entendeu o seguinte: tal são, soluções e sugestões apresentadas
pedido representa um contrasenso, uma vez que a
doença da filha não surgiu de qualquer acto médico Os tópicos destacados na sequência da apresen-
e, por outro lado, se não tivesse havido erro no tação foram:
diagnóstico pré-natal (causa de pedir dos AA.) • Aceitação pacífica da acção de wrongful
a filha destes não teria nascido e como tal não se birth
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

• Problemas quanto à aceitação da wrongful life impotência e com frequência, a incontinência


• Apreciação da excepção peremptória da pres- urinária.
crição (a sentença não se debruçou sobre esta e) Sucede que, remetida a peça prostática para
questão, uma vez que ela já havia sido apre- exame anátomo patológico, este concluiu pela
ciada no despacho saneador) — o momento existência de hiperplasia nodular benigna, não
a partir do qual começa a contar o prazo de tendo encontrado qualquer vestígio de cancro
prescrição: do nascimento ou da morte? nesta peça.
f) O diagnóstico erróneo feito pela 1ª R., deter-
CASO 4 minou a operação a que o A. se sujeitou e que
não era necessária.
APRESENTADO PELA DRA. CRISTINA g) Em consequência, o A. peticiona danos
ISABEL SANTOS COELHO FERREIRA patrimoniais sofridos com os custos da
NEVES ­— JUÍZA DE DIREITO intervenção cirúrgica e com as quantias
despendidas (24.055,00€) e danos não pa-
A) Identificação da decisão: Acção declarativa trimoniais (400.000,00€) decorrentes das
de condenação sob a forma de processo comum. cicatrizes, das dores, angústia e profundo
B) Palavras — chave: contrato de prestação de abalo psicológico por si sofrido ao ser in-
serviços médicos, obrigação de meios/obrigação de formado que sofria de cancro.
resultado, responsabilidade contratual/extracontra- 63
tual, apreciação da culpa em concreto e em abstracto, h) Para fundamentar o pedido formulado
erro médico, contra o 2º R., alega ser este casado com
a 1ª R., sendo esta remunerada pelos ser-
C) Os factos, o Direito e a Decisão viços que presta e concorrendo com essa
remuneração para as despesas do agregado
1) Os factos familiar.
a) o A. alega ter-lhe sido recomendada a rea- i) A 1ª R. citada alegou por excepção a sua ile-
lização de uma biopsia prostática que foi gitimidade, uma vez que celebrou contrato
examinada pela 1ª R., tendo esta concluí- de seguro de responsabilidade civil, sendo
do pela existência de adenocarcinoma de o capital contratado de € 300.000,00,
grau 7.
j) Defendeu-se também por impugnação re-
b) A R. procedeu à análise do material biológico ferindo que quando processou as amostras
recolhido na biopsia prostática, de acordo com do A., teve algumas dúvidas sobre se se
os métodos e mecanismos exarados neste tipo trataria de adenocarcinoma. Face a estas
de exame. dúvidas realizou outro exame designado
c) Face a este diagnóstico, o A. foi sujeito a pros- por imonocitoquímica, cujo resultado não
tactomia radical, tendo sido realizada esta ope- foi completamente conclusivo, pelo que
ração em 22/06/2010. interpretou como tratando-se de adeno-
d) Quase sempre esta intervenção dá origem a carcinoma, uma vez que na primeira ob-
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

servação, já tinha verificado a existência A responsabilidade médica tanto pode ser con-
de atipia celular e distorção das formas nas tratual como extra-contratual, consoante exista ou
glândulas, o que reforçou a sua conclusão não a celebração de um contrato de prestação de
de que se tratava de neoplasia. serviços com o paciente para a prática dos actos
k) A R. aquando da realização deste exame médicos.
desconhecia todo o historial clínico do A, Sendo responsabilidade contratual, aplicar-se-
bem como o resultado dos exames médi- -ão os artºs 798 e segs. do C.C., enquanto que se
cos efectuados anteriormente. for extracontratual recorrer-se-á às regras previs-
l) A atrofia existente mimetizou a neoplasia tas nos artºs 483 e segs. do C.C.
sendo este tipo de diagnóstico qualificado É requisito essencial do contrato de prestação
como “pitfall” (dificuldade não facilmente de serviços, tal como definido pelo art. 1154.º do
apreensível) pela comunidade científica, CC, uma obrigação de resultado de um trabalho
tendo uma ocorrência de cerca de 1%; re- manual ou intelectual, com ou sem remuneração.
fere ter todos os exames que podia efec- Tem sido discutido no âmbito da responsabili-
tuar, tendo agido com todo o cuidado, dade médica, se a obrigação do médico é de meios
saber e diligência que lhe eram exigidos ou de resultado. Na obrigação de meios, o deve-
pelas boas artes médicas. dor compromete-se a desenvolver prudentemente
e com diligência certa actividade para a obtenção
m) O A. em sede de réplica alegou não ter tido de um determinado efeito, mas sem assegurar que
64
conhecimento da existência de um seguro o mesmo se produza; já a obrigação de resultado
celebrado pela R., alegando que esta litiga verifica-se quando se conclui da lei ou do negócio
de má fé, por não ter prestado tal informa- jurídico que o devedor está adstrito à obtenção de
ção; deduziu em consequência incidente um certo efeito útil.
de intervenção principal provocada da re- A jurisprudência e a doutrina vêm defenden-
ferida companhia de seguros, alegando ter do que a obrigação médica é tão só de meios, não
esta um interesse igual ao da R. na causa. se vinculando o médico (especialmente em áreas
n) Foi indeferida a intervenção provocada reque- de especial complexidade e tendo em conta os li-
rida pelo A., e a excepção dilatória de ilegitimi- mites da arte médica) a um determinado resul-
dade passiva suscitada pela 1ª R. foi indeferida. tado. No entanto, existem certas especialidades
em que a obrigação é de resultados (por exemplo,
2. O direito especialidade dos patologistas clínicos). No caso
O A. qualifica a responsabilidade desta médica em apreço, na especialidade de anátomo-patolo-
como extra-contratual por factos ilícitos e contra- gia, a obrigação é a de resultado. É esta especiali-
tual, tendo por base a celebração de um contrato dade, mediante o exame das biópsias, que efectua
de prestação de serviços celebrado entre a 1ª R. e o o diagnóstico do cancro.
A (o material biológico recolhido na biópsia pros- Não obstante, independentemente de tratar-se
tática foi entregue à 1ª R., Médica Anátomo-Pato- de uma obrigação de meios ou de resultado, na res-
logista, para que o analisasse) ponsabilidade contratual, o ónus de prova quanto à
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

inexistência de culpa no incumprimento ou cum- 1.ª Ré, ilidiu a presunção de culpa que sobre si im-
primento defeituoso da prestação incidirá sobre o pendia, uma vez que o presente caso caía na situa-
R. médico, nos termos do artº 799 do C.C. ção de “pitfall”, ou seja, entendeu que por tal erro
Já na responsabilidade extra-contratual, aplica- não poderia ser responsabilizada a médica, uma vez
-se o art. 487º, n.º 1 do Cód. Civil: é ao lesado que esta foi confrontada com um caso de difícil di-
que incumbe provar a culpa do autor da lesão e, ferenciação porque mimetiza o cancro, com uma
nos termos do n.º 2 do mencionado preceito, ela taxa de ocorrência de menos de 1%, sendo certo
é apreciada, na falta de outro critério legal, pela que este erro poderia ocorrer mesmo com a obser-
diligência de um bom pai de família em face das vância de todas as boas práticas.
circunstâncias de cada caso. Logo, não poderia ser assacada culpa a nenhum
No âmbito da responsabilidade médica, para se dos RR., pelo que a presente acção foi julgada
aferir da culpa, há que apreciar a conduta de acor- improcedente.
do com o modo como devia agir um especialista
idóneo colocado perante as mesmas circunstâncias: D. Problemas jurídicos discutidos na sessão,
um médico medianamente competente, prudente soluções e sugestões apresentadas
e sensato, com os mesmos graus académicos e pro- A apresentante esclareceu que, não obstante a
fissionais e na mesma data. decisão de primeira instância, houve a interposi-
Foi ainda feita uma incursão sobre o erro mé- ção de recurso por parte do A. para o Tribunal da
dico, definido por Germano de Sousa, como sendo Relação de Lisboa. Este Tribunal considerou que, 65
“a conduta profissional inadequada resultante de estando em causa uma obrigação contratual e uma
utilização de uma técnica médica ou terapêutica obrigação de resultado, a médica anátomo-patolo-
incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou gista, 1.ª Ré, tinha o dever de pedir uma segunda
vida do doente” (in “Negligência e Erro Médico”, opinião, tendo atribuído ao A. uma indemnização
B.O.A., nº6, fasc. 1, pág. 127). E sobre a importân- de 100.000,00€.
cia de diferenciar o erro médico culposo do erro Foi depois interposto recurso para o Supre-
resultante de acidente imprevisível. mo Tribunal de Justiça, que manteve a decisão da
3. A decisão Relação.
No caso dos autos entendeu-se estarmos pe- Foi avançado na discussão que a médica não terá
rante uma responsabilidade contratual entre o A. e pedido uma segunda opinião, porque não adivinha-
a 1.ª Ré, uma vez que da prova produzida resultou ria que estaríamos perante um caso de “pitfall”.
existir um vínculo contratual entre ambos, sujeita Por outro lado, foi questionada na discussão
às regras previstas no art. 798.º e ss do CC. a razão de o médico urologista não ser parte na
Mais se entendeu que a obrigação da 1.ª Ré, acção. A Dra. Cristina Neves esclareceu que isso
médica anátomo-patologista, era uma obrigação de apenas se deveu ao facto de o A. não ter proposto
resultado, tendo a mesma incorrido num erro de acção contra o mesmo, nem nenhum dos RR. ter
diagnótico. requerido a intervenção daquele.
Todavia, a sentença em apreço entendeu que a O Prof. Doutor André Dias Pereira referiu,
sobre a questão do dano não patrimonial, que em
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

França e na Alemanha existem bases de dados que c) Em Maio de 2001, a Autora dirigiu-se às
permitem, quer a quem propõe as acções, quer aos instalações da 2.ª Ré, tendo solicitado con-
seus decisores, ter uma ideia das quantias peticio- sulta do 1.º Réu que ali exerce funções.
nadas e atribuídas em casos análogos. Isto de forma d) O 1.º réu tinha larga experiência em inter-
a evitar disparidades tão elevadas. venções cirúrgicas como a dos autos, sen-
Foi ainda questionada a violação ou não do do reconhecido por muitas pessoas para a
princípio da igualdade quando feita a comparação realização de intervenções cirúrgicas como
com o dano biológico e sobre se na Jurisprudência a dos autos.
do Supremo tem sido feita a mobilização do art. 8.º e) O referido profissional de saúde prescre-
do CC, designadamente do seu n.º 3. veu à Autora a realização de intervenção
cirúrgica para a colocação de uma próte-
CASO 5 se total da anca (artoplastia com prótese
total).
APRESENTADO PELA DRA. FILOMENA f) Em face das explicações do réu e de ou-
GIRÃO — ADVOGADA tro médico que tinha consultado, a Autora
pretendeu que ele lhe realizasse a opera-
A) Identificação da decisão: Acórdão do Supremo Tribunal ção, tendo assinado a declaração de con-
de Justiça, na sequência de uma acção declarativa de condena- sentimento junta aos autos.
66 ção sob a forma de processo ordinário
g) Cirurgia que sucedeu a 15 de Maio de
B) Palavras — chave: contrato de prestação de serviços médi- 2001.
cos, obrigação de meios/obrigação de resultado, responsabilida-
de contratual/extracontratual, presunção de culpa, actividade h) A segunda Ré contratou com a A. pres-
perigosa tar-lhe acompanhamento e cuidados pré e
C) Os factos, o Direito e a Decisão pós operatórios, de aluguer do bloco ope-
ratório, de alojamento, de alimentação, de
1. Os factos enfermagem, e mesmo outros que são ne-
a) A Autora propôs ação declarativa de con- cessários em consequência de intervenções
denação contra o médico responsável pela cirúrgicas que se realizem na Clínica.
intervenção cirúrgica a que foi submetida, i) A operação a que a Autora foi submetida
e ainda contra o estabelecimento privado de é realizada na grande maioria dos casos
saúde onde aquela cirúrgia decorreu, peti- sem complicações, mas comporta alguns
cionando a condenação solidária dos Réus riscos, cujas causas são múltiplas e muitas
no pagamento de € 183.076,55, a título de vezes difíceis de identificar, entre os quais
danos patrimoniais e não patrimoniais sofri- o de lesão de nervo ciático.
dos em consequência daquela intervenção. j) Em consequência da cirurgia, a Autora
b) A Autora padecia de coxartrose bilateral veio a sofrer estiramento do nervo ciático,
com acentuação na anca direita. manifestando sintomas logo no 1.º dia de
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

pós-operatório. Réus do pedido, com fundamento na ine-


k) Nessa data, o médico (especialista em or- xistência de nexo de causalidade entre os
topedia) reconheceu que tinha ocorrido factos e os danos.
uma complicação durante a cirurgia, em r) A Autora interpôs recurso para o Tribunal
consequência de a prótese que lhe fora co- da Relação de Lisboa que, por acórdão de
locada ostentar uma haste mais longa do 27-10-2015, confirmou a decisão de pri-
que a devida. meira instância (com voto de vencido).
l) Assim, a 17 de Maio de 2001, a Autora foi s) A Autora interpôs recurso para o Supremo
novamente submetida a intervenção cirúr- Tribunal de Justiça, que confirmou o acór-
gica para encurtar a prótese e explorar o dão recorrido.
nervo ciático.
m) A A. esteve acamada cerca de um mês, fez 2. O direito
fisioterapia durante cerca de 10 meses, fez A Autora celebrou com os Réus um contrato
várias radiografias e tomou várias injec- de prestação de serviços, mediante o qual estes se
ções epidurais. obrigavam à prestação de serviços médicos à pri-
meira. Alega, todavia, que o mesmo foi deficiente-
n) Não obstante tais tratamentos, a Autora mente cumprido, daí resultando para ela danos, pa-
perdeu a sensibilidade no pé direito, apre- trimoniais e não patrimoniais, pelos quais pretende
senta a perna direita definhada e mais fina ser indemnizada. 67
do que a esquerda, exibe claudicação acen- No caso em apreço, estamos assim perante uma
tuada na marcha e sofre de dores perma- eventual responsabilidade civil contratual, tendo
nentes (mesmo nas posições de sentada ou assim aplicação o disposto no art. 799.º do CC, ou
deitada), sente graves limitações na movi- seja, a presunção de culpa sobre o devedor.
mentação, pelo que se desloca apenas com O acórdão do STJ em análise discorre sobre a
o apoio de uma ou duas canadianas. responsabilidade contratual e extracontratual e in-
o) A Autora, então com 48 anos de idade, viu- tegra o contrato de serviços médicos, no contrato
-se impedida de continuar a exercer a sua de prestação de serviços do art. 1154.º do CC.
atividade profissional, ou qualquer outra Por outro lado, debruça-se depois sobre a
profissão ou atividade lucrativa. questão de saber se o contrato de prestação de ser-
p) Ficou, pois, com o seu futuro pessoal, fa- viços médicos, não obstante a noção do art. 1154.º
miliar, profissional e social posto em causa, do CC, integra uma obrigação de meios ou de
sentindo-se angustiada e deprimida, mani- resultado.
festando dificuldades em conciliar o sono, Conclui que a obrigação principal assumida
em fazer qualquer esforço físico, o que a pelo médico é a de tratamento, sendo por isso de
faz sentir diminuída e com vergonha da sua qualificar como obrigação de meios, e não de re-
perna direita. sultado, por não se ter ele vinculado a obter a cura
q) O Tribunal de 1.ª Instância absolveu os do paciente, mas apenas a tentá-la por meio do
tratamento que os seus específicos conhecimentos
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

científicos e técnicos lhe apontem como adequado, indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de
como se explica, entre outros, no Ac. deste Supre- aplicar os conhecimentos científicos e os proce-
mo Tribunal de 17/01/2013 (relatora Ana Paula dimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua
Boularot). formação e qualificação profissional, lhe eram de
Todavia, refere que em matéria de aplicação de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médi-
próteses, apoiando-se no ensinamento de Rute Tei- co traduz-se precisamente na preterição das leges
xeira Pedro in “A responsabilidade civil do médico”, artis em matéria de execução da sua intervenção.
pág. 100, “existe uma especificidade que leva a que, Porém, refere depois, lançando mão da noção
em regra, seja apresentada como exemplo de uma de obrigação de meios, que cabe “ao paciente pro-
intervenção em que o médico se vincula à consecu- var a falta de diligência do médico, a falta de uti-
ção de um resultado. Trata-se, porém, de uma ativi- lização de meios adequados de harmonia com as
dade complexa, em que o profissional médico assu- leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o
me obrigações de vária natureza, sendo necessário médico não praticou todos os atos normalmente
fazer uma distinção entre a atividade de elaboração considerados necessários para alcançar a finalida-
da prótese e a de aplicação da mesma no organismo de desejada: é essa falta que integra erro médico
do paciente. No que se refere à primeira, o médi- e constitui incumprimento ou cumprimento defei-
co compromete-se a elaborar um dispositivo que se tuoso. E só depois dessa prova funcionará, no do-
adeque à anatomia do concreto doente, de acordo mínio da responsabilidade contratual, a dita pre-
68 com regras técnicas precisas, assumindo nessa medi- sunção de culpa.”  
da uma obrigação de resultado. Mas no que respeita Pelo exposto, entendeu a apresentante que o
à segunda, na medida em que a aceitação ou rejeição acórdão violou claramente o disposto no artigo
de um corpo estranho pelo organismo depende de 799.º do Código Civil.
um conjunto de fatores que o profissional não con- O acórdão em análise debruçou-se ainda sobre
segue controlar, a obrigação assumida deverá qualifi- o cúmulo de responsabilidade contratual e extra-
car-se como obrigação de meios.”      contratual, que vem sendo há muito defendida em
Apesar de o Supremo Tribunal de Justiça matéria de responsabilidade médica e que permiti-
ter considerado que a responsabilidade médica ria convocar para o caso em apreço o artigo 493.º,
apresenta, no caso em apreço, natureza contratual, n.º 2 do Código Civil, segundo o qual: “quem cau-
alega a apresentante que este não considerou — sar danos a outrem no exercício de uma actividade,
como devia — a presunção de culpa constante do perigosa por sua própria natureza ou pela natureza
artigo 799.º do Código civil, segundo a qual “in- dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, ex-
cumbe ao devedor provar que a falta de cumpri- cepto se mostrar que empregou todas as providên-
mento ou o cumprimento defeituoso não resulta cias exigidas pelas circunstâncias com o fim de os
de culpa sua”. prevenir”.
Efectivamente, a aresto em apreço entendeu Sucede que o referido Acórdão entendeu o
que a responsabilidade no âmbito do contrato de seguinte: “se vem invocada violação de uma obri-
prestação de serviços médicos, por negligência, gação contratual de que resultam danos para uma
por violação das leges artis, tem lugar quando, por das partes, o pedido de indemnização deve alicer-
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

çar-se nas regras da responsabilidade contratual, D) Problemas jurídicos discutidos na ses-


com exclusão, face a um princípio da consunção, são, soluções e sugestões apresentadas
das da extracontratual, inclusive do disposto no
art.º 493º, citado, que nesta se integra, aplicando- A apresentante considerou que o STJ ajuizou
-se o regime da primeira por ser mais conforme mal, sobretudo por não ter aplicado ao caso em
ao princípio geral da autonomia privada e por ser, apreço a presunção de culpa prevista no art. 799.º
em regra, o regime globalmente mais favorável ao CC (por incumprimento das legis artis e dos deve-
lesado. res acessórios de conduta).
Não obstante, o STJ pronunciou-se sobre uma A discussão após a apresentação debruçou-se
eventual aplicação subsidiária da responsabilidade sobretudo na questão de qualificar a actividade
extracontratual, caso a responsabilidade contratual médica como actividade perigosa, para efeitos de
não tivesse lugar na situação em apreço, dado que aplicação da presunção de culpa prevista no art.
o Juiz, embora sujeito aos factos invocados pelas 493.º do CC.
partes, lhes poderá atribuir qualificação jurídica
diversa. CASO 6
Concluiu que esse dispositivo (art.º 493º) não
teria aplicação na hipótese dos autos. Desde logo,
porque uma prótese, enquanto coisa móvel, para APRESENTADO PELA DRA. MARIA
efeitos do n.º 1, não representa por si só qualquer FERNANDA ALMEIDA — JUÍZA DE 69
perigo (como aconteceria com uma arma, um ar- DIREITO
tigo de pirotecnia, uma caldeira, etc). Também  o A) Identificação da decisão: Acção declarativa de condena-
seu n.º 2 (lançando mão da noção de actividade ção sob a forma de processo ordinário
perigosa), não teria aplicação no caso da activida-
B) Palavras — chave: contrato de prestação de serviços médi-
de médica analisado nos autos, uma vez que esta cos, responsabilidade contratual/extracontratual, erro médico,
“não tinha, por sua natureza nem pela natureza dos legis artis/dever objectivo de cuidado,
meios utilizados, uma perigosidade de tal ordem C) Os factos, o Direito e a Decisão
que, mesmo entendendo-se que nos encontrávamos
no âmbito da responsabilidade extracontratual,
justificasse a aplicação da presunção prevista no 1. Os factos
n.º 2 do mencionado art.º 493º, mantendo-se, a) A Autora propôs ação declarativa de con-
em consequência, o ónus da autora de provar o denação contra o médico responsável pela
incumprimento ou o cumprimento defeituoso das prescrição de um medicamento de cor-
obrigações médicas do réu, por não lhe terem sido recção hormonal, e ainda contra o estabe-
prestados os melhores cuidados possíveis, o que lecimento privado de saúde onde aquela
não conseguiu fazer.” consulta se realizou, peticionando a con-
denação solidária dos Réus no pagamento
de € 68.539,94€, a título de danos patri-
moniais e não patrimoniais sofridos em
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

consequência daquela intervenção. 2. O Direito


b) Para tanto, alegou que foi consultada pelo A A. funda a sua pretensão, por um lado, na
1.º R. nas instalações da 2.º Ré. responsabilidade civil extracontratual, tal como
c) Este prescreveu-lhe um medicamento de configurada no art. 483.º do CC e por outro na
correcção hormonal, na sequência do qual responsabilidade contratual, ao invocar que ao caso
a A. foi vítima de constantes hemorragias e é aplicável o prazo de prescrição de 20 anos.
de vários problemas de saúde. Existem diferenças de regime entre uma e ou-
tra: ónus da prova da culpa (art. 799.º, n.º 1 e art.
d) Chegou inclusivamente a ser submetida a 487.º, n.º 1, ambos do CC); prazos de prescrição (art.
cirurgia a laser ao colo do útero. 309.º e 498.º do CC, ambos do CC); responsabilidade
e) O primeiro Réu contestou, alegando que, por facto de outrem (art. 800.º, n.º 1 e 500.º, ambos
atendendo à idade, sintomatologia e his- do CC); atenuação equitativa de indemnização em
tória clínica (menopausa) aconselhou à A. caso de mera culpa (art. 494.º do CC).
terapia hormonal de substituição (THS), O médico que tem um consultório aberto com
tendo-a esclarecido dos efeitos respectivos placa, encontra-se numa situação de proponente
e obtido a sua concordância. contratual, sendo que o doente que aí se dirige está
f) Alega que a medicação prescrita era a a manifestar a aceitação de tal proposta, gerando-se
correcta, sendo que as perdas de sangue assim um vínculo contratual, de natureza pessoal,
70 ocorridas cessariam logo que a A. parasse em regra de execução continuada, sinalagmático,
a toma daquela medicação; mais refere que oneroso e susceptível de resolução.
a cirurgia ao útero nada teve a ver com a Sem prejuízo desta natureza contratual, muitas
medicação de THS. vezes a responsabilidade médica também pode ter na-
g) Suscitou ainda a intervenção provocada da tureza extracontratual, casos em que pode lançar-se
seguradora para a qual transferiu a respon- mão de ambos os tipos de responsabilidade civil.
sabilidade decorrente de responsabilidade No caso dos autos é demandada uma clínica na
civil profissional, tendo esta contestado, qual o R. médico prestava os seus serviços. Todavia,
invocando a prescrição. a A. não alegou, nem muito menos fez prova sobre
o vínculo que ligava a Clínica ao médico. Poderia
h) A A. alegou ainda que o Réu não cumpriu ocorrer uma das seguintes situações: se o médico
o dever de registar as informações clínicas, trabalhava por conta da clínica, poderia colocar-se
o que motiva a inversão do ónus da prova a questão da relação comitente-comissário (Art.
i) A A. alegou por outro lado que o medi- 500.º do CC) ou, no caso de responsabilidade con-
camento que lhe foi ministrado apenas se tratual, a situação da responsabilidade por actos de
destinava a mulheres histeroctomizadas, o representantes legais ou auxiliares (art. 800.º do
que não era o seu caso. CC); se o médico ali dava consultas, mas remune-
j) E por ultimo, que o prazo de prescrição rava a clínica pela utilização do espaço, nenhuma
aplicável ao caso em apreço é de 20 anos. responsabilidade pode ser assacada à clínica.
Ora, não sendo alegado (e provado) nenhum
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I

facto que pudesse co-responsabilizar a clínica, a Na ausência de regras escritas, “o dever objec-
mesma foi absolvida. tivo de cuidado é aferível pelo modelo-padrão que
Sobre a responsabilidade do médico, a A. refere consiste em verificar os costumes profissionais, não
duas circunstâncias distintas: quaisquer costumes ou hábitos, mas os próprios de
• Por um lado, o erro médico, por este lhe um profissional prudente
ter prescrito terapêutica que, não sendo Quanto à segunda circunstância, diga-se o se-
adequada, a sua situação, lhe provocou guinte: além do dever geral de assistência que im-
hemorragias; pende sobre o médico, no âmbito de um contrato
• Por outro lado, a recusa de assistência do de prestação de serviços, é dever do médico vigiar
médico, quando a A., na sequência das alu- e acompanhar o doente a quem prescreveu deter-
didas hemorragias, se dirigiu à Clínica para minada terapia, designadamente para verificação
ser consultada, e na ausência de tal consul- dos efeitos secundários. No entender da sentença
ta, teve que se dirigir ao Hospital. em análise, para que pudesse julgar-se verificada a
Sobre a primeira — o erro médico — não violação de tal dever, a A. tinha que alegar e provar
existe uma definição do que seja este. Mas pode que procurou o R. na clínica e que lhe comunicou,
afirmar-se genericamente que o mesmo consiste ainda que por intermédio de terceiro, alguma in-
numa falha profissional, não intencional, resultan- formação sobre o seu estado de saúde que susci-
te da realização de uma sequência de actividades tasse a necessidade de consulta e, que estando ali
físicas ou mentais, previamente planeadas, que presente, o R. se recusasse, activa ou passivamente, 71
falham em atingir o resultado esperado (e essa fa- a consultá-la. E tal não foi provado.
lha não se deva à intervenção do acaso) — segundo
José Fragata, em “Erro da Medicina”. 3. A decisão
Já Germano de Sousa entende que erro médico A sentença em análise entendeu que quanto à
será a “conduta profissional inadequada resultante terapêutica ministrada e à sua relação com as he-
da utilização de uma técnica médica ou terapêuti- morragias ocorridas com a A. não ficou demonstra-
ca incorrectas que se revelam lesivas para a saúde da qualquer conduta do R. médico que denuncie a
ou vida do doente” (Negligência e erro médicos, in violação de legis artis, sendo certo que os proble-
B.O.A., N.º 6, pág. 12-14). mas que teve posteriormente também nada tive-
A apresentante, por sua vez, define erro médi- ram a ver com a medicação prescrita.
co, como “a conduta médica em consequência da Também pela via da alegada recusa de pres-
qual vêm a ocorrer na saúde ou vida do doente e tação de assistência, inexistem fundamentos para
devendo-se tal conduta à violação das leges artis, responsabilizar o R. pela sucessão de eventos re-
enquanto leis que encerram os deveres de cuidado latada pela A.
exigíveis ao médico. Seria em tal violação do de- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
ver de cuidado que se centraria a ilicitude do acto são, soluções e sugestões apresentadas
médico, enquanto pressuposto da obrigação de
indemnizar comuns aos dois campos da responsa- Durante a discussão, colocou-se a questão do
bilidade já mencionados) ”. registo clínico: na altura eram meros apontamen-
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4

tos, à mão, do médico; o tribunal teve que conside- cesso criminal é mais difícil a condenação do que
rar um simples manuscrito do médico. em direito civil.
Dever de documentação e a situação das direc- A questão da aplicação do art. 493.º, n.º 2 do
tivas antecipadas de vontade CC na responsabilidade médica: só relativamente
A prova foi feita através do depoimento dos a actos mais arriscados e já não para os mais co-
médicos, que vinham depor como testemunhas, muns, rotineiros e corriqueiros. Todavia, há quem
colocando-se assim o problema das “testemunhas- entenda que não deve ser feita, de todo, a aplicação
-perito”, com a consequente comparação entre o do art. 493.º, n.º 2 à actividade médica (ex. Dra.
que foi feito pelo médico e o que a testemunha, Cristina Neves).
enquanto médico também, teria feito.
Falou-se ainda no pressuposto da ilicitude neste
tipo de acções: guidelines da prática médica.
A apresentante é ainda da opinião que em pro-

72
Mesa 5 e 6

RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E OUTROS ENTES


PÚBLICOS E FUNCIONAMENTO ANORMAL DO SERVIÇO E PERDA DE CHANCE
Presidente da Mesa: JoãoVaz Rodrigues| Advogado e Professor na Universidade de Évora
Relatores: Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC · Abel Chicunha | Mestrando da FDUC

CASO 1 cedimento de fertilização, utilizando o es-


perma congelado.
APRESENTADO PELO DR. RAFAEL VALE e) Em Agosto de 2006 solicitou aos réus, por
E REIS — ASSISTENTE CONVIDADO DA escrito, informação sobre o estado das
FDUC E ADVOGADO amostras.
A) Identificação da decisão: recurso jurisdicio- f) Um novo pedido de informação, por escri-
nal — Tribunal Central Administrativo Norte to, foi feito pelo mandatário do autor em
Outubro de 2006.
B) Palavras-chave: responsabilidade civil extracon-
tratual do Estado — criopreservação de esperma — g) Em Novembro de 2006 os réus responde-
destruição das amostras — dever de informação ram, informando que as amostras tinham 73
C) Os factos, o Direito e a Decisão sido destruídas em Junho de 2005.
h) O procedimento normal do réu era o de in-
1. Os factos formar os utentes, aquando da recolha de
esperma, que a criopreservação era garanti-
a) O autor, na sequência de um tumor malig- da por um período máximo de 5 anos, findo
no no testículo e antes de ser submetido a o qual o utente deveria contactar pessoal-
quimioterapia, procedeu à recolha de es- mente o serviço de genética reiterando a
perma para criopreservação em Outubro vontade de manutenção da congelação, sob
de 1994. pena de destruição das amostras.
b) A recolha e criopreservação foi realizada i) Este protocolo era livremente fixado pelo
por um médico no Serviço de Genética serviço de genética, já que inexistia, à
Médica da Faculdade de Medicina do Por- data, legislação.
to, sendo réus na acção tanto o médio,
como o Serviço de Genética. j) O protocolo foi definido atendendo aos
conhecimentos obtidos pela experiência e
c) A recuperação total do autor ocorreu no ano pelo estudo, bem como pelo tempo que,
de 1996, tendo ficado com azoospermia. em média, um doente que faça tratamen-
d) Em Julho de 2005, o autor consultou um tos com quimioterapia demora para recu-
médico no sentido de recorrer a um pro- perar totalmente.
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6

2. O Direito entendeu que o período referido, de 3 anos, deve


O caso foi analisado sob a perspectiva da ser igualmente aplicável aos gâmetas.
responsabilidade civil extracontratual do Estado e O caso suscita dúvidas em relação aos dois
demais pessoas colectivas, no domínio dos actos de pressupostos da responsabilidade analisados.
gestão pública, na altura regida pelo artigo 2.º, n.º Quanto à ilicitude, o acórdão não explicita
1, do DL n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967. bem o sentido da sua decisão, pois apenas afirma
que o réu não conseguiu provar que tinha dado
3. A Decisão informação sobre o limite temporal. O raciocínio
O facto em causa foi a eliminação voluntária que lhe parece subjazer é o da consideração daque-
das amostras de esperma à guarda do réu. Sendo le elemento como um facto impeditivo, recaindo o
certo que a destruição era legalmente admissível, ónus da prova sobre o réu. Contudo, não é líquido
ainda assim o réu não logrou demonstrar que havia que assim seja, podendo considerar-se como um
informado o autor do prazo de 5 anos e do dever facto constitutivo, cuja prova já recairia sobre o au-
de comunicar a vontade de manutenção da crio- tor. É uma questão controversa que o tribunal, não
preservação. Esta omissão é ilícita, porquanto vio- se pronunciando directamente, não fundamentou.
ladora do direito do autor de ser informado, nos Quanto à culpa, por um lado, não é inequí-
termos em que o réu se autovinculou e no quadro voca a relevância jurídica a dar ao facto de a des-
dos direitos do autor decorrentes do artigo 70.º do truição ter ocorrido mais de 10 anos após a reco-
74 CCiv e 36.º, n.º 1, da CRP. lha, que parece ter pesado na valoração judicial.
Contudo, também não ficou demonstrado Por outro, parece haver uma incongruência com o
que os réus comunicaram ao autor que não havia pressuposto anterior, já que a ilicitude foi afirma-
qualquer limite temporal. Além disso, a elimina- da em relação à ausência de informação, enquanto
ção das amostras ocorreu mais de 10 anos após a que a culpa foi aferida, e negada, em relação à des-
sua recolha, muito depois do prazo auto-imposto truição das amostras.
pelo protocolo e, de frisar, na ausência de qualquer Um outro aspecto discutido foi a possibilida-
legislação impositiva. Nestas circunstâncias, não é de avançada num voto de vencido que entendeu
possível formular um juízo de censura, pelo que estar em causa uma responsabilidade contratual,
não está preenchido o pressuposto da culpa. aplicando as regras do contrato de depósito. O réu
O tribunal negou, assim, provimento ao recur- comprometeu-se a congelar e guardar o esperma
so interposto pelo autor. do autor para que este o pudesse utilizar quando o
solicitasse, sendo obrigação do depositário avisar
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- o depositante quando saiba de algum perigo que
são, soluções e sugestões apresentadas ameace a coisa (artigo 1187.º do CCiv). A destrui-
Toda a factualidade do caso ocorreu antes da ção do esperma, propriedade do autor e à guarda
Lei da Procriação Medicamente Assistida de 2006. do réu, sem o conhecimento daquele, seria ilícito
Apesar de esta legislação não se referir à destrui- por violar os artigos 70.º do CCiv e 36.º, n.º 1,
ção de gâmetas, mas apenas de embriões, o Conse- da CRP. A culpa seria presumida e não teria sido
lho Nacional de Procriação Medicamente Assistida ilidida. É duvidoso que se possa aplicar ao caso o
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...

regime do depósito. De todo o modo, o raciocí- vi) A paciente foi submetida a uma in-
nio parece assentar, como entendimento prévio e tervenção para extracção do material que
implícito, na assimilação desta situação aos casos havia sido colocado aquando da primeira
de responsabilidade médica, que é, normalmente, intervenção.
contratual. vii) Não obstante os tratamentos a que foi su-
CASO 2 jeita, o seu estado de saúde continuou a
piorar progressivamente.
viii) Voltou a ser internada com diganóstico de
APRESENTADO PELO DR. SÉRGIO NUNO espondilodiscite, endocardite bacteriana e
COIMBRA CASTANHEIRA - ADVOGADO) colite pseudomembranosa.
A) Identificação da decisão: acção declarativa ix) Veio a falecer e a causa de morte foi iden-
de condenação — Secção Cível de Coimbra tificada como sendo septicémia provocada
B) Palavras-chave: SIGIC — incompetência em ra- por endocardite bacteriana.
zão da matéria — legitimidade processual x) Os autores na acção são os seus progenito-
C) Os factos, o Direito e a Decisão res, enquanto sucessores legais.

1. Os factos 2. O Direito
i) Uma paciente, necessitando de cirurgia A acção em causa foi intentada junto de um 75
à coluna, foi colocada em lista de espera tribunal cível, tendo sido alegada a incompetência
num hospital público. ratione materiae desta jurisdição. Assim, estava em
causa sobretudo o artigo 4.º do ETAF, que deli-
ii) Em virtude da imprecisão relativamente à mita a competência dos tribunais administrativos
data de marcação da cirurgia, foi-lhe dada e fiscais.
a possibilidade de escolher entre diversos Quanto ao SIGIC, este protocolo foi cria-
estabelecimentos de saúde privados, ao do pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
abrigo do Sistema de Gestão dos Utentes 79/2004, de 3 de Junho, o seu funcionamento
Inscritos para Cirurgia (SIGIC). obedece aos princípios gerais da Lei de Bases da
iii) A cirurgia foi realizada no esta- Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de Agos-
belecimento por ela escolhido por dois to, e o clausulado tipo da convenção para a presta-
ortopedistas. ção de cuidados de saúde no seu âmbito é definido
iv) Após esta intervenção, recorreu pelo Despacho n.º 24 110/2004, de 23 de Novem-
diversas vezes aos serviços de urgência, bro. Foi, ainda, mobilizado o artigo 1.º, n.º 6, do
tendo sido diagnosticada com espondilo- Código dos Contratos Públicos, quanto à definição
discite, um processo inflamatório-infec- de contrato administrativo.
cioso na coluna.
3. A Decisão
v) A origem deste processo inflamatório foi a A acção de responsabilidade civil fundamenta-
intervenção cirúrgica. -se em actos médicos praticados por utentes per-
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6

tencentes ao serviço nacional de saúde, bem como que, mesmo que toda a factualidade invocada fosse
a um prévio acto médico realizado numa unidade provada, nenhuma consequência se extrairia para
de saúde privada, mas ao abrigo do SIGIC. este médico, pois nada haveria a imputar-lhe. Ou
O tribunal considerou que a relação jurídica seja, este réu não tinha interesse em contestar.
estabelecida por via do SIGIC é com a entidade Na acção que se seguiu, proposta nos tribu-
convencionada e não com o médico. A existir uma nais administrativos e fiscais, este terceiro médi-
relação contratual será entre o Serviço Nacional co não foi demandado. Quanto aos outros dois,
de Saúde e a clínica e não com o médico indivi- também aqui havia uma questão de legitimidade.
dualmente. Além disso, atendendo à legislação que Toda a factualidade alegada, se integralmente pro-
rege o SIGIC e ao facto de o doente se sujeitar ao vada, apenas conduziria a um juízo de negligência,
Código dos Contratos Públicos, um acto médico o que, de acordo com o DL n.º 48/051, de 21 de
praticado em unidade hospitalar privada ao abrigo Novembro, determinaria que apenas o Estado se-
deste protocolo é uma situação regida pelo direi- ria responsabilizado e já não o médico que actuou
to público. Ou seja, o litígio a resolver decorre de negligentemente.
uma relação jurídico-administrativa, sob a égide do Esta realidade denota uma tendência dos juízes
direito público. em não quererem decidir incidentes de legitimi-
Assim sendo, a competência material para co- dade ab initio. Ora, na perspectiva dos médicos, o
nhecer da acção em que se discute eventual respon- simples facto de constarem como réus numa ac-
76 sabilidade civil emergente desta relação jurídica é ção, independentemente da sentença que vier a
dos tribunais administrativos, ao abrigo do dispos- ser proferida, é um pesado encargo, com reper-
to no artigo 4.º, n.º 1, alíneas e) e h), do ETAF, cussões profissionais. Deste ponto de vista, não é
declarando-se absolvidos os réus da instância por indiferente uma acção ser julgada improcedente
incompetência absoluta em razão da matéria. por ilegitimidade “processual” ou por ilegitimidade
“material”, na qual se discute, logo desde início, o
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- mérito da causa.
são, soluções e sugestões apresentadas Antes, o significado desta legitimidade mate-
Sendo controvertida a determinação da com- rial era bastante discutido, havendo posições diver-
petência dos tribunais administrativos e fiscais em gentes no sentido de dever ser aferida com base
casos referentes ao SIGIC, a discussão centrou-se na relação material controvertida ou com base na
noutros aspectos suscitados pelo caso, de índole configuração dada pelo autor. A redacção actual do
processual. artigo 30.º do CPC optou pela última concepção,
A acção foi intentada contra três médicos, o sendo relevante a legitimidade tal como configura-
terceiro dos quais só teve contacto com a vítima da pelo autor.
após a intervenção cirúrgica e sem qualquer rele-
vo. Na petição inicial, apenas é invocado num arti-
go, sem haver alegações em termos de imputação.
Assim, alegou ilegitimidade passiva, na medida em
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...

CASO 3 viii) O seu estado clínico foi-se agravando,


evoluído rapidamente para choque séptico
APRESENTADA PELA DRA. HIGINA e falência multiorgânica, vindo a falecer.
ORVALHO CASTELO — JUÍZA ix) A causa da morte foi choque séptico devi-
DESEMBARGADORA ­— TRIBUNAL DA do a pneumonia.
RELAÇÃO DE GUIMARÃES x) Aquando da primeira entrada nas urgên-
cias, a doente já estava com pneumonia
A) Identificação da decisão: acção declarativa e esta já tinha começado a provocar a
de condenação — 1.ª Secção Cível de Lisboa septicémia.
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual — xi) Os sintomas apresentados eram compatí-
atendimento em urgências — morte por septicémia veis com pneumonia.
causada por pneumonia — perda de chance xii) Foi feita medição do oxigénio existente no
C) Os factos, o Direito e a Decisão sangue, com o resultado de 63%, corres-
pondente a um estado muitíssimo grave de
1. Os factos privação de oxigénio.
i) Mulher de 29 anos deu entrada num ser- xiii) Uma amigdalite não é causa muito prová-
viço privado de urgências hospitalares por vel de hipoxemia.
volta das 2 horas da madrugada. xiv) Não foi efectuada uma radiografia ao tó- 77
ii) Encontrava-se em processo de recupe- rax, que detectaria a pneumonia.
ração de um meningioma, que havia sido xv) O principal factor que determina a evo-
extraído. lução de uma septicemia é o diagnóstico
iii) A recuperação estava a correr bem, mas atempado.
o seu estado físico era, ainda, de grande xvi) Numa sépsis grave diagnosticada na pri-
debilidade. meira hora, a probabilidade de sobrevi-
iv) Este quadro foi explicado ao mé- vência é de quase 80%, descendo para cer-
dico que a atendeu nas urgências. ca de 40% quando passam 3 horas e, ao
fim de 12 horas, apenas 20% dos doentes
v) Foi diagnosticada com um quadro gripal e sobrevivem.
amigdalite, tendo-lhe sido dada alta médi-
ca uma hora depois. 2. O Direito
vi) Pouco após as 10 horas da manhã seguinte, O caso foi analisado na perspectiva da respon-
regressa ao mesmo hospital com dificulda- sabilidade contratual, recorrendo, ainda, à figura
des respiratórias, hipotensa e taquicárdica. dogmática da perda de chance.
vii) Foi considerada em estado muito grave,
tendo sido de imediato entubada e inter- 3. A Decisão
nada, aí permanecendo durante 18 dias. Aquando da primeira entrada nas urgências,
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6

é feito um diagnóstico indiscutível, injustificada e D) Problemas jurídicos discutidos na ses-


culposamente errado. Era possível, logo nesta altu- são, soluções e sugestões apresentadas
ra, ter efectuado o diagnóstico correcto. A actua-
ção foi negligente em virtude da falta de atenção O tema da perda de chance é suscitado nes-
e de execução de certos actos que, perante as cir- te caso pelo facto de estarem preenchidos todos
cunstâncias, eram exigíveis. Com efeito, não foram os pressupostos da responsabilidade à excepção
utilizados os meios auxiliares de diagnóstico e os do nexo de causalidade. Com efeito, este não po-
conhecimentos existentes e que teriam conduzido dia ser afirmado com o grau de probabilidade que
a um bom diganóstico e a um tratamento, pelo me- normalmente se exige, atendendo a que, se tudo
nos, mais atempado. Era ainda exigível ao médico tivesse sido correctamente feito aquando da pri-
que tivesse dado melhor atenção à doente, pela fra- meira entrada nas urgências, ainda assim a paciente
gilidade, antecedentes clínicos e grande mal-estar poderia vir a falecer.
que apresentava Ficou, todavia, provado que a probabilidade de
Contudo, inexiste um directo nexo de causali- sobrevivência foi diminuída, tratando-se de uma si-
dade entre esta actuação e o dano final da morte. tuação em que o diganóstico e a intervenção atem-
Não se pode concluir que, caso tivesse havido um pados são cruciais. Ora, quando alguém se dirige
correcto diagnóstico e tratamento na primeira en- a um hospital, faz parte da prestação acordada a
trada nas urgências, a doente teria sobrevivido. Já preservação da chance de a pessoa sobreviver, ain-
é possível fazer um juízo de probabilidade sobre a da que venha, posteriormente, a falecer.
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sobrevivência, pois sabemos, com certeza, que a Assim sendo, é exigível que o médico actue,
actuação em causa fez a paciente perder a opor- no âmbito da sua obrigação de meios, de forma a
tunidade de sobreviver. Assim, a probabilidade de preservar as possibilidades de se alcançar o resul-
sobrevivência foi coarctada pela conduta do médi- tado pretendido, embora não prometido — é pre-
co, gerando um dano concreto: a redução drástica cisamente no campo das obrigações de meios que
da probabilidade de sobreviver. Entre a conduta do a doutrina da perda de chance encontra um campo
médico e este dano autónomo e intermédio há um fértil de aplicação.
nexo causal. Como crítica ao recurso a esta doutrina, foi
Assim, decidiu o tribunal estarem preenchidos colocada uma questão processual, no sentido de
os pressupostos da responsabilidade contratual, con- saber se o dano da perda de chance tem de ser ex-
denando o réu a uma indemnização com referência pressamente invocado pelo autor ou se pode ser de
ao dano da chance perdida. Para a sua aferição, pro- conhecimento oficioso pelo juiz. Esta é uma ques-
cede-se à avaliação do dano final e à fixação do grau tão muito discutida na doutrina e jurisprudência
de probabilidade de obtenção da vantagem, aplican- estrangeiras, mas há entendimentos no sentido de
do o segundo valor, em percentagem, ao primeiro que, se da factualidade invocada ressaltar a exis-
valor. Considerou-se de 40% a probabilidade de tência do dano da perda de chance, ainda que não
sobrevivência entre as 2 e as 3 horas da madrugada. designado deste modo, a sua consideração resulta
tão-só de uma alteração da qualificação jurídica, a
qual compete ao juiz.
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...

Já ao nível substantivo, outra crítica suscitada C. Os factos, o Direito e a Decisão


foi a de o dano da perda de chance não ser verda-
deiramente autónomo, atendendo, desde logo, ao 1. Os factos
facto de o montante indemnizatório ser calculado
por referência ao dano da morte. Acresce que é du- i) Paciente, mulher de 21 anos, decidiu sub-
vidoso saber se se invocaria o este instituto caso o meter-se a uma intervenção de lipoaspira-
dano morte não tivesse ocorrido. Contra esta posi- ção dos culotes.
ção, é possível afirmar que, pese embora relaciona- ii) Para tal, consultou um médico na sequên-
dos, se tratam de danos distintos. A sua autonomia cia de indicações de amigas de que se tra-
decorre do seu relevo próprio, já que se trata de tava de cirurgião plástico e por força de
uma chance juridicamente tutelada na medida em convicção gerada de que estava habilitado-
que está contida na obrigação imposta ao médico. para o efeito.
A este exige-se que proteja a maior possibilidade
possível de sobreviver e/ou de se curar. iii) Este médico licenciou-se em me-
Daqui decorrem dois limites ao recurso ao ins- dicina, pela Faculdade de Medicina da
tituto da perda de chance: (i) por um lado, tem de Universidade de Lisboa, no ano de 1986.
estar demonstrada a existência de um facto ilícito iv) Apesar de ter realizado o internato geral,
e culposo com o qual se estabeleça um nexo de o internato complementar em cirurgia ge-
causalidade em relação à perda de chance; (ii) por ral e o internato em cirurgia cardiotoráci- 79
outro lado, esta chance tem de ser juridicamen- ca, e de ter completado, depois, ao longo
te tutelável ainda antes de ter sido perdida. Estas de três anos, a especialização em cirurgia
limitações, se correctamente aplicadas, diminuem plástica e reconstrutiva na Universidade
um recurso abusivo em que toda a perda passasse a Católica do Rio de Janeiro, a Ordem dos
fundar-se numa prévia chance. Médicos não o reconhece como cirurgião
plástico, nem como tendo outra especiali-
dade médica.
CASO 4 v) Ainda assim, este médico está au-
torizado a exercer todos os actos médicos
APRESENTADA PELA DRA. RUTE para os quais se sinta devidamente habili-
TEIXEIRA PEDRO — PROFESSORA tado, incluindo actos próprios da cirurgia
AUXILIAR DA FDUP E INVESTIGADORA plástica.
DO CIJE vi) Antes da cirurgia e por indicação do mé-
A. Identificação da decisão: recurso de revista dico, realizou exames que não revelaram
— Supremo Tribunal de Justiça qualquer contraindicação à realização da
B. Palavras-chave: responsabilidade contratual — intervenção, nem à administração de anes-
ausência de prova da ilicitude — perda de chance tesia e sedação.
— mecanismos de simplificação probatória vii) Prestou consentimento que foi reduzido a
escrito.
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6

viii) A cirurgia ficou marcada para 9 de Dezem- xvii) O choque anafilático pode acontecer a
bro, participando, além do médico previa- qualquer pessoa que seja exposta a injec-
mente consultado, um outro médico com ção de medicamento, sendo absolutamen-
especialidade de anestesia. te imprevisível, mesmo quando as doses
ix) Na sequência da sedação e do início da anestésicas administradas são as corretas.
administração da anestesia local, a doente
bradicardizou, tendo sofrido uma paragem 2. O Direito
cardio-respiratória. O caso baseou-se na aferição dos pressupos-
tos da responsabilidade civil contratual, tendo um
x) Os dois médicos de imediato administra- dos votos de vencido invocado a figura da perda de
ram fármacos à doente e procederam a chance.
massagem cardíaca externa e a ventilação
manual. 3. A Decisão
xi) Atendendo a que a paciente não recupe- Cabia aos autores, sucessores legais da pacien-
rava, foi feita uma entubação orotraqueal te, a prova do incumprimento ou cumprimento de-
e dada continuidade à ventilação manual. feituoso. Ora, não se considerou provada a violação
xii) Chamaram o INEM que, quando chegou ao das leges artis, atendendo a que na cirurgia esteve
local, tomou a responsabilidade pela reani- presente um médico com especialidade em aneste-
mação, tendo designadamente ministrado sia e que nada no estado de saúde da paciente fazia
80 prever uma contra-indicação à anestesia, pelo que
atropia e adrenalina, tendo sido obtida pul-
sação decorridos 5 minutos e, mediante a não era de contar com a consequência que adveio
ministração de mais fármacos, pulsação e da administração da anestesia. Também não ficou
pressão arterial volvidos mais 5 minutos. provado o nexo causal entre a paragem cárdio-res-
piratória e o choque anafilático.
xiii) Foi transportada para um hospital público, Consequentemente, não se provou que a pa-
vindo a falecer a 12 de Dezembro. ragem cárdio-respiratória fosse consequência da
xiv) No local da intervenção cirúrgica existiam conduta errada ou indevida de qualquer um dos
os equipamentos e fármacos necessários à médicos, nem sequer do próprio choque anafilá-
administração de anestesias locais, onde se tico, não se provando nem a ilicitude, nem o nexo
incluem todos os equipamentos e fármacos causal. Pelo contrário, os réus lograram provar que
necessários à reanimação. actuaram diligentemente, incluindo nas manobras
xv) Não ficou provado que só trinta minutos de ressuscitação que efectuaram.
depois de a paciente ter bracardizado é que Assim, o STJ concedeu o recurso de revista, in-
os réus chamaram o INEM. terposto pelos dois réus, revogando a decisão im-
xvi) A intervenção e a ministração das doses pugnada da Relação e repristinando a decisão da 1.ª
que foram administradas à paciente po- instância, havendo dois votos de vencido.
diam ter lugar no local em condições de 4. Votos de vencido
segurança. O primeiro voto de vencido, do Juiz Conse-
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...

lheiro João Bernardo, afirma que a repartição do çou por se frisar que o recurso a este instituto não
ónus da prova tem de ser tal que cabia aos réus pode servir para ressarcir consequências que antes
demonstrar diligência na administração da anestesia de serem perdidas não teriam relevância jurídica
e na utilização das técnicas de reanimação. São os — a chance já tinha de ser juridicamente tutelável.
médicos, enquanto especialistas, que estão melhor O instituto tem sido mais aplicado quanto à afe-
posicionados para proceder a tal prova. No caso, não rição da responsabilidade de advogados, talvez por
é possível cindir a culpa do comportamento devi- se tratarem de casos em que os magistrados mais
do, abrangendo a presunção de culpa a ideia de que facilmente identificam a chance em causa. No âm-
não se teve o comportamento devido e de que daí bito médico é mais difícil proceder a tal avaliação.
derivou a morte. Ora, considera o Conselheiro que Em alternativa à perda de chance, é habitual
os réus não lograram ilidir a presunção de culpa. invocarem-se outros mecanismos que actuam di-
O segundo voto de vencido, do Juiz Conselheiro rectamente ao nível probatório, convocando o fun-
Oliveira Vasconcelos, considera que a insatisfação decionamento das presunções judiciais (artigo 351.º
um interesse final ou mediato, arrastando a insatisfa-
do CCiv), do princípio da apreciação livre da prova
ção do interesse imediato ou intermédio, pode ser- (artigo 607.º, n.º 5, do CPC) e do regime do n.º 3
vir de indício ou demonstração do inadimplemento do artigo 566.º e do mecanismo inversor do ónus
da obrigação de não destruição das possibilidades de da prova previsto no n.º 2 do artigo 344.º do CCiv.
êxito terapêutico. Nestas circunstâncias, caberá ao Ora, foi a estas figuras, que configuram mecanis-
médico provar que actuou com a diligência exigível, mos de simplificação da actividade probatória, mais 81
sendo que a finalidade pretendida apenas não se lo- precisamente à da prova prima facie ou de primeira
grou por razões que não podia prever nem contro- aparência, que o Juiz Conselheiro João Bernardo
lar, sob pena de ser responsabilizado pelo dano de recorreu na sua declaração de voto. Na prova da
destruição das possibilidades/ chances. No caso, o primeira aparência o julgador, para se considerar
resultado imediato que se pretendia, a lipoaspiração,convencido da comprovação de certos factos, acei-
estava ao alcance dos réus, tendo em conta as reais ta factos menos “bem” provados. Entende-se que o
possibilidades que ela apresentava. Com a morte, resultado foi tão anómalo que os factos falam por si.
um resultado mediato, perdeu-se a chance do apro- Já se recorrermos à perda de chance, podemos ade-
veitamento da oportunidade que a paciente tinha de quar o montante indemnizatório, o que para alguns
ser operada com êxito. Ora, para o Juiz Conselhei- é uma vantagem e para outros uma desvantagem.
ro, a actuação dos réus aquando da administração da Ora, foi precisamente a perda de chance que
anestesia esteve na origem do facto que originou a foi convocada pelo Juiz Conselheiro Oliveira Vas-
bradicardização e estes não lograram ilidir a presun-concelos no seu voto de vencido. Este Conselheiro
ção de culpa que sobre eles impendia. tem muitas dúvidas sobre o comportamento dos
médicos, nomeadamente aquando da tentativa de
D. Problemas jurídicos discutidos na ses- reanimação da paciente, sendo que se se provassem
são, soluções e sugestões apresentadas factos que permitissem demonstrar que os médicos
O caso, suscitando outras questões, foi avaliado não actuaram como era devido, surgiria a questão
na perspectiva da teoria da perda de chance. Come- de saber se esses comportamentos podiam juridi-
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6

camente ser causa da morte da doente. Ora, peran- No entender da Professora Doutora Rute Pe-
te a dificuldade de afirmação da condicionalidade, dro, a perda de chance, por vezes indevidamente
e podendo afirmar-se a adequação, por terem di- invocada, é uma espécie de dano, actuando ao nível
minuído as chances de evitar a morte, poderia res- do nexo causal e pressupondo, em primeiro lugar,
sarcir-se o dano da perda de chance de sobreviver a afirmação da ilicitude e da culpa de uma conduta
ao evento ocorrido na sequência da administração que faz perder as chances. Apenas após esta con-
da anestesia e sedação. clusão é que se analisará o nexo causal, o qual se
Contudo, há que sublinhar que o ponto essencial é afere não em relação ao dano (dito final) da perda
que, antes de partirmos para este raciocínio, se tenha da vida, mas ao dano de perda de possibilidade de
já provado um acto ilícito e culposo. Ora, no caso em sobrevivência. A figura da perda de chance, assim
apreço, contrariamente ao caso anteriormente relata- entendida, não transmuta a responsabilidade do
do, a questão da demonstração da ilicitude, culposa ou médico numa responsabilidade objectiva que se
não, foi a mais controvertida, tendo a Relação decidi- efectiva perante a concretização de qualquer risco
do em sentido distinto da 1.ª instância e do Supremo. que a actividade médica comporte.

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