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ª Bienal de
ANOS DE CDB
Jurisprudência em
Direito da Medicina
a tas
“Vulnerabilidade e Direito” / Instituto Jurídico da Facul-
dade de Direito da Universidade de Coimbra, integradas no
Projecto “Desafios sociais, incerteza e direito”
(UID/DIR04643/2013)
V U L N E R A B I L I DA D E & D I R E I TO
Ficha Técnica
Coordenação Editorial da Coleção
João Carlos Loureiro
André Dias Pereira
Carla Barbosa
Propriedade
Centro de Direito Biomédico
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Pátio das Escolas
3004-528 Coimbra
Telef./Fax: 239 821 043
cdb@fd.uc.pt
www.centrodedireitobiomedico.org
Editor
Instituto Jurídico | Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra
Cadernos da Lex Medicinae n.º 1 · 2018 O Centro de Direito Biomédico, fundado em 1988, é uma associação privada sem fins
lucrativos, com sede na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que se dedica
à promoção do direito da saúde entendido num sentido amplo, que abrange designada-
Execução gráfica mente, o direito da medicina e o direito da farmácia e do medicamento. Para satisfa-
Ana Paula Silva zer este propósito, desenvolve acções de formação pós-graduada e profissional; promove
reuniões científicas; estimula a investigação e a publicação de textos; organiza uma
ISBN 978-989-8891-18-1 biblioteca especializada; e colabora com outras instituições portuguesas e estrangeiras.
Sumário
3
CADERNOS LEX MEDICINAE: ALGUMAS PALAVRAS EM TORNO DE UM
PROJETO EDITORIAL
Cadernos da Lex Medicinae é uma nova série que tando também já em fase de composição o n.º 2,
se centrará na publicação dos resultados de projetos consagrado a Direito e Cancro; o n.º 3, em princípio,
de investigação ou de contribuições apresentadas reunirá as comunicações do Congresso Saúde, novas
em seminários, organizados no quadro do Centro tecnologias e responsabilidade: perspetivas contemporâ-
de Direito Biomédico e/ou do antigo grupo (agora neas, sob o mote Comemorando os 30 anos do Centro
rebatizado de área) Vulnerabilidade e Direito, do Ins- de Direito Biomédico.
tituto Jurídico da Faculdade de Direito da Univer- Procura-se, assim, um alargamento do territó-
sidade de Coimbra. Regularizada a edição da revis- rio editorial com a assinatura cdb, até agora cor-
ta, tendo sido publicado há alguns anos um número porizado na Lex Medicinae — Revista Portuguesa de 5
especial (dedicado à IV EAHL Conference on European Direito da Saúde, e em livros (em regra, em cole-
Law and Patient Safety), entendemos que tem senti- ção desde as três obras com capas em vermelho e
do e é oportuno criar uma linha centrada em te- negro, próprias de um direito que, como a perso-
mas. Às fontes de textos referidas poderão acrescer nagem de Stendhal na obra homónima, procura
outras incursões no direito da saúde, num mundo conquistar um lugar, aqui no quadro dos saberes
onde partilha e circulação são palavras-chave. jurídicos, até aos 25 títulos da coleção, primeira-
A nossa proposta de criação desta nova coleção mente com a chancela da Coimbra Editora e agora
mereceu imediato acolhimento pelo Senhor Dou- da Petrony), sem prejuízo de título “robinsoniano”
tor André Dias Pereira, Presidente da Direção do (Genome Analysis: legal rules, practical applications: re-
Centro de Direito Biomédico. A Mestre Carla Bar- ports of the workshop, 1992, Coimbra, 1994) ou de
bosa assegurou o cuidado paciente da preparação volumes ligados pelo vínculo de amiga e associativa
dos textos, com a sua sabedoria tecida no construir celebração e da unidade temática (Direito da Saúde
de imprescindíveis pontes com os autores. Hon- — Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme
rados, mais uma vez, com a chancela editorial do de Oliveira, com a marca da Almedina). Nascidos de
Instituto Jurídico, não queremos deixar de assina- uma revista, os Cadernos não são, no entanto, uma
lar e agradecer a pronta disponibilidade do Senhor publicação dessa natureza, não estando amarrados
Doutor Aroso Linhares, Presidente do Conselho às obrigações de periodicidade, figurando antes no
Coordenador. Este caderno de estreia é dedicado domínio dos “calhanários”, engenhosa e subtil clas-
à Bienal de Jurisprudência em Direito da Medicina, es- sificação de Barbosa de Melo.
1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA
Uma breve referência ao título Caderno, que do Centro de Direito Biomédico, a Conferência da
em inglês aparece, com bastante liberdade, como prestigiada European Health Law Association, mate-
Supplements. A palavra cadernos reveste-se de plas- rializando firme empenho do Senhor Doutor Gui-
ticidade suficiente para acomodar escritos com di- lherme de Oliveira, pioneiro entre os pioneiros do
ferente natureza e extensão. Mergulhando as suas Centro, que aqui também honramos, todos e cada
raízes em quaternus (de quatro em quatro), evoca um, na singularidade e na diferença das suas contri-
usos diversos que se adequam à natureza do em- buições. Este primeiro Caderno apresenta também o
preendimento. Desde logo, o caderno é lugar de tom engalanado da festa, agora dos 30 anos, sendo
esquissos, de esboços, correspondendo ao caráter as velas símbolo de serviço prestado e tentativa de
de alguns textos que, face a uma biomedicina frené- entrever o futuro, animados pelos ventos da refle-
tica, se limitam a aproximações. O caderno é tam- xão intelectual séria que não os da efemeridade das
bém um espaço onde se tomam notas e, assim, se modas. Preferimos antes a permanente monda do
deixam intencionalmente em branco folhas, reco- discurso e do texto, a revisão dos caminhos trilha-
mendando generosidade no comprimento das mar- dos, os ensaios clínicos — aqui traduzidos na ideia
gens (que o digital potencia), e convidando o leitor de experimentação (“a experiência é madre das
a um diálogo com os autores. O caderno (Heft, em cousas”) e na clínica (remetendo literalmente para
alemão) abre para um suplemento (Beiheft), permi- um inclinar-se em registo de cuidado). Na barca
tindo outras incursões que excederiam o número entram cultores mais académicos e outros mais
6 de páginas da revista. A ideia de caderno convoca práticos; juristas e outros profissionais dedicados
também a do caderno de encargos da investigação, às artes no campo da saúde; autores consagrados
em termos coletivos ou pessoais. Cadernos de in- e neófitos; nacionais e estrangeiros (mas não “es-
vestigação, seguramente, não um exercício de li- tranhos”); irmanados pela língua portuguesa, na
teratura no registo de diário entendido como “um divers(un)idade dos seus sotaques ou pelo espa-
romance com uma só personagem” (Saramago, Ca- nhol, nesta ibericidade que não traduz “jangada de
dernos de Lanzarote: Diário — I, 9) ou, mergulhando pedra”, mas mundialização primeira cerzidora de
no século xix, Cadernos da Casa morta (Dostoievski). continentes; ou ainda no mundo plural dos idio-
Por último, mas não menos importante: aprou- mas, um ecumenismo traçado num inglês reinven-
ve a Kronos traçar um outro elo de união entre o tado pela necessidade esperançosa da comunicação.
referido número especial da Revista (uma espécie Aos leitores caberá a próxima palavra sobre o
de número 0 destes Cadernos) e o primeiro desta sentido do projeto e também contributo não despi-
série. Com efeito, publicado em 2014, espelhava ciendo para o seu futuro.
um evento que celebrava os 25 anos da fundação
Apresentação da Obra
Numa organização conjunta do Centro de Direito incluindo Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal
Biomédico, do Centro de Estudos Judiciários e da Ordem de Justiça e do Tribunal Constitucional.
dos Advogados reunimos em Coimbra especialistas A culminar esta jornada de trabalho contámos
em Direito da Medicina e Responsabilidade médi- com notáveis conferências do Prof. Nelson Rosen-
ca, em algumas das suas vertentes: a responsabilidade vald, Promotor de Justiça de Minas Gerais e re-
civil no âmbito da medicina privada, a responsabilidade putado autor nas áreas da responsabilidade civil no
civil extracontratual do Estado e outros entes públicos no Brasil, e do Prof. Donal Nolan, Professor da reno-
âmbito da medicina pública e a responsabilidade penal, mada Universidade de Oxford, na Inglaterra.
para além de mesas especiais sobre temas candentes Uma palavra de agradecimento é devida a to- 7
como o consentimento informado e a “perda de chance”. dos os membros da Comissão Executiva, em espe-
Tivemos a honra de contar, na abertura da Bie- cial aos representantes dos parceiros Ordem dos
nal, com uma conferência do Senhor Presidente do Advogados e Centro de Estudos Judiciários e ao
Supremo Tribunal de Justiça, o Dr. António Henri- dinamismo da Dr.ª Carla Barbosa, Secretária exe-
ques Gaspar, autor pioneiro desta temática que em cutiva do Centro de Direito Biomédico.
1978 publicou o artigo “A responsabilidade Civil Uma palavra de apreço e publico reconheci-
do Médico”, na Coletânea de Jurisprudência, Ano III. mento ainda para os relatores da Bienal, mestran-
Foram apresentados e discutidos 28 casos da dos e doutorandos da FDUC: Dr. Abel Chicunha,
jurisprudência. Assistiram e participaram na dis- Mestre Andreia Costa Andrade, Mestre Ana Lopes
cussão mais de 80 participantes — juízes, advoga- Chaves e Mestre Mafalda de Sá, cujo trabalho pri-
dos e académicos — portugueses e estrangeiros, moroso que alia a capacidade de síntese com o rigor
entre os quais 30 participantes brasileiros. jurídico permitem trazer até ao leitor esta obra.
Durante a jornada de trabalho, verificou-se um É ainda de realçar o contributo da Fundação
debate franco e aberto, com advogados, magistrados, Luso Americana para o Desenvolvimento, Funda-
professores de direito e alguns médicos, num ambien- ção Eng. António de Almeida e Direção Geral de
te científico marcado pela liberdade e pela confiança, Saúde essenciais, à realização deste encontro.
onde cada um pôde debater os casos selecionados pe- Se esta primeira edição decorreu com tanta
los apresentadores, portugueses e brasileiros, os quais qualidade, a tal não é alheia a experiência que parte
foram escolhidos pela sua reconhecida competência, da equipa organizadora já tinha das várias Bienais de
1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA
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1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA
20 janeiro de 2017 · Hotel D. Luís · Coimbra
2. e 3. 14h30 · 17h30
Consentimento Informado e
Problemas Penais de Direito Médico 4.
Responsabilidade Civil Médica I –
sala santa clara
pressupostos da responsabilidade civil;
Presidentes da Mesa: ilicitude e culpa; obrigações de meios e
Helena Moniz | Juíza Conselheira do STJ obrigações de resultado
André Dias Pereira | Professor Universitário sala santa cruz
Diretor do Centro de Direito Biomédico
Presidente da Mesa:
Relatores: Luís Filipe Pires de Sousa | Juiz Desembargador
Andreia da Costa Andrade | Doutoranda da FDUC Tribunal da Relação de Lisboa
Apresentantes: Relatores:
Orlando Manuel Jorge Gonçalves | Juiz Ana Lopes Chaves | Advogada
Desembargador · Tribunal da Relação de Apresentantes:
Coimbra
Andreia da Costa Andrade | Advogada estagiária e Maria da Graça Trigo | Juíza Conselheira (STJ)
10
Doutoranda FDUC Cristina Isabel Santos Coelho Ferreira Neves
Juíza de Direito
Afonso Luís Torneiro Pedrosa | Advogado
Maria Fernanda Almeida | Juíza de Direito
Arthur Kullok | Doutorando FDUC Filomena Girão | Advogada
Luís Farinha Rosa | Procurador-Geral Adjunto · Ana Elisabete Ferreira | Advogada
Tribunal da Relação de Coimbra Gabriela de Fátima Marques | Juíza de Direito
Olga Maurício | Juíza Desembargadora do
Tribunal da Relação de Coimbra 5. e 6.
Catarina Fernandes | Procuradora da República Responsabilidade Extracontratual
Maria Clara Sottomayor | Juíza do Tribunal do Estado e Outros Entes Públicos e
Constitucional Funcionamento Anormal do Serviço
Sephora Marchesini | Advogada e Perda de Chance
sala coimbra
13h30
Almoço Presidente da Mesa:
JoãoVaz Rodrigues |Advogado e Professor da U. Évora
Programa 1.ª BIENAL DE JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO DA MEDICINA
Relatores: Conferencista:
Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC; Abel Donal Nolan - Professor of Private Law,
Chicunha | Mestrando da FDUC University of Oxford
Apresentantes: English cases on medical negligence
Rafael Vale e Reis | Assistente convidado da Comissão Executiva:
FDUC e Advogado Álvaro da Cunha RODRIGUES, André DIAS
Sérgio Nuno Coimbra Castanheira | Advogado PEREIRA, Carla BARBOSA, Carla MORGADO,
Higina Orvalho Castelo | Juíza Desembargadora no Francisco CAETANO, Helena MONIZ, João Vaz
Tribunal de Relação Guimarães RODRIGUES, Luís Filipe PIRES DE SOUSA, Mónica
Rute Teixeira Pedro | Professora Auxiliar da QUINTELA, Paulo SANCHO
FDUP e investigadora do CIJE
Informações:
18h00 · 18h30 Centro de Direito Biomédico
Tel. 239821043 · E-mail: cdb@fd.uc.pt
Sessão de encerramento:
Apoios:
Presidente da Mesa
Fundação Luso-Americana 11
Prof. Doutor Sinde Monteiro | Professor da
Fundação Eng. António Eugénio de Almeida
FDUC/CDB
Direção Geral da Saúde
Moderador:
Prof. Doutor João Loureiro – Professor da
FDUC/CDB/IJ
Agradecimentos:
Mesa 1
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
I — PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL; NEXO DE CAUSALIDADE
Presidente da Mesa: Francisco Caetano |Juíz Conselheiro do STJ
Relatores: Mafalda de Sá | Doutoranda da FDUC · Abel Chicunha | Mestrando da FDUC
objectiva, isto é, se a conduta era susceptível de vel e em processo penal, quanto à sua suficiência
causar, por omissão, a morte da vítima. enquanto critério de imputabilidade e quanto à sua
O segundo médico foi absolvido, na medida em aplicabilidade a vários intervenientes.
que actuou no seguimento de uma triagem que ha- 1. Quanto ao primeiro ponto, avançou-se a
via, embora erradamente, despistado a hipótese de perspectiva de que em ambos os ramos do direi-
um problema cardíaco e reencaminhado o doente to a causalidade adequada visa responder à mesma
com indicação de resolução de uma patologia gás- questão e é mobilizada através de um mesmo tipo
trica. Nestas circunstâncias, a actuação do agente de raciocínio. A diferença reside, apenas, no facto
foi condicionada por um erro sobre a ilicitude que de em penal vigorar a presunção de inocência. De
exclui a censurabilidade do facto. notar que, frequentemente, uma condenação em
O terceiro e último médico que assistiu a ví- processo penal será a base para um processo cível.
tima foi condenado por homicídio negligente por 2. Já quanto à questão da adequação do crité-
omissão. A sua actuação mereceu particular censu- rio, a causalidade adequada tem vindo a ser con-
ra pelo facto de ter sido precedida de um diagnós- testada por ser desadequada para os casos de res-
tico e de uma recomendação efectuados pelo mé- ponsabilidade médica, tanto cível, como penal. A
dico de família. Exigia-se-lhe que tivesse efectuado intervenção médica é particularmente moldada
um electrocardiograma e que tivesse procedido ao pelo risco. O próprio corpo humano é uma álea
internamento do doente. que pode, por si mesmo, alterar o resultado, in-
16 Já à actuação do primeiro médico não foi impu- dependentemente da actuação médica ser a mais
tado o resultado morte, pois apesar de existir uma
relação de causalidade naturalística, não se pode diligente possível. Ora, o critério da causalidade
fazer um juízo de imputação objectiva, já que a adequada pode conduzir a uma imputação do dano
posterior actuação do terceiro médico deu origem à conduta, globalmente considerada, mas falhar ao
a uma interrupção do nexo causal. Nestas circuns- nível de uma imputação objectiva a um concreto
tâncias, interrompeu-se o processo de formação indivíduo — e esta é que deve ser relevante. As-
da vontade criminosa e o desvalor da sua actuação sim, avançou-se a ideia de que devemos recorrer à
foi absorvido pelo perigo directo de produção do causalidade adequada objectiva, sopesada por um
dano associado à conduta posterior. A final, a sua critério do risco e atendendo às leges artis.
conduta foi subsumida no crime de ofensa à inte- 3. As intervenções médicas colectivas aumen-
gridade física por negligência, nos termos do arti- tam a dificuldade no apuramento do concreto nexo
go 148.º, n.º 1, do Código Penal, já que a conduta de causalidade. A tentação natural é considerar to-
aumentou o risco de realização do evento danoso e dos responsáveis pela totalidade do resultado, mas
causou dores e mal-estar físico e psicológico. na realidade cada interveniente pode ter uma res-
ponsabilidade parcial do resultado final ou de um
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- resultado intermédio ou simplesmente não ter res-
são, soluções e sugestões apresentadas ponsabilidade nenhuma. Por outro lado, a pré-se-
A apresentação deste caso deu origem a um lecção de indivíduos potencialmente responsáveis,
debate sobre a causalidade adequada, nomeada- a título de réus/arguidos, pode deixar de lado ou-
mente quanto à sua diferenciação em processo cí- tros intervenientes que seriam relevantes.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Por todas estas considerações, e outras, con- iv) A cirurgia foi realizada no hospital priva-
cluiu-se que, na apreciação do nexo causal, é do, por dois cirurgiões ortopédicos.
fundamental a prova realizada no processo e o v) O pós-operatório durou seis dias, durante
modo como o juiz a gere e valora. É necessário os quais apresentou algumas queixas, que
que os juristas e, em especial, os magistrados foram desvalorizadas.
compreendam os conceitos médicos em causa e vi) Nas consultas de seguimento, com dife-
a realidade clínica subjacente. Como exemplo, a rentes médicos, a autora apresentava sem-
prova pericial é essencial, mas está dependente pre as mesmas queixas e, inicialmente, os
de serem feitas as perguntas certeiras às pessoas exames médicos estavam normais.
correctas. Depende, igualmente, da capacidade
de isenção tanto das testemunhas, como dos in- vii) Nas últimas consultas, apresentava já uma
tervenientes processuais no âmbito de processos marcha claudicante progressiva, com défi-
mediáticos. ce muscular no membro inferior direito.
viii) Veio a ser diagnosticada uma lesão parcial
CASO 3 e irreversível dos nervos crural e ciático.
APRESENTADO PELA DRA. PAULA NATÉR- ix) Lesão esta que foi provocada pela inter-
CIA MENDES MOREIRA ROCHA — JUÍZA venção cirúrgica.
DE DIREITO x) Conduzindo a marcha claudicante e dese-
quilibrada, limitada mobilidade no pé di- 17
A) Identificação da decisão: acção declarativa reito, atrofia muscular no membro inferior
de condenação
direito, cansaço ao andar e dores na coluna.
B) Palavras-chave: responsabilidade extracontra-
tual — cirurgia de colocação de prótese da anca xi) A autora deixou de realizar algumas tare-
— lesão nos nervos crural e ciático fas básicas, como conduzir, e não conse-
C) Os factos, o Direito e a Decisão guiu retomar a actividade profissional.
xii) Reformou-se por invalidez.
1. Os factos
2. O Direito
i) A autora, acompanhada no seu centro de
saúde, foi diagnosticada com coxartrose na A acção de indemnização foi proposta contra
anca direita. os dois cirurgiões, os médicos que a atenderam nas
consultas de seguimento e a sociedade gestora do
ii) Em virtude de um acordo de coopera- hospital privado. A sentença foi decidida com base
ção com um hospital privado, foi para aí nos pressupostos da responsabilidade extracontra-
reencaminhada. tual e com recurso ao artigo 70.º do CCiv.
iii) Um médico ortopedista confirmou o diag-
nóstico e afirmou a necessidade de sujei- 3. A Decisão
ção a uma cirurgia para colocação de pró- Foi mobilizado o instituto da responsabilidade ci-
tese total da anca (artroplastia). vil extracontratual pelo facto de a cirurgia apenas ter
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1
ocorrido no hospital privado em virtude de um proto- De um modo geral, concluiu-se que devemos
colo com o hospital público, não por escolha da doente. aceitar que os pressupostos da responsabilidade ci-
Assim, e centrando-se na actuação do cirurgião vil não são conceitos estanques, antes dinâmicos e
que efectuou a operação, considerou-se existir ili- que devemos rever e estudar de modo a serem o
citude pela existência de lesão correspondente a mais possível adequados e operativos.
ofensas à integridade física, tratando-se, portan- Como nota para o futuro, foi referida a possi-
to, da violação de um direito absoluto contido no bilidade de virmos a abdicar da ideia de perseguir o
direito geral de personalidade do artigo 70.º do agente, em prol de nos centrarmos no erro, visan-
CCiv. A lesão em causa é decorrente da interven- do, sobretudo, que ele não se repita. Esta pode ser
ção cirúrgica a que a autora foi submetida, assim ou não uma melhor via de avaliação da responsabi-
se estabelecendo o nexo de causalidade. Quanto à lidade, mas o certo é que exigiria uma mudança de
culpa, considerou-se não agir de acordo com a leges mentalidade.
artis o cirurgião que, ao proceder a uma artroplas-
tia total da anca direita, lesiona simultaneamente o CASO 4
nervo crural e o ciático.
A autora logrou fazer prova de que o médi- APRESENTADA PELA DRA. ISABEL DE
co realizou de forma deficiente ou errada o acto MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO — JUÍZA
médico e que tal produziu o dano, condenando- DESEMBARGADORA
18 -se o réu a indemnizar a autora. Além dos danos A) Identificação da decisão: acção declarativa
patrimoniais, foram considerados os seguintes de condenação — 8.ª Vara Cível de Lisboa
danos não patrimoniais: tristeza, angústia, frusta-
ção, desgosto, dores sofridas, incómodos ou difi- B) Palavras-chave: parto realizado tardiamente
— responsabilidade contratual — responsabilidade
culdades no seu quotidiano em face das limitações extracontratual
físicas de que ficou a padecer — conducentes a
uma indemnização de 25.000 euros. C) Os factos, o Direito e a Decisão
informado assinado pela autora o facto de a ecogra- escolher o tipo de responsabilidade, contratual ou
fia ser uma técnica limitada; (ii) a detecção da ano- extracontratual, que lhe for mais favorável. Esta
malia em questão não depende apenas da formação conclusão é relevante porque, se em relação à mãe
do diafragma, mas também de outros indícios (tal era inequívoca a existência de um contrato de pres-
como a presença de órgãos abdominais no tórax); tação de serviços, este não fora celebrado com o pai.
(iii) o diagnóstico de HDC surge, em percenta- Uma particularidade foi a consideração de que,
gem não desprezível, apenas em fase muito tardia apesar de se tratar de responsabilidade contratual,
da gravidez ou mesmo após o nascimento; (iv) não o pressuposto da culpa não poderia ser aferido pela
resultava dos autos nenhum elemento que pudesse presunção do artigo 799.º, n.º 1, do CCiv, antes
fazer o médico réu suspeitar, aquando da realização tendo de ser demonstrado por via do regime apli-
da ecografia, da existência de HDC. cável à responsabilidade civil extracontratual, nos
De todo o modo, não existia nexo de causalida- termos do artigo 487.º, n.º 1 do CCiv.
de com o dano, pois os autores não demonstraram Já quanto à questão ligada ao wrongful birth, a
que se o réu tivesse detectado a HDC aquando da- autora alega que lhe foi retirada a possibilidade de
quela ecografia o dano não viria, com toda a proba- optar atempadamente pela interrupção voluntária
bilidade, a produzir-se.Também não demonstraram da gravidez. Contudo, esta não está apenas depen-
que se a HDC tivesse sido detectada antes das 24 dente de um requisito temporal, em termos de
semanas de gravidez a opção dos autores teria sido semanas de gravidez, mas igualmente dependente
22 a de realizar uma interrupção da gravidez. de um determinado diagnóstico feito ao feto, exi-
Nem sequer se demonstrou que, se detectada gindo-se que haja motivos médicos seguros para
atempadamente, se estaria em condições de rea- prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incu-
lizar a interrupção da gravidez de acordo com o rável, de grave doença ou malformação congénita.
artigo 142.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal e Daqui resulta, para resolução destes casos, a ques-
que a oportunidade de a realizar tenha sido perdi- tão fundamental de saber se a patologia em causa
da. Com efeito, mesmo que o diagnóstico tivesse determina ou não a inviabilidade do feto.
sido feito antes das 24 semanas, não seria possível
concluir que a anomalia fosse incurável, desde logo CASO 6
porque existem opções terapêuticas. Não é possí- APRESENTADA PELO DR. JOÃO PIRES DA ROSA
vel afirmar que aos autores tenha sido retirada a — JUIZ CONSELHEIRO JUBILADO — STJ
capacidade de poderem optar por interromper a
gravidez. A) Identificação da decisão: recurso de revista
Assim, declarou o tribunal a acção improcedente. — Supremo Tribunal de Justiça
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- — não detecção de malformações congénitas
são, soluções e sugestões apresentadas graves — interrupção voluntária da gravidez
A primeira questão suscitada pela sentença foi — wrongful birth — wrongful life
a do tipo de responsabilidade em causa e o regi-
me aplicável. A sentença afirmou que o autor pode
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
afirmativa. Por um lado, não existiu um facto ilíci- mas com uma mulher grávida e foi, aliás, celebrado
to e culposo que se pudesse considerar como cau- precisamente pela sua condição de grávida. Nes-
salmente ligado às malformações. Por outro lado, tas circunstâncias, a contraparte contratual é uma
o filho nascido não era parte no contrato em causa, unidade constituída pela mãe e pelo seu feto. En-
mas apenas a sua mãe. A invocação do instituto do quanto durar a gravidez, são um só, ou seja, o feto
contrato com eficácia de protecção de terceiro foi já era relevante na relação contratual. O feto só se
rejeitada, pois um feto, sem personalidade jurídica, autonomiza e, concomitantemente, adquire perso-
não pode ser havido como terceiro. nalidade jurídica com o nascimento com vida, por-
que só aqui deixa de estar dependente da sua mãe.
D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
são, soluções e sugestões apresentadas 3. Direito do próprio feto: na perspectiva
acima referida, a mãe e o seu feto foram, ambos e
O Juiz Conselheiro Jubilado Pires da Rosa vo- sendo um só, atingidos no seu direito de poderem
tou vencido no caso em apreço, por considerar jus- optar pelo não nascimento, por uma mesma e única
tificado o ressarcimento do filho pelos seus danos violação contratual. O direito que assiste ao filho
não patrimoniais próprios. A apresentação desen- não é outro nem é diferente, antes resulta daquela
rolou-se em jeito de refutação dos diversos argu- violação contratual, na parte em que atingiu o feto
mentos apresentados contra a admissibilidade da e já nessa altura existente. Vem, posteriormente, a
acção de wrongful life, seguida de uma discussão que autonomizar-se no património da criança quando
mobilizou argumentos tanto a favor, como contra. ela nascer, passando a ser ele o único titular da in- 25
1. Direito à não existência: antes de mais, demnização. O nascimento autonomiza a criança,
a problemática do reconhecimento a um direito a mas surge na continuidade da relação contratual
não viver, ou a não existir é extremamente sensível previamente estabelecida.
e de impossível consenso. É, todavia, concebível, Esta concepção tem em atenção o facto de o
em tese, reconhecer um direito à não existência, direito em causa ter um tempo muito limitado, es-
desde logo atendendo à possibilidade dada pelo le- pecificamente definido no artigo 142.º do Código
gislador português no artigo 142.º do Código Pe- Penal. Esta norma dá à mãe a possibilidade de exer-
nal, a qual coloca a vida nas mãos da mulher-mãe. cer um direito em nome e em representação do seu
filho, que, na altura relevante para o seu exercício,
2. Relação contratual: este caso pode ser é apenas um feto. Ora, um direito que só existe
analisado sem recurso a um direito à não existên- enquanto o filho é feto não pode, em nome de uma
cia, mas tão-só com base na concreta violação con- qualquer dignidade, ser deixado para uma altura
tratual por parte do médico obstetra ao ler mal as em que ele já não é feto.
ecografias.
Neste âmbito, e quanto à questão de sa- 4. Natureza da obrigação: é discutível se a
ber quem era a parte visada no contrato, não é obrigação do médico era de meios, como decidiu o
necessário recorrer ao instituto do contrato com acórdão, ou de resultado. Ao realizar uma ecografia
eficácia de protecção para terceiro. O contrato em e fazer um diagnóstico com base nela, pode conside-
causa foi celebrado, não com uma qualquer mulher, rar-se que o médico se vincula a um resultado, que
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA Mesa 1
é o de correcta interpretação da ecografia — nem visam despesas com a saúde, a educação e o bem-
que essa interpretação não permitisse afirmar mais -estar da criança à mãe pode ser um risco. Ao inte-
do que a impossibilidade de observar o que quer que grar o seu património, o montante indemnizatório
seja. Ora, no caso afirmou-se terem-se visto os bra- não só fica à mercê da actuação da mãe, como fica
ços de um feto, quando este feto nunca os teve. exposto aos seus credores e, ainda, à eventualida-
5. Critérios de fixação do montante do de da morte da mãe, havendo outros sucessores.
dano: Quanto à fixação do montante do dano, Discutiu-se, nesta sede, a possibilidade de a indem-
o acórdão invoca as dificuldades que esse exercí- nização dever ser fixada sob a forma de renda e,
cio implicaria, desde logo pela possibilidade de se bem assim, a necessidade de se repensar o instituto
considerar uma vida com deficiência como uma do trust, para acautelar estas situações e permitir a
vida menos valiosa. É, desde logo, difícil saber constituição de patrimónios separados.
que ponderação se deve fazer: contraposição entre 7. Natureza da interrupção voluntária
não-vida e vida sem qualidade? Ou entre vida com da gravidez: o debate não podia deixar de passar
qualidade e vida sem qualidade? Se na primeira pela discussão em torno da natureza da interrupção
emerge a questão de um direito à não-existência, voluntária da gravidez, mormente a sua considera-
na segunda pode objectar-se com ausência de nexo ção ou não como um direito da mulher e, nos ter-
causal, já que, no caso sub iudice, as malformações mos supra expostos, até como um direito do feto.
não foram causadas pelo médico e ele nada poderia Questiona-se, ainda, se poderá ser concebido como
26 fazer para as eliminar. Isto é, uma vida com quali- um dever da mãe legitimador de uma pretensão
dade nunca foi uma hipótese real para esta criança. ressarcitória de um filho contra a sua progenitora,
Acresce que se pode alegar ser atentatório da pelo facto de ter nascido.
dignidade do filho nascido considerar a sua vida 8. Prova da escolha pela interrupção
com deficiência como um dano. Em contraposição, voluntária da gravidez: um outro elemento
não será verdadeira indignidade recusar a este fi- essencial neste tipo de casos é o de saber se a res-
lho, pela via indemnizatória, uma quantia que lhe ponsabilidade para com a mãe, e ainda que apenas
permita suportar o encargo da sua condição, preci- para com ela, poderá ficar dependente da alegação
samente de forma mais digna? e demonstração de que, tivesse ela tido conheci-
6. Titularidade dos danos patrimoniais: mento das malformações do feto, teria optado pela
admitindo a ressarcibilidade dos danos do filho, se- interrupção da gravidez. Se, por um lado, pode ser
riam apenas os danos não patrimoniais. A total au- difícil de provar, por outro pode ser tão fácil quan-
sência de autonomia actual e futura faz recair sobre to aceitar a alegação da mãe. Fará sentido impor
a sua mãe a necessidade de patrimonializar em si este requisito? Ou deverá esta prova ser dispensa-
própria o montante de que necessitará para garan- da, relevando tão-só o dano de remoção da possibi-
tir a dignidade mínima da vida do filho. lidade de escolha, ainda que não se possa saber que
Contudo, a atribuição destes montantes, que escolha teria sido feita?
Mesa 2
xi) Pelas 9H00 da manhã a J foi conduzida Central onde foi confirmado o diagnóstico
numa cadeira de rodas à presença do médi- de hemorragia subarcanoideia, revelando a
co de serviço, o arguido D, assistente gra- TAC: «extenso hematoma lobar temporal
duado de clínica geral que se inteirou da fi- direito, com rotura para o sistema ventri-
cha clínica da doente, efectuou observação cular e espaço subaracnoideu, condicio-
da mesma e determinou que esta fizesse nando efeito de massa e desvio das estru-
análises ao sangue, mas não realizou qual- turas da linha média.».
quer diagnóstico de encefalopatia hiper- xv) Dada a gravidade da situação neurológica
tensiva, ainda que de presunção. Na pre- não foi possível encarar a hipótese de in-
sença deste médico a J voltou a vomitar. tervenção neurocirúrgica. A doente fale-
xii) Depois de ter verificado que não havia ne- ceu pelas 22 horas e 30 minutos do mesmo
nhum registo fora dos parâmetros de nor- dia 26 de Setembro de 2004, sendo indica-
malidade nos resultados das análises reali- da como causa da sua morte «hemorragia
zadas, este médico deu indicações à filha sub-aracnoideia». A J sofria de hipertensão
de J que iria dar alta a esta. Face às reser- arterial estando devidamente medicada,
vas apresentadas pela filha, em levar a mãe facto este que os familiares comunicaram
para casa, interpelando o arguido D no aos vários médicos que observaram aque-
sentido de saber se não seria adequado su- la, e designadamente aos arguidos.
jeitar a sua mãe a uma T.A.C. (tomografia 29
computarizada craneoencefálica), o mes- 2. O Direito
mo referiu que tais exames ali não se reali- As questões suscitadas pelo presente caso en-
zavam. Face à insistência dos familiares, D volvem essencialmente a interpretação do tipo
acabou por manter J em observação. legal de crime de homicídio por negligência (por
xiii) Pelas 12H30, J apresentou um quadro de omissão), previsto e punido pelas disposições con-
tremores seguido de cianose marcada dos jugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e 137.º,
lábios, mãos e dedos acompanhado de in- n.º 1 todos do Código Penal.
continência dos esfíncteres. Conduzida à 3. A decisão
sala de emergência, verificou-se que J so- O Tribunal Singular, por sentença proferida em
freu paragem respiratória, tendo o médico Julho de 2009 e confirmada pelo Tribunal da Re-
de serviço requisitado a sua transferência lação de Coimbra, instado a pronunciar-se pelos
imediata para o Hospital Central para rea- arguidos C e D, decidiu:
lizar TAC e para observação em Neurolo-
gia (Neurocirurgia). A doente foi medi- • Absolver o arguido A da prática do crime de
cada com Manitol a 20%, Dexametasona, homicídio por negligência (por omissão),
Dopamina e Haemacel e foi transportada previsto e punido pelas disposições conjuga-
já em coma e sob ventilação artificial. das dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º e 137.º,
n.º 1 todos do Código Penal que lhe era
xiv) Deu entrada pelas 15H40, no Hospital imputado na douta acusação pública;
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2
co p. e p. art. l50º do C.P., pois ambos os através da assinatura do AR respeitante à carta re-
casos se exige como elemento subjectivo gistada que continha o despacho de acusação do ar-
do tipo, o dolo ainda que em qualquer das guido (no âmbito do processo disciplinar do Con-
suas modalidades. E qualifica-se juridica- selho Disciplinar da Ordem Médicos). De modo
mente a conduta do arguido como subsu- que, independentemente do desfecho final que e
mível ao crime de ofensas à integridade quando venha a ter o procedimento disciplinar,
física por negligência, agravadas pelo re- ao ter apresentado a queixa que deu origem aos
sultado, p. e p. art. 148º n.º 1 e 3 do C.P. presentes autos apenas no dia 05/03/2010, resul-
Porém, considerou-se ainda que o referido ta para o tribunal ad quem que essa apresentação
crime depende de queixa, tratando-se o foi após o prazo legal de 6 meses a que alude o
crime previsto no art. 148.º n.º 1 e 3 do nº 1 do artigo 115º do Código Penal, prazo esse
CP um crime semipúblico e nesta medida que havia terminado em 26/12/2011. Naquela
porque a queixa foi apenas apresentada em data (05/03/2010) já havia caducado o referido
5 de Março de 2010, tinha já passado os prazo, pelo que a queixa foi extemporaneamente
seis meses que a lei prevê para a sua apre- apresentada. Faltando, pois, uma condição de pro-
sentação, desde a notificação do Assistente cedibilidade – a apresentação de queixa dentro do
do Parecer do Colégio de especialidade de prazo imposto por lei – jamais o arguido poderia
oftalmologia, a 26 de Junho de 2009. ser pronunciado pelo crime de ofensa à integrida-
de física p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código 33
2. O Direito Penal, crime este que, como dizemos no item an-
O caso concreto suscitou a apreciação da ver- terior, reveste natureza semipública.
tente processual e formal dos factos, procurando
aferir se verdadeiramente havia decorrido prescri- D. Problemas jurídicos discutidos na ses-
ção do procedimento criminal em relação aos cri- são, soluções e sugestões apresentadas
mes de recusa de médico (art. 284.º do CP) e de Além da questão relativa à efetiva prescrição
ofensa à integridade física agravada pelo resultado ou não do procedimento criminal pelo enquadra-
(art. 147.º do CP). mento possível no crime de ofensas à integridade
3. Da Decisão física agravada pelo resultado, de recusa de médico
Independentemente da questão de saber se nos ou de intervenções médico-cirúrgicas com viola-
presentes autos se estaria (ou não) perante um cri- ção dolosa das leges artis, a discussão centrou-se
me de ofensa à integridade física por negligência p. nas propostas de alteração da lei apresentadas pelo
e p. pelo artigo 148º nº 1 e 3 do Código Penal, e orador, tendo em conta o regime estabelecido pelo
depois de analisados os documentos constantes dos regime jurídico de criação, organização e funciona-
autos e mencionados na decisão recorrida, consi- mento das associações públicas profissionais, a Lei
derou que o prazo de seis meses para o exercício n.º 2/2013, de 10 de Janeiro. De facto, foi enten-
do direito de queixa se iniciou com a notificação dimento geral que este regime, conjugado com a
feita ao ofendido em 26/06/2009, concretizada denúncia obrigatória prevista no artigo 242.º do
Código de Processo Penal, deveria determinar a
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2
obrigação de denúncia pela Ordem dos Médicos, correr aos serviços clínicos da companhia
em face da conclusão do processo disciplinar pela de seguros no dia 26 de Junho de 2006.
culpa do médico. iii) O arguido fez constar no regis-
to de observação clínica do doente que o
CASO 4 mesmo apresentava laceração conjuntival e
hiferna do OD, não tendo feito quaisquer
referências às circunstâncias em que ocor-
APRESENTADO PELO DR. LUÍS FARINHA reu o traumatismo referido pela enfermei-
ROSA – PROCURADOR GERAL ADJUNTO ra na triagem e reafirmado pelo doente ao
— TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA arguido aquando da sua observação, nem
A. Identificação da decisão: Acórdão da Secção fez constar o resultado de qualquer exame
Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra oftalmológico efectuado, nomeadamente
do fundo ocular, bem como não procedeu
B. Palavras-chave: ofensa à integridade física por negli- à realização de qualquer exame comple-
gência – acto médico – imputação objetiva do resultado
mentar de diagnóstico, nomeadamente,
C. Os factos, o Direito e a Decisão radiografia do globo ocular, TAC ou eco-
grafia ocular.
1. Os factos iv) Face ao agravamento das dores, no dia 26
34 i) No dia 22 de Junho de 2006, C desempe- de Junho de 2006, o C dirigiu-se á Clínica
nhava as funções de carpinteiro quando ao L onde funcionavam os serviços médicos
apertar uma castanha da cofragem metálica da companhia de seguros para quem a sua
de uma pilar, soltou-se um estilhaço que se entidade empregadora havia transferido a
introduziu no seu olho direito, tendo-lhe responsabilidade por acidentes de traba-
provocado fortes dores. Transportado ao lho. Ali foi-lhe recomendado, depois de
serviço de urgência, queixando-se de ter ter entrado em contacto telefónico com o
sido atingido no olho direito por um esti- arguido, que também ali prestava serviço
lhaço metálico que estava a montar, pelo como médico especialista em oftalmolo-
que lhe foi atribuído a prioridade laranja gia, para se dirigir às Urgências do Hospi-
pela enfermeira da triagem por traumatis- tal o que ele fez de imediato.
mo ocular penetrante. v) No serviço de Urgência o ofendido foi ob-
ii) De seguida o C foi observado pelo arguido, servado pelo Dr. H assistente graduado de
médico especialista em oftalmologia, que oftalmologia, que constatou que o doente
prestava serviço no Hospital como assis- tinha uma endoftalmite, tendo requisitado
tente de oftalmologia, que procedeu à vi- uma radiografia da órbita, através da qual
sualização directa do referido olho e, após, detetou um corpo metálico intra-ocular
prescrever antibióticos, penso oclusivo, si- no OD do ofendido. De seguida medicou
cloplégico e corticosteroides dando alta ao o doente com antibiótico sistémico e or-
doente no mesmo dia com indicação de re-
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO
inicial de “acidente de viação com esfacelo ganizava a escala de serviço e pagava aos
do braço direito” e “hemorragia exsangui- médicos, não exercendo qualquer con-
nante”. Foi encaminhado imediatamente trolo quanto à forma como o serviço era
para a sala de emergência. Aí, foi obser- efetuado, dentro da instituição hospitalar.
vado pelo médico especialista em cirurgia No serviço de urgência não existia a espe-
geral Luís, assistido pela enfermeira Cátia. cialidade de cirurgia plástica. Após obser-
Foram colocadas talas a imobilizar mem- vação, foram identificadas pelos arguidos
bro superior direito, que se apresentava no membro superior direito do assistente
sangrante. Foi efectuado raio-x ao tórax e as seguintes lesões: fractura exposta grau
ao membro superior direito. Foi-lhe colo- III do cotovelo, fractura do terço inferior
cada sonda nasogástrica, por se apresentar diáfise umeral, fractura multiesquilorosa
nauseado. Foi-lhe administrada medicação supra e intracondiliana do úmero, fractura
e identificado esfacelo grave do membro cominutiva do terço proximal do cúbito,
superior direito com fractura exposta e fractura do taciculo radial, lesão do nervo
muito complexa do cotovelo. Encontrava- radial e esfacelo extenso com perda consi-
-se estável a nível hemodinânico e foram derável de substância da região posterior
excluídas lesões traumáticas crâneo-ence- do cotovelo.
fálicas, abdominais ou torácicas que pu- iii) A descrita fractura exposta de grau III
sessem em perigo a vida do assistente nos constitui uma urgência ortopédica e, se- 37
momentos ou horas imediatas e excluídas gundo a boa prática médica, deve ser ime-
lesões passíveis ou a carecer de tratamento diatamente (logo de início) estabilizada
por cirurgia geral. com osteotaxia e sujeita a limpeza cirúrgi-
ii) Assim, após observação, dada a inexistên- ca (desbridamento), feita mediante aneste-
cia de lesões do foro de cirurgia geral e a sia e no bloco operatório. Esse tratamento
necessidade de tratamento das lesões des- deve ser efetuado no mais curto espaço de
critas por ortopedia, foi encaminhado para tempo possível, sendo de preferência efe-
esta especialidade. Nessa noite, no serviço tuado antes de decorridas 6 horas. O de-
de urgência de ortopedia do hospital en- curso do tempo sem o tratamento descrito
contravam-se de serviço o arguido Carlos potencia o aparecimento de lesões seque-
e o arguido Alexandre, médicos especia- lares e ficam também potenciados os riscos
listas em ortopedia, aos quais coube toda hemorrágicos, neurológicos e infecciosos,
a observação do assistente e a determina- sendo que a taxa de infecção chega a atin-
ção da assistência médica e da medicação a gir 40%, na ausência de tratamento. O
efectuar. Os dois arguidos não pertenciam afastamento desses riscos e lesões só podia
aos quadros do hospital e iam aí prestar ser efectuado com a realização imediata da
serviço de ortopedia através da empresa cirurgia que inclui a limpeza cirúrgica e a
H, sendo inclusivamente esta empresa que estabilização da fractura mediante a colo-
procedia à sua selecção, recrutamento, or- cação de fixadores provisórios no membro
PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO Mesa 2
superior direito, ainda que a imobilização vi) Como o assistente foi sem qualquer con-
com tala gessada, a limpeza da ferida feita tacto prévio do hospital de Aveiro, o ar-
com soro e desinfectante e a administração guido José falou telefonicamente com o
de antibiótico diminua, temporariamente, arguido Alexandre que lhe afirmou que
esses riscos. lhe enviava o assistente porque carecia de
iv) Observado o assistente, foram efectuados cuidados de cirurgia plástica. Informou
penso, limpeza e lavagem da ferida e imo- o colega de Aveiro que o serviço de ur-
bilização gessada do membro superior di- gência dos Hospitais da Universidade de
reito. A final, os arguidos não efectuaram Coimbra não tinha cirurgia plástica entre
o internamento imediato do assistente em as 0h e as 9h e que, se o tivesse contactado
ortopedia para ser sujeito a cirurgia para previamente, não se teria justificado esse
limpeza cirúrgica e para estabilização da envio. Disse-lhe ainda que, após avaliação
fractura com osteotaxia, quando o deviam do assistente, se não se justificasse uma ac-
e podiam ter feito, porquanto tinham co- tuação emergente da parte da equipa de
nhecimentos para tal e existiam todas as ortopedia dos Hospitais da Universidade
condições para o efeito, decorrido que de Coimbra lho iria devolver e reforçou a
fosse o prazo de seis a oito horas após a necessidade de o mesmo ser operado e de
ingestão de alimentos. Resolveram, antes, lhe serem aplicados fixadores externos.
38 transferi-lo para os Hospitais da Univer- vii) Posto isto, o assistente regressou de ambu-
sidade de Coimbra por entenderem que lância ao hospital de Aveiro, onde chegou
carecia de cuidados de cirurgia plástica. às 5h 28m. É encaminhado para o servi-
Antes da transferência, não diligenciaram ço de urgência de ortopedia onde ainda se
no sentido de averiguar se estes hospitais encontravam em funções o arguido Carlos
dispunham dessa especialidade. O serviço e o arguido Alexandre e o enfermeiro Ri-
de urgência dos HUC não tinha cirurgia cardo. Estes dois arguidos não efectuaram
plástica entre as 0h e as 9h. novamente o internamento imediato do
v) Pela 1h 20m, foi transportado em assistente em ortopedia para ser sujeito a
ambulância medicalizada, com acompa- cirurgia para limpeza cirúrgica e para esta-
nhamento pelo enfermeiro Ricardo, aos bilização da fractura com osteotaxia, quan-
Hospitais da Universidade de Coimbra, do o deviam e podiam ter feito, porquanto
onde chegou às 2h05m. Foi observado em tinham conhecimentos para tal e existiam
cirurgia geral pela médica interna que lhe todas as condições para o efeito. Resolve-
deu alta e pediu orientação pelos colegas ram, antes e tão-só, prescrever medicação
de ortopedia. Foi, então, encaminhado e deixar os cuidados médicos a prestar ao
para o serviço de ortopedia onde se en- assistente, designadamente, a realização da
contrava de serviço, na qualidade de chefe cirurgia e a estabilização com osteotaxia,
de equipa de ortopedia, o arguido José, es- para os colegas da nova equipa do serviço
pecialista em ortopedia. de urgência de ortopedia que entraria de
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO
recusa de médico, do art. 284º do Código dessa forma, violaram o dever que lhes incumbia
Penal. de proceder de imediato a limpeza cirúrgica e à es-
tabilização da fractura com osteotaxia e de, assim,
2. Do Direito prestar a concreta assistência médica que se lhes
O caso em análise suscita a análise e aplicação impunha de acordo com o conjunto de regras re-
do tipo legal de crime previsto e púnico pelo artigo comendadas pela ciência e técnica médicas, e, não
284.º do Código Penal, havendo que ponderar os obstante isso, conformaram-se com esse perigo,
elementos do tipo objetivo, ou seja a conduta de demonstrando uma atitude de indiferença peran-
recusa do auxílio, o perigo para a vida ou perigo te a situação. Agiram livre, voluntária e conscien-
grave para a integridade física de outra pessoa, que temente, bem sabendo que as suas condutas eram
não possa ser removido de outra maneira. punidas e proibidas pela penal. Pelo que, decidiu
3. Da Decisão absolver o Arguido José da prática do crime de re-
cusa de médico e da condenação em indemnização
O Tribunal da Relação entendeu que os argui- civil, em que havia sido condenado; e condenar os
dos sabiam que, na situação concreta, conhecidas arguidos Alexandre e Carlos pela prática de um cri-
as lesões e a situação de perigo, os únicos cuida- me de recusa de médico, condenar cada um deles
dos médicos susceptíveis de eliminar esse perigo na pena de 6 meses de prisão, substituídos por 180
eram a sujeição a cirurgia para limpeza cirúrgica e dias de multa, à taxa diária de €15.
a estabilização com osteotaxia e que tinham o de-
40 ver específico de os prestar, por ser a única forma D. Problemas jurídicos discutidos na ses-
de afastar tal perigo e por terem os conhecimen- são, soluções e sugestões apresentadas
tos para os prestar. Os arguidos Alexandre e Car- Na sessão, após a apresentação dos factos e da
los e José não prestaram esses cuidados médicos decisão que compõem o caso, foi analisada à luz
imediatos quando o assistente entrou no hospital das leges artis médicas a conduta dos médicos aqui
de Aveiro pela primeira vez e no hospital de e com- arguidos, sendo unânime o entendimento de que
portamento omissivo que os mesmos arguidos ti- se tratou de uma violação, visto que optaram pela
veram quando assistiram o assistente pela segunda transferência do paciente para outro serviço hospi-
vez quando, reenviado de Coimbra, nada fizeram e talar a fim de realizar uma intervenção considera-
o deixaram para a equipa médica seguinte, sendo da secundária sem que tenham actuado, como era
que foi esta que veio a realizar tal cirurgia cerca seu dever, de modo a reduzir o perigo para a vida
de onze horas depois da produção das lesões e da e para a integridade física do assistente. De facto,
entrada do assistente no Serviço de Urgência do considerou-se que este o elemento chave para a
Hospital de Aveiro. Os arguidos representaram o integração do crime de recusa de médico, pois a
perigo de grave lesão da integridade física do assis- conduta omissa é evidente e incrementou um risco
tente, tinham consciência da indispensabilidade e para os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento
da adequação daqueles cuidados médicos e ao não jurídico-criminal.
os terem prestado quando o assistente regressou ao
hospital de Aveiro os arguidos Alexandre e Carlos,
Mesa 2 PROBLEMAS PENAIS DO DIREITO MÉDICO
cumprido quando tenha sido previamente terminada taxa de sucesso relativamente a esse ob-
fornecida a informação tida por relevante, jectivo pretendido. Acresce que não ficou demons-
não podendo o posterior consentimento trado o nexo de causalidade entre o acto médico e
estar afectado por vícios de vontade. o resultado danoso.
2. O conteúdo desta obrigação de informa- Quanto ao consentimento, cabendo ao médi-
ção compreende os riscos tidos como pre- co o ónus de prestar a informação relevante para
visíveis e sérios, admitindo-se que, em a obtenção do consentimento, cabe, contudo, ao
intervenções de particular grau de risco, doente alegar e demonstrar que o risco de cuja ve-
se comuniquem ao doente os riscos graves rificação resultaram os danos era um dos riscos ra-
(como morte ou invalidez permanente), zoáveis, previsíveis e significativos que lhe deviam
ainda que de ocorrência excepcional. ter sido transmitidos. Não está provado que o dano
3. O ónus da prova do cumprimento da obri- de que o autor padece decorreu de um risco razoa-
gação de informação cabe ao médico, no- velmente previsível, ou seja, de que é uma conse-
meadamente por ser mais fácil para este, quência de que era suposto, por ser suficientemen-
enquanto que para o doente seria necessá- te frequente, o autor ter sido informado antes da
ria a difícil prova de um facto negativo realização da cirurgia.
No caso, o réu prestou ao autor todos os ele- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
mentos de informação tidos como necessários. Ale- são, soluções e sugestões apresentadas
gar a necessidade de informar sobre a possibilidade 49
de o seu estado de saúde não melhorar ou mesmo A questão prévia à do consentimento é de que
piorar é passar para o plano da informação sobre modo deve ele ser informado. A doutrina tende a
o a probabilidade de obtenção do resultado. Ora, exigir que os riscos previsíveis e sérios sejam trans-
no âmbito de uma cirurgia curativa ou assistencial, mitidos, bem como o dano da morte e de invalidez.
em que a obrigação é apenas de meios, o dever de Ora, a dificuldade está em determinar, na
informação não pode ser alargado nesse sentido. perspectiva dos médicos, qual a informação que
Apenas nos casos em que o médico se comprometa devem ou não transmitir, não sendo necessaria-
com um determinado resultado, por exemplo e no mente perceptível a que correspondem, na práti-
contexto de cirurgias plásticas ou dentárias, é que ca e em cada caso concreto, os riscos previsíveis e
se exigirá a advertência sobre a probabilidade de sérios. Por este motivo, é recomendável que haja
sucesso/insucesso. um maior diálogo entre médicos e juristas, não só
para aqueles saberem como devem agir, mas tam-
(B) bém para que estes saibam concretizar conceitos
indeterminados com conhecimento da realidade
Não ficou provado nenhum erro médico na médica subjacente.
execução da cirurgia e a obrigação em causa era Um outro aspecto que foi discutido foi o facto
tão-só de meios. O réu não se obrigou a que o au- de ser contraproducente uma tendência no sentido
tor deixasse definitivamente de usar óculos, mas de exigir a transmissão do máximo de informação
tão-só a realizar uma operação que tinha uma de- possível. Além de não ser facticamente possível
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 1
informar sobre absolutamente tudo, não é fomen- vi) Seguido de uma cirurgia de lifting crural,
tando uma atitude de cautela extrema por parte destinada a “subir” as cicatrizes utilizando
dos médicos, fazendo-os aumentar a lista de da- o excesso de pele resultante da anterior
dos prévios ao consentimento, que o doente fica- lipoaspiração.
rá, necessariamente, mais esclarecido em termos vii) A primeira intervenção foi marcada e
substanciais. realizada, tendo a autora tido alta no dia
CASO 2 seguinte.
viii) Durante a operação, o réu apercebeu-se de
APRESENTADO PELA DOUTORA MARIA que a elasticidade da pele das regiões ope-
CLARA SOTTOMAYOR – JUÍZA DO radas era inferior à esperada, pelo que não
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL seria suficiente para obter o efeito preten-
dido no segundo momento operatório.
A) Identificação da decisão: recurso de revista – ix) Assim, decidiu aproveitar algum tecido
Supremo Tribunal de Justiça adiposo, extraído por lipoaspiração, para
B) Palavras-chave: responsabilidade contratual – injectá-lo nos grandes lábios.
cirurgia plástica – obrigação de quase-resultado –
tipos de consentimento x) Este procedimento designa-se por vulvoplastia.
C) Os factos, o Direito e a Decisão xi) Assim, tentou num só momento
50 operatório restaurar a anatomia da região
1.Os factos e elevar as cicatrizes.
i) A autora tinha sido diagnosticada com hi- xii) No dia seguinte, a autora encontrou-se
drosadenite supurativa crónica, para a qual com o cirurgião, que a informou que tinha
realizou diferentes tratamentos e duas resolvido o problema numa só cirurgia.
cirurgias. xiii) Informou, ainda, que, uma vez que os
ii) Em virtude destas intervenções, apresen- grandes lábios tinham quase desaparecido,
tava cicatrizes em toda a zona inguinal, em virtude de operações anteriores, apro-
visíveis em época balnear quando usava veitou a gordura resultante da lipoaspira-
fato-de-banho. ção para a injectar nos grandes lábios.
iii) Com o intuito de disfarçar tais cicatrizes, xiv) A possibilidade de enchimento dos gran-
“subindo-as” de forma a que deixassem de des lábios não tinha sido anteriormente
ser visíveis em época balnear, consultou o discutida.
réu, cirurgião plástico. xv) Desde o dia a seguir à intervenção e duran-
iv) Acordou com este a realização de uma in- te vários dias depois, a autora queixou-se
tervenção em dois momentos temporais de dores intensas.
distintos. xvi) Consultou, em diversas ocasiões, o réu,
v) Um primeiro consistente numa li- que reafirmou estar tudo a correr normal-
poaspiração à parte interna das coxas. mente e receitou medicação.
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
A questão central era a de saber se houve- operação estética, que contende com a
ra ou não algum tipo de consentimento quanto à imagem da pessoa e com a relação consigo
vulvoplastia. mesma, não é possível que se verifiquem
a) Consentimento escrito: a cláusula “au- os pressupostos do consentimento presu-
torizo o médico responsável e seus assis- mido, pois este instituto visa fazer face a
tentes a fazerem tudo o que for necessário, situações em que há riscos para a vida ou
incluindo operações ou procedimentos di- a saúde que requerem uma intervenção
ferentes dos acima discriminados, na even- médica absolutamente inadiável. Ao médi-
tualidade da ocorrência de complicações co é exigido que dê prioridade à possibili-
no decurso daqueles” apenas legitimava dade de escolha do doente, face à incomo-
intervenções não autorizadas urgentes e didade de se repetir a intervenção.
imprescindíveis para proteger a saúde da e) Consentimento hipotético: quanto à
autora e para fazer face a circunstâncias alegação de que, se a autora tivesse sabido
supervenientes ocorridas durante a ope- da possibilidade da vulvoplastia, não a teria
ração susceptíveis de causar perigo para recusado, o ónus da prova cabe ao médico.
a saúde ou para a vida. Uma cirurgia es- De todo o modo, este instituto só pode
tética, sendo voluntária e não curativa ser mobilizado para violações menos gra-
ou assistencial, não pode considerar-se ves do dever de informação, não em casos
52 abrangida no contrato. de violações graves – como a omissão de
b) Consentimento verbal: a alegação de esclarecimento sobre riscos significativos
que teria sido dado consentimento verbal- e, por maioria de razão, os casos em que
mente e que tal decorreria da relação de falta de todo a prestação de consentimento
confiança médico-doente não só não tinha (intervenções não autorizadas).
reflexo na matéria de facto, como aque- f) Ónus da prova do consentimento: o
la relação de confiança tem de passar pelo ónus da prova impende sobre o médico,
respeito total e escrupuloso do princípio pois se coubesse ao paciente implicaria a
da autonomia do paciente e do seu direito prova de um facto negativo, com ineren-
à autodeterminação. tes dificuldades probatórias, enquanto
c) Consentimento tácito (artigo 219.º, que para o médico, perito, será mais fácil
n.º 1, 2.ª parte, do CCiv): a matéria de proceder a essa prova. Além disso, sendo
facto não refere a existência de qualquer o consentimento uma causa de justificação
conversa sobre a possibilidade ou necessi- que exclui a ilicitude da violação da inte-
dade de uma vulvoplastia, nem qualquer gridade física, a parte que recorre a essa
comportamento da autora do qual se pu- defesa é que o deve provar enquanto facto
desse deduzir tal consentimento. impeditivo do direito o autor.
d) Consentimento presumido (artigo
340.º, n.º 3, do CCiv): tratando-se de uma
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- ração que, uma segunda intervenção, exigiria nova
são, soluções e sugestões apresentadas anestesia e novos riscos. Sendo um ponto válido, o
risco da anestesia em si não tende a ser muito ele-
A discussão iniciou-se em torno da determina- vado, o que é atestado pelo facto de não se exigir
ção da natureza da intervenção cirúrgica em causa. consentimento por escrito.
Foi suscitada a questão de não se tratar de uma ci- Com referência a um possível paternalismo
rurgia estética, mas antes de uma cirurgia recons- médico, a concepção actual dita que devemos re-
trutiva, pois estava em causa o tratamento de te- jeitar, dando verdadeiro relevo à autodeterminação
cidos doentes. Por outro lado, o intuito da doente dos pacientes – sendo certo que, em jeito de pro-
era, sem dúvida, estético. vocação, este direito “imposto” pode não se com-
Foi contra-alegado que essa qualificação era ir- paginar com o direito de o doente não querer saber
relevante, já que tanto a cirurgia estética como a todos os riscos que está a assumir.
reconstrutiva consubstanciam, para o médico, uma Por fim, abordou-se a questão da definição
obrigação de quase-resultado. Sobre este ponto, do consentimento informado substancial, que é,
foi dada opinião no sentido de que a diferenciação na verdade, avesso à transmissão excessiva de in-
entre obrigação de meios/ resultado/ quase-resul- formação, pois conduz a um incremento do des-
tado não parece ter verdadeiro reflexo na realidade fasamento entre informação dada e informação
médica e pode estar em desarmonia com o que deve efectivamente assimilada. O que se pretende é um
efectivamente ser exigido aos profissionais de saúde. consentimento perceptível para uma pessoa média. 53
Sendo uma categoria dogmática pouco tratada, Contudo, não pode deixar de ficar absoluta-
a obrigação de quase-resultado é invocada quando mente esclarecido o risco, por exemplo, de vir a
a operação, não sendo estritamente necessária para sofrer dores intensas e prolongadas – sem ter de
a saúde ou vida, é realizada apenas em vista de um explicar, medicamente, em que consistem e por-
determinado resultado. Em termos de consenti- que surgem. Esta necessidade assume particular
mento, cabe ao médico explicar com rigor qual a relevância num contexto estético, pois munido de
probabilidade de esse resultado ser atingido e quais toda a informação, o doente pode repensar e deci-
as consequências negativas que poderão advir. dir qual o seu interesse que pesa mais. Porque não
Já quanto à questão central do acórdão, os ti- é uma cirurgia necessária, a liberdade do doente
pos de consentimento, questionou-se se um con- tem de ser significativamente maior do que nos ca-
sentimento não expresso, presumido, deveria ser sos em que uma intervenção cirúrgica é necessária
admitido atendendo a um intuito de prevenção do para garantir a sua vida.
risco de anestesia. O médico tomaria em conside-
Mesa 4
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL; ILICITUDE E CULPA; OBRI-
GAÇÕES DE MEIOS E OBRIGAÇÕES DE RESULTADO
Presidente da Mesa: Luís Filipe Pires de Sousa | Juíz Desembargador — Tribunal da Relação de Lisboa
Relatora: Ana Lopes Chaves | Advogada
CASO 1 ta contactada pelo réu, que a informou do
quadro clínico da Autora (pré-existência
APRESENTADO PELA DRA. GABRIELA DE da paralisia cerebral), bem como da esco-
FÁTIMA MARQUES — JUÍZA DE DIREITO lha pela A. da anestesia dita epidural.
— JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA d) No relatório elaborado, o médico Réu fez
constar, além do mais que “No pós-opera-
A) Identificação da decisão: acção declarativa tório entre as 24 e as 48 horas detectou-se
de processo comum um quadro de parésia do membro inferior
b) Palavras — chave: responsabilidade contratual/ esquerdo e défice sensitivo do mesmo”, e
extracontratual, obrigação de meios/obrigação de re- tendo-se ainda afirmado que “foram ex-
sultado, presunção de culpa, consentimento informado 55
cluídas outras causas, pensando que se tra-
c) Os factos, o Direito e a Decisão tou de uma reacção excessiva da Anestesias
e/ou DIB epidural”;
1. Os factos e) A A. regressou a casa com esvaziamento
a) A A. foi sujeita a uma intervenção cirúrgi- vesical diário, mantendo o programa de
ca da especialidade de ortopedia realizada reabilitação, e apoio domiciliário para hi-
pelo réu (médico) no estabelecimento da giene pessoal; passou a necessitar de ajuda
ré (estabelecimento de saúde privado), de terceira pessoa para os actos normais
a qual consistiu no alongamento do ten- da vida corrente; passou ainda a padecer
dão de Aquiles a céu aberto, osteotomia de infecções urinárias de repetição; passou
do primeiro metatarso e alongamento a ter que usar fraldas; apenas se pode des-
tendinoso. locar na via pública com o auxílio da sua
b) A intervenção cirúrgica foi realizada pelo cadeira de rodas;
réu sob Anestesia loco-regional adminis- f) Na sequência da intervenção cirúrgica a
trada pela médica anestesista, que presta A. ficou portadora de sequelas anátoma-
serviço regular junto da primeira Ré. -funcionais que lhe conferem uma incapa-
c) A A. antes da cirurgia não teve qualquer cidade geral parcial e permanente de 50%,
consulta pré-anestésica, sendo a anestesis- sendo esta incompatível com o exercício
da sua profissão de professora de música e é
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
artigo 799º nº 1 do CC, pois não existe, nesta si- de operações seria de índole extra-contratual ou
tuação, qualquer razão específica que justifique o aquiliana.
afastamento dessa regra.Todavia, a verificação de Não ficou provado que a médica anestesista ou
todos os outros pressupostos para fazer acionar a o réu tenha informado a A. dos riscos que advi-
responsabilidade civil (o facto ilícito, o dano, e o nham para a mesma, pelo que faltará desde logo
nexo de causalidade entre o facto e o dano) e bem esse esclarecimento (e esse nem sequer existe por
assim, a prova da existência do vínculo contratual e banda da interveniente que se limitou a efectuar
da verificação dos factos demonstrativos do incum- um questionário à A., sem aferir dos riscos exis-
primento ou cumprimento defeituoso do médico tentes, riscos esses que se revelaram no caso con-
competirá sempre ao Autor. creto da A. pois da anestesia resultou uma lesão
Por outro lado, concluiu-se que a obrigação do medular e que constituem os danos da A).
médico era uma obrigação de meios e não de resul- Por outro lado, foi imputada responsabilidade
tado, uma vez que apenas se compromete a desen- ao médico ortopedista, pela conduta levada a cabo
volver prudente e diligentemente certa actividade pela médica anestesista, pois por força do disposto
para a obtenção de determinado efeito, mas sem no art. 800º, nº 1, do Código Civil, «o médico é
assegurar que o mesmo se produza. responsável pelos actos das pessoas que utilizou no
A questão do consentimento informado como cumprimento das suas obrigações como se fossem
dever autónomo do médico: o médico tem o dever praticados por si próprio».
de dar ao paciente um total e consciente esclareci- 57
mento sobre o acto médico que nele se vai realizar, 3. A decisão
suas características, o grau de dificuldade de O médico e o hospital foram condenados e a A.
necessidade ou desnecessidade, suas consequências foi absolvida do pedido reconvencional.
e, acima de tudo, sobre o risco envolvente do re- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
ferido acto médico; por outro lado, o paciente são, soluções e sugestões apresentadas
deve fornecer colaboração ao médico, revelando-
lhe qualquer facto da sua história clínica, com A apresentante informou que a decisão de 1.ª
relevância para promover o sucesso ou evitar o Instância, confirmada pelo Tribunal da Relação,
insucesso do mesmo acto médico. acabou por ser alterada em sede de recurso, uma
Existia consentimento informado da paciente. vez que o Supremo Tribunal de Justiça apenas con-
Provou-se em sede de julgamento que o médico denou o Hospital.
tinha transmitido à anestesista a informação de que Entendeu-se que o médico ortopedista deu co-
a A só aceitaria a epidural e jamais a anestesia geral. nhecimento à médica anestesista de toda a infor-
A médica anestesista não examinou a A. antes mação relevante, tendo esta conhecimento de todo
da intervenção cirúrgica a que esta ia submeter-se, o historial da paciente.
antes tomou a seu cargo a doente apenas na altu- O STJ, apesar de entender que o médico-ci-
ra da cirúrgia efectuando um questionário prévio, rurgião pode ser responsabilizado pela conduta da-
pelo que a sua responsabilidade civil por quaisquer queles que sejam auxiliares de cumprimento, por
danos advenientes da sua actuação dentro da sala aplicação do art. 800º, nº 1, do CC, considerou
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
que o médico anestesista não está subordinado ao locação de prótese no fémur (que se re-
cirurgião. Apenas seria de responsabilizar o cirur- porta ao caso 5)
gião pela conduta da anestesista se se apurasse que Com a sua intervenção pretendeu abordar os
esta última era, em concreto, uma auxiliar, ainda seguintes pontos:
que independente, de cumprimento das obriga- 1. Opção entre o regime da responsabilidade
ções de que aquele é devedor. Concluiu que não civil contratual e extracontratual;
tendo tal prova sido feita, o médico-cirurgião não 2. Utilização/distinção da classificação en-
poderia ser responsabilizado pela conduta da anes- tre obrigação de meios e obrigação de
tesista. Coisa diversa se entendeu relativamente ao resultado
hospital, pois este será responsabilizado pela obri- 3. Recurso à utilização dos deveres objectivos
gação de prestação de serviços médicos de todos de cuidado.
os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, en-
fermeiros e outros) 1) Os três acórdãos aplicam a responsabilidade
civil contratual, uma vez que estamos no âmbito
CASO 2 da medicina privada, mobilizando os argumentos
da autonomia privada e do regime mais favorável
APRESENTADO PELA DRA. MARIA DA para o lesado
GRAÇA TRIGO — JUÍZA CONSELHEIRA — A apresentante introduziu a questão do princí-
58 SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA pio da consunção no direito Português da respon-
sabilidade civil contratual pela responsabilidade ci-
A) Identificação da decisão: Três acórdãos do vil extracontratual. No Ac. do STJ de 26/04/2016
Supremos Tribunal de Justiça (STJ) acerca de respon- aborda-se esta questão.
sabilidade médica
B) Palavras — chave: ilicitude, culpa, obrigação 2) Sobre a obrigação de meios/obrigação de
de meios/obrigação de resultado, deveres acessórios resultado, tem-se concluído que as prestações de
do contrato serviços médicos são obrigações de meios.
C) Os factos, o Direito e a Decisão Tal categorização torna-se relevante quando
pensamos, por exemplo, que nas obrigações de re-
A apresentante subordinou a sua intervenção sultado, não se provando a realização do resultado,
ao tema “Ilicitude e culpa: dicotomia entre obriga- fica provado o preenchimento do pressuposto da
ção de meios e obrigação de resultado”. ilicitude; o que já não sucede quando nos encontra-
Para o efeito debruçou-se sobre três acórdãos mos perante uma obrigação de meios.
do STJ, proferidos no ano de 2015 e 2016, a saber: No Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a
• Ac. STJ de 01/10/2015: colonoscopia em concluir o seguinte: as prestações de serviços mé-
que ocorreu a perfuração do intestino dicos com funções curativas são, em regra, obriga-
• Ac. STJ de 28/01/2016: Cirurgia de de- ções de meios; mas outras há que são de resultado:
feito ortopédico, com lesão da medula certas cirurgias estéticas, exames laboratoriais e
(que se reporta ao caso 1) radiológicos, etc.
• Ac. STJ de 26/04/2016: Cirurgia para co- Por exemplo, a prótese mamária tem sido en-
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
tendida como uma “obrigação quase de resultado”. nervo ciático. Todavia, o excesso de comprimento
Porém, nada impede que dos contratos de da haste metálica inexistia, pelo que não conseguiu
serviços médicos possam nascer obrigações de a autora fazer a prova, que lhe competia, da inade-
resultado. quada conduta que imputa ao réu e que integra a
O Ac. do STJ de 26/04/2016, apesar de co- causa de pedir.
meçar por dizer que o contrato de prestação de Também não invocou a autora nos seus articu-
serviços médicos, ao ter como obrigação principal lados, nem ficou provada, a violação de qualquer
a obrigação de tratamento, é de qualificar, como obrigação de meios.
obrigação de meios, e não de resultado, por o mé- 3) Nos Acórdãos do STJ de 01/10/2015 e de
dico não se ter vinculado a obter a cura do pacien- 28/01/2016, mobiliza-se a doutrina dos deveres
te, mas apenas a tentá-la por meio do tratamento acessórios do contrato, da doutrina germânica, e
que os seus específicos conhecimentos científicos que são abordados por Carlos Alberto Mota Pinto.
e técnicos lhe apontem como adequado, refere Integram os deveres acessórios do contrato os
depois que, no caso em apreço (artroplastia para deveres de informação, de lealdade, de protecção.
colocação de uma prótese total da anca de longa A lesão da integridade física, ocorrida no âm-
duração), estaríamos perante uma obrigação de re- bito e por causa da execução do contrato, pode
sultado no que à colocação de uma haste metálica conduzir a uma violação de deveres de protecção.
no interior do fémur diz respeito, o que efetiva- O que constitui uma obrigação de resultado, apli-
mente implicaria o recurso à presunção de culpa cando-se, por conseguinte a presunção de culpa da 59
consagrada no art.º 799º, n.º 1, do Cód. Civil. responsabilidade contratual.
Citando Rute Teixeira Pedro in “A responsa- O recurso aos deveres acessórios de cuidado é
bilidade civil do médico”, pág. 100, refere que a muito útil para a decisão sobre a ilicitude e a culpa.
aplicação de próteses é apresentada como exemplo
de uma intervenção em que o médico se vincula à D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
consecução de um resultado, pois na atividade de são, soluções e sugestões apresentadas
elaboração da prótese, o médico compromete-se a
elaborar um dispositivo que se adequa à anatomia a) O problema de determinar os sujeitos da
do concreto doente, de acordo com regras técnicas responsabilidade civil. Designadamente, o
precisas. Porém, já no que respeita à actividade de problema das equipas médicas: umas vezes
aplicação da prótese no organismo do paciente, na a equipa médica é trazida pelo médico, ou-
medida em que a aceitação ou rejeição de um cor- tras vezes é trazida pelo Hospital.
po estranho pelo organismo depende de um con- b) A diferença entre a jurisdição cível e a ju-
junto de fatores que o profissional não consegue risdição penal. Na jurisdição cível há mui-
controlar, a obrigação assumida deverá qualificar- tas vezes a dificuldade da investigação e a
-se como obrigação de meios. dificuldade de manter a história. Na juris-
No caso concreto dos autos, tal haste metáli- dição penal, a investigação é feita a priori,
ca, com mais 2 cm do que o necessário, segundo com perícias médicas.
alegação da autora, terá provocado estiramento do c) A questão da inversão do ónus da prova —
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
sofreram na sequência do erro de diagnós- indevido (wrongful birth), tal como decorre da
tico pré-natal. terminologia avançada pelo Prof. Doutor Antó-
h) Os RR. vieram defender-se por excepção, nio Pinto Monteiro, na Anotação ao Ac. do STJ de
invocando a prescrição do direito, bem 19/06/2001, in RLJ n.º 134, de 01/04/2002. Tal
como por impugnação, sustentando que como os AA. configuram a acção, o que está em
não ocorreu qualquer erro de diagnóstico causa é um erro de diagnóstico que conduziu a que
pré-natal e que os eventuais danos sofri- a A. mulher não interrompesse voluntariamente a
dos não se deveram ao alegado diagnóstico gravidez, o que pretendia, caso soubesse que o feto
pré-natal, mas sim à doença de que a crian- era portador da aludida doença.
ça era portadora. No caso das acções de wrongful birth, o que
está em causa é o direito de os pais virem reclamar
2. O Direito danos por eles sofridos, enquanto pais, por uma si-
Os AA. vieram peticionar a atribuição de uma tuação que afecta a filha. Nas acções de wrongul life
indemnização por danos patrimoniais e não patri- o que está em causa são os danos sofridos pela pró-
moniais, decorrentes de um nascimento indevido pria criança por ter nascido com deficiência, sendo
(wrongful birth) da sua filha que veio a falecer três que é ela própria que pretende ser indemnizada.
anos após o nascimento. De facto, e atenta a tese dos À semelhança do que ocorre no direito privado,
AA., sabendo estes que eram portadores de fibrose só existe responsabilidade civil do Estado, por ac-
quística, apenas pretendiam ter um novo filho caso tos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, 61
pudessem ter a certeza, através de diagnóstico pré- mediante a verificação dos cumulativa dos seguintes
-natal, que o feto não viria a sofrer da doença. pressupostos: facto, ilícito, culposo, existência de um
Na sequência do diagnóstico pré-natal efectua- dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
do, apurou-se que o feto era portador da doença, A sentença proferida pelo TAF de Coimbra
mas não era doente, razão pela qual os AA. não op- concluiu ter havido uma actuação ilícita e culposa
taram pela interrupção voluntária da gravidez. do Réu INSA, ao ter omitido informação essencial
Sucede que, após o nascimento veio a consta- para as tomadas de decisão posteriores. De facto,
tar-se que, afinal, a criança era portadora da doen- apesar de aquele Instituto ter procedido a todas as
ça de fibrose quística, concluindo assim os AA. que análises necessárias às vilosidades coriónicas, omi-
houve erro no diagnóstico pré-natal. tiu a informação de que não era possível excluir a
Tal situação conduziu, até à morte da criança, contaminação materna do material analisado. Con-
a inúmero sofrimento, desgosto e despesas, decor- cluiu-se ter havido uma violação das legis artis por
rente do aludido erro de diagnóstico. parte dos profissionais médicos daquele Instituto,
Na sentença que serviu de base a este tercei- que transmitiram informação incompleta à Mater-
ro caso, concluiu-se estarmos perante um caso de nidade (que, por sua vez, transmitiu informação
responsabilidade civil extracontratual do Estado incompleta à A.).
por factos ilícitos, no âmbito da responsabilida- A A. decidiu avançar com a gravidez, em face
de médica, mais concretamente, perante uma ac- daquela informação incompleta, não lhe tendo sido
ção de responsabilidade fundada em nascimento facultada a possibilidade de optar pela interrupção
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
voluntária da gravidez, violando-se assim o seu di- teriam verificado os danos que vêm invocar. Pelo
reito à autodeterminação. que se entendeu não existir nexo de causalidade
A sentença em análise debruçou-se ainda so- entre estes danos e o facto ilícito e culposo.
bre a questão do nexo de causalidade nas acções de Sobre os danos não patrimoniais peticionados
wrongful birth e wrongful life, uma vez que neste em nome da filha, a sentença em apreço convocou
tipo de acções os danos podem não ser causados para a discussão o Acórdão da Cour de Cassation Fran-
directamente pela actuação dos profissionais de cesa, de 17/11/2000 — Arrêt Perruche —, onde
saúde. É fácil constatar que no caso dos autos, não se entendeu ter a criança o direito de ser indemni-
foi a forma incorrecta como a informação foi trans- zada nas acções de wrongful life, e o Acórdão do
mitida que levou a que a filha dos autores ficasse STJ de 19/06/2001, que entendeu que não pode
com a doença. a criança nascida com deficiência e no âmbito das
No caso dos autos, os AA. vieram solicitar a acções de wrongful life solicitar o ressarcimento
indemnização por danos patrimoniais e não patri- dos danos não patrimoniais por si sofridos, porque
moniais por si sofridos — situação típica de wron- não pode ser invocado o “direito a não nascer” , não
gful birth — e também a indemnização por danos existindo um “dano vida”.
patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela filha. A sentença recorrida adopta o entendimento de
A sentença em análise entendeu serem indem- Paulo Mota Pinto sobre esta situação, que entende
nizáveis os danos sofridos pelos AA., uma vez que que deve existir também o ressarcimento dos danos
62 o fundamento para a sua indemnização é o facto da própria criança, por necessidades acrescidas e até
de ter sido violado o seu direito à autodetermina- por danos não patrimoniais. Isto desde logo porque
ção, designadamente, o direito de interromper a quando, em consequência do erro médico, ocorre o
gravidez atento o diagnóstico pré-natal efectuado. nascimento de uma criança deficiente, o primeiro e
Entendeu assim existir nexo de causalidade entre mais directo visado é desde logo a própria criança.
o facto ilícito e culposo e o dano não patrimonial
sofrido pelos AA. Mais se considerou serem danos 3. A decisão
patrimoniais indemnizáveis as despesas com via- Apenas o R. INSA foi condenado, tendo sido
gens, medicamentos e funeral da filha dos AA. (já absolvidos todos os demais.
que se tratam de despesas que ocorreram devido ao Todavia, e tendo em conta o pedido inicial,
nascimento indevido da criança). a condenação acabou por ser bastante modesta
Quanto aos danos patrimoniais peticionados (25.000,00€ para cada um dos AA. e 25.000,00€
em nome da filha (rendimentos que deixou de au- para a filha dos autores).
ferir se tivesse saúde e uma vida normal de traba- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
lho) a sentença em apreço entendeu o seguinte: tal são, soluções e sugestões apresentadas
pedido representa um contrasenso, uma vez que a
doença da filha não surgiu de qualquer acto médico Os tópicos destacados na sequência da apresen-
e, por outro lado, se não tivesse havido erro no tação foram:
diagnóstico pré-natal (causa de pedir dos AA.) • Aceitação pacífica da acção de wrongful
a filha destes não teria nascido e como tal não se birth
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
servação, já tinha verificado a existência A responsabilidade médica tanto pode ser con-
de atipia celular e distorção das formas nas tratual como extra-contratual, consoante exista ou
glândulas, o que reforçou a sua conclusão não a celebração de um contrato de prestação de
de que se tratava de neoplasia. serviços com o paciente para a prática dos actos
k) A R. aquando da realização deste exame médicos.
desconhecia todo o historial clínico do A, Sendo responsabilidade contratual, aplicar-se-
bem como o resultado dos exames médi- -ão os artºs 798 e segs. do C.C., enquanto que se
cos efectuados anteriormente. for extracontratual recorrer-se-á às regras previs-
l) A atrofia existente mimetizou a neoplasia tas nos artºs 483 e segs. do C.C.
sendo este tipo de diagnóstico qualificado É requisito essencial do contrato de prestação
como “pitfall” (dificuldade não facilmente de serviços, tal como definido pelo art. 1154.º do
apreensível) pela comunidade científica, CC, uma obrigação de resultado de um trabalho
tendo uma ocorrência de cerca de 1%; re- manual ou intelectual, com ou sem remuneração.
fere ter todos os exames que podia efec- Tem sido discutido no âmbito da responsabili-
tuar, tendo agido com todo o cuidado, dade médica, se a obrigação do médico é de meios
saber e diligência que lhe eram exigidos ou de resultado. Na obrigação de meios, o deve-
pelas boas artes médicas. dor compromete-se a desenvolver prudentemente
e com diligência certa actividade para a obtenção
m) O A. em sede de réplica alegou não ter tido de um determinado efeito, mas sem assegurar que
64
conhecimento da existência de um seguro o mesmo se produza; já a obrigação de resultado
celebrado pela R., alegando que esta litiga verifica-se quando se conclui da lei ou do negócio
de má fé, por não ter prestado tal informa- jurídico que o devedor está adstrito à obtenção de
ção; deduziu em consequência incidente um certo efeito útil.
de intervenção principal provocada da re- A jurisprudência e a doutrina vêm defenden-
ferida companhia de seguros, alegando ter do que a obrigação médica é tão só de meios, não
esta um interesse igual ao da R. na causa. se vinculando o médico (especialmente em áreas
n) Foi indeferida a intervenção provocada reque- de especial complexidade e tendo em conta os li-
rida pelo A., e a excepção dilatória de ilegitimi- mites da arte médica) a um determinado resul-
dade passiva suscitada pela 1ª R. foi indeferida. tado. No entanto, existem certas especialidades
em que a obrigação é de resultados (por exemplo,
2. O direito especialidade dos patologistas clínicos). No caso
O A. qualifica a responsabilidade desta médica em apreço, na especialidade de anátomo-patolo-
como extra-contratual por factos ilícitos e contra- gia, a obrigação é a de resultado. É esta especiali-
tual, tendo por base a celebração de um contrato dade, mediante o exame das biópsias, que efectua
de prestação de serviços celebrado entre a 1ª R. e o o diagnóstico do cancro.
A (o material biológico recolhido na biópsia pros- Não obstante, independentemente de tratar-se
tática foi entregue à 1ª R., Médica Anátomo-Pato- de uma obrigação de meios ou de resultado, na res-
logista, para que o analisasse) ponsabilidade contratual, o ónus de prova quanto à
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
inexistência de culpa no incumprimento ou cum- 1.ª Ré, ilidiu a presunção de culpa que sobre si im-
primento defeituoso da prestação incidirá sobre o pendia, uma vez que o presente caso caía na situa-
R. médico, nos termos do artº 799 do C.C. ção de “pitfall”, ou seja, entendeu que por tal erro
Já na responsabilidade extra-contratual, aplica- não poderia ser responsabilizada a médica, uma vez
-se o art. 487º, n.º 1 do Cód. Civil: é ao lesado que esta foi confrontada com um caso de difícil di-
que incumbe provar a culpa do autor da lesão e, ferenciação porque mimetiza o cancro, com uma
nos termos do n.º 2 do mencionado preceito, ela taxa de ocorrência de menos de 1%, sendo certo
é apreciada, na falta de outro critério legal, pela que este erro poderia ocorrer mesmo com a obser-
diligência de um bom pai de família em face das vância de todas as boas práticas.
circunstâncias de cada caso. Logo, não poderia ser assacada culpa a nenhum
No âmbito da responsabilidade médica, para se dos RR., pelo que a presente acção foi julgada
aferir da culpa, há que apreciar a conduta de acor- improcedente.
do com o modo como devia agir um especialista
idóneo colocado perante as mesmas circunstâncias: D. Problemas jurídicos discutidos na sessão,
um médico medianamente competente, prudente soluções e sugestões apresentadas
e sensato, com os mesmos graus académicos e pro- A apresentante esclareceu que, não obstante a
fissionais e na mesma data. decisão de primeira instância, houve a interposi-
Foi ainda feita uma incursão sobre o erro mé- ção de recurso por parte do A. para o Tribunal da
dico, definido por Germano de Sousa, como sendo Relação de Lisboa. Este Tribunal considerou que, 65
“a conduta profissional inadequada resultante de estando em causa uma obrigação contratual e uma
utilização de uma técnica médica ou terapêutica obrigação de resultado, a médica anátomo-patolo-
incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou gista, 1.ª Ré, tinha o dever de pedir uma segunda
vida do doente” (in “Negligência e Erro Médico”, opinião, tendo atribuído ao A. uma indemnização
B.O.A., nº6, fasc. 1, pág. 127). E sobre a importân- de 100.000,00€.
cia de diferenciar o erro médico culposo do erro Foi depois interposto recurso para o Supre-
resultante de acidente imprevisível. mo Tribunal de Justiça, que manteve a decisão da
3. A decisão Relação.
No caso dos autos entendeu-se estarmos pe- Foi avançado na discussão que a médica não terá
rante uma responsabilidade contratual entre o A. e pedido uma segunda opinião, porque não adivinha-
a 1.ª Ré, uma vez que da prova produzida resultou ria que estaríamos perante um caso de “pitfall”.
existir um vínculo contratual entre ambos, sujeita Por outro lado, foi questionada na discussão
às regras previstas no art. 798.º e ss do CC. a razão de o médico urologista não ser parte na
Mais se entendeu que a obrigação da 1.ª Ré, acção. A Dra. Cristina Neves esclareceu que isso
médica anátomo-patologista, era uma obrigação de apenas se deveu ao facto de o A. não ter proposto
resultado, tendo a mesma incorrido num erro de acção contra o mesmo, nem nenhum dos RR. ter
diagnótico. requerido a intervenção daquele.
Todavia, a sentença em apreço entendeu que a O Prof. Doutor André Dias Pereira referiu,
sobre a questão do dano não patrimonial, que em
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
França e na Alemanha existem bases de dados que c) Em Maio de 2001, a Autora dirigiu-se às
permitem, quer a quem propõe as acções, quer aos instalações da 2.ª Ré, tendo solicitado con-
seus decisores, ter uma ideia das quantias peticio- sulta do 1.º Réu que ali exerce funções.
nadas e atribuídas em casos análogos. Isto de forma d) O 1.º réu tinha larga experiência em inter-
a evitar disparidades tão elevadas. venções cirúrgicas como a dos autos, sen-
Foi ainda questionada a violação ou não do do reconhecido por muitas pessoas para a
princípio da igualdade quando feita a comparação realização de intervenções cirúrgicas como
com o dano biológico e sobre se na Jurisprudência a dos autos.
do Supremo tem sido feita a mobilização do art. 8.º e) O referido profissional de saúde prescre-
do CC, designadamente do seu n.º 3. veu à Autora a realização de intervenção
cirúrgica para a colocação de uma próte-
CASO 5 se total da anca (artoplastia com prótese
total).
APRESENTADO PELA DRA. FILOMENA f) Em face das explicações do réu e de ou-
GIRÃO — ADVOGADA tro médico que tinha consultado, a Autora
pretendeu que ele lhe realizasse a opera-
A) Identificação da decisão: Acórdão do Supremo Tribunal ção, tendo assinado a declaração de con-
de Justiça, na sequência de uma acção declarativa de condena- sentimento junta aos autos.
66 ção sob a forma de processo ordinário
g) Cirurgia que sucedeu a 15 de Maio de
B) Palavras — chave: contrato de prestação de serviços médi- 2001.
cos, obrigação de meios/obrigação de resultado, responsabilida-
de contratual/extracontratual, presunção de culpa, actividade h) A segunda Ré contratou com a A. pres-
perigosa tar-lhe acompanhamento e cuidados pré e
C) Os factos, o Direito e a Decisão pós operatórios, de aluguer do bloco ope-
ratório, de alojamento, de alimentação, de
1. Os factos enfermagem, e mesmo outros que são ne-
a) A Autora propôs ação declarativa de con- cessários em consequência de intervenções
denação contra o médico responsável pela cirúrgicas que se realizem na Clínica.
intervenção cirúrgica a que foi submetida, i) A operação a que a Autora foi submetida
e ainda contra o estabelecimento privado de é realizada na grande maioria dos casos
saúde onde aquela cirúrgia decorreu, peti- sem complicações, mas comporta alguns
cionando a condenação solidária dos Réus riscos, cujas causas são múltiplas e muitas
no pagamento de € 183.076,55, a título de vezes difíceis de identificar, entre os quais
danos patrimoniais e não patrimoniais sofri- o de lesão de nervo ciático.
dos em consequência daquela intervenção. j) Em consequência da cirurgia, a Autora
b) A Autora padecia de coxartrose bilateral veio a sofrer estiramento do nervo ciático,
com acentuação na anca direita. manifestando sintomas logo no 1.º dia de
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
científicos e técnicos lhe apontem como adequado, indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de
como se explica, entre outros, no Ac. deste Supre- aplicar os conhecimentos científicos e os proce-
mo Tribunal de 17/01/2013 (relatora Ana Paula dimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua
Boularot). formação e qualificação profissional, lhe eram de
Todavia, refere que em matéria de aplicação de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médi-
próteses, apoiando-se no ensinamento de Rute Tei- co traduz-se precisamente na preterição das leges
xeira Pedro in “A responsabilidade civil do médico”, artis em matéria de execução da sua intervenção.
pág. 100, “existe uma especificidade que leva a que, Porém, refere depois, lançando mão da noção
em regra, seja apresentada como exemplo de uma de obrigação de meios, que cabe “ao paciente pro-
intervenção em que o médico se vincula à consecu- var a falta de diligência do médico, a falta de uti-
ção de um resultado. Trata-se, porém, de uma ativi- lização de meios adequados de harmonia com as
dade complexa, em que o profissional médico assu- leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o
me obrigações de vária natureza, sendo necessário médico não praticou todos os atos normalmente
fazer uma distinção entre a atividade de elaboração considerados necessários para alcançar a finalida-
da prótese e a de aplicação da mesma no organismo de desejada: é essa falta que integra erro médico
do paciente. No que se refere à primeira, o médi- e constitui incumprimento ou cumprimento defei-
co compromete-se a elaborar um dispositivo que se tuoso. E só depois dessa prova funcionará, no do-
adeque à anatomia do concreto doente, de acordo mínio da responsabilidade contratual, a dita pre-
68 com regras técnicas precisas, assumindo nessa medi- sunção de culpa.”
da uma obrigação de resultado. Mas no que respeita Pelo exposto, entendeu a apresentante que o
à segunda, na medida em que a aceitação ou rejeição acórdão violou claramente o disposto no artigo
de um corpo estranho pelo organismo depende de 799.º do Código Civil.
um conjunto de fatores que o profissional não con- O acórdão em análise debruçou-se ainda sobre
segue controlar, a obrigação assumida deverá qualifi- o cúmulo de responsabilidade contratual e extra-
car-se como obrigação de meios.” contratual, que vem sendo há muito defendida em
Apesar de o Supremo Tribunal de Justiça matéria de responsabilidade médica e que permiti-
ter considerado que a responsabilidade médica ria convocar para o caso em apreço o artigo 493.º,
apresenta, no caso em apreço, natureza contratual, n.º 2 do Código Civil, segundo o qual: “quem cau-
alega a apresentante que este não considerou — sar danos a outrem no exercício de uma actividade,
como devia — a presunção de culpa constante do perigosa por sua própria natureza ou pela natureza
artigo 799.º do Código civil, segundo a qual “in- dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, ex-
cumbe ao devedor provar que a falta de cumpri- cepto se mostrar que empregou todas as providên-
mento ou o cumprimento defeituoso não resulta cias exigidas pelas circunstâncias com o fim de os
de culpa sua”. prevenir”.
Efectivamente, a aresto em apreço entendeu Sucede que o referido Acórdão entendeu o
que a responsabilidade no âmbito do contrato de seguinte: “se vem invocada violação de uma obri-
prestação de serviços médicos, por negligência, gação contratual de que resultam danos para uma
por violação das leges artis, tem lugar quando, por das partes, o pedido de indemnização deve alicer-
Mesa 1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I
facto que pudesse co-responsabilizar a clínica, a Na ausência de regras escritas, “o dever objec-
mesma foi absolvida. tivo de cuidado é aferível pelo modelo-padrão que
Sobre a responsabilidade do médico, a A. refere consiste em verificar os costumes profissionais, não
duas circunstâncias distintas: quaisquer costumes ou hábitos, mas os próprios de
• Por um lado, o erro médico, por este lhe um profissional prudente
ter prescrito terapêutica que, não sendo Quanto à segunda circunstância, diga-se o se-
adequada, a sua situação, lhe provocou guinte: além do dever geral de assistência que im-
hemorragias; pende sobre o médico, no âmbito de um contrato
• Por outro lado, a recusa de assistência do de prestação de serviços, é dever do médico vigiar
médico, quando a A., na sequência das alu- e acompanhar o doente a quem prescreveu deter-
didas hemorragias, se dirigiu à Clínica para minada terapia, designadamente para verificação
ser consultada, e na ausência de tal consul- dos efeitos secundários. No entender da sentença
ta, teve que se dirigir ao Hospital. em análise, para que pudesse julgar-se verificada a
Sobre a primeira — o erro médico — não violação de tal dever, a A. tinha que alegar e provar
existe uma definição do que seja este. Mas pode que procurou o R. na clínica e que lhe comunicou,
afirmar-se genericamente que o mesmo consiste ainda que por intermédio de terceiro, alguma in-
numa falha profissional, não intencional, resultan- formação sobre o seu estado de saúde que susci-
te da realização de uma sequência de actividades tasse a necessidade de consulta e, que estando ali
físicas ou mentais, previamente planeadas, que presente, o R. se recusasse, activa ou passivamente, 71
falham em atingir o resultado esperado (e essa fa- a consultá-la. E tal não foi provado.
lha não se deva à intervenção do acaso) — segundo
José Fragata, em “Erro da Medicina”. 3. A decisão
Já Germano de Sousa entende que erro médico A sentença em análise entendeu que quanto à
será a “conduta profissional inadequada resultante terapêutica ministrada e à sua relação com as he-
da utilização de uma técnica médica ou terapêuti- morragias ocorridas com a A. não ficou demonstra-
ca incorrectas que se revelam lesivas para a saúde da qualquer conduta do R. médico que denuncie a
ou vida do doente” (Negligência e erro médicos, in violação de legis artis, sendo certo que os proble-
B.O.A., N.º 6, pág. 12-14). mas que teve posteriormente também nada tive-
A apresentante, por sua vez, define erro médi- ram a ver com a medicação prescrita.
co, como “a conduta médica em consequência da Também pela via da alegada recusa de pres-
qual vêm a ocorrer na saúde ou vida do doente e tação de assistência, inexistem fundamentos para
devendo-se tal conduta à violação das leges artis, responsabilizar o R. pela sucessão de eventos re-
enquanto leis que encerram os deveres de cuidado latada pela A.
exigíveis ao médico. Seria em tal violação do de- D) Problemas jurídicos discutidos na ses-
ver de cuidado que se centraria a ilicitude do acto são, soluções e sugestões apresentadas
médico, enquanto pressuposto da obrigação de
indemnizar comuns aos dois campos da responsa- Durante a discussão, colocou-se a questão do
bilidade já mencionados) ”. registo clínico: na altura eram meros apontamen-
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA I Mesa 4
tos, à mão, do médico; o tribunal teve que conside- cesso criminal é mais difícil a condenação do que
rar um simples manuscrito do médico. em direito civil.
Dever de documentação e a situação das direc- A questão da aplicação do art. 493.º, n.º 2 do
tivas antecipadas de vontade CC na responsabilidade médica: só relativamente
A prova foi feita através do depoimento dos a actos mais arriscados e já não para os mais co-
médicos, que vinham depor como testemunhas, muns, rotineiros e corriqueiros. Todavia, há quem
colocando-se assim o problema das “testemunhas- entenda que não deve ser feita, de todo, a aplicação
-perito”, com a consequente comparação entre o do art. 493.º, n.º 2 à actividade médica (ex. Dra.
que foi feito pelo médico e o que a testemunha, Cristina Neves).
enquanto médico também, teria feito.
Falou-se ainda no pressuposto da ilicitude neste
tipo de acções: guidelines da prática médica.
A apresentante é ainda da opinião que em pro-
72
Mesa 5 e 6
regime do depósito. De todo o modo, o raciocí- vi) A paciente foi submetida a uma in-
nio parece assentar, como entendimento prévio e tervenção para extracção do material que
implícito, na assimilação desta situação aos casos havia sido colocado aquando da primeira
de responsabilidade médica, que é, normalmente, intervenção.
contratual. vii) Não obstante os tratamentos a que foi su-
CASO 2 jeita, o seu estado de saúde continuou a
piorar progressivamente.
viii) Voltou a ser internada com diganóstico de
APRESENTADO PELO DR. SÉRGIO NUNO espondilodiscite, endocardite bacteriana e
COIMBRA CASTANHEIRA - ADVOGADO) colite pseudomembranosa.
A) Identificação da decisão: acção declarativa ix) Veio a falecer e a causa de morte foi iden-
de condenação — Secção Cível de Coimbra tificada como sendo septicémia provocada
B) Palavras-chave: SIGIC — incompetência em ra- por endocardite bacteriana.
zão da matéria — legitimidade processual x) Os autores na acção são os seus progenito-
C) Os factos, o Direito e a Decisão res, enquanto sucessores legais.
1. Os factos 2. O Direito
i) Uma paciente, necessitando de cirurgia A acção em causa foi intentada junto de um 75
à coluna, foi colocada em lista de espera tribunal cível, tendo sido alegada a incompetência
num hospital público. ratione materiae desta jurisdição. Assim, estava em
causa sobretudo o artigo 4.º do ETAF, que deli-
ii) Em virtude da imprecisão relativamente à mita a competência dos tribunais administrativos
data de marcação da cirurgia, foi-lhe dada e fiscais.
a possibilidade de escolher entre diversos Quanto ao SIGIC, este protocolo foi cria-
estabelecimentos de saúde privados, ao do pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
abrigo do Sistema de Gestão dos Utentes 79/2004, de 3 de Junho, o seu funcionamento
Inscritos para Cirurgia (SIGIC). obedece aos princípios gerais da Lei de Bases da
iii) A cirurgia foi realizada no esta- Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de Agos-
belecimento por ela escolhido por dois to, e o clausulado tipo da convenção para a presta-
ortopedistas. ção de cuidados de saúde no seu âmbito é definido
iv) Após esta intervenção, recorreu pelo Despacho n.º 24 110/2004, de 23 de Novem-
diversas vezes aos serviços de urgência, bro. Foi, ainda, mobilizado o artigo 1.º, n.º 6, do
tendo sido diagnosticada com espondilo- Código dos Contratos Públicos, quanto à definição
discite, um processo inflamatório-infec- de contrato administrativo.
cioso na coluna.
3. A Decisão
v) A origem deste processo inflamatório foi a A acção de responsabilidade civil fundamenta-
intervenção cirúrgica. -se em actos médicos praticados por utentes per-
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6
tencentes ao serviço nacional de saúde, bem como que, mesmo que toda a factualidade invocada fosse
a um prévio acto médico realizado numa unidade provada, nenhuma consequência se extrairia para
de saúde privada, mas ao abrigo do SIGIC. este médico, pois nada haveria a imputar-lhe. Ou
O tribunal considerou que a relação jurídica seja, este réu não tinha interesse em contestar.
estabelecida por via do SIGIC é com a entidade Na acção que se seguiu, proposta nos tribu-
convencionada e não com o médico. A existir uma nais administrativos e fiscais, este terceiro médi-
relação contratual será entre o Serviço Nacional co não foi demandado. Quanto aos outros dois,
de Saúde e a clínica e não com o médico indivi- também aqui havia uma questão de legitimidade.
dualmente. Além disso, atendendo à legislação que Toda a factualidade alegada, se integralmente pro-
rege o SIGIC e ao facto de o doente se sujeitar ao vada, apenas conduziria a um juízo de negligência,
Código dos Contratos Públicos, um acto médico o que, de acordo com o DL n.º 48/051, de 21 de
praticado em unidade hospitalar privada ao abrigo Novembro, determinaria que apenas o Estado se-
deste protocolo é uma situação regida pelo direi- ria responsabilizado e já não o médico que actuou
to público. Ou seja, o litígio a resolver decorre de negligentemente.
uma relação jurídico-administrativa, sob a égide do Esta realidade denota uma tendência dos juízes
direito público. em não quererem decidir incidentes de legitimi-
Assim sendo, a competência material para co- dade ab initio. Ora, na perspectiva dos médicos, o
nhecer da acção em que se discute eventual respon- simples facto de constarem como réus numa ac-
76 sabilidade civil emergente desta relação jurídica é ção, independentemente da sentença que vier a
dos tribunais administrativos, ao abrigo do dispos- ser proferida, é um pesado encargo, com reper-
to no artigo 4.º, n.º 1, alíneas e) e h), do ETAF, cussões profissionais. Deste ponto de vista, não é
declarando-se absolvidos os réus da instância por indiferente uma acção ser julgada improcedente
incompetência absoluta em razão da matéria. por ilegitimidade “processual” ou por ilegitimidade
“material”, na qual se discute, logo desde início, o
D) Problemas jurídicos discutidos na ses- mérito da causa.
são, soluções e sugestões apresentadas Antes, o significado desta legitimidade mate-
Sendo controvertida a determinação da com- rial era bastante discutido, havendo posições diver-
petência dos tribunais administrativos e fiscais em gentes no sentido de dever ser aferida com base
casos referentes ao SIGIC, a discussão centrou-se na relação material controvertida ou com base na
noutros aspectos suscitados pelo caso, de índole configuração dada pelo autor. A redacção actual do
processual. artigo 30.º do CPC optou pela última concepção,
A acção foi intentada contra três médicos, o sendo relevante a legitimidade tal como configura-
terceiro dos quais só teve contacto com a vítima da pelo autor.
após a intervenção cirúrgica e sem qualquer rele-
vo. Na petição inicial, apenas é invocado num arti-
go, sem haver alegações em termos de imputação.
Assim, alegou ilegitimidade passiva, na medida em
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...
viii) A cirurgia ficou marcada para 9 de Dezem- xvii) O choque anafilático pode acontecer a
bro, participando, além do médico previa- qualquer pessoa que seja exposta a injec-
mente consultado, um outro médico com ção de medicamento, sendo absolutamen-
especialidade de anestesia. te imprevisível, mesmo quando as doses
ix) Na sequência da sedação e do início da anestésicas administradas são as corretas.
administração da anestesia local, a doente
bradicardizou, tendo sofrido uma paragem 2. O Direito
cardio-respiratória. O caso baseou-se na aferição dos pressupos-
tos da responsabilidade civil contratual, tendo um
x) Os dois médicos de imediato administra- dos votos de vencido invocado a figura da perda de
ram fármacos à doente e procederam a chance.
massagem cardíaca externa e a ventilação
manual. 3. A Decisão
xi) Atendendo a que a paciente não recupe- Cabia aos autores, sucessores legais da pacien-
rava, foi feita uma entubação orotraqueal te, a prova do incumprimento ou cumprimento de-
e dada continuidade à ventilação manual. feituoso. Ora, não se considerou provada a violação
xii) Chamaram o INEM que, quando chegou ao das leges artis, atendendo a que na cirurgia esteve
local, tomou a responsabilidade pela reani- presente um médico com especialidade em aneste-
mação, tendo designadamente ministrado sia e que nada no estado de saúde da paciente fazia
80 prever uma contra-indicação à anestesia, pelo que
atropia e adrenalina, tendo sido obtida pul-
sação decorridos 5 minutos e, mediante a não era de contar com a consequência que adveio
ministração de mais fármacos, pulsação e da administração da anestesia. Também não ficou
pressão arterial volvidos mais 5 minutos. provado o nexo causal entre a paragem cárdio-res-
piratória e o choque anafilático.
xiii) Foi transportada para um hospital público, Consequentemente, não se provou que a pa-
vindo a falecer a 12 de Dezembro. ragem cárdio-respiratória fosse consequência da
xiv) No local da intervenção cirúrgica existiam conduta errada ou indevida de qualquer um dos
os equipamentos e fármacos necessários à médicos, nem sequer do próprio choque anafilá-
administração de anestesias locais, onde se tico, não se provando nem a ilicitude, nem o nexo
incluem todos os equipamentos e fármacos causal. Pelo contrário, os réus lograram provar que
necessários à reanimação. actuaram diligentemente, incluindo nas manobras
xv) Não ficou provado que só trinta minutos de ressuscitação que efectuaram.
depois de a paciente ter bracardizado é que Assim, o STJ concedeu o recurso de revista, in-
os réus chamaram o INEM. terposto pelos dois réus, revogando a decisão im-
xvi) A intervenção e a ministração das doses pugnada da Relação e repristinando a decisão da 1.ª
que foram administradas à paciente po- instância, havendo dois votos de vencido.
diam ter lugar no local em condições de 4. Votos de vencido
segurança. O primeiro voto de vencido, do Juiz Conse-
Mesa 5 e 6 RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ...
lheiro João Bernardo, afirma que a repartição do çou por se frisar que o recurso a este instituto não
ónus da prova tem de ser tal que cabia aos réus pode servir para ressarcir consequências que antes
demonstrar diligência na administração da anestesia de serem perdidas não teriam relevância jurídica
e na utilização das técnicas de reanimação. São os — a chance já tinha de ser juridicamente tutelável.
médicos, enquanto especialistas, que estão melhor O instituto tem sido mais aplicado quanto à afe-
posicionados para proceder a tal prova. No caso, não rição da responsabilidade de advogados, talvez por
é possível cindir a culpa do comportamento devi- se tratarem de casos em que os magistrados mais
do, abrangendo a presunção de culpa a ideia de que facilmente identificam a chance em causa. No âm-
não se teve o comportamento devido e de que daí bito médico é mais difícil proceder a tal avaliação.
derivou a morte. Ora, considera o Conselheiro que Em alternativa à perda de chance, é habitual
os réus não lograram ilidir a presunção de culpa. invocarem-se outros mecanismos que actuam di-
O segundo voto de vencido, do Juiz Conselheiro rectamente ao nível probatório, convocando o fun-
Oliveira Vasconcelos, considera que a insatisfação decionamento das presunções judiciais (artigo 351.º
um interesse final ou mediato, arrastando a insatisfa-
do CCiv), do princípio da apreciação livre da prova
ção do interesse imediato ou intermédio, pode ser- (artigo 607.º, n.º 5, do CPC) e do regime do n.º 3
vir de indício ou demonstração do inadimplemento do artigo 566.º e do mecanismo inversor do ónus
da obrigação de não destruição das possibilidades de da prova previsto no n.º 2 do artigo 344.º do CCiv.
êxito terapêutico. Nestas circunstâncias, caberá ao Ora, foi a estas figuras, que configuram mecanis-
médico provar que actuou com a diligência exigível, mos de simplificação da actividade probatória, mais 81
sendo que a finalidade pretendida apenas não se lo- precisamente à da prova prima facie ou de primeira
grou por razões que não podia prever nem contro- aparência, que o Juiz Conselheiro João Bernardo
lar, sob pena de ser responsabilizado pelo dano de recorreu na sua declaração de voto. Na prova da
destruição das possibilidades/ chances. No caso, o primeira aparência o julgador, para se considerar
resultado imediato que se pretendia, a lipoaspiração,convencido da comprovação de certos factos, acei-
estava ao alcance dos réus, tendo em conta as reais ta factos menos “bem” provados. Entende-se que o
possibilidades que ela apresentava. Com a morte, resultado foi tão anómalo que os factos falam por si.
um resultado mediato, perdeu-se a chance do apro- Já se recorrermos à perda de chance, podemos ade-
veitamento da oportunidade que a paciente tinha de quar o montante indemnizatório, o que para alguns
ser operada com êxito. Ora, para o Juiz Conselhei- é uma vantagem e para outros uma desvantagem.
ro, a actuação dos réus aquando da administração da Ora, foi precisamente a perda de chance que
anestesia esteve na origem do facto que originou a foi convocada pelo Juiz Conselheiro Oliveira Vas-
bradicardização e estes não lograram ilidir a presun-concelos no seu voto de vencido. Este Conselheiro
ção de culpa que sobre eles impendia. tem muitas dúvidas sobre o comportamento dos
médicos, nomeadamente aquando da tentativa de
D. Problemas jurídicos discutidos na ses- reanimação da paciente, sendo que se se provassem
são, soluções e sugestões apresentadas factos que permitissem demonstrar que os médicos
O caso, suscitando outras questões, foi avaliado não actuaram como era devido, surgiria a questão
na perspectiva da teoria da perda de chance. Come- de saber se esses comportamentos podiam juridi-
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... Mesa 5 e 6
camente ser causa da morte da doente. Ora, peran- No entender da Professora Doutora Rute Pe-
te a dificuldade de afirmação da condicionalidade, dro, a perda de chance, por vezes indevidamente
e podendo afirmar-se a adequação, por terem di- invocada, é uma espécie de dano, actuando ao nível
minuído as chances de evitar a morte, poderia res- do nexo causal e pressupondo, em primeiro lugar,
sarcir-se o dano da perda de chance de sobreviver a afirmação da ilicitude e da culpa de uma conduta
ao evento ocorrido na sequência da administração que faz perder as chances. Apenas após esta con-
da anestesia e sedação. clusão é que se analisará o nexo causal, o qual se
Contudo, há que sublinhar que o ponto essencial é afere não em relação ao dano (dito final) da perda
que, antes de partirmos para este raciocínio, se tenha da vida, mas ao dano de perda de possibilidade de
já provado um acto ilícito e culposo. Ora, no caso em sobrevivência. A figura da perda de chance, assim
apreço, contrariamente ao caso anteriormente relata- entendida, não transmuta a responsabilidade do
do, a questão da demonstração da ilicitude, culposa ou médico numa responsabilidade objectiva que se
não, foi a mais controvertida, tendo a Relação decidi- efectiva perante a concretização de qualquer risco
do em sentido distinto da 1.ª instância e do Supremo. que a actividade médica comporte.
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