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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ENTRE
MARGENS
Cartas para educadores
José Pacheco

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JOSÉ PACHECO

FICHA TÉCNICA

E
Produzido por Plataforma Educação

Crônicas escritas por

José Pacheco para a revista Educação de 2008 a 2021

Edição: Laura Rachid

Diagramação e capa: Simône Midori Maki

M
Revisão: Maria Stella Valli

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ENTRE
MARGENS
Cartas para educadores

José Pacheco

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JOSÉ PACHECO

Apresentação
dos editores

Durante 25 anos, completados em setembro, a revista


Educação preocupou-se em fazer um jornalismo baseado
em reportagens úteis ao educador, ao cidadão. Mas tam-
bém buscou levar aos leitores opiniões de educadores, na
forma de colunas. Por aqui desfilaram nomes como Mario
Sérgio Cortella, Rubem Alves, Sérgio Rizzo e, há mais de
10 anos, o português que se apaixonou pelo Brasil e ficou.
Em suas crônicas mensais, o pedagogo José Pacheco faz da
inovação o seu principal eixo. Mas também é quem bate
duro em modinhas que a toda hora surgem.

José Pacheco tornou-se conhecido a partir da fundação


da Escola da Ponte, na cidade do Porto, em Portugal. Ba-
seada em três valores: liberdade, responsabilidade e soli-
dariedade foi uma das primeiras experiências ao pensar
uma escola diferente dos padrões seguidos pela educação
ao longo de mais de 200 anos.

José Francisco de Almeida Pacheco iniciou seus es-


tudos superiores em engenharia elétrica, mas de tanto

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questionar os padrões seguidos pelas escolas, resolveu


se licenciar em ciências da educação, com especialização
em leitura e escrita. É mestre em educação das crianças
pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade do Porto.

Pacheco mora no Brasil há mais de 20 anos e pratica-


mente desde 2007 e praticamente desde a sua chegada, in-
dicado pelo amigo Rubem Alves, nos brinda com as mor-
dazes críticas àquilo que não deveria começar ou àquilo
que precisa acabar.

Esta edição digital das crônicas de José Pacheco foi idea­


lizada para comemorar os 25 anos da revista Educação e
deve servir de inspiração para os educadores e educadoras
bem como para o público em geral.

Agradecemos a José Pacheco pelo tempo que está


conosco e pela concordância em que fizéssemos esta
edição para brindar aqueles que puderam assistir ao
Grande Encontro da Educação, durante o qual foi ho-
menageado pela equipe da revista.

Os editores

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JOSÉ PACHECO

Prefácio

Tempos luminosos

Foi o meu amigo Rubem Alves quem me deu a conhecer a Revista


Educação. Acompanhei-no numa colaboração mensal e a mantive,
após o seu falecimento. Foi no fraterno convívio, na sua casa brasi-
leira e na minha casa portuguesa, que saboreamos artigos, crônicas,
notícias, à mistura com cachaça de Minas e vinho tinto do Alentejo.
O Rubem me conduziu à descoberta de Anísio Teixeira, que defendia
a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instru-
mento de mudança social. O Rubem me levou ao encontro da Nise da
Silveira, do Florestan Fernandes, da Maria Nilde Mascellani, do Lauro
de Oliveira Lima e de um íntimo Paulo Freire, sobre cuja integração na
ortodoxa universidade o Rubem escreveu um...“não-parecer”.
Durante a ditadura, muitos mestres educadores se exilaram. No
julho de há sete anos, a morte do Rubem significaria um novo exílio?
Este português abrasileirado assistira à segunda morte de Anísio, a
morte da memória. Encontrara Freire sequestrado nos arquivos de
teses das universidades, quando a sua obra deveria inspirar o labor
dos educadores e das escolas. Estranhava não encontrar os livros do
mestre Lauro nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Que Brasil
era esse, que ignorava a obra dos seus maiores educadores? Que país
era esse, que os mantinha no exílio?
Esses mestres regressariam do exílio e chegariam ao chão das es-
colas, durante a década de 20. Muito pelo engenho e arte do Rubem,
que me trouxe para o Brasil, nas páginas de um livrinho (A escola com
que sempre sonhei).
Na sua primeira visita à Escola da Ponte, Rubem Alves deteve-se a
observar uma menina, que consultava um dicionário. Perguntou-lhe
por que o fazia. A menina respondeu:
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“Estou a fazer uma lista de palavras ‘difíceis’ deste texto e a escrevê-las


de uma maneira mais simples”.
O Rubem insistiu:
“Foi um professor que te mandou fazer essa tarefa?”
“Não” – disse a menina. “Eu sei o sentido destas palavras. Mas os
meus colegas pequeninos ainda não sabem consultar o dicionário. E eu
decidi ajudá-los. Assim, eles compreendem o texto.”
Tal como a solidariedade em ato, que o Rubem testemunhou,
as crônicas publicadas na Revista Educação não foram mais do que
exercícios de escrita solidária. Nelas eu mostrava aos educadores que
no Sul morava a nova educação do mundo.
Diziam-me ser uma utopia aquilo que eu escrevia na última pá-
gina da Revista Educação. Mas, uma utopia é uma possibilidade que
pode efetivar-se no momento em que são removidas as circunstân-
cias provisórias que obstam à sua realização. Tal como o Rubem utó-
pico, também eu desejava “uma escola em que o saber fosse nascendo
das perguntas que o corpo fazia”. Ansiava por uma escola em que o
ponto de referência não fosse o programa a ser cumprido, mas o in-
teiro corpo da criança que vivia, se admirava, se encantava, pergunta-
va, provava com a boca, errava, se machucava, brincava – uma escola
que fosse iluminada pelo brilho dos inícios.
“Kairós”, palavra grega, significa “o momento oportuno”, tem o mes-
mo sentido que “Aevum”, que significa “Eternidade”. Quando o amigo
Rubem distinguia otimismo de esperança, dizia-nos que o otimismo era
da natureza do tempo, enquanto a esperança era da natureza da eter-
nidade. Esperançosamente, após a partida do meu amigo, continuei a
perseguir a utopia que me dizia ser possível que aquilo a que chamamos
“escola” pudesse sair de um longo, muito longo inverno.
Nos idos de 20, o longo inverno da educação deu lugar a tem-
pos luminosos.

José Pacheco
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JOSÉ PACHECO

Ano zero
É fácil conceber e começar projectos.
Difícil é mantê-los sem que se degradem

Separado da Ponte pelas águas de um grande mar, longe, desimplicado


do quotidiano da Ponte, sou espectador atento da crise que, espero, seja de
transição para algo bem melhor do que aquilo que fizemos ao longo de mais
de trinta anos. Entretanto, vou ao fundo do baú, em busca de antiguidades.
Encontrei registos de estágios. Numa carta dirigida aos professores da Ponte,
uma estagiária de sociologia escreveu:
“Nunca consegui entender algo que ainda agora, quando penso, me intriga.
Nas reuniões de que participei, os professores diziam, cara a cara, tudo o que
pensavam dos seus pares, de modo enérgico, por vezes mesmo rude. E, quando me
parecia que a reunião iria terminar numa zanga e confusão total, os professores
davam a reunião por finda e iam tomar chá, comer bolachas e contar anedotas”.
Essa jovem socióloga talvez não tivesse compreen­dido algo fundamen-
tal naquela escola. Partilhar um bolinho e dois dedos de conversa com os
mesmos parceiros que, há minutos atrás, nos tinham criticado é sinal de
frontalidade, autenticidade.
Ainda que se reconheça que nem tudo foi transparência, ainda que (em
algumas situações) tivéssemos afivelado a máscara, fomos capazes da trans-
cendência de que cada um foi capaz. Para o melhor e para o pior, estávamos
juntos. Na Ponte, ninguém estava sozinho. E talvez a maior ruptura com o
modelo tradicional concretizado na Ponte tivesse sido o acabar com a solidão
do professor.
A Ponte é uma, entre muitas escolas, que, durante o último século, ou-
saram defrontar o pensamento único e toda a espécie de fundamentalismos

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pedagógicos. Foi (e continuará sendo) uma luta incessante contra culturas


de solidão, contra a burocracia dos ministérios, a mediocridade dos políticos
e de professores sem escrúpulos. Sabemos que, se o maior aliado do profes-
sor é outro professor, o maior inimigo do professor que ousa ser diferente
é, também, outro professor. Porque assim é, a Ponte foi alvo de calúnias e
agressões vindas de professores de escolas (geograficamente) próximas. E,
porque a reelaboração da cultura pessoal e profissional é um processo lento,
também foi necessário defrontar a erosão interna – os “invasores” causaram
danos, por vezes, irreversíveis.
A crise por que passa a Ponte é de natureza diferente da crise geral da es-
cola. Na Ponte, são procurados caminhos para os descaminhos da educação.
Busca-se concretizar a escola pública, aquela que – quer de iniciativa estatal,
quer de iniciativa particular – a todos os alunos confere garantias de acesso
e a todos dá condições de sucesso.
Quando perfaz trinta e dois anos de existência, o projecto da Escola da
Ponte está no princípio. Aliás, todos os projectos estão sempre no seu início,
sempre no seu “ano zero”, no tempo de recomeçar.
É fácil conceber e começar projectos. Difícil é mantê-los sem que se de-
gradem. Porque um projecto humano é um acto colectivo. É feito de pessoas.
É feito por pessoas em contínua aprendizagem. E é da humana natureza
complicar o que é simples… Subitamente, sem que se perceba por quê, os
professores ligam uns “complicadores” (uns dispositivos que deverão estar
alojados num qualquer recanto do cérebro…) e tudo se complica. Tal como
no Mito de Sísifo, a continuidade de um projecto dependerá da capacidade
de cada um e de todos os participantes serem capazes de recomeçar. Numa
efectiva cooperação, na recíproca aceitação das diferenças – omnia in unum
– e sem deixar de interrogar as evidências...

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JOSÉ PACHECO

Este é o melhor dia que


vamos ter hoje
Diálogos com professores Brasil afora

A Berta é a encarnação do pessimismo. E, naquele dia, o seu semblante


carregado não dava lugar a quaisquer dúvidas. Estava possuída por uma me-
lancolia a condizer com a manhã chuvosa, ventosa e fria, muito fria.
Acerquei-me com o cuidado que a situação requeria:
Bom dia, Berta!
Bom dia?! O que é que o dia de hoje tem de bom? – retorquiu.
Mas o seu desprazer cedeu lugar a um sorriso, quando repliquei:
Berta, este é o melhor dia que vais ter hoje.
Deambulo pelo Brasil das escolas habitadas por professores, que recebem
salários indignos e lidam com escassos recursos. Escuto as queixas de quem
adopta a sentença do Sartre, que nos diz serem os outros o nosso inferno:
Cada dia passado nesta escola é um inferno. São mesmo os outros que nos
fazem da vida um inferno. Só porque não cruzamos os braços, só por tentarmos
fazer o nosso melhor, a maioria dos nossos colegas critica-nos. Na nossa escola,
somos só três a remar contra a maré...
Ficai sabendo que sois a maioria – contestei. Os restantes estão mortos.
Ainda que não o saibam…
Cortella fala-nos da resiliência necessária, da capacidade de atravessar as
perturbações cotidianas sem resvalar para o desespero. Sabemos ser alto o
preço da transformação. Assumir ser diferente acarreta incompreensão, des-
conforto cognitivo e afectivo. Mas, se nos faltar o vento, façamo-nos remadores,
como alguém, também, já disse.
Você é o professor Pacheco, não é?... Eu ia responder à maneira do Borges:

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Tem dias…. Mas reparei na face ansiosa da professora e não arrisquei a chalaça.
Disse ser o próprio. De imediato, veio a lamúria:
Estou no momento um tanto desanimada. Em minha escola fizemos um
projeto muito bonito e apresentamos à secretaria de educação, porém ele não
foi aprovado, com as mesmas desculpas de sempre: espaço físico, necessidade
de contratar pessoas etc. Até mesmo dentro da própria escola parece que
se criaram dois grupos, um querendo mudanças, querendo fazer diferente,
outro expressando sempre estar com medo! E eu me pergunto: medo de quê?
Como diria o Mia Couto, os caminhos servem para sermos parentes do futuro.
Quase sempre, os caminhos são pedregosos, cortados por abismos e tocaias.
Mas pelo sonho é que vamos, sonho que não é sinónimo de devaneio ou
inacção. Como nos disse o professor Gedeão, sempre que um homem sonha, o
mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. Se é pelas
crianças e com elas que realizamos utopias e logramos transcendermo-nos,
saibamos aceitar o reverso, os sucedâneos da humana miséria. Àqueles que
são parte do lado saudável da educação do Brasil, eu confidencio que existe
uma espécie de fraternidade de que fazem parte, ainda que não saibam (e já
são muitos!). Porém...
Professor José, foi você quem disse que onde não existir uma pessoa não
será possível colocar um profissional. Me corrija se estiver enganada. Uma
pessoa inserida em um contexto profissional, em que o comprometimento
em formar a inteireza do ser não seja considerado, em que a solidão de uma
classe seja sua companheira diária, como pode não se desfazer enquanto
pessoa? Hoje, por exemplo, pressinto que o meu dia será bem cinzento para
a minha pessoa...
Este é o melhor dia que vamos ter hoje – respondi.
Aprendamos com Foucault a tornar visíveis as forças que impedem a
mudança, a desocultar a violência visível (e a não visível). Lamentar-se, ou
vitimizar-se, nada acrescenta ou resolve. Tenhamos numa mão as interro-
gações e na outra as possibilidades.

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Na bromélia
A aula continua a ser a vaca sagrada da pedagogia

Nos seus Ensaios (1580), Montaigne critica os vícios educacionais da sua


época: Esforçamo-nos para preencher a memória e deixamos a consciência e o
entendimento vazios. Assim como os pássaros vão à procura do grão e o trazem
no bico sem o experimento, para serem provados por seus filhotes, assim nossos
mestres vão pilhando a ciência dos livros, alojando-a na ponta da língua, tão
somente para vomitá-la e lançá-la ao vento. Mais de 400 anos decorridos,
outro autor escreve: cada vez que um professor se dirige a uma sala de aula,
reitera a pergunta acerca de como fazer para que as crianças e jovens não se
dispersem, não atrapalhem os colegas e, mais ainda, prestem atenção à aula, se
interessem pelas atividades propostas. Cumpre-se o Mito de Sísifo, em cada
episódio do drama escolar. A aula continua a gerar desperdício. Alunos
escutando MP3 na sala de aula – As aulas são chatas. Não há como não ouvir
música. Passo pelos corredores das escolas. Salas fechadas, alunos alinhados
em filas, olhando a nuca do colega da frente, copiando conteúdo do quadro.
É o mundo do giz versus exílio de celular, onde o absurdo acontece: uma
professora enviou um bilhete à diretora, dizendo “tenho um aluno a dormir
na minha sala, peço providências”.
Aquilo que mantém viva a minha esperança é o trabalho de muitos pro-
fessores, que, anonimamente, vão construindo novas práticas, suportando
o desdém de especialistas de coisa nenhuma e críticas vindas de doutorados
em inutilidades. Perdoai a redundância – subitamente, faltou-me a paciência
– mas, até nas melhores publicações, há quem impute o insucesso dos alunos
à influência de novas pedagogias. Haja paciência! Gostaria que me dissessem
onde se praticam as “novas pedagogias”, eleitas como bode expiatório dos

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males do sistema. Ou que novas pedagogias esses especialistas terão praticado


em sua sala de aula. Provavelmente, nenhuma.
Já tudo foi escrito e reescrito – desde a denúncia da doença ao seu trata-
mento. Insiste-se em soluções precárias, que não saem do círculo vicioso das
referências paradigmáticas vigentes. Teóricos, políticos, gestores, especialistas
entretêm-se em discussões estéreis: Qual a melhor idade para começar o
fundamental? Qual a melhor idade para ser alfabetizado?...
Assisto à mumificação de questões bizantinas, em debates sem fim. Ao
longo de mais de três décadas, identifiquei e corrigi erros crassos que cometi
na minha prática. Erros em que ainda se insiste: redução de alunos por tur-
ma, eliminação do multisseriado, recuo da avaliação continuada, aumento
de número de horas letivas, classes de reforço... Insiste-se em pôr remendos
num modelo obsoleto de organização das escolas, quando se deveria fazer a
sua reconfiguração. A aula continua a ser a vaca sagrada da pedagogia, algo
considerado indispensável nas práticas escolares. Nunca terá passado pelas
eminentes cabeças dos pedagogos oficiais a ideia de que não existe um só
modo de fazer escola?
A natureza é pródiga em metáforas. Existe um inseto que cumpre todo o
seu ciclo vital sem jamais sair da bromélia, que é a sua casa e o seu túmulo.
Mas, como diria o Pessoa, há um tempo em que é preciso abandonar as roupas
usadas, que já têm a forma do nosso corpo, esquecer os caminhos que nos levam
sempre aos mesmos lugares; é o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

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“Não é meu...”
Sobre a arte de desincumbir-se

Primeira situação: o moço havia chegado à sua nova escola nesse dia, ex-
pulso de outra e bem recomendado: “é uma criança mimada e desobediente”.
Quando pendurou o casaco, derrubou dois e não fez menção de os apanhar.
Fui ao seu encontro. Olhei para os casacos caídos. E o moço falou: “não
fui eu!”
Fitei-o, calma e insistentemente. O moço voltou à fala: “não são meus!”
Voltei o meu olhar para os casacos. O moço voltou atrás, apanhou-os e
pendurou-os nos cabides de onde os tinha arrancado.
No fim da tarde, uma senhora entrou na escola, dirigiu-se ao vestiário,
pegou no casaco do moço, atirando um outro casaco ao chão. Não se abaixou
para o apanhar.
Segunda situação: portas fechadas, o avião acabava o abastecimento de
combustível. A tripulação avisava ser proibido o uso de celulares. Os celula-
res tocavam e muitos passageiros faziam ouvidos de mercador, ligando para
familiares e amigos.
O avião chegou ao final da pista, preparava-se para decolar. A aeromoça
insistia: “minha senhora, faça o favor de apertar o cinto da sua filha”.
“Ela não deixa colocar o cinto. Não consigo convencê-la.”
Quando a mamã insiste – “Vá lá, meu anjinho, deixa mamãe pôr o cin-
to!” – apanha uma sonora bofetada do seu anjinho. Encolhe-se. Sorri para a
aeromoça: “não vê que é uma criança...” E, durante toda a viagem, sapatos
sujos em cima do assento, a criança premiu o botão de chamada, arrancou e
destruiu tudo a que pode deitar a mão. Impunemente.
O avião aproximava-se da manga de desembarque. Três vezes a aeromoça

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apelou: “por favor, permaneçam sentados até a paragem completa da aerona-


ve”. Repetiu o apelo em língua inglesa. Os passageiros levantados não voltaram
a sentar-se. Presumo que fossem surdos, ou que não fossem ingleses...
Terceira situação: um jovenzinho de aspecto boçal descalçou-se, inun-
dando o ônibus de um cheiro nauseabundo. Pousou um pé no espaldar do
assento à frente. A passageira da frente sentiu o contacto do pé (e do odor),
encolheu-se e voltou o rosto para a janela.
A moral da história... Provavelmente, quase todos os protagonistas destes
episódios exemplares terão andado na escola. Certamente, os jovenzinhos tive-
ram pais, parentes e amigos. Educação não tiveram. Quem os ajudou a crescer?
A Hannah Arendt dizia que as pessoas que não quisessem ter responsa-
bilidade pelo mundo não deveriam ter filhos e que “os pais não exercem a
sua autoridade e deixam os seus filhos nas mãos de chefetes que os lançam
no conformismo e na delinquência”.
A educação deveria começar na “domus” e continuar no seio da escola e
da cidade, porque os filhos não nascem com manual para uso dos pais e urge
assegurar o preceito de Napoleão: a educação de uma criança começa 20
anos antes de ela nascer. Porém, os infantes são guetizados em instituições
de rituais sem sentido e entregues à TV, às consolas de jogos, à internet…
Será preciso proteger as crianças da demissão das famílias? Ter-se-á de
inibir o poder paternal?
A escola pode ser um lugar de reparação dos males da deseducação, quan-
do instituir estruturas de convivencialidade, um permanente e equilibrado
diálogo com as famílias. Quando for um lugar onde a autoestima ande a par
com a heteroestima, onde cada ser seja individualmente responsável pelos
atos de todos os outros. Onde autoridade rime com liberdade e a firmeza
possa rimar com delicadeza.

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A segunda morte de Anísio


O processo de apagamento da memória
de um educador brasileiro

O primeiro parágrafo do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova reza


assim: “Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importân-
cia e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem
disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional”. Decorria o ano de
1932. Entre os signatários do Manifesto estava Anísio Teixeira.
Em 2010, fui ao sertão baiano à procura do que restava desse insigne
brasileiro. Acolheram-me na casa que foi sua. Mostraram-me o leito em que
dormia, o berço que se presume ter sido o seu, livros e objetos vulgares, que
foram tocados pelas mãos de um gênio. À saída, detive-me junto a uma das
derradeiras fotos de Anísio – está na melhor companhia a que um educador
pode aspirar: crianças.
Em Caetité, encontrei uma secretaria de educação feita de boa gente e
com muita vontade de melhorar. Mas não resisti a perguntar: O que há de
Anísio nas escolas de Caetité? Qual o legado de Anísio, que se faça presente
nas práticas escolares? Respondeu-me um embaraçado silêncio.
Apercebo-me de que os professores brasileiros conhecem Anísio somente
de nome. Quase nada terão lido do muito que escreveu. Conhecem Freire de
meia dúzia de leituras maldigeridas. Ornamentam projetos de escola com
citações dos mestres, mas não os cultivam nas salas de aula. Na formação,
adquiriram vagos contributos de ilustres pedagogos estrangeiros, mas não co-
nhecem a obra de Eurípedes e nunca ouviram falar de Lauro ou de Agostinho.
Foram muitas as horas de viagem pelas estradas do interior da Bahia, ven-
do garrafas e latas arremessadas por energúmenos, que dirigiam automóveis,

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ultrapassando em curvas. No rádio do carro, quase tudo era lixo – na terra


de Caymmi, Caetano e Bethânia, nem uma só vez escutei as suas vozes. Os
anúncios mais escutados falavam de mensalidades reduzidas na compra de
eletrodomésticos e na matrícula em escolas. O nome mais escutado na rádio
foi o de um deputado – coronelismo versão século 21. A caminho de Caetité,
passei por Brumado. Ali, na margem do São Francisco, o povo sofre de... falta
de água. O que terá tudo isto a ver com a educação e com o Anísio Teixeira?...
Procurei na cidade uma lápide ou um busto que evocasse Anísio. Não
encontrei. A única estátua de Caetité é de alguém que ainda está vivo e cujos
méritos desconheço.
Mistério e silêncio encobriram as circunstâncias da morte de Anísio.
Consta que foi encontrado em posição fetal, entre as molas do fosso de um
elevador, sem vestígios de com elas ter colidido, numa presumível queda...
Talvez com marcas de agressão. Talvez... Mas estávamos em 1971 e questionar
esses tenebrosos tempos ainda é tabu. Ao que parece, sepultaram-no sem que
as conclusões de qualquer inquérito fossem dadas à luz. E a luz que Anísio
lançou sobre a educação do Brasil também se extinguiu com ele. Anísio
morreu duas vezes.
Cito o mestre: “O professor prelecionava, marcava a seguir a lição e tomava-a
no dia seguinte. Os livros eram feitos adrede, em lições. Os programas determi-
navam o período para se vencerem tais e tais lições. Exames que verificavam se
os livros ficaram aprendidos condicionavam as promoções (...). Ora essa escola
(...) é inadequada para a situação em que nos achamos.” – Anísio fazia a crítica
da Escola do passado, em... 1934.
O tempo aliou-se à incúria dos homens para apagá-lo da memória dos
educadores brasileiros. Memória não é feita de inócuas homenagens, mas no
fazer juz à sua vida de incansável lutador por uma educação que não aquela
que, decorridos quase quarenta anos de sua morte, infelizmente, ainda temos.

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JOSÉ PACHECO

Múmias pedagógicas
As amarras contemporâneas

A escola contemporânea – tal qual a conhecemos enquanto formação


experiencial de alunos e professores – é herdeira de necessidades sociais do
século 19, ainda que as suas raízes adentrem os séculos anteriores. O modelo
“tradicional” de escola adotou formas e procedimentos característicos das
instituições mais respeitadas na época em que foi implementado – aplicou
modos de organização dos espaços e métodos utilizados em casernas, mos-
teiros e prisões.
Nos primórdios da instrução pública, foram construídos edifícios dotados
de pátios internos, réplicas das praças de instrução militar. Os edifícios desti-
nados à instrução dos jovens eram rodeados de muros altos. As escolas foram
divididas em salas (celas dos mosteiros ou das prisões) de janelas estreitas
e abertas bem acima da estatura dos alunos. Estes eram instalados em filas,
separados em grupos etários uniformes e distribuídos por graus de ensino. Fo-
ram instituídos programas iguais para todos e criados dispositivos de controle
total das escolas de todos os níveis. O toque de uma sineta passou a marcar a
cadência de horários de aula iguais para todos, visando a uniformização e o
conformismo consentâneos com as necessidades de uma revolução industrial
emergente. Os livros delimitavam a apresentação do conteúdo, a avaliação era
(e continua sendo) confundida com a aplicação periódica de provas de padrão
único, visando a comparação e a competição entre alunos. Cargos e funções
diferenciadas reforçavam a hierarquização já subentendida na relação profes-
sor-aluno. A disciplinarização física e psíquica era inquestionável, as regras
eram mantidas sem questionamento e eram frequentes as premiações e os cas-
tigos. A arquitetura escolar e a prática docente dessas escolas refletiam (e re-

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

produziam) uma visão de homem e de mundo pronta e acabada. No século 19...


No século 21, acompanho o cotidiano de escolas que ousaram operar
rupturas com o modelo obsoleto antes descrito, que se preocupam com
a formação integral dos jovens, cujos professores se assumiram responsá-
veis por aquilo que fizeram de si, a partir do que deles a vida (e a escola)
havia feito. Que ousaram partir de uma formação experiencial madura
no ensino tradicional para novas e melhores práticas. Professores que,
reelaborando a sua cultura pessoal e profissional, lograram obter o su-
cesso pessoal e a rea­lização social dos seus alunos, antes inimaginável.
Uma dessas escolas requereu a sua municipalização. Porém, pretende
manter práticas coerentes com o seu projeto. Contatado, um responsável
pelo processo de municipalização respondeu, peremptório: Se a vossa escola
for municipalizada terá de ser como todas as outras. Nada de projetos!...
Há “projetos” que escapam à compreensão de burocratas pedagogicamen-
te míopes. Argumentando com a lei, abusam do poder para destruir o que
não entendem e que nenhuma lei impede. Seria oportuno perguntar-lhes
qual lei evocam.
Nas minhas intervenções públicas, sou interpelado por professores e
gestores, que afirmam não ser possível “autorizar certos projetos, porque a
LDB não permite”. Pergunto-lhes pelo artigo da lei que não permite “auto-
rizar”. Não sabem dizer qual seja, simplesmente, porque não existe qualquer
impedimento legal.
Até quando andará a educação do Brasil ao compasso de mentalidades
retrógradas? Até quando certas múmias pedagógicas vão impedir que a edu-
cação do Brasil melhore?

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JOSÉ PACHECO

De pequenino se
torce o destino
Sobre o possível fatalismo da reprodução escolar e social

Mais uma boca no mundo, mais um trafica chorando, lá vem mais um quase
nada, mais um para chorar de fome, mais um para levar tiro, mais um bandido
no morro, mais um perdido na vida...
Há dias, escutava a canção do Kleber e veio-me à memória alguém que
conheço como a mim mesmo. Nasceu num “cortiço”, onde havia quatro ba-
nheiros sujos e quebrados para partilhar com mais uma centena de pobres
como ele. Passou a infância numa oficina de fazer vassouras, num bairro
onde não entrava ambulância nem polícia. A sua família reinventava com
dignidade a parca existência. O pai, que acumulava três empregos malpagos,
foi preso, injustamente acusado de roubar. A família empenhou o que restava
dos poucos haveres, para provar a sua inocência. A mãe morreu jovem, do
cansaço de um trabalho insano. Os avós paternos cedo sucumbiram à fome
e a um surto de tuberculose. Os maternos tinham migrado da aldeia rural
para a cidade grande, na ilusão de uma vida melhor. Partiram cedo, minados
pelo álcool e por maus-tratos.
Estava destinado a ser líder de uma gangue do bairro. Era um dos raros que
sabia ler, era hábil a resolver encrencas e a escrever cartas de amor encomenda-
das. Tão sagaz quanto franzino, ganhara o respeito de ciganos e marginais, que
nele não usavam as facas e o defendiam de outras sortes. Com eles aprendeu
a gramática da sobrevivência: agredir os gringos que na rua aparecessem e, só
depois de eles sangrarem, perguntar-lhes ao que vinham...
Conviveu com todo tipo de violência. Cedo entendeu que fora roubado

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

todos os dias, desde o dia em que nascera. Que, enquanto os seus dormiam
no chão da rua, outros dormiam sonos tranquilos. Foi perdendo amigas para
a prostituição e amigos para o cárcere. A tuberculose, a sífilis, a fome e a bala
foram ceifando vidas ao seu redor. Nas juninas dos seus dezoito anos, o seu
melhor amigo conheceu uma moça abastada e lá se foi, casamento de rico,
sonho americano de ascensão social, que pouco durou. Sem amigos e sem
futuro, pela mão de dois providenciais vizinhos, trocou a solidão pela evasão.
Deles ficou devedor daquilo que nunca lhes pôde pagar: o resgate de uma vida.
Trabalhou para poder estudar e fez um curso – fez-se professor.
Ele sabe, melhor do que ninguém, que os criminosos não nascem crimi-
nosos. Conhece os mecanismos sociais que os produzem. Por experiência
pessoal, também sabe que, quando a sociedade e a escola produzem exclusão,
o jovem não fica solto e busca a inclusão em grupos marginais. Sensível aos
dramas vividos pelos seus alunos, entristecem-no certas atitudes de professo-
res coniventes com a má qualidade de uma escola vocacionada para manter
um sistema iníquo, no qual quem tem curso superior merece prisão especial...
Talvez porque não conheçam a sua história de vida, os seus colegas de
profissão se tivessem surpreendido com a sua colérica reação, quando escutou
este diálogo na sala dos professores:
Aí, eu disse-lhe: Quem é que tu pensas que és, seu merdinhas? Saio de
casa para aturar esta bosta! Eu não ganho para isso!
Fez muito bem, colega! Eles vêm de casa desse jeito. Já nasceram assim.
Esse pestinha vai ser o próximo chefe de gangue. Eles não nasceram, eles
foram cagados!
Será mesmo verdade que “quem nasce torto tarde ou nunca se endireita”?
Aquilo que a psicologia chama de “profecia autorrealizada” agirá decisiva-
mente na psique mais profunda dos professores? Sabemos que a escola não
muda a sociedade, mas que muda com a sociedade, por isso, ouso perguntar:
A reprodução escolar e social será um inevitável fatalismo? A escola nada
poderá fazer para a contrariar? Ou poderá fazer a sua parte?

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JOSÉ PACHECO

Bizantinices
Reflexões sobre o tempo e os sujeitos

Diz-nos a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico


(OCDE) que os professores gastam 13% do tempo letivo a manter a ordem na
sala de aula. O estudo da OCDE recomenda às autoridades educativas que
abandonem as políticas burocráticas. E abandonam?
Muitos anos atrás, quando da dita reforma curricular portuguesa, um dos
pontos fortes do debate era “o tempo de duração de uma aula”. E, no decurso
de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a carga horária
em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo
colega e pelo jegue, mas o colega voltou à carga. Perguntou-me se aprovava a
alteração do tempo de aula de 50 para 90 minutos. Respondi, perguntando:
50 minutos ou 90 minutos para qual aluno?
Ficou arrumada a questão, ainda que eu acrescentasse (e ele já não
escutasse) que, cerca de cem anos atrás, alguns pesquisadores chegaram à
conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de
atenção seguida de cerca de 50 minutos. Que não é por acaso que as aulas
duram, “em média”, esse tempo. Mas que “pesquisas” recentes dizem-nos
que as crianças do século 21 têm uma capacidade de concentração “média”
de cerca de seis minutos. Finalizei, afirmando que a duração da aula é uma
falsa questão. O problema consiste em ainda haver aula, seja de 50, seja de
90 minutos. Expliquei que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de
abstrações (aluno médio, carga horária etc.) para falar do jovem e do aluno
concreto. Mas o debate acabou ali, fez-se silêncio, porque aquilo que é óbvio
não carece de explicação.
Portugal e Brasil são países irmãos também nos absurdos. Em Portugal, a

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

lei estabelece a idade de matrícula; no Brasil estabelece a “idade de aprender


a ler” e a “idade de corte”. Li num jornal: “A experiência afirma que o melhor
período para aprender a ler é entre os 5 anos e oito meses e os 8 anos”. E num
outro jornal: “O governo federal pretende unificar em seis anos a idade em que
os estudantes brasileiros começam a ser alfabetizados. A partir de 2010, nenhum
aluno poderá ser matriculado se não tiver completado seis anos até fevereiro. Se
fizer o seu aniversário, nem que seja um dia após o limite estabelecido, terá de
continuar a educação infantil”.
O azar é daquele que nasce entre o “dia derradeiro” e o dia seguinte...
Alguns estados aceitam matrículas de crianças que perfaçam seis anos até 31
de dezembro. Outros estabeleceram o critério do sexto aniversário até 30 de
junho. Disposições legais fixaram o limite em 30 de março... Alguém saberá
dizer por quê? Nem eu!
Quanto tempo se perde em questões bizantinas?! Já não se crê que seja
possível deslindar o sexo dos anjos, mas insiste-se em determinar “a idade
para aprender a ler” ou “a idade para ingressar no primeiro ano”.
Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel já sabia ler. Quando
o visitei estava a fazer os trabalhos de casa: escrever uma frase sobre a ida ao
circo. O Daniel já sabia ler, mas estava atrapalhado. Perguntei por quê. Disse:
“Eu quero escrever que gostei de ver os palhaços”. Insisti, porque desejava
saber a razão pela qual o Daniel não queria escrever tal frase. Respondeu:
“Não escrevo palhaços porque a professora ainda não deu o lh aos meninos!”.
Culpa do Daniel, que aprende mais rapidamente do que o ritmo das
aulas da sua professora. Culpa do Daniel, porque não cumpre o calendário
estabelecido para aprender a ler...

23
JOSÉ PACHECO

Escutatória
A potência do silêncio

Há um tempo para cada coisa, até para reter a oratória. Retomo, agora, a
palavra, num reverente silêncio de escutatória. Por vezes, são tão densas as
palavras escutadas, que se aproximam da leveza dos silêncios. Venho falar-vos
de palavras assim.
O meu amigo Carlos (se todos os professores fossem feitos do seu molde!)
escreveu-me: Caro Zé, não conhecia ainda o sabor amargo da tristeza profis-
sional. Há quem diga que, mesmo nos momentos difíceis, há que saber tirar os
ensinamentos da vida. Eu não consigo. Só quero mudar de escola e poder projec-
tar-me de novo. Aquela sensação de poesia interior, que tantas vezes me avassalou,
está longe de mim. Sinto-me prosa insignificante, com alma de manual escolar.
Sei que percebes aonde eu quero chegar. Eu sabia aonde o professor Carlos
queria chegar. E, por saber, me quedei em silêncio, num fraterno e comovido
silêncio. Que poderia eu dizer, amigo Carlos, que não fosse deturpado por
aqueles a quem convém que o silêncio protetor da mediocridade te esmague?
Que poderia eu escrever, que não fosse açoitado por aqueles que te roubam
a “poesia interior”?
Alguém quis que eu escutasse uma criança, que me falou com o olhar:
Hoje, aconteceu uma coisa muito importante na minha vida. Quando acordei,
chamei a minha mamã e disse-lhe: “Tona pupa. Num qué!”(tradução: Toma a
chupeta. Não a quero!). A minha mamã perguntou: “Não queres a pupa, filhota?
Então vamos pô-la no lixo?”. Eu respondi: “Sim, à uixo!” (tradução: Sim, no lixo!).
Fui até à cozinha, no colo da minha mamã. E deitei a minha chupeta fora. O
pior aconteceu quando fui dormir. Não tinha percebido as consequências do meu
corajoso ato e chorei, até adormecer. Soube que os meus papás também sofreram

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

muito, do outro lado da porta. Conversaram comigo e eu acabei por perceber que
a chupeta estava muito porca, dentro do lixo, e que eu sou uma menina grande
e já não preciso dela para dormir. Estás contente por mim, vovô?
Só mais umas palavrinhas de uma professora: Os meus alunos leram-me uns
textos. A capacidade e a coragem que eles tiveram de se abrir diante de todos!...
Foi, simplesmente, fantástico. Fiquei muito feliz! E confesso – ainda que, dida-
ticamente, não seja correto – que chorei diante dos meus alunos, quando leram
um dos textos, que tinham preparado para mim. Uma aluna chegou a dizer-me
que, a partir daquele dia, era uma nova e outra mulher, mais forte, mais digna. O
marido dela olhou para mim e agradeceu-me... com o olhar. Eu não sabia, mas ela
tem um tumor maligno e faz quimioterapia. Perdeu todo o cabelo, sofreu muito,
mas está reencontrando o sentido de viver.
Silêncio, mais uma vez. Redescubramos a importância do silêncio. Nele
estão contidas as respostas para as perguntas essenciais. Por vezes, nos lugares
onde o diálogo acontece, o silêncio pode falar mais alto. Por vezes, durante
as minhas conversas com educadores, um estranho sentimento me assalta
e sinto-me esmagado pelo peso das palavras, ou pela inutilidade do seu uso
– só se vê bem com o coração, não é asim? Isso acontece quando algum dos
meus interlocutores fica com ar absorto, com o sonho a saltar-lhe das órbitas.
Enquanto uns me vêm dizer que farão obras maravilhosas, outros retêm-se a
um silêncio que me assegura ter esperança de não ter estado a falar em vão. O
silêncio é da mesma natureza do sonho. E, se Victor Hugo disse que se deverá
julgar um homem por aquilo que ele sonha mais do que por aquilo que ele
pensa, mais valerá considerá-lo por aquilo que cala do que por aquilo que diz.

25
JOSÉ PACHECO

Os pilares
A escola real não concretizou os direitos de aprender,
conhecer e fazer, entre outros ideais

“O que resta para a escola ensinar?”, perguntou a minha amiga Ely. E logo
me vieram à mente os quatro pilares do relatório da Unesco. Terá a escola
ensinado aquilo que Jacques Dellors, há muitos anos, recomendava? Os
jovens terão aprendido a conhecer, a fazer, a ser e a conviver? Vejamos.
Aprender a conhecer é algo arredio do universo escolar. Quanto muito, os
jovens são depositários de informação jamais transformada em conhecimen-
to, quase inutilidades, que apenas servem para debitar em provas e alcançar
um diploma. Talvez seja essa a razão por que somente 15% dos titulares de
diploma de direito conseguem aprovação no exame da Ordem dos Advogados.
E estamos conversados quanto ao aprender a fazer, a ser e a conviver:
atentemos na manutenção de um ensino livresco, ao desprezo pelo de-
senvolvimento pessoal e social, consideremos o bullying e os assassinatos
de professores…
No último reduto da transmissão de informação, os professores ar-
riscam-se a ser uma espécie em vias de extinção. A carreira dos professores
“conteudistas” está por um fio… A Ely contou-me que “professor Google” lhe
ensina quase tudo. Nos seus 60 anos, como qualquer professor que se preze,
a aposentada Ely continua a aprender. Achou um site em inglês com uma
animação interativa do efeito do sal nas moléculas de água. E pôde experi-
mentar como era a reação da água ao sal nas temperaturas que colocava no
site. Entendeu uma das complexas propriedades coligativas da química. E o
“professor Google” traduziu o texto, com perfeição, do inglês para o português.
Bernie Dodge, professor da universidade estadual da Califórnia, criou

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

uma proposta metodológica para usar a internet de maneira investigativa e


criativa: a webquest. E eu vi na TV um comercial, no qual uma jovem dizia
que tinha tudo aquilo que precisava para estudar. Em casa. Na internet. Sem
precisar cumprir horário de aula.
A escola que, infelizmente, ainda temos não logrou concretizar os quatro
pilares da Unesco. E nem suspeita de que há mais três: o aprender a desa-
prender, o aprender a desobedecer e o aprender a desaparecer. Aprender a
desaprender, porque, como diria o Manoel, aprender é desaprender, para
vencer o que nos encerra e aliena, porque desaprender vinte e quatro horas
por dia ensina princípios, e porque precisamos emancipar-nos da tralha
cognitiva que nos foi imposta.
Aprender a desobedecer, porque a maior parte dos normativos que regem o
funcionamento das escolas são desvarios teóricos. Como diriam os mestres da
não violência, leis injustas não merecem respeito e não deverão ser acatadas.
Os projetos humanos são produtos de coletivos. Já lá vai o tempo dos
seres providenciais e insubstituíveis. Deveremos evitar gerar dependência
em outrem, para que não nos tornemos (supostamente) “imprescindíveis”. É
preciso aprender a desaparecer, a fomentar autonomia nos grupos humanos
de em que participarmos. Uma autonomia que não pressupõe independência,
mas interdependência. Como diria um amigo: interdependência, ou morte!

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JOSÉ PACHECO

A mosca de Aristóteles
A escola não se adaptou aos novos tempos.
Hoje, é matriz oculta do insucesso escolar e social

Entre o aparecimento da lousa de ardósia e o da lousa digital distam sé-


culos. Nesse longo hiato, a escola pouco ou nada mudou. Apenas terá muda-
do o tipo de material utilizado na fabricação da lousa.
Num tempo em que importa mais que seja o aluno a esforçar-se para
descobrir realidades, do que uma “realidade” ser comunicada por um pro-
fessor, quantos desses jovens se comunicarão com os professores através
da internet?
Num tempo em que a prática da escrita da letra cursiva vai sendo aban-
donada, muitos docentes obrigam os seus alunos a um gasto significati-
vo do tempo escolar no exercitar da letra cursiva, para que – segundo afir-
mam – os seus alunos tenham “uma caligrafia perfeita”. Talvez se inspirem
em Steve Jobs, que, quando passou pela universidade, apenas quis apren-
der… caligrafia.
Jardins de infância precocemente escolarizam a infância, instituin-
do rotinas, nas quais todas as crianças devem começar a dormir ao mes-
mo tempo, ainda que não tenham sono (e, frequentemente, embaladas por
“créus”, “sertanojos” e trilhas sonoras de novelas…).
À revelia das descobertas da cronobiologia, as escolas mantêm rituais
de horário fixo, como a hora de entrar e de sair, ou os 50 minutos de uma
aula, que quase ninguém sabe explicar por que são 50… E, entre dois toques
de sirene, se anuncia que todos poderão ir ao recreio, ao mesmo tempo. Ve-
nho suspeitando de que existe alguma analogia entre o banho de sol dos
presidiários e o recreio dos alunos… Ao mesmo tempo, todos deverão estar

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

olhando a nuca do colega da frente. Ao mesmo tempo, todos devem meren-


dar, todos devem fazer xixi no mesmo período de tempo.
Alguém já se perguntou se terá sido sempre assim? Desde o século 18,
não existe sequer uma teoria que sustente o modelo de escola que, no nos-
so tempo, ainda é hegemônico. A escola herdeira do Iluminismo, a escola
da afirmação da Modernidade já não existe – ela vegeta, agoniza. E arras-
ta na sua agonia milhões de jovens condenados à ignorância e à exclusão.
A par da família, a escola não se adaptou aos novos tempos. Hoje, é matriz
oculta do insucesso escolar e social.
Permita que cite dois mestres. João Guimarães Rosa, que disse que
mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. E
Claude Lévi-Strauss, aquele que não gostou da baía da Guanabara, mas
que acertou, quando escreveu que sábio não é aquele que fornece as ver-
dadeiras respostas, é aquele que faz as verdadeiras perguntas.
O sistema mais antigo de classificação de seres vivos que se conhece de-
ve-se ao filósofo grego Aristóteles, que classificou e descreveu todos os orga-
nismos vivos então conhecidos. Conta-se que Aristóteles deixou registrado
ter a mosca doméstica oito patas. Ao longo de muitos séculos, os copistas re-
produziram a aristotélica asserção, até que alguém se atreveu a desafiar a au-
toridade científica de Aristóteles e verificou que a mosca tem seis patas.
Quando chegará o tempo em que os protagonistas do absurdo modelo
de escola que ainda temos se decidirão a contar as patas de uma mosca?

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JOSÉ PACHECO

A medida do termômetro
Nas escolas brasileiras só se avalia a
temperatura, sem se dar o diagnóstico

A pergunta era maliciosa: na sua escola não fazem avaliação?


Respondi que fazemos avaliação. O que não fazemos é prova, porque
pouco ou nada prova. Provas são instrumentos precários, quase inúteis e
até mesmo prejudiciais. Existe uma crença ingênua nas virtudes de tais
instrumentos. Mas os sistemas de ensino que os privilegiam não melho-
ram, porque medições não são sinônimos de mais qualidade no ensino.
Muitos alunos chegam ao ensino médio incapazes de fazer uma interpreta-
ção de texto. E apenas 15% dos titulares de diploma de direito conseguem
aprovação no exame da Ordem dos Advogados...
Um sistema burocratizado impõe estruturas curriculares rígidas e mo-
dos de organização do trabalho escolar obsoletos. As escolas mantêm-se
coniventes com o estímulo da competitividade e a exigir decorebas de “pi-
roclásticas”, e “crivos de Eratóstenes”... Para um ensino excludente, uma
avaliação seletiva! Confunde-se avaliação com classificação, e a repetên-
cia escolar baseada em nota continua a produzir sucedâneos, como as clas-
ses de reforço, a excluir e a deixar marcas para o resto da vida. A “avaliação”
que ainda se faz nas salas de aula deste país é geradora de uma longa lista
de absurdos, da qual vos deixo alguns excertos. Prescindo de comentário,
porque os absurdos falam por si.
Sabemos de encobertos e ilegais vestibulinhos, reprodutores de da-
rwinismo social. Vemos alunos a ingerir Lexotan antes da prova, temos
notícias de perda de bolsas, porque há alunos que não conseguem obter
boas notas. Escutamos o político que, solenemente, afirma que, se não se
aplicar cada vez mais provas, poderemos estar a formar analfabetos, co-

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

mo se a aplicação de mais provas fosse solução para 14 milhões de anal-


fabetos funcionais que a Educação do Brasil produziu. Um secretário de
Educação obrigou as escolas a colocar na porta da unidade a nota que ob-
tiveram no Índice da Educação Básica (Ideb) expondo os alunos a cons-
trangimento e vexame vetados pelo Estatuto da Criança e do Adolescen-
te (ECA) e pela Constituição Federal. Uma secretaria estadual propõe a
elaboração de um banco de itens, para que os professores apliquem pro-
vas a cada dois meses. Identificada a necessidade de “recuperação”, suge-
re que essa “recuperação” seja feita no contraturno. Ou “que se paralisem
as aulas uma semana para recuperação”. A mesma secretaria criou (mais)
uma prova padronizada, para aplicar ao meio do ano letivo, “com o intui-
to de melhorar o desempenho dos alunos ao meio do ano”, isto é: esta-
beleceu-se a ideia do ciclo, sem romper com o modelo seriado. Outra se-
cretária de Educação confunde “aprovação automática” com progressão
continua­d a e adota “períodos de recuperação trimestral”, insistindo na
obsoleta lógica das classes de “reforço”, que são subprodutos de uma prá-
tica de ensino obsoleta. Mais provas não é sinónimo de mais qualidade
no ensino. Fazer prova é como medir a temperatura. O termômetro que
registra a febre não dá o diagnóstico, nem prescreve a terapêutica, apenas
sinaliza o estado febril. A solução não está no termômetro… A preocupa-
ção com o termômetro não faz baixar a temperatura.

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JOSÉ PACHECO

Notícias de Cecília
Suas crônicas de educação falam da
mesma indignação vista nas ruas

Um poeta português nos diz que, quando um povo acorda, é sempre cedo.
E, neste junho do nosso descontentamento, a juventude está nas ruas, pa-
ra exigir educação no lugar da corrupção. Este Brasil, que renasce de tempos
sombrios, lança o apelo que colocaste em versos: Vem, retira as algemas dos
meus braços / Porque a vida só é possível reinventada.
Entre a entrega de flores a policiais e o vandalismo de alguns bonsais hu-
manos, um milhão foi para a rua com milhares de micromotivos. E eram
muitos os cartazes que reclamavam melhor educação. Mas… qual educação?
Nas bibliotecas das faculdades de pedagogia, nunca encontrei as tuas co-
rajosas “crônicas da educação”. Decorridos 80 anos, elas se mostram atuais,
porque nos falam de indignação. Paulo Freire e outros educadores do teu
tempo nos disseram que deveremos exercer o dom da revolta perante as
injustiças do cotidiano. Como fez o Freinet, nos campos de batalha pela
liberdade da Europa, consciente de que os professores foram tão longamen-
te condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiça-
dos, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência,
os perigos.
Quem não percebe que a Escola reprodutora de iniquidades perdeu o
sentido? Mas ela sobrevive, qual cadáver adiado suportado por enfeites pa-
liativos. Por que mais programas, mais pactos, mais royalties…? Talvez al-
guns ainda não saibam que ser professor é, permanentemente, viver na
idade dos porquês, ousar perguntar: Por que razão há crianças que não
aprendem? E, depois, ter a coragem de mudar.

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

Voltei à leitura das tuas crônicas, à mistura com leituras do Darcy, que
fazia eco das tuas palavras, ao denunciar a “canalha”, gente ruim, sem pu-
dor, sem escrúpulos. Foi para evitar a perpetuação de uma educação “ca-
nalha”, que os jovens ocuparam as ruas. Foi essa a razão de decidires ser
poeta, que é o mesmo que ser educadora. Pelos teus dezasseis anos, te fi-
zeste professora. Mas, quando te candidataste à cátedra de literatura da
Escola Normal, foste preterida, porque a tua tese sobre liberdade indivi-
dual não agradou… Foste alvo de perseguições, porque expressaste a tua
rebeldia nas páginas dos jornais do Rio da década de 30, quando pugna-
vas por uma efetiva renovação educacional. Crê, querida Cecília, que de-
fendeste as mesmas causas de jovens do século 21, jovens que se aperce-
beram de que são ensinados por professores do século 20, segundo um
modelo epistemológico do século 19.
Ousaste romper com tabus de uma sociedade tão moralmente doente
quanto a de hoje. Defendeste nas páginas dos jornais a mesma prática da
democracia, que os jovens brasileiros de todas as idades hoje reivindicam
nas redes sociais. Num junho de há mais de oitenta anos, denunciavas um
regime, que invocava a Liberdade como sua padroeira, enquanto submetia o
povo a velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso… Pugnavas por uma
reforma de finalidades, de democratização da escola (…) todas essas coisas que
a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação... Porém, depois, veio
um decretozinho provinciano, para agradar alguns…Bem mereceste os versos
que o Manuel Bandeira te dedicou: Cecília, és tão forte e tão frágil / Como a
onda ao termo da luta / Mas a onda é água que afoga / Tu és enxuta.

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JOSÉ PACHECO

Todo cambia
A velha escola parece estar a parir
uma nova educação

O Brasil foi incapaz de levar às últimas consequências as nobres inten-


ções de dois manifestos, consentindo a perenização de uma tragédia edu-
cacional hoje traduzida em 30 milhões de analfabetos e numa profunda
crise moral. Mas estamos “de novo convocados”!
Partilhei o lançamento do terceiro manifesto. Foi, como alguém disse,
um “ato de amor”. E confesso que, em muitos momentos da Conferência, a
emoção me traiu e deixou mudo. Ainda sob o efeito da Conane, evoco ver-
sos cantados pela Mercedes: Cambia lo superficial / Cambia también lo pro-
fundo / Cambia el modo de pensar / Cambia todo en este mundo. No decur-
so da Conferência, a diversidade dos projetos apresentados deu a entender
que a velha escola parecia estar a parir uma nova educação, embora acre-
dite que as dores do parto venham a ser intensas, enquanto a tecnocracia
e a burocracia continuarem a invadir onde deveria prevalecer a pedagogia.
A velha educação prevalece, travestida de “novo”, no discurso de eco-
nomistas, jornalistas e outras criaturas desprovidas de conhecimento pe-
dagógico, crentes de que as escolas podem ser geridas como são geridas as
padarias. Vêmo-los em eventos, onde vendem caro as besteiras que profe-
rem, e na mídia, que os classifica de “especialistas”. A ignorância pontifica
numa revista brasileira de grande tiragem onde, ao serviço de ocultos inte-
resses, insultam a memória de Freire, criticam uma progressão continuada
que nunca existiu, e apelam ao regresso a um passado de onde a educação
brasileira nunca saiu. Talvez o tempo desses “especialistas” esteja a chegar
ao fim, porque já o Fernando nos dizia que o sonho é ver as formas invisíveis

34
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

/ da distância imprecisa, e, com sensíveis / movimentos da esperança e da von-


tade, / buscar na linha fria do horizonte… Em boa hora o MEC tomou a deci-
são de criar um grupo de trabalho, para acompanhar e avaliar projetos em
curso, que provam a possibilidade do verdadeiramente novo. Todo cambia...
Até o MEC pode mudar.
Podereis chamar-me utópico, que não me ofendo. Se o poder público
decide conferir estatuto de visibilidade a escolas, que já vinham afirmando
múltiplas possibilidades de mudança, este é um momento histórico. Essas
escolas serão acompanhadas e estudadas, será testada a qualidade e utili-
dade dos seus projetos.
São projetos como muitos outros, que provam a vitalidade da compo-
nente saudável de um sistema doente. Que mostram caminhos e apresen-
tam reivindicações: a dignidade de um estatuto de autonomia; a prática de
uma educação integral; uma universidade que se distancie de práticas de
formação incompatíveis com necessidades educacionais do século 21; o re-
conhecimento público dos profissionais da educação; o fim do desperdí-
cio decorrente de más políticas públicas; a substituição da reprovação e da
aprovação automática pela prática de uma avaliação capaz de permitir que
o aprendizado caminhe junto com o desenvolvimento do pensar, etc.
Lo que cambió ayer tendrá que cambiar mañana. O Brasil dispõe de pro-
dução científica e de práticas que provam a possibilidade de uma escola que
a todos acolha e a todos dê condições de realização pessoal e social, base da
construção de uma sociedade solidária, justa e sustentável. E, num país on-
de o tempo da educação talvez tenha chegado, temos tudo aquilo que é pre-
ciso: gente, projetos, esperança.

35
JOSÉ PACHECO

Um mundo, uma escola


Como é possível usar os vídeos de Salman
Khan para alimentar o que ele mesmo critica

Há mais de 50 anos, Fernando de Azevedo avisava: o que é bom para


os Estados Unidos pode não ser bom para nós... Porém, novas modas, vin-
das do Norte, injetam plataformas digitais e laptops em escolas com prá-
ticas medievais.
Se, no Brasil, o nortear (aquilo que vem do Norte) sempre foi regra nas
iniciativas de política educativa, agora, acontece um desnorte total. E as
orientações (aquilo que vem do Oriente) que prevalecem nos projetos ditos
inovadores são de natureza neocolonial. Creio ser necessário desorientar,
talvez mesmo suliar. É isso mesmo o que quero dizer: as palavras produzem
e reproduzem cultura.
Ouso discordar parcialmente da crítica feita pelo Fernando, na grata
surpresa de uma exceção. Um americano de nome Khan trouxe-nos um li-
vro, em que nos fala de uma educação reinventada e faz as mesmas denún-
cias do Azevedo, do Lauro e outros ilustres e saudosos educadores brasilei-
ros. Khan diz-nos que o velho sistema está fracassando e precisa ser repensado
e que a educação formal tem de mudar.
São palavras de Salman Khan, excertos da sua obra Um mundo, uma es-
cola, como aquelas que se seguem: A lição tradicional age contra os objeti-
vos da educação pública (…) A aula acaba por se revelar um meio ineficiente de
ensinar e aprender (…) A minha ideia de educação nunca foi a de que ela esta-
ria completa com uma criança assistindo a vídeos no computador e resolvendo
exercícios. Muito pelo contrário. Sempre sonhei em ser mais do que um recur-
so on-line. Sentíamos que estávamos em um ponto da história em que a educa-

36
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ção podia ser repensada. Mas se alguns indicavam os vídeos a seus alunos como
uma ferramenta suplementar, outros os usavam para repensar sua metodologia.
E o que acontece nas escolas brasileiras? Os vídeos do Khan são usados co-
mo ele propõe, para acabar com as aulas, para repensar a metodologia? Não
creio. Muito menos para reinventar a escola, como o Khan deseja.
Uma revista publicou fotos de crianças de uma favela de São Paulo, en-
fileiradas em sala de aula, exibindo, sorridentes, os seus laptops individu-
ais. Por que se insiste no uso de plataformas digitais de ensino e em dotar
cada aluno com um laptop? Para gerar monstrinhos adoradores de tela, na
mera substituição do livro didático pelo computador?
Voltemos à leitura do livro do Khan... Ele convida-nos a acabar com a
escola de sala de aula, turma, série, prova. Porém, um sistema educativo
nas mãos de burocratas exerce seus podres poderes, impondo às escolas
procedimentos medievais, num tempo da introdução acrítica de novas tec-
nologias. E, talvez afetados pelos vícios de que padecem os seus “superio-
res”, os professores que adotam os vídeos do Khan continuam na sua sala
de aula, usando vídeos do Khan como complemento de aula, perenizando
práticas que Khan critica. Aqueles que reclamam de o ter como referência
apenas otimizaram o modelo prussiano de escola. Foi pior a emenda do que
o soneto!
No Brasil de hoje, a tentação da disseminação em escala e de mos-
trar efeitos de curto prazo provocam a mesma cegueira branca naqueles
que detêm os recursos e o poder de decidir. Ao invés de se apoiar projetos
efetivamente alternativos, em escolas que já abrem caminhos para novas
construções sociais, há quem fomente a prática de um ensino gerador de
individualismo, através da injeção de tablets no cotidiano da escola, numa
mesmice em versão digital. Lamentável!

37
JOSÉ PACHECO

O César foi doar sangue


E se cuidássemos de debater a gestão
democrática com seriedade?

César é nome de imperador. Mas o César, protagonista do episódio a se-


guir narrado, é um professor português. E o episódio teve lugar na terra do Pe-
dro IV, embora pudesse ter por cenário a Pindorama, onde o mesmo Pedro fi-
cou conhecido como o primeiro dos monarcas.
Fui a Portugal, para um longo périplo, feito de encontros com novos e
velhos amigos, que retomam sonhos suspensos há mais de vinte anos. Ma-
ravilhosos educadores esses, que buscam caminhos de felicidade para as
novas gerações. Parece que o Portugal da educação (finalmente!) desper-
tou. É anima­dor verificar que muitos pais e professores se aliam em alter-
nativas credíveis ao modelo obsoleto de escola, que o ministério mantém.
Porém, numa das cidades por onde passei, a sala onde se realizaria
a palestra estava quase deserta. A organização do evento desculpou-se
com estes dizeres: Os diretores foram impedidos de autorizar a parti-
cipação dos professores. E muitos se tinham inscrito! Apenas um con-
seguiu vir.
Quis saber como esse sobrevivente professor tinha conseguido contornar a
situação. Foi o próprio quem me esclareceu: Os meus colegas não quiseram ter
falta injustificada, nem se dispuseram a ir doar sangue...
Doar sangue? – questionei.
Sim! – completou o César. Quando vamos doar sangue, temos direito a
um dia de dispensa de atividade letiva.
Junto a esse desconcertante episódio um e-mail recebido de outro
professor, este do Brasil: A questão da autonomia do professor já vem gri-

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

tando há algum tempo. A frase mais constante que tenho percebido, re-
velando um sistema com resquícios escravocratas nas nossas escolas, é:
“Cuidado, vem aí o diretor!”, falando aos professores por qualquer motivo
pífio, como o fato de alunos estarem fora da sala de aula. Hoje, felizmen-
te, essa frase entra por um ouvido e sai pelo outro, porém já tive muito
medo. Já sei melhor quem eu sou e mereço respeito, mesmo errando bas-
tante. Mas me chama a atenção o modo como as pessoas fazem isso, para
cultivar um medo que, provavelmente, as assola há muitos anos.
É realmente entristecedor e tenho buscado esperança e coragem para
continuar. Recentemente, tive uma reunião de pais, onde pais e professores
mais pareciam zumbis hipnotizados por uma fala monótona e ditatorial da
direção escolar. Eu fui o único professor a falar, mas me acanhei, não cabia
falar todo o turbilhão que se passava em mim naquele momento. No dia se-
guinte não conseguia me concentrar nas aulas e a semana se arrastou (...).
Regressando à sangrenta autonomia do César... Quis levar a sua turma
numa “visita de estudo”. Dessa vez, não precisou doar sangue, mas teve de
pedir autorização aos “superiores hierárquicos”.
Na boca de políticos e técnicos, a expressão “gestão democrática” cons-
titui-se numa caricatura de autonomia. Qual o espaço de exercício de au-
tonomia e da dignidade profissional, numa cultura eivada de controlo e de-
pendência? Pesada herança feita de escravagismo e coronelismo, sarro de
imperiais relações de poder! Miséria de profissão, cujo profissional tem de-
ver de obediência hierárquica!
Até quando o César precisará doar sangue? E se cuidássemos de deba-
ter a gestão democrática com seriedade?

39
JOSÉ PACHECO

Cadê os professores?
A luta por uma escola autônoma deve
ser maior que os burocratas

Acabo de receber boas notícias de uma escola que, há muitos anos, ten-
ta formalizar o seu termo de autonomia: A comunidade se reuniu na escola,
para responder a pergunta: como a comunidade poderá direcionar os rumos do
projeto da escola? Respostas maravilhosas foram argumentadas. E, no final da
reunião, ficou decidido que, nas próximas terças, estaremos reunidos novamen-
te. Cada participante tentará levar mais um integrante da comunidade para en-
volvê-los cada vez mais (...) com o intuito de resgatar a cultura do bairro. As de-
cisões tomadas refletem a vontade da comunidade (...).
A escola vem tentando assumir o direito à autonomia, garantido pelo
artigo 15º da LDBEN. Ela já poderia ter-se transformado na primeira esco-
la autônoma no Brasil, se os burocratas instalados na sua secretaria de educa-
ção não lhe negassem esse direito. Semeiam ardis, colocam obstáculos. Sutil-
mente, até contornam disposições legais, impedindo que a autonomia dessa
escola se concretize.
Quando a autonomia da Escola da Ponte foi questionada pelo mi-
nistério de Educação de Portugal, as universidades portuguesas, os sin-
dicatos de professores, os movimentos sociais reagiram. E o ministério
recuou perante um Manifesto de que transcrevo excertos: Há razões de
sobra para que qualquer governo interessado na melhoria do serviço público
de educação garanta a continuidade do projeto desta escola. As soluções pa-
ra os problemas da educação passam pela capacidade de tornar mais pública
a escola pública, promovendo um serviço educativo justo e de sucesso para to-
dos, num exercício permanente de cidadania. Manifestar solidariedade para

40
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

com os alunos, pais e professores da Escola da Ponte, defender o direito à con-


tinuidade do seu projeto, exigir o apoio do governo ao desenvolvimento desta
e de outras iniciativas inovadoras no seio do ensino público, não pode ser vis-
to como uma atitude de mera resistência. O que está em causa é a defesa da
escola pública e a busca de modelos de governação da educação. A Escola da
Ponte é um exemplo, entre outros, da emergência de novos espaços de produ-
ção política, enquanto lugares de legitimação, escolha, invenção de normas,
construção de projetos e tomada de decisão. (Excertos do texto de apoio à Ses-
são Pública realizada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade do Porto, em 25 de setembro de 2003.)
As universidades e os sindicatos portugueses reagiram. Por isso, estra-
nho o silêncio dos sindicatos e das universidades brasileiras. Preocupa-me
a apatia dos professores, que dispõem de um Manifesto e não agem em de-
fesa de princípios. Políticos para os quais a pedagogia é ciência oculta e se-
cretários nomeados para pagamento de dívida eleitoralista impõem argu-
mentos burocráticos em assuntos em que deveriam prevalecer critérios de
natureza pedagógica.
Por que não exigir e mostrar que uma boa educação é necessária e
possível? Essa educação já acontece em muitas escolas brasileiras, como a
referida no início desta crônica, uma escola que requer autonomia, que é
condição e indicador de boa qualidade da educação, mas que sofre o des-
gaste causado por um poder público autista. Para que serve um Manifes-
to? Cadê os professores brasileiros? Perderam o dom da indignação?

41
JOSÉ PACHECO

Educar para...
ou na cidadania?
Para atingir tal desiderato, as escolas têm de
ser lócus de aprendizagem de cidadania

Na década de 1970, participei de um encontro de professores no dia


seguinte a um ato eleitoral em Portugal. Não conseguia evitar a discus-
são dos resultados. Perguntei: caros colegas, não quero que me digais qual
foi o vosso voto, pois é secreto, mas que citeis propostas dos candidatos que
tenham influenciado a vossa escolha. O silêncio foi a resposta. E voltamos
ao trabalho...
Nas semanas anteriores a esse episódio, no decurso do ato eleitoral para
a Assembleia da Escola, os jovens da Ponte analisaram as propostas (as “pro-
messas”) das diversas “chapas” e as debateram. Para terem direito a votar, te-
riam de provar conhecer as “promessas”. Um jovem de oito anos, candidato
à presidência da Assembleia, ofereceu balinhas aos colegas. Quando um dos
jovens acabou de depositar o seu voto na urna, eu perguntei: Votaste no cole-
ga que te ofereceu as balinhas? O jovem respondeu: Professor Zé, eu aceitei as ba-
linhas que ele me ofereceu, mas não votei nele. Porque não concordo com as “pro-
messas” que ele fez. E, também, porque ele andou a oferecer balinhas...
Na semana que precedeu o ato eleitoral de outubro, gastei muito tempo
a tentar conciliar amigos, que se gladiavam por via de diferentes opções de
voto, crentes de que o exercício da democracia se esgota no ato de votar. Vi-
sitei escolas onde alunos com capacidade eleitoral discutiam no nível mais
baixo do senso comum, influenciados por notícias manipuladas. No final
da tarde, expus a minha preocupação aos professores. Enjeitaram respon-

42
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

sabilidade, referindo a existência de “uma hora semanal de educação para a


cidadania, nas atividades de contraturno”. Talvez esses professores não sai-
bam que não se educa para a cidadania, mas que se educa na cidadania, no
exercício de uma liberdade responsável. E que, para atingir tal desiderato,
as escolas têm de ser lócus de aprendizagem de cidadania.
Diz-se que o Brasil padece de resquícios de coronelismo, de escravagis-
mo, do sarro de ditaduras. Talvez, mas algo mais determina atitudes como
aquelas que presenciamos no decurso da campanha eleitoral e que motiva-
ram o “desabafo” de um prefeito, de quem tenho recebido lições de cidadania:
O que o Brasil precisa é de uma revolução ética. O jeitinho brasileiro tem de aca-
bar, somado a esse vício de degradar o concorrente em vez de espalhar virtudes ou
ideais em que acreditam.
Após as emoções eleitoreiras, a crise moral permanece e acentuam-se
contrastes: cidades sem água versus a Cantareira se esvaindo; pobres pou-
pando o precioso líquido para usufruir um bônus na fatura versus condo-
mínios de luxo enchendo piscinas; o aluno que vai para a escola sem uni-
forme, porque não há água para lavar roupa, versus uma escola onde se lava
a calçada com jatos de água. Antes e depois de eleições, o velho modelo de
escola vai produzindo ignorância, reproduzindo injustiça, aprofundando
o déficit democrático porque não existe democracia plena se não houver
aprendizagem da democracia nas escolas.
No fazer da minha parte, acompanho educadores conscientes da neces-
sidade de uma educação na cidadania, insisto na busca de projetos de erra-
dicação da velha escola. Tenho encontrado muitos. Cada qual a seu modo,
alimentam a minha esperança num Brasil melhor, de poder viver num pa-
ís mais justo, mais fraterno, numa verdadeira democracia.

43
JOSÉ PACHECO

Entre Piaget e Pinochet


O poder público precisa apoiar escolas
inovadoras e romper com culturas ditatoriais

Por toda parte, surgem sinais de uma nova educação, de uma nova hu-
manidade. Mas, para que uma educação freiriana seja possível, será preciso
introduzir algumas suliações num sistema até hoje colonizado pelo Norte.
A prioridade será cuidar das pessoas, no reúso de fraternas tradições. E es-
se cuidar das pessoas começará no cuidar da pessoa do educador.
Não há semana em que eu não receba dolorosos depoimentos de exce-
lentes educadores. A Virgínia desabafou: O ano passado foi muito ruim. Es-
tresse e tristeza por tudo o que estava vivendo nas escolas e com as crianças.
O secretário só entende de tecnologia vazia, repressão à mão grande, podas de
criatividades e por aí vai.
A medida 19 do PNE fala de “gestão democrática” e a LDB consagra o di-
reito das escolas à dignidade de uma autonomia freiriana e piagetianamente
fundamentada. Porém, em muitos municípios, cargos técnicos como o de
diretor são desempenhados por indicados de prefeitos e vereadores. Num
desses municípios, uma secretária pinochetiana incumbiu um diretor de
escola de destruir um dos melhores projetos que encontrei no Brasil. Qua-
se conseguiu os seus intentos, não fora a reação piagetiana da comunidade.
E continua a tentar destruir algo que não entende. Impunemente, à reve-
lia da lei e da ciência, outro secretário de educação ordena: Tem de ser feito
igual em todas as escolas. Vocês não podem fazer diferente. Já disse que não gos-
to de trabalho de grupo. Não autorizo! Lamentáveis manifestações de auto-
ritarismo pinochetiano ocorrem quando professores ousam mudar. Muitos
episódios como esses tenho colecionado, mas por estes me quedo, porque não

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

pretendo generalizar e porque sei que há secretários competentes.


É necessário revogar regulamen­tações coronelizantes, que impedem o
exercício pleno da autono­mia pessoal e profissional, por exemplo, no que
concerne à tomada de decisões nos termos do disposto no artigo 23º da
LDB. Enquanto se continuar a impedir que autonomias tomem forma no
exercício da profissão de professor, enquanto as decisões freirianas e pia-
getianas das escolas se mantiverem subordinadas a critérios pinochetianos
de natureza burocrá­tica, a mátria educadora não passará de uma miragem.
Como poderemos aspirar a viver numa democracia, se a maioria das expe-
riências de vida, na escola, acontecem em estruturas autocráticas, nas quais
obedecer é muito mais aceito do que argumentar e construir consensos?
Para que o Brasil tenha a educação que merece, urge que o poder públi-
co apoie escolas inovadoras e crie condições para romper com ditatoriais
culturas. O Brasil tem tudo o que precisa, tem excelentes profissionais de-
senvolvendo excelentes projetos. Poderemos adiar uma necessária e possí-
vel mudança, quando já muitos professores ousam mudar? Poderemos dei-
xar esses professores inseguros, expostos às arbitrariedades de “superiores
hierárquicos”? Quanto tempo esses professores resistirão, constrangidos
entre um agir coerente com propostas de educadores iluminados e mani-
festações de prepotência caraterísticas de ridículos tiranos? Quando será
dada expressão concreta ao disposto no artigo 15º da LDB?
Já tivemos um plano decenal fracassado e o novo PNE poderá
ter o mesmo inglório destino. Quando deixaremos de hesitar entre
Piaget e Pinochet?

45
JOSÉ PACHECO

Fofocando
Algo vai mal no reino da educação quando a
ignorância usurpa o espaço do debate sério

Nos primeiros tempos de professor universitário, fui surpreendido por


um fenômeno que considerava erradicado. Os meus alunos do curso de pe-
dagogia entregavam-me “relatórios de pesquisa” enfeitados com citações
do tipo: segundo fulano, conforme sicrano, beltrano disse... Devolvia-lhes os
textos, dizendo que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram pesquisas,
eram cópias. E que eu não era fofoqueiro, não me interessava saber aqui-
lo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes. Chegada a era
da internet, deparei com o copy paste digital, que torna rara a produção
de conhecimento e não dota os professores de um saber-fazer fecundan-
te de práxis coerentes, que os habilite a argumentar num espaço de debate
transformado em terra de ninguém – o debate sobre educação.
Algo vai mal no reino da educação quando a ignorância usurpa o es-
paço do debate sério, competente. Desgraçadamente, a educação é uma
área das ciências humanas na qual todo mundo se considera especia-
lista e os pedagogos raramente são escutados. Verifico que políticos fa-
lastrões não sofrem contestação durante suas intervenções nas tribu-
nas, onde se poderia supor o debate em torno do fenômeno educativo,
mas onde eles apenas derramam besteiras, sibilinamente proferidas. E
é lamentável que os pedagogos não tenham voz. Ou que, também, pro-
duzam fofocas...
Nunca vi um paciente pôr em causa o diagnóstico do médico, ou al-
guém questionar a decisão de um engenheiro. São profissionais cujas prá-
ticas são socialmente reconhecidas e aceitas, por estarem legitimadas pela

46
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

lei e fundamentadas na ciência. Será pertinente perguntar: se um médico


ousa discorrer sobre educação, estarei apto a fazer operações cirúrgicas?
Se a comunicação social coloca uma chancela de credibilidade no diletan-
tismo de um economista, estarei autorizado a escrever artigos sobre eco-
nomia? Recentemente, um economista, para quem a pedagogia é ciência
oculta, atreveu-se a escrever sobre educação, a macular a memória de Pau-
lo Freire, num artigo publicado por um jornal de grande circulação. Por-
que nenhum ato é isento de ideologia e à ideologia neoliberal convém que
o statu quo se perenize, o articulista abusou da liberdade de expressão para
ser a voz do dono e enlamear a memória de um mestre.
Considerado patrono da educação no Brasil desde 2012, Freire dá nome
a institutos acadêmicos em países como a Finlândia, a Inglaterra e os Es-
tados Unidos. No Brasil, tem sido objeto de detratação, porque ninguém é
profeta na sua terra. Aqueles que insultam a sua memória não lhe perdoam
ter-se atrevido a evidenciar a natureza política (e amorosa) do ato educati-
vo. Saberá o articulista que Freire foi convidado a ensinar em Harvard, que
a universidade norte-americana se rendeu ao saber de Freire? Freire é um
herói nos States. Em algo o infeliz economista tem razão: cada país tem os
heróis que merece...
Enquanto alguns ignorantes pedem que Freire saia das escolas bra-
sileiras, o amigo José reage e demonstra que Freire nunca nelas entrou:
Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. (...) Ele entra (nas
universidades) como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de sa-
lão. E a Denise também reagiu, lamentando que um jornal tivesse alojado
em meia página as bobagens de um economista.
Meus amigos, não vale a pena perder tempo a contestar criaturas dessa
estirpe. Continuarão, impunemente, a derramar senso comum onde lhes
facultarem tribuna, não irão entender argumentos válidos. Porque não ar-
gumentam, apenas fofocam.

47
JOSÉ PACHECO

Exequibilidade
Os dilemas da Base Nacional Comum e os
riscos dela decorrentes tal como está

O professor Vasconcelos – que descanse em paz e que Deus lhe perdoe a in-
genuidade pedagógica – acreditou ter me ensinado o “sistema galaico-durien-
se”. Mas a minha criança apenas havia feito decoreba sem sentido: Peneda,
Suajo, Gerês, Larouco... e por aí fora, numa lenga-lenga como tantas outras
associadas a conteúdos da grade curricular da época, debitados em prova
e, depois... esquecidos.
Quando, já nos meus cinquenta anos, eu viajava por Trás-os-Mon-
tes, avistei uma bela montanha. Que montanha é aquela? – perguntei.
Responde­ram: É a Serra do Larouco. A palavra Larouco ressoou na minha
memória. Finalmente! Peneda, Suajo, Gerês... Larouco! Mas eu nada sabia do
Larouco, do povo que lá morava, nem da sua cultura, nem das suas neces-
sidades sociais, nem nada! Apenas “sabia” uma palavra: Larouco. Hoje, sei
que o Vasconcelos era um consumidor de currículo, aquele que constava do
“livro único”, da Base Nacional Comum imposta pela ditadura. E nós, po-
bres crianças, éramos vítimas de uma prática pedagógica já então obsoleta.
Conceber currículo é, também, ponderar sobre o seu desenvolvimento,
assegurar a pertinência de expectativas de aprendizagem. Porém, com pre-
ocupação, observo que os competentes autores da proposta de BNCC bra-
sileira parecem ser herdeiros da escola do professor Vasconcelos. Os textos
introdutórios (belos nacos de prosa) contrastam com o pressuposto da ma-
nutenção da dita escola “tradicional”, na qual múltiplos arcaísmos peda-
gógicos impedirão o cumprimento integral do currículo proposto. No do-
cumento são consagradas cartesianas segmentações (ensino fundamental,

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ensino médio, anos iniciais, anos finais) e evidentes outros velhos vícios de
um obsoleto modelo de escola (práticas pedagógicas suplementares, aulas...),
na qual os currículos anteriores não foram cumpridos.
Até mesmo um “especialista” australiano (um daqueles que ainda acre-
ditam nas virtudes da aula) nos diz que falta coerência entre o texto intro-
dutório da proposta curricular brasileira e o restante da redação do docu-
mento. Embora tenha encontrado no preâmbulo da BNCC expectativas de
aprendizagem contemporânea, não viu no corpo da proposta vestígios do
modo como uma mítica educação integral se concretizará. E afirmou: Nos
textos das áreas de conhecimento há muitos objetivos de aprendizagem que ape-
nas levam os alunos a repetir e decorar conteúdos, em vez de fazê-los agir ati-
vamente em relação aos conhecimentos para resolver problemas, desenvolver a
criatividade e refletir. E acrescentou: O texto preliminar da BNCC não vai le-
var à evolução que o Brasil espera ter em sua educação.
Já se pratica no Brasil – e, que eu saiba, não se pratica na Austrália... –
aquilo que o “especialista” australiano aconselha. Conheço muitos e bons
projetos, que os “especialistas” brasileiros desconhecem. A síndrome do vi-
ra-lata obriga-os a escutar “especialistas” estrangeiros, enquanto os impe-
de de enxergar o que têm cá dentro.
É evidente que um novo currículo exige novas práticas e que é tarefa
inútil selecionar disciplinas e objetivos, se não se considerar as condições
em que decorrem as experiências educativas. No rumo em que se insiste, a
proposta de BNCC revela-se como não exequível. O laborioso afã de conce-
bê-la pode ter sido tarefa vã.

49
JOSÉ PACHECO

A queda do império
Há duas décadas espera-se pela
regulamentação da autonomia pedagógica

Diz a sabedoria popular que à mulher de César não basta ser honesta,
tem de parecer honesta. Essa expressão é usada em política para dizer que
os governantes, além de serem honestos, precisam agir como tal. A fra-
se original surgiu após um escândalo na Roma do ano 60 a.C., envolvendo
o imperador e a sua mulher. Júlio César andava na guerra e Pompeia vivia
muito sozinha. Um admirador da moça aproveitou a ausência do marido,
entrou no palácio imperial, perdeu-se nos corredores, foi descoberto e pre-
so. Levado a tribunal, foi absolvido da acusação, pois César ignorou o que
se dizia sobre sua mulher, apesar de ter afirmado: Não basta que a mulher
de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita. Roma vivia um tem-
po de intriga e corrupção, por ser um império sem partido. Melhor dizen-
do, de partido único, uma sociedade servida por uma multidão de escravos
e dominada por uma casta de ociosos senadores.
Supostamente adúltera, a mulher do César não viveu o mesmo calvário
da Capitu. Mas, de algum modo, a degradação dos costumes terá contribuí­
do para acelerar a queda do império – à mulher de César, para ser honesta,
não bastaria parecê-lo, seria preciso sê-lo. Não seria suficiente expulsar do
palácio a mulher de César. Outro golpe palaciano também deveria (não só
psicanaliticamente...) “matar o pai”, dar um “fora” no César. À semelhança
do que fazem os traidores de todos os tempos, 60 membros do Senado o as-
sassinaram, pondo fim à República, dando início ao Império.
Talvez possamos estabelecer um paralelo histórico com uma América
Latina ciclicamente governada por ridículos tiranos... Todos os países ne-

50
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

la constituídos passaram da monarquia para um regime republicano. To-


dos, exceto um: o Brasil, que passou de monarquia a império. E pela mão
de um Benjamin positivista, a educação brasileira nasceu sob a égide da or-
dem e do progresso.
À espera de uma nova ordem e carentes de um progresso sustentável, as
escolas permanecem cativas de um obsoleto modelo educacional, depen-
dentes de caprichos de uma administração burocratizada e, não raras ve-
zes, corrupta. Há 20 anos, a LDB abriu caminho para o exercício da auto-
nomia. Entretanto, não foi publicado qualquer decreto que estabelecesse
um regime jurídico da direção, administração e gestão de escolas baseado
em critérios de natureza pedagógica. Parece não existir lugar para a peda-
gogia no império da burocracia.
O artigo 15 da LDB reza assim: os sistemas de ensino assegurarão às unida-
des escolares (...) progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e
de gestão financeira. O PNE estabeleceu o dia de São João de 2016 como pra-
zo limite para cumprimento da sua meta 19: criar condições de gestão demo-
crática. Isto é: a partir do dia 25, a gestão democrática – uma das condições
do exercício de autonomia – deveria ser prática comum em todas as escolas.
Mais uma vez, as secretarias não cumpriram a lei.
As poucas minutas de decreto de que tenho conhecimento são tentati-
vas de sutis e pouco democráticas regulações, no âmbito da gestão admi­
nistrativa. A gestão pedagógica, pedra angular da autonomia, é omitida,
ou apenas enfeita os preâmbulos dos decretos, deixando perceber que os
legisladores confundem a administração de uma escola com a administra-
ção de um hospital, agindo como se pudéssemos esperar o trem na para-
gem do ônibus...
Surpreende-me a apatia dos professores face a mais um logro. É preocu-
pante que não se apercebam das artimanhas (ou ignorância?) dos legisladores.
Temo que possamos perder mais uma oportunidade de fazer cair o império.

51
JOSÉ PACHECO

Silêncio
Onde estão aqueles de quem se deve exigir
resposta a medidas inúteis?

O geógrafo Milton Santos identificou dois fantasmas que alimentam


a aversão ao novo nas instituições de raízes franco-lusitanas: de um lado,
burocratização e institucionalismo; de outro lado, inércia e conservadoris-
mo. Há décadas, congresso após congresso, escutamos as mesmas ladai-
nhas: acadêmicos proclamando virtudes das didáticas das respectivas dis-
ciplinas; especialistas das novas tecnologias, anunciando a remissão das
aulas por via da introdução de plataformas digitais e de outras panaceias;
animadas e anestesiantes palestras motivacionais, ingénuas tentativas de
melhorar um velho modelo educacional que não tem conserto.
Entretanto, as medidas de política educativa continuam dependentes de
opiniões e crenças de economistas, engenheiros, jornalistas, advogados, po-
líticos, para os quais as ciências da educação são ciências ocultas. Onde es-
tarão aqueles de quem se deverá exigir a compreensão da inutilidade dessas
medidas? O seu obsceno silêncio permite que escolas ditas alternativas ado-
tem modismos pedagógicos, que sistemas de ensino operem mudanças cos-
méticas, que fundações e institutos financiem a mesmice, na ignorância da
necessidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem.
Na terra de ninguém da educação, deputados fazem aprovar emendas
milionárias, para construção de elefantes brancos, legitimados por arqui-
tetos adeptos da pedagogia predial. Oportunidades se perdem, a cada
quatro anos. E o direito à educação se esvai no sobe e desce do Pisa, do
Ideb e de outros rankings, porque se crê que a preocupação com o termô-
metro pode fazer baixar a temperatura...

52
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

Visando efeitos de curto prazo, os governantes optam por escutar o


conselho de burocratas incapazes de compreender que um modelo edu-
cacional concebido no século 19 encontra-se defasado em relação à com-
plexidade da sociedade contemporânea. Consciente do fato, um responsá-
vel ministerial disse ser ensurdecedor o silêncio das ciências da educação.
Dizem-nos o Edgar Morin e o Carlos Delgado que, longe de ser um esfor-
ço iluminista, a reforma educativa há de se fundir com a reforma do pensamen-
to, da política e do político. Pois que aconteça! Quando foi publicado um livri-
nho, que dá pelo título de Dicionário dos Absurdos da Educação, recebi críticas
virulentas, provindas de acomodados e incomodados. E, nessa época, ainda
não havia formulado algumas singelas perguntas dirigidas aos meus compa-
nheiros das ciências da educação. Ei-las:
A Constituição e a Lei de Bases consagram o direito à educação de to-
dos os cidadãos?
É sabido que sim.
O velho modelo de escola, que os ministérios fomentam e as escolas re-
plicam, logra assegurar a todos esse direito?
A resposta é um não.
Se o modo como as escolas ensinam não logra cumprir a lei, poderão as
escolas continuar a trabalhar desse modo? Se a educação é um direito de to-
dos, por que razão o poder público sonega esse direito? Mutatis mutandis: os
ministérios e as escolas terão o direito de continuar a agir desse modo?
Claro que não! Mas, continuam, sob o manto diáfano de um ensurde-
cedor silêncio das ciências da educação.
Cadê a ética, companheiros?

53
JOSÉ PACHECO

Mais ou menos
Colisões entre os especialistas de fora
da escola e os professores

A partilha de conhecimento entre professores decorria em bom rit-


mo, mas foi interrompida pela intempestiva chegada de uma “especialis-
ta em currículo”. A “especialista” disse ter sido encarregada de apresentar
uma proposta de protocolo de avaliação de projetos considerados inova-
dores. Sem delongas, ordenou a uma subordinada que desse início à ses-
são de power point e passou a conduzir os trabalhos, lendo slides, numa
sequência monótona.
A exposição da especialista estava repleta de equívocos. Ao meu lado,
um professor suspirava de enfado, pois já deparara com várias besteiras
com chancela de cientificidade, que ninguém ousara comentar. Não se
conteve, quando a dita “especialista em currículo” referiu como critério
de avaliação do projeto o “índice de reprovação”.
Respeitosa e pertinentemente, questionou:
A senhora admite que projetos inovadores naturalizem o insucesso? Que se de-
va reprovar? Na nossa escola, acabamos com segmentações. Por isso, não se reprova.
Sem disfarçar a irritação, a “especialista” interrompeu-o:
Senhor professor, eu fiz douto­ramento em currículo! Quem é o senhor para
me questionar? As outras escolas não são como a vossa e não podemos exigir
mais dos professores. Eles não sabem trabalhar de outra maneira. E o senhor
não pode impor as suas teo­r ias aos outros!
Não agradou ao professor que alguém tratasse outros professores com
condescendência. E respondeu que não se tratava de teorias, mas de práti-
cas transformadoras, desenvolvidas em escolas onde arcaísmos como a re-

54
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

provação deram lugar a uma avaliação formativa, contínua, sistemática.


Em vão... A “especialista” respondeu com um esgar de desdém na face.
Ignorou a interpelação e até mesmo a presença do professor. E a apresen-
tação prosseguiu até o momento em que a especialista prescreveu que fos-
se feita observação de aulas. Após escutar o enésimo absurdo, ironicamen-
te, o professor perguntou:
Aula? Em que século estamos, minha senhora?
Autoritária, a senhora respondeu:
Não queira parecer original! Terá de ser, mais ou menos, assim. E o senhor
professor terá de fazer, mais ou menos, como estou a dizer-lhe que faça! Ouviu?
E agradeço que não volte a interromper-me!
Observador atento, eu fui mais fundo na compreensão do drama da-
quela especialista cativa de um modelo de escola que apenas admite uma
prática pautada no “mais ou menos” e que considera os professores incapa-
zes de compreender e ainda menos de fazer diferente, de inovar.
Muitos anos decorridos sobre esse lamentável episódio, entre a sofisti-
cação do discurso e a pobreza das práticas, os gestores “mais ou menos”, os
formadores “mais ou menos”, os técnicos superiores e especialistas “mais ou
menos” vão parindo medidas de política educativa “mais ou menos”. E os mi-
nistérios, os institutos, as fundações e outras agências de financiamento vão
apoiando projetos “mais ou menos”, perpetuando a reprodução de seres hu-
manos “mais ou menos”, a quem recusam o direito à educação.

55
JOSÉ PACHECO

Darcy no reino dos áulicos


“Ajudantes de ordens” que vivem à sombra do
poder negam educação a milhões de brasileiros

Na obra O Brasil como problema, Darcy questionava: “Qual é a causa real


de nosso atraso e pobreza? Quem implantou esse sistema perverso e pervertido?”.
E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira
precisaria ultrapassar, para se desenvolver. Nesse livro, o maior dos obstá-
culos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico.
O áulico é um ajudante de ordens, aquele que está contente com o mundo
tal qual é, e faz o seu papel. E o raciocínio do Darcy permanece atual. Ainda
hoje, os áulicos prosperam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias
irrelevantes, planos inconsequentes, ou contribuindo para destruir qual-
quer esboço de inovação educacional.
Identificamos dois tipos de áulicos: os ingênuos e os esquizofrênicos. Os
primeiros controlam estruturas do poder público. Os outros infestam uni-
versidades e comissões de especialistas. Deixemos estes para próximo artigo
e reflitamos sobre diatribes dos ingênuos.
A comunicação social, pródiga em notícias de maus-tratos infligidos à Edu-
cação, diz-nos que áulicos verea­dores enquistados no poder público reveem o
Plano Municipal de Educação, aproveitando a oportunidade para o extirpar do
que não lhes convém manter. A Meta 19 foi quase ignorada. Agora, suprimem
a Meta 18, aquela que visa implementar a Educação em Direitos Humanos na
Educação Básica, viabilizar ações de combate ao preconceito e discriminação
no ambiente escolar. Em total impunidade, “ingênuos” vereadores não cum-
prem o Plano Nacional de Educação, contribuindo para negar o direito à edu-
cação a milhões de jovens brasileiros.

56
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

Nas escolas particulares, onde educação se converte em mercadoria, as


novas tecnologias assumem-se como diferencial de mercado. Na ânsia de
deter a queda da taxa de evasão e para melhorar a captação de alunos, ingê-
nuos gestores recorrem a áulicas consultorias, especializadas no uso da tec-
nologia para atrair pais e para captar alunos.
O drama se repete nas escolas (ditas) públicas. Em mais uma manifesta-
ção de ingenuidade pedagógica e para fomentar o envolvimento das famí-
lias na vida escolar dos filhos, uma secretaria de educação decidiu abrir con-
curso e acolher propostas de empresas especializadas em “mecanismos para
motivar o aluno e em ferramentas para melhorar a gestão escolar (...) com o
objetivo de aumentar a aprovação”. O regulamento do concurso estabelece
que apenas poderão concorrer organizações que já tenham prestado servi-
ços envolvendo um mínimo de 5.400 alunos. Mas, o que se poderá esperar
de tais organizações, certamente altamente especializadas em projetos con-
duzidos por áulicos? Exatamente o que os áulicos autores de anteriores pro-
jetos produziram: o desperdício de mais alguns milhões.
O secretário de Educação justifica a medida: A educação está anacrônica.
O jovem pressente isso e foge. Buscamos alternativas para esse fracasso. Mas o
zeloso secretário insiste em anacrônicas medidas de política educativa.
Como diria o Frederico, no reino dos áulicos, reinam a lisonja, a menti-
ra, a ostentação, o usar máscaras, o fato de brincar de comediante diante dos
outros e de si mesmo. Mas a crise ética instalada também é tempo de opor-
tunidades. E quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento de um
instinto de verdade honesto e puro. Oremos...

57
JOSÉ PACHECO

“Ubuntu”
O modelo educacional herdado da revolução
industrial impede o exercício da solidariedade

O mestre Pestalozzi afirmava que a solidariedade na solidariedade


se aprende, como vi acontecer numa escola, que acolhia alunos jogados
fora de outras escolas. Aqueles que vegetavam no fundão da sala de aula,
os que batiam em professor, os rotulados de “especiais”, nela achavam
guarida e os devidos cuidados. O TDH ainda não havia sido inventado,
nem a indústria da ritalina havia sido instalada, mas os enjeitados jovens
já vinham rotulados de alunos com “dificuldades de aprendizagem”, ou
até mesmo de “alunos marginais”. Por sorte, naquela escola, apenas ha-
via dificuldades de ensinagem, que os professores, movidos a afeto e in-
tuição pedagógica, tentavam resolver.
A tia do Abel confidenciou a um professor que a criança havia feito
tratamento para combater um câncer e que usava um boné, para dis-
farçar a queda do cabelo. Ao correr no recreio de outra escola, o boné
voou. E os seus colegas fizeram troça da sua calvície, motivo suficiente
para recusar voltar à escola.
O Abel foi acolhido, escolheu e foi escolhido pelos seus companheiros
de equipe de projeto. Durante uma brincadeira, o boné caiu no chão. O
Abel apanhou-o e com ele se cobriu, receoso da reação dos companheiros.
Esperava que “tirassem sarro” do seu aspecto, mas a reação foi outra: no
dia seguinte, os alunos chegaram à escola, quase todos... carecas.
Se o Renascimento contribuiu para a ruptura com o sentido de coleti-
vidade, a modernidade operou a separação entre sujeito e objeto, favore-
cendo o individualismo e uma competitividade negativa, que se manifes-

58
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

ta nas escolas que (infelizmente) ainda temos. Pude verificá-lo em visitas


a escolas onde prevalece o modelo educacional herdado da Revolução In-
dustrial e onde o modelo de gestão, que lhes é imposto – em que impera
o dever de obediência hierárquica –, impede, por completo, o exercício da
solidariedade, inviabilizando a recriação do sentido de comunidade. Mo-
rin diz-nos que solidariedade é a palavra que pode modificar positivamen-
te o futuro da humanidade, mas, em tais contextos, o exercício da solida-
riedade não acontece, porque a escola da modernidade seleciona e exclui.
Expulso de outra escola, mais um jovem foi acolhido. Fazia automutila-
ção e logo foi em busca de um objeto cortante. Impediram-no de pegar uma
faca e se ferir. Reagiu inusitadamente: foi ao banheiro e urinou no cesto do
papel higiénico.
Chegou o dia de reunião semanal da assembleia. E o moço lá estava, olhan-
do em volta, tentando entender o que era aquilo a que chamavam assembleia.
No início da reunião, o Pedro pediu a palavra e disse: Amigos, nesta sema-
na, um de nós urinou no cesto dos papéis.
Nos banheiros daquela escola não havia avisos como: “por favor, dê a
descarga”, “por favor, urine dentro do vaso”. E todo mundo sabia quem
fora o autor da urinação fora do vaso. O moço, também. E se encolheu
na cadeira, à espera de retaliação.
O Pedro concluiu a sua intervenção, dizendo: Precisamos de ajudar um
de nós a não voltar a fazer isso. Quem pode ajudar?
Todo mundo levantou o braço. E, no final da reunião, o jovem preva-
ricador saiu abraçado à sua “comissão de ajuda”. Se esperava admoesta-
ção, ou castigo, recebeu solidariedade. Ali se praticava o lema Ubuntu:
“sou quem sou, porque somos todos nós”. E ele era mesmo “um de nós”.

59
JOSÉ PACHECO

Tempo
Egídio aprendeu que cada coisa tem uma cadência
própria, com seus atrasos e consequências

Havia “tolerância zero” numa escola brasileira. Estudante atrasado per-


deria todas as aulas do dia. Mas a medida não durou mais que duas semanas.
Os pais reclamaram e a diretora voltou atrás. Decidiu flexibilizar as regras e
deixar que os alunos entrassem para a segunda aula: Queremos o fim da cul-
tura do atraso – disse.
Eu concordo, embora considere oportuno acrescentar que, se a natura-
lização do atraso é um fenômeno questionável, também é certo que a cro-
nobiologia é uma ciên­cia. Daí que ousei transcrever um excerto de um livri-
nho, que dá pelo nome de Pequeno dicionário dos absur­dos (publicado pela
Artmed). Recomendo a leitura integral do livrinho, porque os absurdos
da educação não se quedam por aqui.
O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras
e horários-padrão, tomou consciência da diversidade rítmica quando me-
nos esperava e como, a seguir, se verá.
Certo dia, elogiei-o, quando ele voltava de um congresso:
- Admiro a tua vontade de aprender. E, então? Valeu a pena?
- Valeu, pois! Mas só até meio, que eu tive de me vir embora logo depois
do intervalo.
E o Egídio explicou. No intervalo do congresso, ele careceu de satisfa-
zer uma das mais elementares necessidades fisiológicas. Dirigiu-se ao WC.
Empurrou a porta. A célula fotoeléctrica funcionou na perfeição. O con-
trole automático disparou. Fez-se luz. O Egídio foi até ao fundo do corre-
dor. Desapertou a braguilha. Encostou-se ao mictório. Aliviou-se, ou me-

60
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

lhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio
da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram
mais que muitas. Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio
ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada. O WC manteve-se
imerso na mais profunda escuridão.
Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coi-
sa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna,
que não tardou a sentir fria e desconfortável, até aos sapatos. O Egídio sa-
cudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu
o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de
cada vez que introduzia as mãos tacteantes em umidades não identificadas.
Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontal-
mente contra uma traiçoeira parede, que as trevas ocultavam. Meio tonto
da pancada, continuava a acenar com a sinistra. Contornou o obstáculo,
com a mão direita colada à dorida fronte, onde começava a emergir uma
dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que es-
tava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou no-
vamente. E fez-se luz!
Curioso e inteligente como qualquer professor, o Egídio quis saber mais
sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introdu-
zidos nas escolas do século 19. Já ninguém se recordava dos objetivos visa-
dos pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmen-
te acionada do tempo dos avós dos profes­sores, soava, agora, a mando de
um computador. Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio:
os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.

61
JOSÉ PACHECO

Rankings
Supostos especialistas insistem em dar crédito ao ranqueamento
de escolas, como se isso fosse possível ou aceitável

Permiti que vos fale de um Felismino que adora elaborar rankings de


escolas. Cedo se iniciou nessa admirável arte de hierarquizar. Ainda imber-
be, sentiu-se atraí­do pelas classificações dos campeonatos de futebol, daí
passou aos concursos das misses, entreteve-se a elaborar tabelas de várias
competições, até que, já adulto, elabora rankings, crente de que uma pro-
va avalia e de que as “boas escolas” são aquelas cujos alunos apresentam
melhor desempenho em testes estandardizados. Um engano de alma ledo
e cego, ingenuidade que qualquer compêndio de uma nova educação não
deixa durar muito.
Quem possuir alguns rudimentos de docimologia saberá quão falíveis
são as provas e como são prejudiciais os seus efeitos. Mas o Felismino entre-
tém-se a ordenar escolas em função dos resultados alcançados pelos alunos
em exames de acesso à universidade, ignorante de outros modos de avaliar.
O ranquismo é uma praga, um equívoco comprometedor da melhoria da
qualidade da educação. As escolas mantêm-se coniventes com o estímulo
da competitividade. Dogmas velhos cercearam a responsabilidade cidadã e
um estado burocrático impõe um sistema de ensino centralizado, estrutu-
ras curriculares rígidas e modos de organização do trabalho escolar obsole-
tos. A pseudoavaliação, que ainda se faz em muitas salas de aula, inspira-se
na mesmice de um modelo epistemológico falido, apenas age como instru-
mento de darwinismo social.
Lemos notícias de esgotamentos nervosos, de alunos a ingerir calmantes
(ou estimulantes) antes dos exames. E alguém, que, por pudor, não identifi-

62
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

carei, afirmou que ”sempre há de haver quem reprove”. Eis como a crimino-
sa “naturalização” do insucesso se pereniza, no apelo ao mais feroz individu-
alismo, à competição desenfreada.
Cada criatura desperdiça o seu tempo como lhe apraz. E nenhum mal daí
viria ao mundo, se o Felismino não fosse considerado “especialista” em edu-
cação e não fizesse uma divulgação maciça de tolices como concursos de “pro-
fessor nota 10”, ou de “melhor professor do mundo”. Mas, no Reino da Educa-
ção, reinam ridículos e nefastos Felisminos do marketing educacional. A capa
de uma revista ostentava um sugestivo título: Conheça as melhores escolas para
o seu filho. Mas, quais são as melhores escolas, as boas escolas?
“Especialistas” e jornalistas, para os quais as ciências da educação são ci-
ências ocultas, passam para a opinião pública uma imagem simplista e de-
turpada do cenário educacional, produzindo propaganda enganosa. Entre o
vestibulinho e o vestibular, muitas ditas “boas escolas” produzem aparências
de aprendizagem e bonsais humanos. Quantos conteúdos da decoreba dos
cursinhos se transformam em conhecimento ou competência, após o Enem?
Quantos conformistas são produzidos nas “boas escolas”, que vão ocupar as
cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?
Os Felisminos criam bancos de itens, para que os professores intensifiquem
a aplicação de testes, horas a fio em preparação para exames. Perante notas
deprimentes, pugnam por mais aulas de reforço (lamentáveis subprodutos de
uma prática pedagógica lamentável), “com o intuito de melhorar o desempe-
nho dos alunos”. E um dos Felisminos até afirmou que se deverá aplicar mais
provas, ignorando que, na forma da lei e da ciên­cia, a avaliação deverá ser for-
mativa, contínua e sistemática. Os Felisminos ignoram que não é a preocupa-
ção com o termômetro que faz baixar a temperatura.

63
JOSÉ PACHECO

Amor, ordem
e progresso
A aprendizagem só acontece se tecemos vínculos afetivos

Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por finalidade – eis o
lema adotado por Benjamin Constant, o “Fundador da República Brasilei-
ra”. Benjamin foi ministro da Instrução Pública, autor de uma profunda
reforma curricular, propôs a descentralização da gestão e uma “formação
adequada aos novos tempos”.
Apesar de ter sido militar e condecorado como combatente na Guerra do
Paraguai, Benjamin era um pacifista, assumia o princípio de que se deve “Viver
para Outrem”. E, ao participar no movimento pela Proclamação da República
e na elaboração da Constituição de 1891, pugnava por que a palavra Amor esti-
vesse presente em todas as citações do lema positivista.
Tal como o Benjamin de há mais de cem anos, sabemos que as pessoas de-
verão amorosamente colaborar com pessoas, sem com elas competir. Sabemos
que escolas são pessoas e que as pessoas são os seus valores. Nos últimos qua-
renta anos, milhares de vezes orientei a construção de “árvores dos valores”.
Cada participante nessa dinâmica de grupo indicou o valor essencial das suas
vidas. E o “tronco” da “árvore”, o valor mais vezes referido sempre foi o… amor.
Numa tese sobre a Escola da Ponte, encontrei a descrição de um epi-
sódio, que transcrevo. Nos idos de 1980, o “Tribunal” julgava alunos, cujos
nomes surgissem em grande quantidade no “Acho Ruim”. Na proto-história
da humanidade, em que os homens ainda precisam de tribunais, prisões e
guerras, as crianças imitaram-nos. Até ao dia em que uma menina de seis
anos de idade, advogada de defesa de um colega, assim falou numa sessão
do “tribunal”:

64
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

Vós não ouvis dizer que devemos amar-nos uns aos outros? Eu escutei o ad-
vogado de ataque dizer que o Marco cospe nos colegas, que lhes atira pedras,
que o Marco é mau. Mas o Marco não precisa que digam que é mau. Ele pre-
cisa de quem o ajude a ser bom. Algum de nós já ajudou o Marco a ser bom?
E continuou: Estou nesta escola há um ano e só ouço falar de castigos. Pro-
ponho que se acabe com o tribunal e se crie comissões de ajuda.
Assim ficou decidido na assembleia seguinte. E, sempre que o Marco ten-
dia para fazer besteira, logo um círculo humano o rodeava, dizendo: Somos a
comissão de ajuda. Estamos aqui para te ajudar. Nós sabemos que tu és bom. Nós
somos teus amigos! – E o “mandamento novo” se cumpriu. Nunca mais foi pre-
ciso impor regras, reprimir, punir.
A aprendizagem acontece se tecemos vínculos afetivos – se eu existo é
porque o outro existe; o ser humano não é apenas um ser de contato, é um
ser em relação – e a educação é um ato de amor. Mas continuamos insensí-
veis aos apelos de Freire e do poetinha: ponha um pouco de amor na sua vida.
E, nos arquipélagos de solidões em que as nossas escolas se transformaram,
inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque ape-
nas se amam.
Cadê a palavra amor na bandeira brasileira? Ordem sem amor é violên-
cia, porque o adestramento não define a educação e uma educação amorosa
é incompatível com a organização autoritária da vida. Progresso sem amor
é deterioração ambiental, desumanização.
Na sociedade doente em que vivemos, prevalece a cultura do ódio. Ima-
ginai o que seria este país se a palavra amor não fosse ostracizada. Se o mais
belo hino do mundo nos diz que um raio vívido de AMOR e de esperança à
terra desce, por que terá sido amputado o lema positivista inscrito na ban-
deira do Brasil?

65
JOSÉ PACHECO

Educação com
base em valores
O propósito de uma pedagogia é formar o caráter
– a unidade entre pensamento, palavra e ação

Entre os dias 24 e 26 de maio de 2019, um educador português teve


oportunidade de participar da Global Education Conference, que decorreu
no sul da Índia. Coube-lhe a difícil missão de representar o Brasil e a Amé-
rica do Sul. Missão difícil, por ser estrangeiro e a educação do Brasil não ser
para amadores.
Projetos de uma Educação com Base em Valores – era esse o tema central
do congresso – foram apresentados por países como Estados Unidos, Israel,
Laos, Austrália, Índia, Malásia, Costa Rica, Tailândia Reino Unido… e Brasil. O
projeto apresentado pelo representante de Cingapura foi reflexo do excelen-
te desempenho dessa ilha-Estado do sudeste asiático no Pisa (em que ocupa o
primeiro lugar nas três disciplinas avaliadas: ciências, matemática e leitura). E
outros projetos de idêntica valia foram dados a conhecer.
O propósito de uma educação com base em valores é formar o caráter, isto é,
a unidade entre pensamento, palavra e ação. Foi o que Freire repetiu à exaustão,
apelando a que a intenção e o gesto do educador fossem coerentes. Inspirados na
obra desse mestre, em meados da década de 1970, numa pequena escola do norte
de Portugal, professores (freirianos, graças a Deus) definiram uma matriz axio-
lógica e decidiram instituir práticas coerentes entre pensamento, palavra e ação.
Esses educadores desenvolveram uma práxis fundada no paradigma da
aprendizagem. Num tempo em que o “protagonismo juvenil” ainda não fa-
zia parte do discurso pedagógico, concretizaram, na prática, valores como a

66
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

autonomia moral e intelectual do aluno. Esse projeto foi referência e inspi-


ração de outros projetos.
Trinta anos decorridos, o iniciador desse projeto viajou pelo mundo, co-
nheceu centenas de projetos, visitou milhares de escolas. Até que o Bra-
sil lhe mostrou o quanto estava equivocado. Aprendeu que aprendizagem,
para além de ser significativa, não está centrada no professor, nem no aluno,
porque ninguém aprende sozinho. No Brasil, aprendeu que a aprendizagem
está centrada na relação.
Em regiões de extrema pobreza e violência, identificou novos valores e en-
controu caminhos de transição para o paradigma da comunicação. Aprendeu
que escolas não são edifícios, que as escolas são pessoas e que as pessoas são os
seus valores. Quando esses valores são transformados em princípios de ação,
dão origem a projetos. E, porque os projetos humanos são coletivos, o estabele-
cimento de vínculos amorosos viabiliza e consolida o trabalho em equipe.
Hoje, esse educador colabora com escolas, que desenvolvem uma educa-
ção com base em novos valores. A viagem à Índia permitiu-lhe perceber que,
apesar de o Brasil ocupar os últimos lugares do ranking mundial de educação
em ciências, leitura e matemática, o Brasil é o berço de uma nova educação.
Os projetos apresentados no congresso tinham por referência valores
caraterísticos do modelo educacional da primeira revolução industrial: in-
dividualismo, competição, egoísmo, exacerbada autoestima. O projeto re-
presentante do Brasil refletia cooperação, empatia, reconhecimento do ou-
tro, solidariedade.
E o representante do Brasil se interroga: por que vão os brasileiros visitar
projetos dos Estados Unidos e do Japão? Por que copiam projetos da Finlân-
dia? Talvez porque não saibam que há muitas finlândias dentro do Brasil.
Finlândias humanizadas.

67
JOSÉ PACHECO

Estórias do tempo
da velha escola
Brasília, julho de 2039 – ou: no tempo em que não
havia a preocupação de separar o letivo do não letivo

Querida Alice,
Quando nasceste, enviei-te cartas com data de 2007 (*). Nelas, eu te des-
crevi a escola do início de século, augurando que uma escola humanizada
te acolhesse. Dois anos decorridos, idênticas mensagens eu enviei ao Mar-
cos (*). Retomo, agora, o exercício epistolar, iniciado na primeira década do
vigésimo primeiro século, para que saibais como era a escola no tempo em
que o vosso avô nela se iniciou e como ela era, cinquenta anos depois, no
início dos anos vinte. Quase quarenta anos decorreram sobre o tempo em
que viestes ao mundo. Creio ser tempo de enviar novas cartas aos meus ne-
tos, quando uma nova humanidade desperta, já distante do início de milê-
nio e das atrocidades cometidas em finais da segunda década.
É confusa essa “viagem no tempo”? Pois ficai sabendo que o tem-
po não existe, nem estabelece os rumos da humanidade. Foram seres
humanos amorosos que, em amorosos atos, geraram impulsos de hu-
manização. Foram educadores esperançosos e éticos que marcaram
o tempo da mudança, rumo à idade da educação, que os futuristas
dizem ser a década de 40. Por isso, vos contarei uma estória em cada
carta, memória de amorosos gestos de há noventa anos. Também des-
creverei episódios ocorridos há vinte anos, no tempo em que a uni-
versidade vos acolheu.
Nesta carta, escolhi falar-vos de alguém que, em mea­dos da década de

68
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

setenta do passado século, erguia comunidades. Com ela aprendi o dom da


gratuita oferenda.
A Tita, sem ser missionária também não era demissionária. Era professora
apenas. E, sem querer saber se julho era mês de férias, levava à praia crianças
e adultos, que nunca tinham visto o mar. E a Fátima, sua companheira de
muitas “colónias de férias”, escrevia:
Chegamos à praia felizes por sentir a areia nos pés. Bem depressa cada
um se começou a despir, indiferente aos olhares de espanto de gente que
nunca tal coisa viu. Os Torres, de cabelos rapados onde ainda se notavam
sinais das lêndeas esmagadas pela tesoura da poda, tinham um ar de presidi-
ários famintos da vida e do ar que lhes oferecíamos. Também eles queriam
mostrar os seus fatos de banho.
Ó, meu Deus! Que vergonha! Aqueles meninos só têm cuecas! – E, envergo-
nhada, a gentil senhora mandou o filho levar-lhes um fato usado. Ficaram
felizes, os Torres. E ei-los a correr alegremente para o mar, dispostos a aca-
bar com a raça das cuecas velhas do pai.
Os Almeidas eram tantos! Nove na mulher e quatro na amante. Tinham
um distinto ar de ciganos matreiros a quem a vida ensinara a vencer. Na-
quele tempo, não era preciso mostrar serviço, não havia a preocupação de
separar o letivo do não letivo, nem de fazer contas de merceeiro às trinta e
cinco horas letivas obrigatórias. E a minha amiga Tita já sabia que a profis-
são de professor não é ato solitário, mas deverá ser solidário. Também sabia
que as escolas só funcionam com projetos plurais e que até o Gama, quando
viajou para as Índias, foi acompanhado. Porque ninguém dobra sozinho os
cabos das tormentas que a vida de uma escola enfrenta.
Com amor, o vosso avô José.

(*) Para Alice, com amor. São Paulo, Cortez Editora; Para os filhos dos fi-
lhos dos nossos filhos. São Paulo, Papirus.

69
JOSÉ PACHECO

Tempos de
desesperança e medo
Missivas, Tavira, agosto de 2039: o contrário
do amor não é o ódio, mas o medo

Netos queridos,
Pretendo falar-vos de tempos velhos, para que não se apaguem da memória
dos homens. Falar-vos-ei dos conturbados tempos vividos num Brasil doente,
que o meu amigo Joelmir assim descrevia, nos idos de 2019: Vivemos o vazio
deixado pelo apodrecimento do velho paradigma – que já não nos serve, não por ser
velho, mas por negar violentamente a vida humana e não humana – e o parto in-
concluso de um novo paradigma, em andamento, que nos permitirá vencer o medo
e reaprender a amar. Em outras palavras, vivemos tempos de desesperança e medo,
porque o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O ódio é, tão somente, reflexo,
decorrência do medo. A questão central aqui é: chegamos a um nível tal de adoeci-
mento [individual e coletivo] e de imperativo da cultura do medo, que nosso maior
desafio no século 21 passou a ser reaprender a amar. E eu me perguntava: Qual
será a nossa cota-parte de responsabilidade? Como teríamos contribuído para
esses tempos de desesperança e medo?
O meu amigo Rui Canário dizia-nos que, quando analisávamos o mundo
em que vivíamos, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e
das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos
eram consequências de uma determinada escolarização da sociedade. E de
que seria necessária e urgente uma nova escola, para um novo mundo.
Nesse tempo, o paradigma da comunicação emergia, mas as escolas a ele
se mantinham alheias. A universidade ainda sobrevivia na ilusão da ensina-

70
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

gem, desconhecendo que não se aprende o que o outro diz, mas que se apren-
de o outro. Sucediam-se as teses sobre o paradigma da comunicação. Parado-
xalmente, os seus autores continuavam dando aula, reproduzindo práticas
fósseis, incompatíveis com o paradigma que, teoricamente, adotaram.
A quase totalidade das escolas radicava as suas práticas no paradigma da
instrução. Já vivíamos num tempo de sociedade em rede, mas a análise social
mantinha-se cativa de raciocínios lineares. Até a Terceira Revolução Indus-
trial, dispúnhamos de sequências lógicas. Depois, sobreveio o simultâneo, a
sobreposição. Na era da pós-verdade, através das redes sociais, assistíamos a
um sutil processo de desumanização. Pejadas de comentários abjetos, acen-
tuavam a degradação moral e ética. Nunca de tantos instrumentos de comu-
nicação nós dispúnhamos e nunca tão solitários nos sentíamos.
Um dos desafios da escola era o de tentar compreender as origens e suster o
suicídio infantil e juvenil. No Brasil havia aumentado 40% em 10 anos. O suicí-
dio era a segunda razão de morte de jovens no mundo. Em países dos primeiros
lugares do Pisa, eram frequentes os suicídios e a automutilação. Muitos jovens
perderam a vida em ataques a escolas, em Susano, no Realengo. Adultos enchar-
cavam-se em medicamentos, crianças se lobotomizavam com Ritalina. O huma-
no estava em crise.
Mudanças operadas no tecido social provocavam uma sutil inversão de
valores, enquanto as escolas se enfeitavam de computadores e de pseudoi-
novações. Mas, no Portugal contemporâneo desse trágico Brasil, um amigo
de nome João fazia milagres. Na escola do vosso pai, na do Antonio e em
muitas outras, professores competentes decidiam ser éticos. E uma nova
educação nascia...
Disso vos falarei em próxima carta.
Com amor,
O vosso avô José

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JOSÉ PACHECO

Educação é incompatível
com organização autoritária
Missivas, São Paulo, agosto de 2039: de como muitos alunos
se transformaram em adultos medrosos e egoístas

Netos queridos,
Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:
“O Governo pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno cheio de
maldade não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer
restabelecer a ordem e não consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os
mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são
bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Que interessante é uma es-
cola bem disciplinada! Mas onde há a que deixe de ser perturbada por algum de entre
muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se
na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrom-
pendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.
Esta notícia foi publicada em maio de… 1887.
Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de
1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disci-
plina com uma palmatória. E, quando a professora já estava cansada, mandava
um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem de-
vagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor
deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam
“tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola
e medo de ir para casa”.
Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que
é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvi-

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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

mos, mas aprendemos o outro – muitos alunos se transformaram em adultos


medrosos e egoístas. Dado que a aprendizagem acontece por imitação e pelo
exemplo, políticos e outros bonsais humanos, que ignoravam a existência de
uma educação humanizadora, impuseram a escola da violência simbólica, a
escola “militarizada”, a mesma de que foram vítimas.
Há vinte anos, não nos surpreendíamos quando, no fim de uma sessão
da Câmara, o chão do plenário ficava coberto de lixo, víamos o chão do
auditório juncado de copos plásticos e outros detritos, ali deixados por
ilustres deputados.
A escola hegemônica e “militarizada”, que tínhamos, ia semeando ignorâncias
e outras violências. Ela fora concebida no início da Primeira Revolução Industrial,
correspondendo a necessidades sociais da Prússia Militar: treinar jovens para a
guerra, jovens obedientes a um regime disciplinar inquestionável, respeitadores
de uma hierarquia imposta. A escola nasceu “militarizada” e os professores do sé-
culo 19 não sabiam que a autoridade não rimava com autoritarismo. Que a escola
não deveria preparar para a cidadania, mas que se aprende cidadania no exercício
da cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, na autodisciplina, na
verdadeira disciplina, que não resulta de imposições e submissões, mas pressupõe
o exercício do diálogo, a desocultação de perversos modos de relação.
Um século após a publicação do texto na revista O Ocidente, no ano de
1988, uma “Proposta Global de Reforma” dizia-nos que o adestramento não
define a educação e que a educação é incompatível com a organização autoritária
da vida. Mas, há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a
um “regresso ao passado”, assistimos a novas “militarizações”.
O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os
tempos são outros… Disso vos falarei em próxima carta.
Com amor,
O vosso avô José.

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JOSÉ PACHECO

Harmonia entre
família e escola
Missivas, Butantã, março de 2040: quando há
alinhamento de propósitos, a criança vem com um
olhar amigo, vem para aprender

Na São Paulo de há exatos vinte anos, o projeto da Escola Aberta marcava


o fim de uma época de esboços de mudança e o início de uma década de efe-
tiva inovação. Nesta carta, recorro ao conteúdo de um e-mail, religiosamen-
te guardado num velho pen drive – recordais-vos desse utensílio? – e apenas
acrescentarei algumas palavras-alinhavos estruturantes das falas da minha
amiga Edilene. Ei-las:
Coloquei uma faixa na porta: “Matrículas Abertas – Escola Gratuita”, para que
as pessoas entrassem sem medo de essa escola vir a ser mais uma escola particular,
competindo com outras da região. As pessoas entravam e eu pedia-lhes que voltas-
sem para os seus lares e assistissem a uns vídeos, na internet, para decidirem se aque-
la escola era a que mais convinha aos seus filhos. Faziam a inscrição e só voltavam
para fazer a matrícula, se considerassem que aquela escola cuidaria bem dos seus
filhos e a todos garantiria uma boa educação.
Um dos pais, de entre os que voltaram para fazer a matrícula, quis falar
comigo. Entrei na sala. A menina estava em pé, ao lado da mesa, de braços
cruzados, cabeça baixa, fechada… O pai olhou para mim e disse: “Convença
a minha filha!”
Eu achei estranha aquela situação: “Convencer de quê?”
“Convence! Convence ela a ficar nesta escola!”
“A escola não é só para ela. É para vocês, para a família, também…”
“Eu já sei, eu já sei como é esta escola. E eu já resolvi.”
“Não vou convencer a sua filha. É você que tem de conversar com ela.”

74
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

“Eu já falei, mas ela não quer sair da outra escola.”


“Não vamos fazer a matrícula da tua filha.”
“Como não?!”
“Não! Porque, se você não está convencido, como vai convencer a tua filha? A
forma como você está agindo mostra que você não entendeu esta escola.”
Recolhi os papéis, que ele já tinha preenchido. Devolvi-os e disse:
“Você não vai fazer a matrícula agora. Vai assistir a este documentário.”
Passei uma lista de tarefas para ele. Ele olhou para mim e disse:
“Está me dando lição de casa?”
“Estou. E você só vai voltar aqui, quando eu vir um brilho nos seus olhos.”
Passados alguns dias, eu estava com um grupo de crianças, na frente da escola, pla-
nejando a nossa festa cultural, e eu senti alguém batendo no meu ombro. Olhei para
trás e o mesmo pai me disse: “Está vendo o brilho nos meus olhos?”
“Sim. Agora, estou vendo.”
Ele me deu um abraço e disse: “Muito obrigado! Por você ter insistido. Por
você me fazer voltar para casa, refletir com a minha família.
Hoje, ele é um pai ativo, participante, sempre com aquele brilho os olhos. O que
ficou para mim marcante foi que a filha dele, no primeiro dia, chegou com um lindo
sorriso de braços abertos, para me abraçar.
Quando a família e a escola estão em harmonia, com o mesmo propósito, a
criança vem com um olhar amigo, vem para aprender. Estas famílias estão nesta
escola, porque acreditam nesta educação. Sabem que a escola não é para elas, mas
que é feita com elas.
A Escola Aberta confirmou a freiriana sentença, que nos dizia que a edu-
cação não mudaria o mundo, mas que mudaria as pessoas… que mudariam o
mundo. Hoje, eu posso concluir que não estava errado, quando, há cerca de
quarenta anos, escrevi um livrinho com o título: Para os filhos dos filhos dos
nossos filhos.
Quando a eternidade se aproxima, sei que dareis novo significado às his-
tórias que eu vos deixar.
Com amor, o vosso avô José.

75
JOSÉ PACHECO

Gilberto Dimenstein e suas


pontes de entendimento
Vila Madalena, 31 de maio de 2040: ele abriu janelas
para a lucidez dos dias, levou o alimento da palavra
simples e pura até às raízes dialógicas

Em finais de maio de 2020, elogios fúnebres enalteciam um ser huma-


no incomum. O desaparecimento de Gilberto Dimenstein era “uma perda
imensa para o jornalismo brasileiro”. Assim o definiam: “Um homem íntegro,
inspiração para a minha geração. Um dos principais expoentes do jornalismo
brasileiro. Inquieto e dinâmico, deu voz a atores antes excluídos do debate na-
cional. Sensível às causas sociais, defendeu a liberdade de imprensa, as minorias,
os mais vulneráveis. Um olhar humanista e solidário, dedicado à construção de
uma sociedade mais justa”.
Assim, também, eu o recordo. O privilégio de conviver com esse ser huma-
no excepcional me foi dado. Estávamos em setembro de 2003. Dimenstein jun-
tou este velho professor ao Mestre Rubem, reuniu educadores e a comunidade,
num inesquecível encontro, na “Escola na Praça” da Vila Madalena! No final
dessa noite mágica, percorri o beco, saboreei a arte dos grafiteiros. E conheci
uma pessoa que me convenceu a ficar no Brasil…
Em 2004, o Gilberto organizou a sessão de lançamento do meu primeiro
livro brasileiro. Foi um evento memorável. Nesse e em outros felizes encon-
tros, me fui dando conta da sua estatura intelectual e moral. E, porque nutria
profundo respeito pela pessoa e pela sua obra, sempre que me convidava para
algum evento, eu aceitava o convite. Recordo quanto com ele me diverti, num
debate com candidatos ao governo de São Paulo...
Na Vila Madalena, o Gilberto reuniu boa gente, num projeto conduzido

76
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

pela ONG Cidade Escola Aprendiz, para derrubar muros entre o viver e o
aprender, entre o ser e o fazer. No caos urbano de São Paulo, praças, becos,
teatros, bibliotecas se convertiam em espaços de aprendizagem. E, nesses
contextos, o professor assumia novos papéis, agia como um tutor de jovens
das mais diferentes origens e classes sociais. A escola do futuro por ele so-
nhada seria um nodo de uma rede de comunidades de aprendizagem. Se
um filósofo dissera que se deveria educar para a vida, a obra de Dimenstein
educava na Vida.
Nesses conturbados tempos, os gestos fraternos eram escassos. E a soli-
dão era, por vezes, o destino daqueles a quem cabe por sina o conhecimento
e a bondade. Quando se fala com amor, cada palavra dita é uma revelação
daquele que fala. Daí que, na Babel em que frequentemente se transformara
a comunicação, o Gilberto estabelecesse pontes de entendimento, abrisse
janelas para a lucidez dos dias, levasse o alimento da palavra simples e pura
até às raízes dialógicas, para que aquilo que padecesse de aridez se transfor-
masse em comunicação fértil.
Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao
dom das lágrimas. Deste modo, Gilberto havia comentado o diagnóstico de
câncer: “A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo”.
Escassos dias antes da partida do seu companheiro, a Ana convidava amigos
a se juntarem numa corrente, que emanasse boas vibrações para o Gilber-
to. O seu companheiro faria um procedimento médico importante naquela
semana: “Vibrarei para que tudo que emanarem para Gilberto possa retornar
em dobro para cada um de vocês”. E o amigo Gilberto continuou entre nós.
No lugar etéreo onde estiver, saberá que a sua partida foi “um começo”,
coincidiu com um tempo de refundação da escola por ele sonhada. O câncer
ressignificou a sua existência e, quando a pulsão da morte induzia o caos e se-
meava tristeza no frenesim quotidiano, o amigo Gilberto descobriu ocultas ale-
grias. Com a Ana, escreveu um livro sobre a derradeira experiência. E esse livro
não poderia deixar de ser uma história de amor… à Vida.

77
JOSÉ PACHECO

Discursos apropriados
Itaguara, 30 de outubro de 2040: em 2020, era
ridículo chamar “inovação” à aula invertida

Nos idos de vinte, a escola permanecia estagnada, imersa num pântano


de absurdos. Arcabouços da escola da modernidade tinham perdido sentido
e legitimidade. Lamentavelmente, o discurso acadêmico insistia no recurso
a conceitos e práticas fósseis, ainda que assumindo um “novo visual”. Nos
idos de vinte, estava em voga o chamado “ensino híbrido”.
Explorando a ingenuidade pedagógica da “sociedade líquida”, empresas
assaltavam o mercado da educação com o novo “produto”. Iludindo profes-
sores de boa-fé, fundações se propunham formatá-los no “ensino híbrido”.
As aclamadas “boas experiências” de educação híbrida eram caricaturas de
práticas centenárias ornamentadas com computadores e internet.
Não poderia faltar a famigerada “sala de aula invertida”. Dela se dizia “co-
locar o aluno como protagonista”. Grosseira mentira! Era o professor quem
“sugeria” (belo eufemismo!) o conteúdo a consumir. Quanto muito, havia
uma ou outra busca feita pelo aluno. Em sala de aula (instrucionista!), alunos
e professor discutiam em grupo. Célestin Freinet havia feito o mesmo – e fora
mais além! – utilizando ficheiros autocorretivos, no início da década de vin-
te… do século 20. Em 2020, era ridículo chamar “inovação” à aula invertida.
A prática “híbrida” do modelo “Flex” – como era chamado – consistia em
fornecer ao aluno “uma série de atividades a serem realizadas on-line”. Os
professores estariam à disposição do aluno, para tirar dúvidas. Isso havíamos
feito na Ponte, já nos idos de setenta, num tempo em que ainda não havia
computadores. E de modo bem mais elaborado, porque as “atividades” não
eram concebidas pelo professor e impostas aos alunos; eram construídas com

78
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

os alunos, segundo a velha tradição escolanovista.


Outro modelo indevidamente designado de inovador era o “laboratório
rotacional”. Os “híbridos” eram hábeis a criar termos de belo efeito, criati-
vos apenas no discurso. Em que consistia o “laboratório”? Num “giro dos
alunos em estações, por diferentes modalidades de aprendizado”. Skineria-
namente, em cada estação, poderia ser utilizado um recurso diferente. Aqui
cabe uma pertinente observação: não se tratava de “aprendizado”, mas de
“ensinado”, dado que as “estações” eram planejadas pelos professores, o nú-
mero de estações e o tempo em cada estação eram determinados pelos pro-
fessores. Cadê o “sujeito de aprendizagem”? Cadê a “inovação”?
Os “híbridos” do século 21 apropriavam-se do discurso escolanovista, para
maquiar o instrucionismo de entre a primeira e a segunda revolução industrial,
em práticas do tempo da máquina a vapor. A escola “híbrida” continuava tão ob-
soleta como no tempo em que o telégrafo dera lugar ao telefone.
Com a descoberta do computador, a segunda revolução industrial emergiu,
para logo dar lugar a uma terceira, aquela que surgiu com a internet e a automa-
ção. Foram criadas empresas fornecedoras de sistemas de ensino, quando deverí-
amos já dispor de sistemas de aprendizagem. As escolas passaram a adotar a lou-
sa digital, fez-se “ensino a distância”, quando já se poderia fazer aprendizagem
na proximidade. Foram criadas redes de ensinagem, quando seria necessário
criar redes de aprendizagem.
No início deste século, hábeis mercadores mantinham um cadáver adia-
do: o da escola instrucionista. Enriqueciam, vendendo subprodutos educa-
cionais a consumidores de currículo, que haviam sido formatados pela es-
cola da aula. Colocavam nesses produtos o rótulo de “práticas inovadoras”.
Como se no contexto do instrucionismo pudesse acontecer… inovação.

79
JOSÉ PACHECO

Hora de abandonar
a ditadura escolar
São Pedro do Sul, 5 de janeiro de 2041: os princípios
e práticas da Escola da Ponte têm influência em
educadores como Célestin Freinet

A minha amiga Cláudia assim descrevia as suas primeiras impressões na


chegada à Ponte:
“Muitas coisas chamam a nossa atenção ao chegarmos na Ponte. Para
mim, o primeiro impacto foi o “portão da rua”. Cheguei na escola numa
segunda-feira à tarde, horário de aula, e o portão de acesso à escola estava
completamente aberto. Achei que alguém tinha esquecido de fechar ou até
mesmo de trancar.
Lembrei das escolas que trabalhei e convivi no Brasil, o portão sempre estava
trancado, de preferência com cadeado, deixá-lo aberto era uma falta grave. Logo
ao entrar na Ponte, é claro que fechei o portão! No entanto, percebi que nos outros
dias ele continuava aberto, qualquer um poderia entrar ou sair. Esse era o espírito!”
A Cláudia surpreendeu-se com a atitude de “abertura” da escola, simbo-
lizada num portão aberto. Essa interface escola-meio social, numa escola
sem muros, nem seria necessária, numa nova construção social de apren-
dizagem fundada no exercício da autonomia. A Cláudia fez na Ponte o seu
doutorado e escreveu na sua tese:
“A curto e médio prazo, a qualidade da escola pública não é tributária de
políticas educacionais macros, tampouco de massificados e efêmeros progra-
mas, projetos ou política de governo, mas sim da decisão dos (as) profissio-
nais que nela trabalham de tornarem-se autores (as)”.
E assim descrevia o referencial teórico, que estivera na origem da mudança:

80
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

“A singularidade da construção pedagógica realizada na Escola da Ponte abri-


ga um processo de produção intelectual dos seus atores, que talvez só possamos
nos dar conta da sua verdadeira importância, passado o período de um certo apelo
mitológico. O Projeto Fazer a Ponte, tanto no que diz respeito aos princípios quan-
to às práticas, não deixa de ser tributário de um quadro teórico e conceitual com
base em trabalhos de estudiosos do fenômeno educacional escolar e do desenvolvi-
mento humano. Entre esses, incluem-se Célestin Freinet e os educadores que fazem
parte do Movimento da Escola Moderna”.
Estava certa a minha amiga. Em meados dos anos setenta e em equipe,
este vosso avô e debutante professor começava a gestar aquela que seria a
primeira escola a concretizar as promessas escolanovistas e a criar condi-
ções para o surgimento de uma escola-comunidade.
Naquele tempo, nem sabíamos da existência de um tal Piaget. Agíamos por
amor e intuição pedagógica. Mudávamos a prática, para garantir a todos o di-
reito à educação. Também não sabíamos que, no final da década de sessenta,
na margem sul do Atlântico, o piagetiano Lauro de Oliveira Lima escrevera um
livro sobre “comunidades de aprendizagem”. Em meados do século passado, o
anunciador dessa nova construção social convidava-nos ao exercício da auto-
nomia, criticando a gestão da escola instrucionista:
“Foi dada uma função educativa ao diretor, que se reduz, atualmente, a mero
administrador, manipulador de papelório e ecônomo. É hora de abandonarmos a
ditadura escolar de diretores e professores e iniciarmos os jovens no autogoverno.
A experiência universal demonstra que é deste regime escolar que saem os futuros
cidadãos de uma democracia, autônomos e responsáveis”.
Iriam decorrer seis décadas, até ao aparecimento da primeira comunidade
de aprendizagem. No Distrito Federal do início da década de vinte, enquadra-
dos num projeto de política pública da iniciativa da Secretaria de Educação,
protótipos de comunidade surgiram, organizados em rede.
Nas próximas cartinhas, espero poder descrever-vos a saga da implanta-
ção dessa rede de comunidades.

81
JOSÉ PACHECO

Sensibilidade dos pequenos


Algures, 1 de março de 2041: qualquer criança sabe
que o tempo não existe, que é invenção dos homens

Hoje, o ser humano mais perfeito de quantos seres humanos conheci fa-
ria cento e doze anos. A extrema generosidade e a discreta honestidade do
vosso trisavô Mário foram para mim exemplo. E quero que saibais que cele-
bro o seu nascimento, porque o sinto presente.
No tempo do seu terreno existir, o “avô Mário” vivia para além do tempo, vi-
via a eternidade em vida. Sabia que muita infelicidade humana findaria quando
a humildade desfizesse o mito da existência de um tempo medido. Nada aca-
bava, quando se acabava um ano. Quando um ramo secasse, novo ramo germi-
naria. Quando uma certeza tombasse na arca das inutilidades, novas doutrinas,
tão perecíveis como as perecidas, se esboçariam, no rendilhado tecer das efé-
meras ciências. Era durável somente o que fazia sentido, o que se renovasse em
cada um dos nossos transitórios dias.
Quando, no início do século, me afastei da pátria, para viver e morrer nos
braços da mátria brasileira, todos os dias primeiros do mês de março, numa li-
gação telefônica, que era mais do que uma breve conversa, o felicitava por ter
cumprido mais um ano de vida. Era uma singela homenagem, ato de gratidão,
porque aquilo que com ele havia aprendido não tinha preço.
Com a avó Mina, o avô Mário dedicara grande parte da sua vida a cuidar
da educação religiosa de crianças e adultos. Já idoso, visitava os enfermos e
os velhos impossibilitados de “ir à missa” e com eles comungava. A memória
desse ser extraordinário me conduziu à evocação daquele que foi seu guia,
um Jesus que disse que o homem velho não tardaria a interrogar, ao longo
dos seus dias, uma criança.
Qualquer criança sabe que o tempo não existe, que é invenção dos ho-

82
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

mens. O tempo não é mais que uma sucessão interminável de bateres de


corações alimentados por gestos de ternura. Gestos de todos os dias, que
restituem aos dias, que despontam ou cessam, o suave mistério da vida sem
tempo calculado.
Quem, como eu, alcançou a provecta idade da criança, sabe que viver
não é mais do que sorrir perante um calendário, compadecer-se da angús-
tia dos que ainda creem que é o tempo que passa.
Conheci um homem sensível à dor humana. Walter Steurer compreen-
deu que fazer contraturno de escola era como “tentar enxugar gelo” e me
convidou para “salvar vidas de jovens”, me desafiou para ajudar a criar uma
escola. Quando convenci a Cláudia a trocar Minas por São Paulo, com ma-
ravilhosos educadores se fez o Projeto Âncora. Mas, o Walter já partira des-
te mundo, num primeiro dia de março. E, quando começaram as matrí-
culas nessa escola, a primeira criança matriculada nascera... num primeiro
dia de março.
Quando, vinte anos atrás, a minha barca de sonhos chegava ao seu ter-
ceiro porto e se aprontava para nova viagem, comecei a coabitar com um
mistério a que não dei nome. Os projetos, até então ainda anônimos, viriam
a resgatar a vocação da escola, como se o tempo fosse circular. E súbitos re-
encontros de um tempo linear nos mostravam que nos alimentávamos de
ocultas solidariedades, para além do tempo.
Talvez não te recordes, Alice, mas houve alguém que mexeu com o
teu conceito de tempo e te dirigiu a habitual pergunta:
“O que queres ser, minha menina, quando fores grande?”
“Eu quero ser veterinária, minha senhora!” – respondeste.
“Então, vais ter de ir à escola, vais ter de estudar muito.”
“E para que tenho eu de ir para a escola, minha senhora?”
“Porque sempre foi assim ao longo do tempo, minha menina. Os pequenos vão
para a escola, os grandes vão trabalhar.”
“Então, eu acho que já não quero ser grande.”
Alice, se puseste fim à conversa, foi porque fizeste parar o tempo que
não existe.

83
JOSÉ PACHECO

Pessoas que
mudem a sociedade
Torre de Moncorvo, 21 de abril de 2041: sem liberdade e
sem autonomia, universidades são barradas de cumprirem
sua missão criadora

Há vinte anos, o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman lembrava aos seus
conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 59
anos de existência.
Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo aniversário da
universidade, foram comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as
omissões” e a Comissão UnB.Futuro surgiu, para pensar a universidade de
outro meio século. Na década de cinquenta do século passado, acadêmicos
sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro”. Mas,
o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro A
Universidade Interrompida 1964-1965. Nos idos de sessenta, no seu depoi-
mento à Comissão Parlamentar na Câmara dos Deputados, o português
Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade que enfrentasse
os desafios dos tempos presentes (década de sessenta) e futuros:
“A universidade atual, que vem da universidade medieval, é uma universida-
de que se alicerça sobre a ideia de fraternidade, de esforço comum, para atingir
uma verdade, que não é uma verdade puramente intelectual, mas uma verdade
de sentimentos, de unidade entre os homens. O grande drama da universidade
brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são
efetivamente de outras economias, de outros estágios educacionais e que de ma-
neira nenhuma podemos adaptar ao Brasil”.
Nesse corajoso discurso perante a Câmara, Agostinho da Silva denun-
ciou a falta da liberdade e da autonomia, gerada pelo “regime de medo”, que

84
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

fazia com que a universidade não pudesse cumprir a sua missão criadora.
Em pleno “maio de 68”, num ano em que o mundo passou por profundas
transformações, Agostinho vaticinava aquilo que viríamos a vivenciar, algu-
mas décadas depois:
“Cada vez creio mais que o Brasil é, de todas as nações, aquela que mos-
tra no mundo, neste momento, mais capacidade criadora, mais capacidade
humana, mais possibilidade de convivência. Mas, de nenhuma maneira nós
podemos ter a esperança de ter uma universidade nova, se não tivermos um
Brasil novo”.
Volvido meio século, novo “regime de medo” se instalou. Nesse tempo
de negacionismo, sinais de ressurgimento criador surgiam. Face à pande-
mia da covid-19, mais de 300 projetos foram desenvolvidos na UnB, para
enfrentar a crise sanitária. O sonho de Anísio e Darcy não morrera. Outros
insignes mestres o retomaram: Luís Pereira, Vladimir Carvalho, Aldo Pa-
viani, Adalgisa Rosário, José Coutinho, Isaac Roitman e outros vultos, que
tive oportunidade de conhecer. A UnB “estava viva”. Contudo, resquícios de
“regimes de medo” afetavam a universidade, corroendo o sonho de Darcy,
ignorando a reflexão de Agostinho:
“A universidade não é capaz de responder mais aos anseios da juventude,
que quer encontrar um estímulo de criação, alguma coisa que a encaminhe
para o mundo e não encaminhe apenas para a sua profissão”.
Nos idos de vinte, essas palavras ressoavam carregadas de triste atualida-
de. A administração educacional se constituía em obstáculo à inovação. Na
universidade, a formação dos educadores permanecia ancorada em práticas
instrucionistas. Uma educação arcaica reproduzia uma sociedade arcaica.
Freire havia dito que a escola não mudaria a sociedade, que a escola mu-
daria as pessoas e que as pessoas mudariam a sociedade.
Porém, se a sociedade não mudava a escola, onde estaria a escola que
mudaria as pessoas? Onde encontrar pessoas capazes de mudar a sociedade?
Como seria possível interromper o círculo vicioso dos “regimes de medo”?

85
JOSÉ PACHECO

Escola como
centro comunitário
Santa Rosa, 21 de novembro de 2040: Lauro de Oliveira
Lima e as comunidades de aprendizagem

Hoje, trago-vos notícia de uma funesta sequência de acontecimentos,


que começou com momentos de espanto. Quando vasculhava as estantes
de um sebo, deparei com um título comum de um livro, que nada tinha
de vulgar: A escola secundária moderna. O mestre Lauro tinha escrito um
tratado, onde vertera um pouco da sua sabedoria. Procurei outros títulos do
autor e apenas encontrei A escola para a comunidade.
Europeu etnocêntrico, eu cria que tivessem sido os anglo-saxônicos e
os catalães os primeiros a escrever sobre comunidades de aprendizagem.
Puro engano!
No sul da América, trinta anos antes da construção teórica do Ramon,
Lauro apontava caminhos para a transformação da escola num nodo de co-
munidade de aprendizagem: “A expressão escola de comunidade procura
significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no
futuro, será um centro comunitário. Não se reduzirá a um lugar fixo murado”.
Eu estava num encontro de formação, no dia do feliz encontro com a
obra do mestre. Perguntei a mais de uma centena de professores, ali pre-
sente, se alguém sabia do paradeiro do Lauro. Ninguém sabia. Nem sequer
tinham ouvido falar de tal nome.
O mestre havia nascido no Ceará, mas morava no Rio, onde decorria o en-
contro. No final da tarde, a senhora que varria o salão aproximou-se e perguntou:
“O senhor quer saber onde mora o senhor Lauro?”
Seria mesmo o Lauro, o autor dos livros? Aquela senhora o conhecia e
indicou-me o endereço de uma casa, no Recreio dos Bandeirantes. No dia

86
ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES

seguinte, me apresentei como visita e mantive com o mestre uma saborosa


manhã de conversa.
Dali fomos para A Chave do Tamanho, onde conheci a Beta, sua filha,
e reconheci Piaget, nos mínimos detalhes da vida daquela escola. O ba-
te-papo a três se estendeu por toda a tarde. E o amigo Lauro reiterava a
crítica da escola da aula:
“Encontramos escolas como verdadeiros quistos sociais, sem nenhuma re-
lação real com o meio; estas escolas fechadas são elementos perniciosos para
o meio. Museus, bibliotecas etc., estando à disposição de todos, deve a escola
ensinar o povo a utilizar-se desses instrumentos de cultura (…) aí se inicia uma
escola; todos os serviços escolares, toda a estrutura administrativa, toda a legis-
lação escolar, toda a burocracia resultam a posteriori deste fenômeno primário;
cada membro da comunidade, para além da responsabilidade pessoal e social,
tem compromisso com as novas gerações.
Em 2012, a Escola Projeto Âncora quis homenagear um dos maiores
educadores vivos. O Lauro estava muito doente, sem condições de se deslo-
car do Rio até Cotia. A Beta, sua filha o representou, numa festa organizada
pelas crianças. No final, os alunos do Âncora entregaram à Beta umas “car-
tinhas para o amigo Lauro”.
Recordo uma manhã de trabalho no Âncora, em janeiro de 2013, quando
a internet nos trouxe a notícia do falecimento do mestre. Voltei ao Rio e à
escola do Lauro, para saber como poderia ajudar a Beta a continuar a obra
do seu pai. Era grande a consternação. E era imensa a minha indignação,
por saber de uma morte anônima. Nem uma notícia de jornal, nem uma
homenagem póstuma a um dos maiores educadores do século 20!
Em junho de 2020, quando ajudava os pais dos seus alunos a entender
como se pode aprender em tempo de pandemia, a professora Beta mor-
reu. A equipe da A Chave do Tamanho assim publicava a fatídica notícia:
“Sua força, coragem e sabedoria irão indicar os caminhos. Continuaremos a
trabalhar por essa bandeira da educação no Brasil”.
Em maio de 2020, recebi a notícia de que A Chave do Tamanho iria
ser vendida.

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JOSÉ PACHECO

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