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ENTRE
MARGENS
Cartas para educadores
José Pacheco
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JOSÉ PACHECO
FICHA TÉCNICA
E
Produzido por Plataforma Educação
M
Revisão: Maria Stella Valli
@revistaeducacao
www.revistaeducacao.com.br
@josepacheco1951
@professorjosepacheco
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
ENTRE
MARGENS
Cartas para educadores
José Pacheco
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JOSÉ PACHECO
Apresentação
dos editores
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Os editores
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JOSÉ PACHECO
Prefácio
Tempos luminosos
José Pacheco
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JOSÉ PACHECO
Ano zero
É fácil conceber e começar projectos.
Difícil é mantê-los sem que se degradem
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JOSÉ PACHECO
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Tem dias…. Mas reparei na face ansiosa da professora e não arrisquei a chalaça.
Disse ser o próprio. De imediato, veio a lamúria:
Estou no momento um tanto desanimada. Em minha escola fizemos um
projeto muito bonito e apresentamos à secretaria de educação, porém ele não
foi aprovado, com as mesmas desculpas de sempre: espaço físico, necessidade
de contratar pessoas etc. Até mesmo dentro da própria escola parece que
se criaram dois grupos, um querendo mudanças, querendo fazer diferente,
outro expressando sempre estar com medo! E eu me pergunto: medo de quê?
Como diria o Mia Couto, os caminhos servem para sermos parentes do futuro.
Quase sempre, os caminhos são pedregosos, cortados por abismos e tocaias.
Mas pelo sonho é que vamos, sonho que não é sinónimo de devaneio ou
inacção. Como nos disse o professor Gedeão, sempre que um homem sonha, o
mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. Se é pelas
crianças e com elas que realizamos utopias e logramos transcendermo-nos,
saibamos aceitar o reverso, os sucedâneos da humana miséria. Àqueles que
são parte do lado saudável da educação do Brasil, eu confidencio que existe
uma espécie de fraternidade de que fazem parte, ainda que não saibam (e já
são muitos!). Porém...
Professor José, foi você quem disse que onde não existir uma pessoa não
será possível colocar um profissional. Me corrija se estiver enganada. Uma
pessoa inserida em um contexto profissional, em que o comprometimento
em formar a inteireza do ser não seja considerado, em que a solidão de uma
classe seja sua companheira diária, como pode não se desfazer enquanto
pessoa? Hoje, por exemplo, pressinto que o meu dia será bem cinzento para
a minha pessoa...
Este é o melhor dia que vamos ter hoje – respondi.
Aprendamos com Foucault a tornar visíveis as forças que impedem a
mudança, a desocultar a violência visível (e a não visível). Lamentar-se, ou
vitimizar-se, nada acrescenta ou resolve. Tenhamos numa mão as interro-
gações e na outra as possibilidades.
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JOSÉ PACHECO
Na bromélia
A aula continua a ser a vaca sagrada da pedagogia
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JOSÉ PACHECO
“Não é meu...”
Sobre a arte de desincumbir-se
Primeira situação: o moço havia chegado à sua nova escola nesse dia, ex-
pulso de outra e bem recomendado: “é uma criança mimada e desobediente”.
Quando pendurou o casaco, derrubou dois e não fez menção de os apanhar.
Fui ao seu encontro. Olhei para os casacos caídos. E o moço falou: “não
fui eu!”
Fitei-o, calma e insistentemente. O moço voltou à fala: “não são meus!”
Voltei o meu olhar para os casacos. O moço voltou atrás, apanhou-os e
pendurou-os nos cabides de onde os tinha arrancado.
No fim da tarde, uma senhora entrou na escola, dirigiu-se ao vestiário,
pegou no casaco do moço, atirando um outro casaco ao chão. Não se abaixou
para o apanhar.
Segunda situação: portas fechadas, o avião acabava o abastecimento de
combustível. A tripulação avisava ser proibido o uso de celulares. Os celula-
res tocavam e muitos passageiros faziam ouvidos de mercador, ligando para
familiares e amigos.
O avião chegou ao final da pista, preparava-se para decolar. A aeromoça
insistia: “minha senhora, faça o favor de apertar o cinto da sua filha”.
“Ela não deixa colocar o cinto. Não consigo convencê-la.”
Quando a mamã insiste – “Vá lá, meu anjinho, deixa mamãe pôr o cin-
to!” – apanha uma sonora bofetada do seu anjinho. Encolhe-se. Sorri para a
aeromoça: “não vê que é uma criança...” E, durante toda a viagem, sapatos
sujos em cima do assento, a criança premiu o botão de chamada, arrancou e
destruiu tudo a que pode deitar a mão. Impunemente.
O avião aproximava-se da manga de desembarque. Três vezes a aeromoça
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JOSÉ PACHECO
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JOSÉ PACHECO
Múmias pedagógicas
As amarras contemporâneas
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JOSÉ PACHECO
De pequenino se
torce o destino
Sobre o possível fatalismo da reprodução escolar e social
Mais uma boca no mundo, mais um trafica chorando, lá vem mais um quase
nada, mais um para chorar de fome, mais um para levar tiro, mais um bandido
no morro, mais um perdido na vida...
Há dias, escutava a canção do Kleber e veio-me à memória alguém que
conheço como a mim mesmo. Nasceu num “cortiço”, onde havia quatro ba-
nheiros sujos e quebrados para partilhar com mais uma centena de pobres
como ele. Passou a infância numa oficina de fazer vassouras, num bairro
onde não entrava ambulância nem polícia. A sua família reinventava com
dignidade a parca existência. O pai, que acumulava três empregos malpagos,
foi preso, injustamente acusado de roubar. A família empenhou o que restava
dos poucos haveres, para provar a sua inocência. A mãe morreu jovem, do
cansaço de um trabalho insano. Os avós paternos cedo sucumbiram à fome
e a um surto de tuberculose. Os maternos tinham migrado da aldeia rural
para a cidade grande, na ilusão de uma vida melhor. Partiram cedo, minados
pelo álcool e por maus-tratos.
Estava destinado a ser líder de uma gangue do bairro. Era um dos raros que
sabia ler, era hábil a resolver encrencas e a escrever cartas de amor encomenda-
das. Tão sagaz quanto franzino, ganhara o respeito de ciganos e marginais, que
nele não usavam as facas e o defendiam de outras sortes. Com eles aprendeu
a gramática da sobrevivência: agredir os gringos que na rua aparecessem e, só
depois de eles sangrarem, perguntar-lhes ao que vinham...
Conviveu com todo tipo de violência. Cedo entendeu que fora roubado
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todos os dias, desde o dia em que nascera. Que, enquanto os seus dormiam
no chão da rua, outros dormiam sonos tranquilos. Foi perdendo amigas para
a prostituição e amigos para o cárcere. A tuberculose, a sífilis, a fome e a bala
foram ceifando vidas ao seu redor. Nas juninas dos seus dezoito anos, o seu
melhor amigo conheceu uma moça abastada e lá se foi, casamento de rico,
sonho americano de ascensão social, que pouco durou. Sem amigos e sem
futuro, pela mão de dois providenciais vizinhos, trocou a solidão pela evasão.
Deles ficou devedor daquilo que nunca lhes pôde pagar: o resgate de uma vida.
Trabalhou para poder estudar e fez um curso – fez-se professor.
Ele sabe, melhor do que ninguém, que os criminosos não nascem crimi-
nosos. Conhece os mecanismos sociais que os produzem. Por experiência
pessoal, também sabe que, quando a sociedade e a escola produzem exclusão,
o jovem não fica solto e busca a inclusão em grupos marginais. Sensível aos
dramas vividos pelos seus alunos, entristecem-no certas atitudes de professo-
res coniventes com a má qualidade de uma escola vocacionada para manter
um sistema iníquo, no qual quem tem curso superior merece prisão especial...
Talvez porque não conheçam a sua história de vida, os seus colegas de
profissão se tivessem surpreendido com a sua colérica reação, quando escutou
este diálogo na sala dos professores:
Aí, eu disse-lhe: Quem é que tu pensas que és, seu merdinhas? Saio de
casa para aturar esta bosta! Eu não ganho para isso!
Fez muito bem, colega! Eles vêm de casa desse jeito. Já nasceram assim.
Esse pestinha vai ser o próximo chefe de gangue. Eles não nasceram, eles
foram cagados!
Será mesmo verdade que “quem nasce torto tarde ou nunca se endireita”?
Aquilo que a psicologia chama de “profecia autorrealizada” agirá decisiva-
mente na psique mais profunda dos professores? Sabemos que a escola não
muda a sociedade, mas que muda com a sociedade, por isso, ouso perguntar:
A reprodução escolar e social será um inevitável fatalismo? A escola nada
poderá fazer para a contrariar? Ou poderá fazer a sua parte?
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JOSÉ PACHECO
Bizantinices
Reflexões sobre o tempo e os sujeitos
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JOSÉ PACHECO
Escutatória
A potência do silêncio
Há um tempo para cada coisa, até para reter a oratória. Retomo, agora, a
palavra, num reverente silêncio de escutatória. Por vezes, são tão densas as
palavras escutadas, que se aproximam da leveza dos silêncios. Venho falar-vos
de palavras assim.
O meu amigo Carlos (se todos os professores fossem feitos do seu molde!)
escreveu-me: Caro Zé, não conhecia ainda o sabor amargo da tristeza profis-
sional. Há quem diga que, mesmo nos momentos difíceis, há que saber tirar os
ensinamentos da vida. Eu não consigo. Só quero mudar de escola e poder projec-
tar-me de novo. Aquela sensação de poesia interior, que tantas vezes me avassalou,
está longe de mim. Sinto-me prosa insignificante, com alma de manual escolar.
Sei que percebes aonde eu quero chegar. Eu sabia aonde o professor Carlos
queria chegar. E, por saber, me quedei em silêncio, num fraterno e comovido
silêncio. Que poderia eu dizer, amigo Carlos, que não fosse deturpado por
aqueles a quem convém que o silêncio protetor da mediocridade te esmague?
Que poderia eu escrever, que não fosse açoitado por aqueles que te roubam
a “poesia interior”?
Alguém quis que eu escutasse uma criança, que me falou com o olhar:
Hoje, aconteceu uma coisa muito importante na minha vida. Quando acordei,
chamei a minha mamã e disse-lhe: “Tona pupa. Num qué!”(tradução: Toma a
chupeta. Não a quero!). A minha mamã perguntou: “Não queres a pupa, filhota?
Então vamos pô-la no lixo?”. Eu respondi: “Sim, à uixo!” (tradução: Sim, no lixo!).
Fui até à cozinha, no colo da minha mamã. E deitei a minha chupeta fora. O
pior aconteceu quando fui dormir. Não tinha percebido as consequências do meu
corajoso ato e chorei, até adormecer. Soube que os meus papás também sofreram
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muito, do outro lado da porta. Conversaram comigo e eu acabei por perceber que
a chupeta estava muito porca, dentro do lixo, e que eu sou uma menina grande
e já não preciso dela para dormir. Estás contente por mim, vovô?
Só mais umas palavrinhas de uma professora: Os meus alunos leram-me uns
textos. A capacidade e a coragem que eles tiveram de se abrir diante de todos!...
Foi, simplesmente, fantástico. Fiquei muito feliz! E confesso – ainda que, dida-
ticamente, não seja correto – que chorei diante dos meus alunos, quando leram
um dos textos, que tinham preparado para mim. Uma aluna chegou a dizer-me
que, a partir daquele dia, era uma nova e outra mulher, mais forte, mais digna. O
marido dela olhou para mim e agradeceu-me... com o olhar. Eu não sabia, mas ela
tem um tumor maligno e faz quimioterapia. Perdeu todo o cabelo, sofreu muito,
mas está reencontrando o sentido de viver.
Silêncio, mais uma vez. Redescubramos a importância do silêncio. Nele
estão contidas as respostas para as perguntas essenciais. Por vezes, nos lugares
onde o diálogo acontece, o silêncio pode falar mais alto. Por vezes, durante
as minhas conversas com educadores, um estranho sentimento me assalta
e sinto-me esmagado pelo peso das palavras, ou pela inutilidade do seu uso
– só se vê bem com o coração, não é asim? Isso acontece quando algum dos
meus interlocutores fica com ar absorto, com o sonho a saltar-lhe das órbitas.
Enquanto uns me vêm dizer que farão obras maravilhosas, outros retêm-se a
um silêncio que me assegura ter esperança de não ter estado a falar em vão. O
silêncio é da mesma natureza do sonho. E, se Victor Hugo disse que se deverá
julgar um homem por aquilo que ele sonha mais do que por aquilo que ele
pensa, mais valerá considerá-lo por aquilo que cala do que por aquilo que diz.
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JOSÉ PACHECO
Os pilares
A escola real não concretizou os direitos de aprender,
conhecer e fazer, entre outros ideais
“O que resta para a escola ensinar?”, perguntou a minha amiga Ely. E logo
me vieram à mente os quatro pilares do relatório da Unesco. Terá a escola
ensinado aquilo que Jacques Dellors, há muitos anos, recomendava? Os
jovens terão aprendido a conhecer, a fazer, a ser e a conviver? Vejamos.
Aprender a conhecer é algo arredio do universo escolar. Quanto muito, os
jovens são depositários de informação jamais transformada em conhecimen-
to, quase inutilidades, que apenas servem para debitar em provas e alcançar
um diploma. Talvez seja essa a razão por que somente 15% dos titulares de
diploma de direito conseguem aprovação no exame da Ordem dos Advogados.
E estamos conversados quanto ao aprender a fazer, a ser e a conviver:
atentemos na manutenção de um ensino livresco, ao desprezo pelo de-
senvolvimento pessoal e social, consideremos o bullying e os assassinatos
de professores…
No último reduto da transmissão de informação, os professores ar-
riscam-se a ser uma espécie em vias de extinção. A carreira dos professores
“conteudistas” está por um fio… A Ely contou-me que “professor Google” lhe
ensina quase tudo. Nos seus 60 anos, como qualquer professor que se preze,
a aposentada Ely continua a aprender. Achou um site em inglês com uma
animação interativa do efeito do sal nas moléculas de água. E pôde experi-
mentar como era a reação da água ao sal nas temperaturas que colocava no
site. Entendeu uma das complexas propriedades coligativas da química. E o
“professor Google” traduziu o texto, com perfeição, do inglês para o português.
Bernie Dodge, professor da universidade estadual da Califórnia, criou
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JOSÉ PACHECO
A mosca de Aristóteles
A escola não se adaptou aos novos tempos.
Hoje, é matriz oculta do insucesso escolar e social
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JOSÉ PACHECO
A medida do termômetro
Nas escolas brasileiras só se avalia a
temperatura, sem se dar o diagnóstico
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JOSÉ PACHECO
Notícias de Cecília
Suas crônicas de educação falam da
mesma indignação vista nas ruas
Um poeta português nos diz que, quando um povo acorda, é sempre cedo.
E, neste junho do nosso descontentamento, a juventude está nas ruas, pa-
ra exigir educação no lugar da corrupção. Este Brasil, que renasce de tempos
sombrios, lança o apelo que colocaste em versos: Vem, retira as algemas dos
meus braços / Porque a vida só é possível reinventada.
Entre a entrega de flores a policiais e o vandalismo de alguns bonsais hu-
manos, um milhão foi para a rua com milhares de micromotivos. E eram
muitos os cartazes que reclamavam melhor educação. Mas… qual educação?
Nas bibliotecas das faculdades de pedagogia, nunca encontrei as tuas co-
rajosas “crônicas da educação”. Decorridos 80 anos, elas se mostram atuais,
porque nos falam de indignação. Paulo Freire e outros educadores do teu
tempo nos disseram que deveremos exercer o dom da revolta perante as
injustiças do cotidiano. Como fez o Freinet, nos campos de batalha pela
liberdade da Europa, consciente de que os professores foram tão longamen-
te condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiça-
dos, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência,
os perigos.
Quem não percebe que a Escola reprodutora de iniquidades perdeu o
sentido? Mas ela sobrevive, qual cadáver adiado suportado por enfeites pa-
liativos. Por que mais programas, mais pactos, mais royalties…? Talvez al-
guns ainda não saibam que ser professor é, permanentemente, viver na
idade dos porquês, ousar perguntar: Por que razão há crianças que não
aprendem? E, depois, ter a coragem de mudar.
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Voltei à leitura das tuas crônicas, à mistura com leituras do Darcy, que
fazia eco das tuas palavras, ao denunciar a “canalha”, gente ruim, sem pu-
dor, sem escrúpulos. Foi para evitar a perpetuação de uma educação “ca-
nalha”, que os jovens ocuparam as ruas. Foi essa a razão de decidires ser
poeta, que é o mesmo que ser educadora. Pelos teus dezasseis anos, te fi-
zeste professora. Mas, quando te candidataste à cátedra de literatura da
Escola Normal, foste preterida, porque a tua tese sobre liberdade indivi-
dual não agradou… Foste alvo de perseguições, porque expressaste a tua
rebeldia nas páginas dos jornais do Rio da década de 30, quando pugna-
vas por uma efetiva renovação educacional. Crê, querida Cecília, que de-
fendeste as mesmas causas de jovens do século 21, jovens que se aperce-
beram de que são ensinados por professores do século 20, segundo um
modelo epistemológico do século 19.
Ousaste romper com tabus de uma sociedade tão moralmente doente
quanto a de hoje. Defendeste nas páginas dos jornais a mesma prática da
democracia, que os jovens brasileiros de todas as idades hoje reivindicam
nas redes sociais. Num junho de há mais de oitenta anos, denunciavas um
regime, que invocava a Liberdade como sua padroeira, enquanto submetia o
povo a velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso… Pugnavas por uma
reforma de finalidades, de democratização da escola (…) todas essas coisas que
a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação... Porém, depois, veio
um decretozinho provinciano, para agradar alguns…Bem mereceste os versos
que o Manuel Bandeira te dedicou: Cecília, és tão forte e tão frágil / Como a
onda ao termo da luta / Mas a onda é água que afoga / Tu és enxuta.
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JOSÉ PACHECO
Todo cambia
A velha escola parece estar a parir
uma nova educação
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ção podia ser repensada. Mas se alguns indicavam os vídeos a seus alunos como
uma ferramenta suplementar, outros os usavam para repensar sua metodologia.
E o que acontece nas escolas brasileiras? Os vídeos do Khan são usados co-
mo ele propõe, para acabar com as aulas, para repensar a metodologia? Não
creio. Muito menos para reinventar a escola, como o Khan deseja.
Uma revista publicou fotos de crianças de uma favela de São Paulo, en-
fileiradas em sala de aula, exibindo, sorridentes, os seus laptops individu-
ais. Por que se insiste no uso de plataformas digitais de ensino e em dotar
cada aluno com um laptop? Para gerar monstrinhos adoradores de tela, na
mera substituição do livro didático pelo computador?
Voltemos à leitura do livro do Khan... Ele convida-nos a acabar com a
escola de sala de aula, turma, série, prova. Porém, um sistema educativo
nas mãos de burocratas exerce seus podres poderes, impondo às escolas
procedimentos medievais, num tempo da introdução acrítica de novas tec-
nologias. E, talvez afetados pelos vícios de que padecem os seus “superio-
res”, os professores que adotam os vídeos do Khan continuam na sua sala
de aula, usando vídeos do Khan como complemento de aula, perenizando
práticas que Khan critica. Aqueles que reclamam de o ter como referência
apenas otimizaram o modelo prussiano de escola. Foi pior a emenda do que
o soneto!
No Brasil de hoje, a tentação da disseminação em escala e de mos-
trar efeitos de curto prazo provocam a mesma cegueira branca naqueles
que detêm os recursos e o poder de decidir. Ao invés de se apoiar projetos
efetivamente alternativos, em escolas que já abrem caminhos para novas
construções sociais, há quem fomente a prática de um ensino gerador de
individualismo, através da injeção de tablets no cotidiano da escola, numa
mesmice em versão digital. Lamentável!
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JOSÉ PACHECO
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tando há algum tempo. A frase mais constante que tenho percebido, re-
velando um sistema com resquícios escravocratas nas nossas escolas, é:
“Cuidado, vem aí o diretor!”, falando aos professores por qualquer motivo
pífio, como o fato de alunos estarem fora da sala de aula. Hoje, felizmen-
te, essa frase entra por um ouvido e sai pelo outro, porém já tive muito
medo. Já sei melhor quem eu sou e mereço respeito, mesmo errando bas-
tante. Mas me chama a atenção o modo como as pessoas fazem isso, para
cultivar um medo que, provavelmente, as assola há muitos anos.
É realmente entristecedor e tenho buscado esperança e coragem para
continuar. Recentemente, tive uma reunião de pais, onde pais e professores
mais pareciam zumbis hipnotizados por uma fala monótona e ditatorial da
direção escolar. Eu fui o único professor a falar, mas me acanhei, não cabia
falar todo o turbilhão que se passava em mim naquele momento. No dia se-
guinte não conseguia me concentrar nas aulas e a semana se arrastou (...).
Regressando à sangrenta autonomia do César... Quis levar a sua turma
numa “visita de estudo”. Dessa vez, não precisou doar sangue, mas teve de
pedir autorização aos “superiores hierárquicos”.
Na boca de políticos e técnicos, a expressão “gestão democrática” cons-
titui-se numa caricatura de autonomia. Qual o espaço de exercício de au-
tonomia e da dignidade profissional, numa cultura eivada de controlo e de-
pendência? Pesada herança feita de escravagismo e coronelismo, sarro de
imperiais relações de poder! Miséria de profissão, cujo profissional tem de-
ver de obediência hierárquica!
Até quando o César precisará doar sangue? E se cuidássemos de deba-
ter a gestão democrática com seriedade?
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JOSÉ PACHECO
Cadê os professores?
A luta por uma escola autônoma deve
ser maior que os burocratas
Acabo de receber boas notícias de uma escola que, há muitos anos, ten-
ta formalizar o seu termo de autonomia: A comunidade se reuniu na escola,
para responder a pergunta: como a comunidade poderá direcionar os rumos do
projeto da escola? Respostas maravilhosas foram argumentadas. E, no final da
reunião, ficou decidido que, nas próximas terças, estaremos reunidos novamen-
te. Cada participante tentará levar mais um integrante da comunidade para en-
volvê-los cada vez mais (...) com o intuito de resgatar a cultura do bairro. As de-
cisões tomadas refletem a vontade da comunidade (...).
A escola vem tentando assumir o direito à autonomia, garantido pelo
artigo 15º da LDBEN. Ela já poderia ter-se transformado na primeira esco-
la autônoma no Brasil, se os burocratas instalados na sua secretaria de educa-
ção não lhe negassem esse direito. Semeiam ardis, colocam obstáculos. Sutil-
mente, até contornam disposições legais, impedindo que a autonomia dessa
escola se concretize.
Quando a autonomia da Escola da Ponte foi questionada pelo mi-
nistério de Educação de Portugal, as universidades portuguesas, os sin-
dicatos de professores, os movimentos sociais reagiram. E o ministério
recuou perante um Manifesto de que transcrevo excertos: Há razões de
sobra para que qualquer governo interessado na melhoria do serviço público
de educação garanta a continuidade do projeto desta escola. As soluções pa-
ra os problemas da educação passam pela capacidade de tornar mais pública
a escola pública, promovendo um serviço educativo justo e de sucesso para to-
dos, num exercício permanente de cidadania. Manifestar solidariedade para
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JOSÉ PACHECO
Educar para...
ou na cidadania?
Para atingir tal desiderato, as escolas têm de
ser lócus de aprendizagem de cidadania
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JOSÉ PACHECO
Por toda parte, surgem sinais de uma nova educação, de uma nova hu-
manidade. Mas, para que uma educação freiriana seja possível, será preciso
introduzir algumas suliações num sistema até hoje colonizado pelo Norte.
A prioridade será cuidar das pessoas, no reúso de fraternas tradições. E es-
se cuidar das pessoas começará no cuidar da pessoa do educador.
Não há semana em que eu não receba dolorosos depoimentos de exce-
lentes educadores. A Virgínia desabafou: O ano passado foi muito ruim. Es-
tresse e tristeza por tudo o que estava vivendo nas escolas e com as crianças.
O secretário só entende de tecnologia vazia, repressão à mão grande, podas de
criatividades e por aí vai.
A medida 19 do PNE fala de “gestão democrática” e a LDB consagra o di-
reito das escolas à dignidade de uma autonomia freiriana e piagetianamente
fundamentada. Porém, em muitos municípios, cargos técnicos como o de
diretor são desempenhados por indicados de prefeitos e vereadores. Num
desses municípios, uma secretária pinochetiana incumbiu um diretor de
escola de destruir um dos melhores projetos que encontrei no Brasil. Qua-
se conseguiu os seus intentos, não fora a reação piagetiana da comunidade.
E continua a tentar destruir algo que não entende. Impunemente, à reve-
lia da lei e da ciência, outro secretário de educação ordena: Tem de ser feito
igual em todas as escolas. Vocês não podem fazer diferente. Já disse que não gos-
to de trabalho de grupo. Não autorizo! Lamentáveis manifestações de auto-
ritarismo pinochetiano ocorrem quando professores ousam mudar. Muitos
episódios como esses tenho colecionado, mas por estes me quedo, porque não
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Fofocando
Algo vai mal no reino da educação quando a
ignorância usurpa o espaço do debate sério
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JOSÉ PACHECO
Exequibilidade
Os dilemas da Base Nacional Comum e os
riscos dela decorrentes tal como está
O professor Vasconcelos – que descanse em paz e que Deus lhe perdoe a in-
genuidade pedagógica – acreditou ter me ensinado o “sistema galaico-durien-
se”. Mas a minha criança apenas havia feito decoreba sem sentido: Peneda,
Suajo, Gerês, Larouco... e por aí fora, numa lenga-lenga como tantas outras
associadas a conteúdos da grade curricular da época, debitados em prova
e, depois... esquecidos.
Quando, já nos meus cinquenta anos, eu viajava por Trás-os-Mon-
tes, avistei uma bela montanha. Que montanha é aquela? – perguntei.
Responderam: É a Serra do Larouco. A palavra Larouco ressoou na minha
memória. Finalmente! Peneda, Suajo, Gerês... Larouco! Mas eu nada sabia do
Larouco, do povo que lá morava, nem da sua cultura, nem das suas neces-
sidades sociais, nem nada! Apenas “sabia” uma palavra: Larouco. Hoje, sei
que o Vasconcelos era um consumidor de currículo, aquele que constava do
“livro único”, da Base Nacional Comum imposta pela ditadura. E nós, po-
bres crianças, éramos vítimas de uma prática pedagógica já então obsoleta.
Conceber currículo é, também, ponderar sobre o seu desenvolvimento,
assegurar a pertinência de expectativas de aprendizagem. Porém, com pre-
ocupação, observo que os competentes autores da proposta de BNCC bra-
sileira parecem ser herdeiros da escola do professor Vasconcelos. Os textos
introdutórios (belos nacos de prosa) contrastam com o pressuposto da ma-
nutenção da dita escola “tradicional”, na qual múltiplos arcaísmos peda-
gógicos impedirão o cumprimento integral do currículo proposto. No do-
cumento são consagradas cartesianas segmentações (ensino fundamental,
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
ensino médio, anos iniciais, anos finais) e evidentes outros velhos vícios de
um obsoleto modelo de escola (práticas pedagógicas suplementares, aulas...),
na qual os currículos anteriores não foram cumpridos.
Até mesmo um “especialista” australiano (um daqueles que ainda acre-
ditam nas virtudes da aula) nos diz que falta coerência entre o texto intro-
dutório da proposta curricular brasileira e o restante da redação do docu-
mento. Embora tenha encontrado no preâmbulo da BNCC expectativas de
aprendizagem contemporânea, não viu no corpo da proposta vestígios do
modo como uma mítica educação integral se concretizará. E afirmou: Nos
textos das áreas de conhecimento há muitos objetivos de aprendizagem que ape-
nas levam os alunos a repetir e decorar conteúdos, em vez de fazê-los agir ati-
vamente em relação aos conhecimentos para resolver problemas, desenvolver a
criatividade e refletir. E acrescentou: O texto preliminar da BNCC não vai le-
var à evolução que o Brasil espera ter em sua educação.
Já se pratica no Brasil – e, que eu saiba, não se pratica na Austrália... –
aquilo que o “especialista” australiano aconselha. Conheço muitos e bons
projetos, que os “especialistas” brasileiros desconhecem. A síndrome do vi-
ra-lata obriga-os a escutar “especialistas” estrangeiros, enquanto os impe-
de de enxergar o que têm cá dentro.
É evidente que um novo currículo exige novas práticas e que é tarefa
inútil selecionar disciplinas e objetivos, se não se considerar as condições
em que decorrem as experiências educativas. No rumo em que se insiste, a
proposta de BNCC revela-se como não exequível. O laborioso afã de conce-
bê-la pode ter sido tarefa vã.
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JOSÉ PACHECO
A queda do império
Há duas décadas espera-se pela
regulamentação da autonomia pedagógica
Diz a sabedoria popular que à mulher de César não basta ser honesta,
tem de parecer honesta. Essa expressão é usada em política para dizer que
os governantes, além de serem honestos, precisam agir como tal. A fra-
se original surgiu após um escândalo na Roma do ano 60 a.C., envolvendo
o imperador e a sua mulher. Júlio César andava na guerra e Pompeia vivia
muito sozinha. Um admirador da moça aproveitou a ausência do marido,
entrou no palácio imperial, perdeu-se nos corredores, foi descoberto e pre-
so. Levado a tribunal, foi absolvido da acusação, pois César ignorou o que
se dizia sobre sua mulher, apesar de ter afirmado: Não basta que a mulher
de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita. Roma vivia um tem-
po de intriga e corrupção, por ser um império sem partido. Melhor dizen-
do, de partido único, uma sociedade servida por uma multidão de escravos
e dominada por uma casta de ociosos senadores.
Supostamente adúltera, a mulher do César não viveu o mesmo calvário
da Capitu. Mas, de algum modo, a degradação dos costumes terá contribuí
do para acelerar a queda do império – à mulher de César, para ser honesta,
não bastaria parecê-lo, seria preciso sê-lo. Não seria suficiente expulsar do
palácio a mulher de César. Outro golpe palaciano também deveria (não só
psicanaliticamente...) “matar o pai”, dar um “fora” no César. À semelhança
do que fazem os traidores de todos os tempos, 60 membros do Senado o as-
sassinaram, pondo fim à República, dando início ao Império.
Talvez possamos estabelecer um paralelo histórico com uma América
Latina ciclicamente governada por ridículos tiranos... Todos os países ne-
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Silêncio
Onde estão aqueles de quem se deve exigir
resposta a medidas inúteis?
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JOSÉ PACHECO
Mais ou menos
Colisões entre os especialistas de fora
da escola e os professores
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JOSÉ PACHECO
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JOSÉ PACHECO
“Ubuntu”
O modelo educacional herdado da revolução
industrial impede o exercício da solidariedade
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Tempo
Egídio aprendeu que cada coisa tem uma cadência
própria, com seus atrasos e consequências
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
lhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio
da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram
mais que muitas. Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio
ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada. O WC manteve-se
imerso na mais profunda escuridão.
Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coi-
sa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna,
que não tardou a sentir fria e desconfortável, até aos sapatos. O Egídio sa-
cudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu
o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de
cada vez que introduzia as mãos tacteantes em umidades não identificadas.
Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontal-
mente contra uma traiçoeira parede, que as trevas ocultavam. Meio tonto
da pancada, continuava a acenar com a sinistra. Contornou o obstáculo,
com a mão direita colada à dorida fronte, onde começava a emergir uma
dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que es-
tava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou no-
vamente. E fez-se luz!
Curioso e inteligente como qualquer professor, o Egídio quis saber mais
sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introdu-
zidos nas escolas do século 19. Já ninguém se recordava dos objetivos visa-
dos pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmen-
te acionada do tempo dos avós dos professores, soava, agora, a mando de
um computador. Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio:
os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.
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JOSÉ PACHECO
Rankings
Supostos especialistas insistem em dar crédito ao ranqueamento
de escolas, como se isso fosse possível ou aceitável
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
carei, afirmou que ”sempre há de haver quem reprove”. Eis como a crimino-
sa “naturalização” do insucesso se pereniza, no apelo ao mais feroz individu-
alismo, à competição desenfreada.
Cada criatura desperdiça o seu tempo como lhe apraz. E nenhum mal daí
viria ao mundo, se o Felismino não fosse considerado “especialista” em edu-
cação e não fizesse uma divulgação maciça de tolices como concursos de “pro-
fessor nota 10”, ou de “melhor professor do mundo”. Mas, no Reino da Educa-
ção, reinam ridículos e nefastos Felisminos do marketing educacional. A capa
de uma revista ostentava um sugestivo título: Conheça as melhores escolas para
o seu filho. Mas, quais são as melhores escolas, as boas escolas?
“Especialistas” e jornalistas, para os quais as ciências da educação são ci-
ências ocultas, passam para a opinião pública uma imagem simplista e de-
turpada do cenário educacional, produzindo propaganda enganosa. Entre o
vestibulinho e o vestibular, muitas ditas “boas escolas” produzem aparências
de aprendizagem e bonsais humanos. Quantos conteúdos da decoreba dos
cursinhos se transformam em conhecimento ou competência, após o Enem?
Quantos conformistas são produzidos nas “boas escolas”, que vão ocupar as
cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?
Os Felisminos criam bancos de itens, para que os professores intensifiquem
a aplicação de testes, horas a fio em preparação para exames. Perante notas
deprimentes, pugnam por mais aulas de reforço (lamentáveis subprodutos de
uma prática pedagógica lamentável), “com o intuito de melhorar o desempe-
nho dos alunos”. E um dos Felisminos até afirmou que se deverá aplicar mais
provas, ignorando que, na forma da lei e da ciência, a avaliação deverá ser for-
mativa, contínua e sistemática. Os Felisminos ignoram que não é a preocupa-
ção com o termômetro que faz baixar a temperatura.
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JOSÉ PACHECO
Amor, ordem
e progresso
A aprendizagem só acontece se tecemos vínculos afetivos
Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por finalidade – eis o
lema adotado por Benjamin Constant, o “Fundador da República Brasilei-
ra”. Benjamin foi ministro da Instrução Pública, autor de uma profunda
reforma curricular, propôs a descentralização da gestão e uma “formação
adequada aos novos tempos”.
Apesar de ter sido militar e condecorado como combatente na Guerra do
Paraguai, Benjamin era um pacifista, assumia o princípio de que se deve “Viver
para Outrem”. E, ao participar no movimento pela Proclamação da República
e na elaboração da Constituição de 1891, pugnava por que a palavra Amor esti-
vesse presente em todas as citações do lema positivista.
Tal como o Benjamin de há mais de cem anos, sabemos que as pessoas de-
verão amorosamente colaborar com pessoas, sem com elas competir. Sabemos
que escolas são pessoas e que as pessoas são os seus valores. Nos últimos qua-
renta anos, milhares de vezes orientei a construção de “árvores dos valores”.
Cada participante nessa dinâmica de grupo indicou o valor essencial das suas
vidas. E o “tronco” da “árvore”, o valor mais vezes referido sempre foi o… amor.
Numa tese sobre a Escola da Ponte, encontrei a descrição de um epi-
sódio, que transcrevo. Nos idos de 1980, o “Tribunal” julgava alunos, cujos
nomes surgissem em grande quantidade no “Acho Ruim”. Na proto-história
da humanidade, em que os homens ainda precisam de tribunais, prisões e
guerras, as crianças imitaram-nos. Até ao dia em que uma menina de seis
anos de idade, advogada de defesa de um colega, assim falou numa sessão
do “tribunal”:
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
Vós não ouvis dizer que devemos amar-nos uns aos outros? Eu escutei o ad-
vogado de ataque dizer que o Marco cospe nos colegas, que lhes atira pedras,
que o Marco é mau. Mas o Marco não precisa que digam que é mau. Ele pre-
cisa de quem o ajude a ser bom. Algum de nós já ajudou o Marco a ser bom?
E continuou: Estou nesta escola há um ano e só ouço falar de castigos. Pro-
ponho que se acabe com o tribunal e se crie comissões de ajuda.
Assim ficou decidido na assembleia seguinte. E, sempre que o Marco ten-
dia para fazer besteira, logo um círculo humano o rodeava, dizendo: Somos a
comissão de ajuda. Estamos aqui para te ajudar. Nós sabemos que tu és bom. Nós
somos teus amigos! – E o “mandamento novo” se cumpriu. Nunca mais foi pre-
ciso impor regras, reprimir, punir.
A aprendizagem acontece se tecemos vínculos afetivos – se eu existo é
porque o outro existe; o ser humano não é apenas um ser de contato, é um
ser em relação – e a educação é um ato de amor. Mas continuamos insensí-
veis aos apelos de Freire e do poetinha: ponha um pouco de amor na sua vida.
E, nos arquipélagos de solidões em que as nossas escolas se transformaram,
inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque ape-
nas se amam.
Cadê a palavra amor na bandeira brasileira? Ordem sem amor é violên-
cia, porque o adestramento não define a educação e uma educação amorosa
é incompatível com a organização autoritária da vida. Progresso sem amor
é deterioração ambiental, desumanização.
Na sociedade doente em que vivemos, prevalece a cultura do ódio. Ima-
ginai o que seria este país se a palavra amor não fosse ostracizada. Se o mais
belo hino do mundo nos diz que um raio vívido de AMOR e de esperança à
terra desce, por que terá sido amputado o lema positivista inscrito na ban-
deira do Brasil?
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JOSÉ PACHECO
Educação com
base em valores
O propósito de uma pedagogia é formar o caráter
– a unidade entre pensamento, palavra e ação
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Estórias do tempo
da velha escola
Brasília, julho de 2039 – ou: no tempo em que não
havia a preocupação de separar o letivo do não letivo
Querida Alice,
Quando nasceste, enviei-te cartas com data de 2007 (*). Nelas, eu te des-
crevi a escola do início de século, augurando que uma escola humanizada
te acolhesse. Dois anos decorridos, idênticas mensagens eu enviei ao Mar-
cos (*). Retomo, agora, o exercício epistolar, iniciado na primeira década do
vigésimo primeiro século, para que saibais como era a escola no tempo em
que o vosso avô nela se iniciou e como ela era, cinquenta anos depois, no
início dos anos vinte. Quase quarenta anos decorreram sobre o tempo em
que viestes ao mundo. Creio ser tempo de enviar novas cartas aos meus ne-
tos, quando uma nova humanidade desperta, já distante do início de milê-
nio e das atrocidades cometidas em finais da segunda década.
É confusa essa “viagem no tempo”? Pois ficai sabendo que o tem-
po não existe, nem estabelece os rumos da humanidade. Foram seres
humanos amorosos que, em amorosos atos, geraram impulsos de hu-
manização. Foram educadores esperançosos e éticos que marcaram
o tempo da mudança, rumo à idade da educação, que os futuristas
dizem ser a década de 40. Por isso, vos contarei uma estória em cada
carta, memória de amorosos gestos de há noventa anos. Também des-
creverei episódios ocorridos há vinte anos, no tempo em que a uni-
versidade vos acolheu.
Nesta carta, escolhi falar-vos de alguém que, em meados da década de
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
(*) Para Alice, com amor. São Paulo, Cortez Editora; Para os filhos dos fi-
lhos dos nossos filhos. São Paulo, Papirus.
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JOSÉ PACHECO
Tempos de
desesperança e medo
Missivas, Tavira, agosto de 2039: o contrário
do amor não é o ódio, mas o medo
Netos queridos,
Pretendo falar-vos de tempos velhos, para que não se apaguem da memória
dos homens. Falar-vos-ei dos conturbados tempos vividos num Brasil doente,
que o meu amigo Joelmir assim descrevia, nos idos de 2019: Vivemos o vazio
deixado pelo apodrecimento do velho paradigma – que já não nos serve, não por ser
velho, mas por negar violentamente a vida humana e não humana – e o parto in-
concluso de um novo paradigma, em andamento, que nos permitirá vencer o medo
e reaprender a amar. Em outras palavras, vivemos tempos de desesperança e medo,
porque o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O ódio é, tão somente, reflexo,
decorrência do medo. A questão central aqui é: chegamos a um nível tal de adoeci-
mento [individual e coletivo] e de imperativo da cultura do medo, que nosso maior
desafio no século 21 passou a ser reaprender a amar. E eu me perguntava: Qual
será a nossa cota-parte de responsabilidade? Como teríamos contribuído para
esses tempos de desesperança e medo?
O meu amigo Rui Canário dizia-nos que, quando analisávamos o mundo
em que vivíamos, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e
das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos
eram consequências de uma determinada escolarização da sociedade. E de
que seria necessária e urgente uma nova escola, para um novo mundo.
Nesse tempo, o paradigma da comunicação emergia, mas as escolas a ele
se mantinham alheias. A universidade ainda sobrevivia na ilusão da ensina-
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
gem, desconhecendo que não se aprende o que o outro diz, mas que se apren-
de o outro. Sucediam-se as teses sobre o paradigma da comunicação. Parado-
xalmente, os seus autores continuavam dando aula, reproduzindo práticas
fósseis, incompatíveis com o paradigma que, teoricamente, adotaram.
A quase totalidade das escolas radicava as suas práticas no paradigma da
instrução. Já vivíamos num tempo de sociedade em rede, mas a análise social
mantinha-se cativa de raciocínios lineares. Até a Terceira Revolução Indus-
trial, dispúnhamos de sequências lógicas. Depois, sobreveio o simultâneo, a
sobreposição. Na era da pós-verdade, através das redes sociais, assistíamos a
um sutil processo de desumanização. Pejadas de comentários abjetos, acen-
tuavam a degradação moral e ética. Nunca de tantos instrumentos de comu-
nicação nós dispúnhamos e nunca tão solitários nos sentíamos.
Um dos desafios da escola era o de tentar compreender as origens e suster o
suicídio infantil e juvenil. No Brasil havia aumentado 40% em 10 anos. O suicí-
dio era a segunda razão de morte de jovens no mundo. Em países dos primeiros
lugares do Pisa, eram frequentes os suicídios e a automutilação. Muitos jovens
perderam a vida em ataques a escolas, em Susano, no Realengo. Adultos enchar-
cavam-se em medicamentos, crianças se lobotomizavam com Ritalina. O huma-
no estava em crise.
Mudanças operadas no tecido social provocavam uma sutil inversão de
valores, enquanto as escolas se enfeitavam de computadores e de pseudoi-
novações. Mas, no Portugal contemporâneo desse trágico Brasil, um amigo
de nome João fazia milagres. Na escola do vosso pai, na do Antonio e em
muitas outras, professores competentes decidiam ser éticos. E uma nova
educação nascia...
Disso vos falarei em próxima carta.
Com amor,
O vosso avô José
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JOSÉ PACHECO
Educação é incompatível
com organização autoritária
Missivas, São Paulo, agosto de 2039: de como muitos alunos
se transformaram em adultos medrosos e egoístas
Netos queridos,
Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:
“O Governo pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno cheio de
maldade não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer
restabelecer a ordem e não consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os
mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são
bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Que interessante é uma es-
cola bem disciplinada! Mas onde há a que deixe de ser perturbada por algum de entre
muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se
na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrom-
pendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.
Esta notícia foi publicada em maio de… 1887.
Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de
1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disci-
plina com uma palmatória. E, quando a professora já estava cansada, mandava
um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem de-
vagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor
deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam
“tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola
e medo de ir para casa”.
Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que
é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvi-
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Harmonia entre
família e escola
Missivas, Butantã, março de 2040: quando há
alinhamento de propósitos, a criança vem com um
olhar amigo, vem para aprender
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
pela ONG Cidade Escola Aprendiz, para derrubar muros entre o viver e o
aprender, entre o ser e o fazer. No caos urbano de São Paulo, praças, becos,
teatros, bibliotecas se convertiam em espaços de aprendizagem. E, nesses
contextos, o professor assumia novos papéis, agia como um tutor de jovens
das mais diferentes origens e classes sociais. A escola do futuro por ele so-
nhada seria um nodo de uma rede de comunidades de aprendizagem. Se
um filósofo dissera que se deveria educar para a vida, a obra de Dimenstein
educava na Vida.
Nesses conturbados tempos, os gestos fraternos eram escassos. E a soli-
dão era, por vezes, o destino daqueles a quem cabe por sina o conhecimento
e a bondade. Quando se fala com amor, cada palavra dita é uma revelação
daquele que fala. Daí que, na Babel em que frequentemente se transformara
a comunicação, o Gilberto estabelecesse pontes de entendimento, abrisse
janelas para a lucidez dos dias, levasse o alimento da palavra simples e pura
até às raízes dialógicas, para que aquilo que padecesse de aridez se transfor-
masse em comunicação fértil.
Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao
dom das lágrimas. Deste modo, Gilberto havia comentado o diagnóstico de
câncer: “A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo”.
Escassos dias antes da partida do seu companheiro, a Ana convidava amigos
a se juntarem numa corrente, que emanasse boas vibrações para o Gilber-
to. O seu companheiro faria um procedimento médico importante naquela
semana: “Vibrarei para que tudo que emanarem para Gilberto possa retornar
em dobro para cada um de vocês”. E o amigo Gilberto continuou entre nós.
No lugar etéreo onde estiver, saberá que a sua partida foi “um começo”,
coincidiu com um tempo de refundação da escola por ele sonhada. O câncer
ressignificou a sua existência e, quando a pulsão da morte induzia o caos e se-
meava tristeza no frenesim quotidiano, o amigo Gilberto descobriu ocultas ale-
grias. Com a Ana, escreveu um livro sobre a derradeira experiência. E esse livro
não poderia deixar de ser uma história de amor… à Vida.
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JOSÉ PACHECO
Discursos apropriados
Itaguara, 30 de outubro de 2040: em 2020, era
ridículo chamar “inovação” à aula invertida
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Hora de abandonar
a ditadura escolar
São Pedro do Sul, 5 de janeiro de 2041: os princípios
e práticas da Escola da Ponte têm influência em
educadores como Célestin Freinet
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Hoje, o ser humano mais perfeito de quantos seres humanos conheci fa-
ria cento e doze anos. A extrema generosidade e a discreta honestidade do
vosso trisavô Mário foram para mim exemplo. E quero que saibais que cele-
bro o seu nascimento, porque o sinto presente.
No tempo do seu terreno existir, o “avô Mário” vivia para além do tempo, vi-
via a eternidade em vida. Sabia que muita infelicidade humana findaria quando
a humildade desfizesse o mito da existência de um tempo medido. Nada aca-
bava, quando se acabava um ano. Quando um ramo secasse, novo ramo germi-
naria. Quando uma certeza tombasse na arca das inutilidades, novas doutrinas,
tão perecíveis como as perecidas, se esboçariam, no rendilhado tecer das efé-
meras ciências. Era durável somente o que fazia sentido, o que se renovasse em
cada um dos nossos transitórios dias.
Quando, no início do século, me afastei da pátria, para viver e morrer nos
braços da mátria brasileira, todos os dias primeiros do mês de março, numa li-
gação telefônica, que era mais do que uma breve conversa, o felicitava por ter
cumprido mais um ano de vida. Era uma singela homenagem, ato de gratidão,
porque aquilo que com ele havia aprendido não tinha preço.
Com a avó Mina, o avô Mário dedicara grande parte da sua vida a cuidar
da educação religiosa de crianças e adultos. Já idoso, visitava os enfermos e
os velhos impossibilitados de “ir à missa” e com eles comungava. A memória
desse ser extraordinário me conduziu à evocação daquele que foi seu guia,
um Jesus que disse que o homem velho não tardaria a interrogar, ao longo
dos seus dias, uma criança.
Qualquer criança sabe que o tempo não existe, que é invenção dos ho-
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
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JOSÉ PACHECO
Pessoas que
mudem a sociedade
Torre de Moncorvo, 21 de abril de 2041: sem liberdade e
sem autonomia, universidades são barradas de cumprirem
sua missão criadora
Há vinte anos, o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman lembrava aos seus
conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 59
anos de existência.
Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo aniversário da
universidade, foram comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as
omissões” e a Comissão UnB.Futuro surgiu, para pensar a universidade de
outro meio século. Na década de cinquenta do século passado, acadêmicos
sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro”. Mas,
o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro A
Universidade Interrompida 1964-1965. Nos idos de sessenta, no seu depoi-
mento à Comissão Parlamentar na Câmara dos Deputados, o português
Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade que enfrentasse
os desafios dos tempos presentes (década de sessenta) e futuros:
“A universidade atual, que vem da universidade medieval, é uma universida-
de que se alicerça sobre a ideia de fraternidade, de esforço comum, para atingir
uma verdade, que não é uma verdade puramente intelectual, mas uma verdade
de sentimentos, de unidade entre os homens. O grande drama da universidade
brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são
efetivamente de outras economias, de outros estágios educacionais e que de ma-
neira nenhuma podemos adaptar ao Brasil”.
Nesse corajoso discurso perante a Câmara, Agostinho da Silva denun-
ciou a falta da liberdade e da autonomia, gerada pelo “regime de medo”, que
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ENTRE MARGENS ӏ CARTA PARA EDUCADORES
fazia com que a universidade não pudesse cumprir a sua missão criadora.
Em pleno “maio de 68”, num ano em que o mundo passou por profundas
transformações, Agostinho vaticinava aquilo que viríamos a vivenciar, algu-
mas décadas depois:
“Cada vez creio mais que o Brasil é, de todas as nações, aquela que mos-
tra no mundo, neste momento, mais capacidade criadora, mais capacidade
humana, mais possibilidade de convivência. Mas, de nenhuma maneira nós
podemos ter a esperança de ter uma universidade nova, se não tivermos um
Brasil novo”.
Volvido meio século, novo “regime de medo” se instalou. Nesse tempo
de negacionismo, sinais de ressurgimento criador surgiam. Face à pande-
mia da covid-19, mais de 300 projetos foram desenvolvidos na UnB, para
enfrentar a crise sanitária. O sonho de Anísio e Darcy não morrera. Outros
insignes mestres o retomaram: Luís Pereira, Vladimir Carvalho, Aldo Pa-
viani, Adalgisa Rosário, José Coutinho, Isaac Roitman e outros vultos, que
tive oportunidade de conhecer. A UnB “estava viva”. Contudo, resquícios de
“regimes de medo” afetavam a universidade, corroendo o sonho de Darcy,
ignorando a reflexão de Agostinho:
“A universidade não é capaz de responder mais aos anseios da juventude,
que quer encontrar um estímulo de criação, alguma coisa que a encaminhe
para o mundo e não encaminhe apenas para a sua profissão”.
Nos idos de vinte, essas palavras ressoavam carregadas de triste atualida-
de. A administração educacional se constituía em obstáculo à inovação. Na
universidade, a formação dos educadores permanecia ancorada em práticas
instrucionistas. Uma educação arcaica reproduzia uma sociedade arcaica.
Freire havia dito que a escola não mudaria a sociedade, que a escola mu-
daria as pessoas e que as pessoas mudariam a sociedade.
Porém, se a sociedade não mudava a escola, onde estaria a escola que
mudaria as pessoas? Onde encontrar pessoas capazes de mudar a sociedade?
Como seria possível interromper o círculo vicioso dos “regimes de medo”?
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JOSÉ PACHECO
Escola como
centro comunitário
Santa Rosa, 21 de novembro de 2040: Lauro de Oliveira
Lima e as comunidades de aprendizagem
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