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Rio de Janeiro
2011
© 2011 by Editora Rovelle
Responsabilidade Editorial:
Gerência Editorial:
Projeto gráfico de capa e miolo: C&C Criações e Textos
Editoração eletrônica e revisão: C&C Criações e Textos
Copidesque:
Tradução:
Imagem de Capa:
Conselho Editorial Acadêmico: Andrea Rosana – UNIRIO
Elizeu Clementino – UNEB
Joanir Azevedo – UFF
Mairce Araújo – UERJ/FFP
Maria Teresa Esteban – UFF
Valter Filé – UFRRJ
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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ISBN:
2011
1ª edição
1 - Ruptura.
da Escola da Ponte. Os alunos participam em todos os momentos do
quotidiano escolar, possuindo voz activa e desenvolvendo uma acção
crítica e construtiva num conjunto alargado de decisões da vida da
escola, como na assembleia semanal. A escola pauta-se por três va-
lores estruturantes que, continuadamente, são transmitidos aos seus
educandos: a autonomia, a solidariedade e a responsabilidade. Outro
eixo da coluna vertebral da escola que caracteriza esta experiência
pedagógica é o facto de possuir uma forte base de sustentação filo-
sófica, teórica e científica. Apresenta uma perspectiva que remete,
sobretudo, para os pressupostos pedagógicos e filosóficos de Jonh
Dewey e de Paulo Freire.
Na escola contemporânea, as novas tecnologias, assim como a
permeabilidade das fronteiras entre a casa, a escola e o mundo, no
geral, vêm revitalizar e adaptar os conceitos de educação de Dewey
(Elkind, 2007). As tecnologias forçam o desenvolvimento de uma
nova realidade educacional, não permitindo aos professores ter o
monopólio do conhecimento e apelando a uma metodologia que
combine a criatividade, a automotivação e a aprendizagem prática.
Pela vivência pedagógica da Escola da Ponte, podemos dizer que
será fácil apropriar-se dos novos desafios da educação contemporâ-
nea, i.e., de novas formas de relacionamento com o conhecimento,
a potenciar uma comunicação global com os diferentes intervenien-
tes na comunidade educativa.
A Escola da Ponte demonstrou, ao longo do seu tempo de existên-
cia, dedicação e atenção ao conjunto de alunos e a cada criança em par-
icular, reveladoras de um peril de desenvolvimento socioproissional
de ensino muito competente, sustentado também nos resultados das
provas de aferição nacional. A pedagogia da Ponte eleva o desenvolvi-
mento do senimento de iniciaiva e de energia de moivação própria
da aprendizagem da criança – a aprendizagem autodirigida, que ajuda,
deste modo, as crianças a construírem o seu conhecimento a parir de
uma aitude relexiva, manipulando e experimentando tudo aquilo que
as rodeia. Este comportamento contribui para o desenvolvimento de
novas capacidades mentais e de conhecimento, próprias de uma postu-
ra do aprender a aprender, de uma pedagogia para a autonomia. A Es-
cola da Ponte transmite, nas suas relações com os alunos, um testemu-
nho que valoriza o senido de jusiça, de igualdade de oportunidades e
de respeito intrínseco pelas crianças e pelos seus direitos.
Estas úlimas qualidades são, na minha perspeciva, de sobrevalo-
rizar numa sociedade actual, cada vez mais compeiiva e egocêntrica.
É graiicante encontrar ambientes pedagógicos que combinem, de for-
ma integrada, as vertentes de competência e humanista, estruturantes,
ao meu ver, da proissão de docente.
Gostaria ainda de revelar a sensibilidade desta escola para com as
questões de diversidade e de inclusão, tema central advogado pelas re-
comendações da Declaração de Salamanca, em 1994, e da Declaração
do Milénio das Nações Unidas, aprovada na cimeira2 do milénio, realiza-
da entre 06 e 08 de setembro de 2000, em Nova Iorque. Na forma como
lida com os jovens com NEE e com as suas peculiaridades de aprendi-
zagem, o projecto da Escola da Ponte demonstrou a sua capacidade
em lidar com a diferença, procurando saber mais sobre necessidades
especíicas e compreendê-las, tratando as crianças como iguais (i. e.,
elevando a fasquia e mantendo sempre expectaivas posiivas), sem se
esquecer das suas diiculdades; moivando-as e valorizando cada pas-
so, assegurando sempre essa valorização no grupo, sem a comparar ou
a minimizar. É essa forma de lidar que deve ser apanágio da escola in-
clusiva, porque ela ajuda crianças e adolescentes a crescerem nos anos
escolares e a acreditarem em si mesmo, valorizando a diferença.
Finalmente, algumas palavras sobre o seu mentor, José Pacheco, porque
este projecto pariu de alguém com caracterísicas muito pariculares, que, em
ilosoia africana, se denomina de Unbuntu, a essência do que é ser humano.
Refere-se a alguém que usa a sua força em prol dos outros e que parilha o seu
valor com os demais. Ao fazer isso, a sua humanidade é reconhecida e, como
tal, permanece indestrinçavelmente ligada aos outros (Tutu, 2007).
Esperemos que experiências como a da Escola da Ponte possam ter
coninuidade e replicar-se, porque numa escola como essa as crianças
podem, verdadeiramente, tornar-se empreendedoras dos seus sonhos.
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e deinida
como outra coisa qualquer.
Como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso.
Como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros
altos, que em verde e oiro se agitam.
Como estas árvores que gritam em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que sonho é vinho, é espuma, é fermento.
Bichinho álacre e sedento de focinho poniagudo que ossa2 através de tudo no
perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste ou capitel, arco
em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega,
magia, que é retorta de alquimista.
Mapa do mundo distante, rosa dos ventos infante, caravela quinhenista, que
é cabo da Boa-Esperança.
Ouro, canela, marim, lorete de espadachim, basidor, passo de dança,
columbina e arlequim.
Passarola voadora, para-raios, locomoiva, barco de proa fesiva.
Alto forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultrassom, televisão.
Desembarque em foguetão na superície lunar.
Eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida.
E que sempre que o homem sonha o mundo pula e avança.
Como bola colorida entre as mãos duma criança
3 - As Meninas é o nome como icou conhecido o quadro pintado, em 1656, pelo re-
nomeado pintor andaluz Diego Velázquez, que culmina todo um percurso de vida
feito de um labor único, pessoal, coincidindo com o período barroco da escola es-
panhola de pintura. Atualmente, esta obra-prima símbolo de toda a arte universal
é pertença do acervo de Pintura do Museu Nacional do Prado, em Madrid, desde
a data da sua inauguração em 1819. Disponível em: <htp://ler.letras.up.pt/uploa-
ds/icheiros/6635.pdf>. Acesso em 12 jul. 2010.
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Introdução
Este livro tem como razão e propósito ampliar debates sobre ques-
tões educacionais emergentes, cujas referências ainda estão se cons-
truindo no campo da Educação e que suscitam interesse dos proissio-
nais que nele atuam, como: (a) História da proissão docente no Brasil
e em Portugal; (b) História das Insituições Educacionais; (c) Currícu-
lo e Espaço escolar; (d) História das Ideias; (e) Estrutura e Cultura or-
ganizacional; entre outras. As insituições escolares, em senido lato,
signiicando todos os organismos de intervenção educaiva, apresen-
tam como pano de fundo, a necessidade de resgatar o contributo que
a Educação e suas Ciências podem oferecer para a melhoria da vida
dos indivíduos. A análise dos contextos educaivos deve se realizar de
forma rigorosa, por meio de aitudes de pesquisa, que sinteizem, com
profundidade, os dados que a análise permite organizar.
As evidências orais, por vezes esquecidas no trabalho de pesquisa,
serão aqui consideradas por representarem uma contribuição funda-
mental na reconstrução dos fatos.
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Parte 1
A Pesquisa sobre a
Escola da Ponte
As portas que abril abriu4
a Escola da Ponte
“Se as coisas são inaingíveis... ora! Não é moivo para
não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presen-
ça das estrelas!”
(Mário Quintana)
Portugal foi uma monarquia até 1910 e, após vários anos de ins-
tabilidade políica, em 1926, o exército assumiu o poder, nomeando,
como Ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar. Sob a ditadura
salazarista, o país se tornou uma República de tendência fascista. Em
1968, Salazar sofreu um derrame e foi subsituído por Marcelo Caeta-
no, ex-Ministro das Colônias, que dirigiu o país até ser deposto no dia
25 de abril de 1974.
A decadência econômica de Portugal e o descontentamento do
povo português contra o fascismo desencadearam, nessa data, a Re-
volução dos Cravos, em que oficiais de média patente se rebelaram
e derrubaram o governo de Marcelo Caetano. O governo passou,
então, a ser controlado pelo Movimento das Forças Armadas, e a
população festejou o fim da ditadura distribuindo cravos vermelhos
aos soldados rebeldes. Após 48 anos de ditadura, Portugal passou a
4 - As portas que abril abriu é o ítulo de um poema de José Carlos Ary dos Santos que
fala sobre a Revolução dos Cravos em Portugal.
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O trabalho educativo
na Ponte: a conquista
da autonomia
Ao pensarmos nas especiicidades do processo educaivo escolar,
conceitos como regras, avaliação, punição, controle, autoritarismo ine-
gavelmente fazem parte das práicas escolares presentes na maioria
das escolas. Vemos que, em geral, nos princípios educaivos das insi-
tuições escolares não existe o esímulo ao pensamento livre, à criai-
vidade e à promoção do desenvolvimento integral da criança em um
trabalho pedagógico que tenha como objeivo e inalidade construir
um sujeito autônomo, independente e solidário.
A construção da autonomia é um princípio educaivo que, muitas
vezes, é mal interpretado. Frequentemente ele é confundido com ex-
cesso de liberdade e com ausência de disciplina. O principal desaio
dos professores é possibilitar ao indivíduo transformar a informação
em conhecimento e o conhecimento em ação.
Na medida em que esses indivíduos conseguem interagir com a so-
ciedade de modo autônomo, responsável e críico, mais se aproximam
da construção de uma sociedade livre e democráica. Autonomia só pode
ser entendida em uma concepção que insere o indivíduo na sua relação
com o contexto social e em permanente interação com o meio.
Sem este pano de fundo, icaria parcialmente desituída de signi-
icado uma concepção de educação orientada para o desenvolvimen-
to integral do indivíduo. Correríamos o risco de interpretar autonomia
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O trabalho educativo na Ponte
5 - O Método de Alfabeização de Paulo Freire foi criado por volta de 1960, quando
seu ilho, com pouco mais de dois anos de idade, associou a imagem e a pronúncia
da palavra Nescau, que assisira na propaganda da televisão, com a mesma palavra
inscrita em um painel na rua. Paulo Freire releiu profundamente sobre esse fato
e concluiu, a parir desse episódio, que o educando adulto também teria capaci-
dade de ler uma palavra anteriormente conhecida pela oralidade. Assim, Freire
testou esta sua hipótese na empregada domésica de sua casa que com facilidade
conseguiu relacionar a palavra com a igura apresentada (FREIRE, 2006, p. 337). A
parir de então, Freire deu prosseguimento a sua invesigação tendo como base
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O trabalho educativo na Ponte
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No reverso ao que foi dito, na Escola da Ponte, a independência
intelectual do indivíduo, a iniciaiva própria e a responsabilidade pelos
atos são os princípios de uma educação fundamentada na liberdade e
na solidariedade. Na Ponte, os orientadores educaivos e as crianças
são libertos do automaismo. As estratégias do ensino têm como obje-
ivo a criação do indivíduo autônomo.
A Escola da Ponte tem como missão estabelecer uma nova for-
ma de pensar e de agir na contemporaneidade. Seu objeivo é formar
pessoas felizes, socialmente responsáveis e autônomas, para construir
seus projetos de vida.
A Escola da Ponte:
de fato uma Escola Inclusiva
“As costas de Polichinelo arrasas só porque fogem das
comuns medidas? Olha! Quem sabe não serão as asas
de um anjo sob as vestes escondidas...”
(Mário Quintana)
O conceito de deiciência deve ter variado com o tempo e, ao lon-
go dos séculos, foi se modiicando. Os estudos apontam que, na Roma
Aniga, crianças que apresentavam alguma deiciência ou malformação
eram jogadas nas margens do Rio Tigre. No entanto, de acordo com
Corrêa (2006 , p. 11), nem todas as crianças deicientes foram mortas.
Segundo a autora, “muitas crianças que nasceram com malformação
ou consideradas anormais foram abandonadas em cestas com lores as
margens do Rio Tigre. Os escravos e as pessoas pobres que viviam de
esmola recolhiam essas crianças para criá-las e uilizá-las como meio
de exploração dos romanos” (CORRÊA, 2006, p. 11). Vale ressaltar que,
no comando de Roma, esiveram imperadores que apresentavam al-
gum ipo de deiciência, como Galba, que apresentava malformação
nas mãos e nos pés, e Othon, com deformação nas pernas.
Na Grécia Aniga, a criança que nascia com alguma deiciência era
encaminhada a um conselho, que decidia se ela deveria viver ou morrer.
Mas, assim como em Roma, no comando da Grécia esiveram imperado-
res como Homero, que era cego, e Alexandre, o Grande, com epilepsia.
De acordo com Amaral (1995, p. 53), pode-se airmar que há uma
evolução histórica das aitudes em relação aos deicientes, de forma
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que até o ano de 1800 a deiciência era vista como problema do âmbito
cieníico; daí até 1870 surgiram às primeiras experiências terapêuicas
e educaivas; de 1870 a 1930 houve ênfase no conceito de rejeição; e,
inalmente, a parir da Segunda Guerra Mundial, quando milhares de
soldados voltavam, para as famílias, cegos, surdos, paralíicos ou tetra-
plégicos, ocorre o movimento de reabilitação e de readaptação da vida
em sociedade. Vale lembrar que, na época da Segunda Guerra Mundial,
na Alemanha de Hitler, as pessoas com deiciência também foram eli-
minadas e/ou esterilizadas, em nome da políica da raça ariana pura.
Veriica-se que a concepção de doença e de incapacidade associa-
da ao conceito de deiciência tem variado ao longo dos séculos. Uma
ininidade de termos tem sido uilizada para ideniicar as pessoas com
deiciência. O conceito de deiciência vem sendo formulado a parir de
um referencial de normalidade, que resulta em sua segregação e em
sua inaceitabilidade. Sabemos que a feiúra de Sócrates era conhecida
do povo grego na mesma proporção em que sua inteligência. Como
conceito culturalmente formado, “deiciência” atende a expectaivas
pré-formadas de acordo com os costumes e com a época. Engloba ter-
mos como incapacidade, dependência, redução, limitação, impossibili-
dade, entre outros. Mas, nem mesmo entre os considerados normais,
há uma unanimidade entre norma e patologia.
Chama-se atenção para o fato de que ainda não se conseguiu espe-
ciicar quais são os atributos que deinem a maioria dos conceitos. Por-
tanto, como explicar a formação do conceito de deiciência associado a
uma concepção de doença e de incapacidade aos nos depararmos com
um Beethoven surdo compondo a Nona Sinfonia? Para Nunes (1998), “a
concepção da deiciência como uma condição patológica incapacitan-
te, que esteve presente, aberta ou veladamente, inclusive no discurso
dos agentes educacionais, implica aitudes e ações em relação a estes
indivíduos que reforçam ainda mais as caracterísicas esigmaizantes”.
No inal do século XX, em razão da defesa pelos Direitos Huma-
nos, um novo conceito foi introduzido aos grupos considerados diferen-
tes – pessoas com necessidades educacionais especiais. O conceito de
necessidades educacionais especiais é um conceito chave que agrega
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A Escola da Ponte
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Atravessando a Ponte
O projeto educaivo da Escola da Ponte propõe uma relação de
parceria e de compromeimento entre os grupos que consituem a
equipe educaiva, ou seja, os pais, os professores, os alunos e o pessoal
auxiliar criam coidianamente um novo modo de relexão e de práica.
O orientador educaivo na Ponte não pode trabalhar em uma perspeci-
va de monodocência, centrado em práicas tradicionais de ensino, que
conduzem o aluno a um conhecimento predeterminado. O orientador
educaivo é um promotor de educação, na medida em que é chamado
a orientar o percurso educaivo de cada aluno e a apoiar os seus pro-
cessos de aprendizagem.
Os alunos, junto com os orientadores educaivos, desenvolvem as
estratégias necessárias ao desenvolvimento do trabalho diário na es-
cola em planos de periodicidade conveniente. Os alunos são também
responsáveis pela avaliação do trabalho que pretendem realizar. Assim,
a evolução de cada aluno ica evidenciada nas dimensões do seu per-
curso escolar.
O planejamento diário é feito pelos alunos; os orientadores educa-
ivos ajudam nas diiculdades na medida em que estas vão surgindo. Os
alunos da Escola da Ponte trabalham a parir de planos individuais, em-
bora sempre em grupos, para que se ajudem entre si. Quando já são
capazes de dominar um determinado número de objeivos nas diferentes
áreas do currículo, passam a gerir com autonomia os seus tempos e espa-
ços de aprendizagem. O currículo, somado a metodologias próximas do
paradigma construivista, leva ao desenvolvimento de outras competên-
cias, aitudes e objeivos que qualiicam o percurso educaivo dos alunos.
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A relação:
família e escola
Na dinâmica familiar, o pai e a mãe ocupam um papel fundamental
na formação da criança. O desenvolvimento absoluto, nos planos afe-
ivo, cogniivo, emocional, educaivo e socializador requerem a parici-
pação efeiva dos pais, visto que o apoio da família consitui a base para
a socialização e para a compreensão do mundo ao redor.
A família é o início do longo processo de aprendizagem de convivên-
cia social até a criança entrar na escola. É onde se estabelecem relações
com outros contextos mais vastos e é entendida como um núcleo crucial
que pode e deve representar a possibilidade de sucesso no processo de
formação da criança. Considera-se que fatores como a qualidade da in-
teração familiar e as experiências vividas no ambiente ísico e social que
rodeiam a criança inluenciam no momento de escolarização.
À luz dos pressupostos de Bronfenbrenner (1979), compreende-
-se que a família regula o desenvolvimento da criança e fornece um
senimento de pertencimento a um grupo. Os conceitos de Bronfen-
brenner, na análise do desenvolvimento, entendem as experiências do
sujeito “como um conjunto de estruturas de encaixe, cada uma dentro
da seguinte, como um conjunto de bonecas russas”. Nessa abordagem
entende-se que o desenvolvimento humano tem relação direta ou indi-
reta com todo o contexto no qual esse ocorre. A família, ao fazer parte
desse contexto dinâmico e modiicável, é fundamental para o desenvol-
vimento emocional, social e linguísico da criança.
É fundamental a presença da família junto às organizações edu-
caivas. Na Escola da Ponte, em 1976, as famílias se organizaram em
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O currículo de
competências
Uma educação de qualidade deve atender, no planejamento curri-
cular, a variedade dos grupos idenitários presentes na escola. Priorizar
a cultura, no planejamento curricular, atendendo às especiicidades de
classe, gênero, raça e sexualidade presentes na escola possibilita com-
bater o processo educaivo que segrega e exclui.
O educador, como facilitador do processo educaivo, será o agente
que organizará as ações educaivas que objeivem o atendimento à di-
versidade de culturas e aos sujeitos sociais presentes no espaço escolar.
Viñao Frago (1998) utiliza o termo “culturas escolares” por en-
tender que cada instituição escolar produz certo tipo de cultura. Há
tantas culturas quanto instituições escolares. No reverso a afirmação
de Viñao Frago, para Forquin (1993), a escola jamais produz cultura.
Para este autor (1993), a rotina acadêmica impede que a escola seja
produtora de cultura.
As práticas curriculares que priorizam a diversidade de matrizes
de cultura atendem às subjetividades, como sentimentos e emoções,
reconhecendo que o ambiente escolar é multifacetado e que deve
atender aos interesses e anseios de todos os atores envolvidos no
processo educativo.
O currículo que se desenvolve na Escola da Ponte é o currículo
nacional de Portugal; portanto, todas as crianças aprendem tudo o
que as outras escolas ensinam. O currículo da Ponte é enriquecido
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O currículo de competências
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A metodologia
da Escola da Ponte
A perspeciva funcional da alfabeização se preocupa com os usos
e as funções sociais da leitura e da escrita, em suas variedades diale-
tais e em relação às implicações nas práicas escolares; é o que Soares
(2008, p. 82) denomina de letramento. O conceito de letramento e as
pesquisas que vêm sendo desenvolvidas, fundamentadas neste concei-
to, segundo Soares (2008, p. 19), surgiram a parir da úlima década
do século XX. A área do conhecimento pioneira nesses estudos foi a
Linguísica Aplicada.
À medida que a sociedade foi se tornando cada vez mais “grafocên-
trica”, a diferença entre o indivíduo alfabeizado e o indivíduo letrado
foi sendo evidenciada. Estar alfabeizado é uma condição individual de
possuir habilidades e conhecimentos de leitura e escrita. O indivíduo
letrado supera esta condição na medida em que uiliza com competên-
cia a leitura e a escrita nas práicas sociais.
Nessa perspectiva, ainda para Soares (2003, p. 37), há diferen-
tes tipos e níveis de letramento, dependendo das necessidades, das
demandas, do indivíduo, do seu meio, do contexto social e do con-
texto cultural. Segundo a autora, o letramento possui a dimensão
individual, do ponto de vista pessoal, e a dimensão social, enquanto
fenômeno. Para ela, alfabetizar é possibilitar ao indivíduo ser capaz
de ler e de escrever, e letramento é a condição que um indivíduo
adquire ao se apropriar da leitura e da escrita na dimensão das prá-
ticas sociais.
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Avaliação e
acolhimento
A maioria das escolas ainda trabalha sob um enfoque tradicional,
uilizando a “prova” como um único instrumento para avaliar os alunos.
Muitas vezes, o aluno sabe o conteúdo, mas, por inluência de aspectos
emocionais ou orgânicos, não consegue obter um bom resultado nas
provas. O professor que não uiliza uma metodologia conínua e diá-
ria de avaliação, a qual compreende vários ipos de instrumentos para
avaliar o processo de ensino e aprendizagem, acaba deixando passar
despercebidas as dúvidas e o não aprendizado de alguns alunos. Há si-
tuações em que o educando apresenta diiculdade em um determinado
conteúdo, o que, futuramente, poderá prejudicar o seu desempenho.
É importante salientar que, frequentemente, o aluno decora o
conteúdo, ao invés de aprendê-lo, visando somente uma boa nota nas
provas. Tal fato não acontece se a práica avaliaiva esiver fundamenta-
da em uma avaliação de acolhimento, segundo a concepção avaliaiva
de Cipriano Luckesi (1997). Acolhimento, para ele, signiica conhecer o
alunado e, assim, veriicar as limitações e os avanços de cada um deles.
O sistema educacional deverá dar condições e autonomia a im de
que o professor possa realizar uma práica processual de avaliação. Se-
gundo Cipriano Luckesi (1997), a avaliação é uma apreciação qualitaiva
sobre dados do processo de ensino e de aprendizagem, que auxiliará
o professor a tomar decisões sobre o seu trabalho. Esses dados dizem
respeito às manifestações em que tanto o professor quanto os alunos
se mostram empenhados em aingir os objeivos do ensino. A aprecia-
ção dos dados resultará em uma tomada de decisão para deinir o que
fazer em seguida. Cipriano Luckesi (1997) deine a avaliação da apren-
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Parte II
Comentários de José Pacheco:
as evidências orais e um acervo de
episódios
A complexidade da escola:
“quem não vê, não peca”
Li num jornal o comentário de uma professora do primeiro ciclo
que, ao cabo de mais de 30 anos de serviço, se vê envolvida na aventura
de criar um agrupamento de escolas: “Veja lá que, há dias, houve uma
reunião e estava lá um representante dos pais. Fiquei espantada! Eu,
com esta idade, nunca inha visto nenhum!”
A exclamação só consituirá surpresa para quem não viva o quoidia-
no de muitas das escolas do (ainda e apesar de tudo...) Ensino Primário.
Uma invesigadora, hoje responsável políica, dizia, em 1990, que “a re-
alidade e complexidade da escola primária são mal conhecidas”. Por via
desse desconhecimento, os legisladores sempre recomendaram que, ao
primeiro ciclo fossem aplicadas, “com as devidas adaptações...”, este ou
aquele arigo de sucessivas leis concebidas para os restantes segmentos
do sistema. Ainda hoje, o primeiro ciclo parece consituir um apêndice
incómodo a montante do sistema, tão deiicado no discurso como esque-
cido pelas medidas concretas de políica educaiva.
O Ensino Primário foi o sector sujeito à maior degradação, de for-
ma assumida e sistemáica, pelo Estado Novo. Desde 1974, o processo
de democraização promoveu alterações signiicaivas no estatuto so-
cial dos professores e na gestão das escolas, excepto nas do primário. O
que esperar do único ciclo do básico, a quem a recusa de autonomia foi
conirmada por decreto?5 Perante o primeiro dos ciclos do ainda hoje
míico Ensino Básico, a aitude do Estado foi de quase total desrespon-
sabilização.
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A complexidade da escola
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O calvário
académico do Miro
O Miro (pode ser este o fictício nome do jovem) percorreu a
via-sacra de várias escolas até chegar àquela, por recomendação de
uma técnica de serviço social e de uma psicóloga. O seu calvário aca-
démico incluía várias passagens pelo ensino especial e por outros
padecimentos.
Um professor aproximou-se do jovem recém-chegado e propôs-lhe
que escrevesse as suas primeiras impressões da nova escola.
– Não sei, não sou capaz, não faço. E você não me pode obrigar!
O professor insisiu com jeiinho. Mas…
– … eu não sou obrigado a fazer. Você num manda em mim. Você
não é meu pai!
O professor era dos teimosos, mas logo ouviu a sugestão:
– Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando me portava mal, os
setôres8 punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!
O Miro não sabia que só estava carente de irmeza e de carinho. O
pai não poderia dar-lho porque há muito abandonara a família. A mãe “já
não inha mão nele e que nem pensasse tocar-lhe”. Professores – a julgar
pelo condicionamento que nele se inha operado – poucos teria encon-
trado pelo caminho. O Miro inha passado sete anos sozinho em casa e
outros tantos na escola e deixara de acreditar ser possível aprender:
– Ó, setôr, você num sabe que eu, na outra escola, só inha aulas de
Educação Física, EVT e Moral?
À quarta tentaiva de persuasão, quando lhe pediram que izesse
algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem
da tortura da escrita e lhe “ditassem umas contas, mas só de dois nú-
meros”, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar e de
diminuir.
– Eu sou assim, setôr. No hospital, a psicólica até disse à minha
mãe que eu sou atrasado da cabeça p´raí uns cinco anos.
Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singu-
lares, mas também espaços de múliplas interacções, comunicação, co-
operação, parilha. Sabemos, contudo, que não é bem assim. As escolas
são, quase sempre, espaços de solidão. O trabalho dos professores é um
trabalho solitário, e o isolamento dos professores é da mesma natureza
que o dos alunos – professores e alunos estão sozinhos nas escolas.
Decorridos dois meses, o Miro já escrevia algumas frases, já fazia
as suas preparações no laboratório das Ciências, até já lia palavras em…
inglês! E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que
viria a inluenciar o curso da recuperação do Miro.
Perante uma aitude menos correcta do Miro, a professora repre-
endeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da re-
primenda num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afectos,
emendou a mão como pôde, explicou-lhe o essencial da asneira, e pe-
diu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão.
– Aqui, os professores pedem desculpa? – inquiriu o Miro, estupefacto.
– Claro – respondeu a professora de Inglês.
O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu via-
gem, para que a professora não visse que, pela sua cara de traquina invete-
rado, passeava a manga da camiseta com que limpava uma lágrima teimosa.
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O calvário académico do Miro
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Escola da Ponte - Portugal
78
A escola
de última oportunidade
Foi considerado “aluno incapaz de se adaptar à escola”. O relatório
avisava: “é um aluno que apresenta diiculdades de controlo dos impul-
sos agressivos e manifesta o maior desinteresse pelas aprendizagens
escolares”, para além de “uma já evidente tendência para a aproxima-
ção ao álcool”.
Pudera! O Bino izera o irocínio com a avó. E aiançava-me, muito
tempo depois, que “aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a
avó Zefa já inha uma grande conta de assentar na mercearia, e na tas-
ca9 já nem a podiam ver e muito menos lho vendiam”.
Relutante às “aprendizagens escolares”, o Bino aprendeu a vida na
busca de manimento, que a reforma da avó não chegava sequer para
a pinga. Especializara-se em assaltos a hortas e pomares. Aos quatro
anos, era hábil na isgada certeira e na ferradela pronta no braço do
hortelão que o surpreendesse em lagrante.
O Bino não conheceu nem o pai nem a mãe. Consumada a parição, a
progenitora abalou10 para França, no rasto11 do presumível pai. Nunca mais
deu noícia. Uma avó o acolheu num tugúrio12 de chão de terra baida.
9 - Taberna.
10 - Fugiu.
11 - Variante de rastro.
12 - Abrigo, cabana.
Escola da Ponte - Portugal
13 - Tigela.
14 - Sopa de vinho into com açúcar, canela e pão torrado, consumida por lavradores
do norte de Portugal.
15 - Lusit. Pano grosseiro e durável, semelhante ao burel, porém um pouco mais largo,
fabricado na Covilhã e no Alentejo.
16 - Pequeno campo culivado.
17 - Planta da família das compostas (Centaurea melitensis), considerada praga da
lavoura, de lores amarelas, folhas com espinho, acinzentadas, e caule ereto, re-
vesido de pelos.
80
A escola de última oportunidade
mantas para além do nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu mestre
e única companhia até aos sete anos de idade.
Um dia, “uma senhora bem-vesida, bem-cheirosa e aprumada” (pa-
lavras que o Bino me ditou) espreitou para dentro daquele tugúrio par-
ilhado por animais e gente, e perguntou se a avó se chamava Josefa da
Conceição. Disse vir da parte das autoridades e que estas inham mandado
uma carta à avó do neto que a escola reclamava. A avó retorquiu “que não
senhor, que não inha recebido carta coisa nenhuma e que, ainda que tal
cousa lhe chegasse, nenhuma servenia teria por das letras nada saber”.
De nada valeu a ladainha da avó que das letras nada sabia. O único
proveito que a avó Zefa obteve da “senhora bem-vesida, bem-cheirosa
e aprumada” foi uma magra pensão de sobrevivência, tão magra que
mal dava para encomendar meia dúzia de garrafões. Sem pastor, o que
restava do rebanho foi arrematado pelo Luís Vendeiro. O Malhado foi
servir outros senhores, e o Bino transformou-se num degredado de
fundo de sala. No dizer da mestra, “o moço era coisa ruim e insubmis-
sa, e nem com porrada lá ia”. Entremeava sessões de palmatoada com
fugas para o monte e para junto do Malhado, fugas invariavelmente
interrompidas pelas frequentes visitas da “senhora bem-cheirosa”.
O Bino acabou por ser internado numa insituição da cidade. E, se
a guarda conseguia surpreendê-lo nos montes que ele tão bem conhe-
cia, mais facilmente os agentes da autoridade o capturavam na cidade,
onde se perdia em tantos lugares de se ocultar.
Com 10 anos feitos, foi transferido para uma escola de “úlima
oportunidade”. À semelhança de muitos outros casos de “insucesso”
que a essa escola aportaram, o Bino Bouças vinha recomendado por
psicólogos e acompanhado por um grosso relatório de pedopsiquiatria.
Apesar dos 10 anos feitos, o Bino aparentava não ter mais de seis
ou sete. Marcado pelo raquiismo, baixo, franzino, atarracado, pare-
cendo não ter pescoço (como diziam alguns dos seus companheiros),
juntou-se aos pequenos que vinham à escola pela primeira vez. Cami-
nhava bamboleando-se, olhando de soslaio para tudo e para todos. À
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Escola da Ponte - Portugal
18 - Lusit. Menino.
19 - Var. de cuspe
20 - Alegria.
21 - Lusit. Banheiro.
22 - Lusit. Vaso sanitário.
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Cuidado com o Teixeira!
“Com práicas seleivas desajustadas (...) a escola bá-
sica vai, lenta e, coninuamente, gerando caudais de
excluídos que, em maior ou menor grau, interiorizam
essa exclusão”
Joaquim Azevedo
Entregaram uns papéis ao professor, acompanhados de um aviso:
“Cuidado com o Teixeira! Dizem que é auista e, além disso, é mal-edu-
cado e preguiçoso”. Que mania a de pôr rótulos. Que desperdício de
tempo a preencher papéis.
O Teixeira estava, ainda na primeira classe, quase a fazer 13 anos.
Tinha saltado de professor para professor, em turmas que nenhum do-
cente desejava. Era conhecido pelo nome de família, pois o nome pró-
prio ninguém parecia conhecer.
O professor desta história era novo, não possuía a experiência dos
mais velhos, nem a ciência dos especialistas da “educação especial”.
Pouco sabia de auismos. Só conhecia a deinição pelo dicionário. O
Teixeira era auista. Pois. E em que é que o rótulo ajudava? E, se o pro-
fessor estava sozinho na sua sala, com os seus alunos e mais um auista,
sozinhos estavam os colegas das outras salas com os seus alunos. (Que
pior forma de auismo que esta entre professores?).
Tinham-lhe ensinado tudo no curso, excepto o saber educar um
auista. “O colega imponha-se, o colega defenda-se!” O professor de-
fendeu-se. Registrou alguns comportamentos: “O Teixeira vive numa
profunda tristeza, gosta de estar sozinho”. Mas a veriicação pouco
Escola da Ponte - Portugal
23 Lusit. Ônibus.
24 Vala pouco funda, fosso.
25 Lusit. Lugar onde para um ônibus, bonde etc., para subida e/ou descida de passa-
geiros.
26 Var. de caminhonete.
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Cuidado com o Teixeira!
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Projetos de professor
Naquele tempo, a generosidade de alguns professores muliplicou-
-se e despontaram projetos, ainda que lhes não dessem esse nome.
Foi então que passei uma tarde naquela escola. De sala em sala,
parilhei o trabalho de cada professora, procurei ajudar a transformar
desejos em possibilidades, auscultei diiculdades.
Da primeira ouvi: “Isso de projetos é muito bonito, mas... e as ou-
tras? Como é?” A segunda professora despediu-se de mim com o seguin-
te recado: “Não te iludas, Zé! Há sempre quem não faça, nem deixe os
outros fazer.” A terceira: “Sabes, Zé, por mim, até nem há problema. Mas
há outras que...” À saída da úlima sala, idênico comentário: “Querer eu
até quero! Mas tu percebes, com certeza, que há quem não queira!”
Esperei pelo im das aulas. Tinha sido convidado para paricipar na
reunião do conselho escolar. Sentei-me com as quatro colegas à volta
da mesa, na exígua sala dos professores. Dado o silêncio e a aitude de
escuta, supus que aguardavam que eu começasse. E eu comecei: “Já
estamos todos? São só quatro as professoras na vossa escola? Não falta
mesmo ninguém? Onde está ‘a outra’?”
Este episódio ajuda a entender a inuilidade de uma formação na
qual não embarca um quinto passageiro, uma formação de que nada re-
sulta, senão a conirmação de estereóipos e o refúgio em preconceitos.
Porém, é sempre possível aprender algo em comunidades de ami-
zade críica. E, quase sempre, nem nos apercebemos disso. Porém, há
por aí práicas anonimamente elaboradas, cujo intercâmbio entre esco-
las urge viabilizar.
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Zé António,
o ás do texto livre
O decrépito ediício inha sido reinaugurado no consulado de Si-
dónio Pais, conforme atestava a lápide aixada na parede de estuque
esburacado, de onde despontavam as ervas, todo o ano, e formigas de
asas, pela primavera. O caruncho apostava em acabar com o que res-
tava das velhas carteiras. O soalho, também de madeira, era como um
campo de golfe, mas com mais buracos. No anexo, ainda pairava o odor
ao queijo da caritas. Só não havia quarto de banho digno do nome, mas
não se pode pedir tudo.
Na quarta classe de 1976 que a velha escola albergava, a variedade
das origens sociais correspondia à variedade dos odores. O Simão exalava
a suave fragrância da água de colónia. O Tó, o aroma da alfazema. O Jor-
ge, o perfume barato do ixador que lhe domava as irreverentes melenas.
Nas manhãs frias, o Arnaldo tresandava a aguardente. A maioria, criada na
bouça28 e na rua, trazia entranhado nas pobres vestes um intenso cheiro a
terra e suor que, na força do esio, se confundia com o da decomposição
dos cadáveres das ratazanas e de outros bichos que coabitavam o desvão
do telhado. Mas a aparência rude escondia a doçura das almas.
O Zé António era um miúdo franzino e ímido. Contava 10 anitos
num corpo frágil que aparentava seis ou sete. Só inha a seu favor uma
prodigiosa imaginação. Era o ás do texto livre. O novo professor não
era adepto das enfadonhas redações com tema e número de linhas
28 - Terreno baldio.
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29 Pessoa endiabrada.
30 Lusit. Pop. Garoto, menino, rapazinho.
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Zé António, o ás do texto livre
31 Pequena porta.
32 Garoto vadio, gandula.
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Escola da Ponte - Portugal
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O jovem professor
e os pais dos alunos
O professor era novo na escola, era bonzinho para as crianças e pa-
recia ter jeito para ensinar. Nascera na cidade grande e ali estava, numa
pequena vila de província, numa escola que funcionava num pardieiro
sem casa de banho.
Na sua ingenuidade, o jovem professor acreditava que os pais dos
alunos eram pessoas inteligentes e se preocupavam com o bem-estar
dos ilhos. Pela manhã de um sábado de outubro, perguntou ao Con-
selho Escolar se havia sido feita alguma tentaiva de diálogo com os
encarregados de educação. Teve como resposta alguns sorrisos condes-
cendentes e um único conselho:
– Os pais, colega? Os pais, quanto mais longe, melhor! Fique quiei-
nho no seu canto porque, sabe como é, cada macaco no seu galho. Não
queira arranjar problemas e vá por mim, que já cá trabalho há mais de 40.
O jovem professor encaixou a deixa, mas não se deu por convenci-
do. Findo o curso duplo da manhã de segunda-feira, foi directo à tasca
da Maria Morcega. Enquanto almoçava na mesa do canto, ia deitando
um rabinho de olho à freguesia, decerto que algum dos inacessíveis
pais andaria algures por ali.
O Sérgio entrou na tasca abraçado a uma enfusa e pôs-se em bicos,
de pés rente ao balcão:
Escola da Ponte - Portugal
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O jovem professor e os pais dos alunos
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A educação é incompatível
com a organização
autoritária da vida
Em 1988, os subscritores da Proposta Global de Reforma airma-
vam que “o adestramento não deine a educação” e que “a educação
é incompaível com a organização autoritária da vida”. Não estavam
sozinhos nas suas convicções. Eu ive acesso a outro “relatório” que,
provavelmente por esquecimento, não foi tornado público na devida
altura e que, por isso, correria o risco de se manter inédito. Esse “rela-
tório” é subscrito por dois ou três ex-alunos da Escola da Ponte – a qual
os mentores da Reforma se esforçaram (por enquanto, ainda em vão)
por erradicar – e diz a certo passo: “Os pais iravam os ilhos das escolas
para eles irem trabalhar, alguns pais não se importavam com os ilhos
e o governo também não se importava com o ensino (...). Não havia
possibilidades como há agora (...). Anigamente, ia-se fazer exame a
Santo Tirso porque aqui não havia condições para nada. As escolas não
inham condições como têm agora, eram pobres, era só uma sala e uma
retrete. Os deveres eram mais diíceis. Eram só ditados, cópias, contas
e outras coisas ruins. E os alunos inham que decorar muito. Havia me-
nos livros e eram mais diíceis e sem desenhos. Os de agora têm mais
iguras, para ajudar a aprender melhor. Não havia escolas para ensinar
todos. Ninguém era obrigado a ir à escola e as pessoas não iam à escola
e icavam sem saber ler nem escrever.”
Haverá nesta análise um acentuado exagero? Os “bons e os maus”
da infância encontram correspondência nos contrastes maniqueístas
Escola da Ponte - Portugal
entre uma escola “aniga” e uma outra, dita “moderna”. Mas o “Sé-
culo da Criança” está prestes a terminar tal como começou. Ressalva-
da uma declaração de direitos aprovada pelas Nações Unidas – jamais
cumprida –, pelo caminho icaram projetos por cumprir, as reiicações
da Pedagogia, da Sociologia, ou da Psicologia, um discurso teórico e
inúil. Ficou uma escola ensimesmada, a dura realidade da massiicação
sem diversiicação. Mas coninuemos a leitura deste relato de recorda-
ções indeléveis: “Tínhamos que estar com respeito e atenção, íamos ao
mapa e ínhamos que saber onde se situavam as serras, o nome delas,
qual era a mais alta e a mais baixa, ínhamos que saber os rios todos,
onde nasciam, por onde passavam e onde desaguavam, as linhas fér-
reas, por onde passavam e quais as suas estações, a tabuada ínhamos
que a saber salteada etc. Quando abríamos o livro de história, sabíamo-
-lo de cor, de uma ponta à outra, só alguns que não eram tão inteligen-
tes é que não sabiam.”
Será também oportuno realçar o recurso aos apoios e complemen-
tos educaivos da época: “Uma palmatória com a grossura de dois de-
dos cheia de buracos e, quando a professora já estava cansada, manda-
va bater a um dos alunos que soubessem mais e, se batessem devagar,
ela baia neles, era porrada por todos os lados, malhávamos com a ca-
beça contra o quadro e alguns escondiam-se debaixo das carteiras.”
Os anónimos autores deste “relatório” dão a entender que, por via
dos métodos em voga, andavam “tolhidos de medo, era medo por todos
os lados, inham medo de ir para a escola e medo de ir para casa”. E, sem
precisarem recorrer à emproada prosa de alguns teóricos da nossa praça,
contrariam os adeptos da pedagogia musculada de então, airmando que
“quem não vai por palavras também não vai por porradas”.
98
Acervo de episódios
Um texinho que publiquei em inais de 1999 rezava assim: “Algo
de muito estranho se passava. Na binária roina aula-teste instalara-se
uma espécie de bug que perturbava a pacatez habitual. Os pais dos alu-
nos perguntavam se os exames da quarta classe inham regressado. E já
toda a gente procurava no baú das aniguidades os livros de ichas sem
a eiqueta indiciadora de ‘manual de acordo com os novos programas’”.
Mal a aula começava, os putos mergulhavam no “Livro de ichas
de Português e Matemáica”, num treino apenas interrompido para fa-
zer xixi ou comer o lanche. Mas imaginemos que tudo não passou de
um pesadelo ou de malévola efabulação. Decorridos escassos meses e,
para mal dos nossos inconfessados e irredimíveis pecadilhos, o cenário
iccionado em 1999 foi largamente ultrapassado pelas “novelas da vida
real”. Parilharei convosco uma pequena parcela de um vasto acervo
de episódios. Não me atreverei a mencionar uma parte signiicaiva do
anedotário, tal a incredulidade que me inspiraram os episódios que me
foram narrados e apesar de não duvidar da honesidade dos profes-
sores conidentes. Portanto, deverá o eventual leitor muliplicar por
cem (ou mil!) o pasmo que lhe suscitar a leitura, para uma aproximação
mais iel à realidade.
Passemos aos factos, para que ninguém me acuse de cometer exagero.
A vigilância
O “manual do aplicador” releia, entre outros digniicantes pres-
supostos, que todos os alunos são potencialmente desonestos e que
“a ocasião faz o ladrão”. O seu conteúdo sugeria que valores como a
honesidade não cabem nas escolas ou que as distâncias de 1,40 m –
medida entre alunos com uma visão normal – e de 90 cm – para por-
tadores de miopia – são suicientes para evitar que a solenidade das
provas venha a ser manchada com “copianços”.
100
Acervo de episódios
101
Escola da Ponte - Portugal
A surpresa
Uma prova de Matemáica mais ou menos bem elaborada e em
consonância com os programas em vigor surpreendeu muita e boa gen-
te. Meditemos sobre as reações de alguns professores:
– Mas isto não pode ser! Os livros não traziam nada disto. Valha-
-me Deus!
– Eles dizem que correu bem, mas eu já vi muita asneira. O proble-
ma foi a falta de raciocínio.
– A primeira parte inha muitas rasteiras (...). A segunda era me-
lhor, inha áreas, sólidos, décimas...
– A prova estava deslocada. Apelava ao raciocínio lógico. Os manu-
ais e os programas não preveem isso. Além disso, não estava adequada
aos meninos de um TEIP, estava desajustada.
– Nem eu sabia fazer aquilo! A prova de Matemáica era muito
esquisita.
102
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Escola da Ponte - Portugal
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SILVEIRA BUENO, J. G. Educação especial brasileira: integração/segre-
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SMOLKA, Ana Luiza B. A criança na fase inicial da escrita. A alfabeiza-
105
Escola da Ponte - Portugal
106
Anexos
– modelo de plano quinzenal na escola
da ponte
O nosso projecto é:
Nome:
O meu grupo:
Tarefa
– Data Hora Rubrica
Avaliação: para além do que vou aprender com o projecto também quero
aprender
108
Anexos
109
Escola da Ponte - Portugal
Autoavaliação
Informações do Professor-tutor:
Observações do aluno:
110
Anexos
Professor-tutor:
Aluno:
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Notas sobre Andréa Villela
e José Pacheco
Andréa Villela Mafra da Silva é pesquisadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisas em História da Educação Brasileira (NEPHEB), na Univer-
sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), que se aricula
com o Grupo de Estudos e Pesquisas, História, Sociedade e Educação
no Brasil (HISTEDBR) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O NEPHEB pesquisa as insituições escolares, as práicas e ideias pe-
dagógicas brasileiras, focalizando diferentes matrizes epistemológicas.
Tem como meta aprofundar o debate teórico e metodológico, buscando
subsídios para analisar a história da educação e também para invesigar
novas fontes para as pesquisas históricas na educação brasileira.
A parir de agosto de 2009, Andréa coordena o trabalho de cam-
po da equipe de técnicos no Acompanhamento e Monitoramento das
Ações do Plano de Ações Ariculadas (PAR), em 36 municípios prioritá-
rios, no Estado do Rio de Janeiro. Este projeto, parceria entre o Ministé-
rio da Educação, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e
a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (MEC/FNDE/UniRio)
têm como objeivo monitorar e acompanhar a execução das ações do
PAR, por meio de visitas técnicas aos municípios.
Na coordenação de Educação a Distância, na UniRio, trabalha
no curso de pós-graduação lato sensu em Educação Especial, na mo-
dalidade de deficiência visual, coordenando a equipe de tutoria e a
disciplina de práticas pedagógicas dos alunos que estão em fase de
conclusão do curso.
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