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Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N.

05 | Agosto de 2009 | Semestral Artigos

Por uma ‘escola do olhar’: a concepção de


educação na escola básica de são tomé de
negrelos – a escola da ponte
Taís Oliveira de Amorim da Silva

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar um conciso histórico a respeito da
fundação do projeto pedagógico “Fazer a Ponte”, realizado na Escola Básica de São
Tomé de Negrelos, em Portugal. Para o entendimento de algumas práticas educativas
inovadoras utilizadas na escola conhecida pelo nome de “Escola da Ponte”, julgou-se
necessário expor alguns dos dispositivos utilizados por seus educadores e que são
responsáveis, em parceria com a ideologia vigente na escola, pela proficiência encon-
trada nos alunos que lá estudam.

Palavras-chave: Práticas Pedagógicas em Língua Portuguesa, Escolas de Inspira-


ção Livre e Escola da Ponte.

ABSTRACT: This article aims at presenting a brief history of the foundations of the
pedagogical Project “Fazer a Ponte”, made in the Basic School of São Tomé de Ne-
grelos, in Portugal. In order to understand some educational practices used in the
school called “Escola da Ponte”, it was considered necessary to expose some of the
resources used by the educators who are responsible, not only for the current ideol-
ogy, but also for the proficiency identified in the students there.

Keywords: pedagogical practices in Portuguese language, Free Inspiration Schools,


Escola da Ponte.

“Quando te vi, amei-te muito antes”


Fernando Pessoa

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I – Introdução é, sem dúvida, o maior ícone em língua por-


tuguesa das chamadas “Escolas de Inspiração
Tema profundamente difundido em reu- Livre”, termo este cunhado pelo Doutor Reu-
niões políticas em todo o mundo, a educação ber Gerbassi Scofano, professor na Faculdade
vem, ao longo dos séculos, buscando cami- de Educação da Universidade Federal do Rio
nhos singulares para que, através deles, seja de Janeiro.
possível elaborar soluções que acabem com
o mal-estar que atinge as escolas. Vive-se o Tendo um início tradicional, a escola en-
‘século da agonia’ na educação, época em que frentou problemas habituais comuns a muitas
as respostas são buscadas de forma incessante realidades escolares no mundo. Contudo,
por educadores em todas as áreas do conheci- procurou, através de algumas vicissitudes
mento. encontradas, criar uma ideologia que, mesmo
sendo vista como ‘mais uma utopia pedagógi-
Em virtude disso, o presente artigo, inti- ca’, buscasse uma saída para solucionar o caos
tulado Por uma ‘Escola do Olhar’: A Con- em que se encontrava a educação em Portugal
cepção de Educação na Escola Básica de naquele momento.
São Tomé de Negrelos – A Escola da Ponte,
tem como âmago uma escola portuguesa co- Nesta época, alunos que dependiam do bom
nhecida em todo mundo pelo nome de Escola funcionamento do sistema escolar contavam
da Ponte e que vem, ao longo de seus trinta com apenas três professores que, contrariando
e três anos de atuação, implementando novas as atitudes previsíveis aos sistemas habituais,
práticas pedagógicas e, com elas, modificando preferiram unir todos os alunos, independendo
um quadro problemático na educação em Por- suas faixas etárias, graus de escolaridade e his-
tugal. Chamada de Escola da Ponte por razões tóricos de dificuldades pessoais. Esta ‘união’
a serem explicitadas ao longo deste artigo, está foi realizada após uma consulta a todos os res-
localizada há cerca de trinta quilômetros da ponsáveis que, de imediato, forneceram total
cidade do Porto, no Conselho de Santo Tirso, confiabilidade à iniciativa dos educadores.
em Vila das Aves.
Com o instaurar dos trabalhos escolares,
Realizadora de uma pedagogia particular, docentes e discentes foram percebendo que a
a instituição chama atenção por possuir ide- comunicação entre os membros da escola e a
ologia extremamente libertadora e pelo fato comunidade local não existia, o que dificul-
de ser vista por alguns que não a conhecem tava em demasia a realização de projetos no
como uma escola anárquica. Assim sendo, cotidiano. Foi assim que, através da tentativa
justifica-se a necessidade de, através de uma de fazer-se uma ‘ponte’ entre a escola e a co-
leitura concisa, tentar se entender um pouco munidade que José Augusto Pacheco, até então
mais sobre as razões que semeiam nos alunos professor da escola, fez nascer o Projeto Fazer
desta escola uma essência tão diferenciadora. a Ponte com o intuito de tentar integrar cada
vez mais as iniciativas dos membros daquela
II - A Escola comunidade em torno de um bem comum.

Seguindo princípios de filósofos como


Instituição pública de ensino nascida dos Ivan Illich, que acreditava que “a maioria
sonhos de um educador português denomina- dos homens têm seu direito de aprender cor-
do José Augusto Pacheco, a Escola da Ponte tado pela obrigação de freqüentar a escola”

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(ILLICH,1973,p.17) o projeto buscou, ao que vemos não é o que vemos, senão o


longo de sua constituição, romper com tudo que somos’. É preciso ser diferente para
aquilo que provoca a apatia pedagógica tão ver diferente. Mas, e o ‘Ser’? Ele é feito
usual em alguns ambientes destinados ao en- de quê? ‘Os limites da minha linguagem
sino. Tentou gerar a inquietude, a indignação denotam os limites do meu mundo’, dizia
e, através de tudo isso, semear o desejo de Wittgenstein. O ‘Ser’ é feito de palavras.
transformar, de tentar o desconhecido. Prisioneiros da linguagem, só vemos
aquilo que a linguagem permite e orde-
Vista por muitos como uma escola “Des- na ver. A visão é um processo pelo qual
trutivista”, a escola portuguesa não deseja construímos nossas impressões óticas
somente desconstruir sem um propósito. Ao segundo o modelo que a linguagem nos
semear nos alunos responsabilidade para criar impõe.
regras, autonomia no gerenciamento de proje-
tos e a fundamentação coerente de conceitos
primordiais à convivência humana, busca-se ir Tendo como lema a interseção entre liber-
além de tudo que já foi tentado. Gerar um ser dade, autonomia e senso crítico, a escola vista
humano pleno, capaz e, além disso, dotado de por Rubem Alves como “uma experiência
felicidade e desejo pela vida. de iluminação” se distingue justamente por
conseguir entender que a realização pessoal
Conceituada por muitos estudiosos como de seus alunos deve ser o foco de todo o fluir
um mero instrumento de utopia e ingenuidade educativo. Lá ocorre uma revolução na posição
pedagógicas, a escola portuguesa não é capaz discente: os alunos são o centro, os geradores
de convencer a todos que a visitam e nem tem de temas e gestores dos projetos que são ela-
isto objetivado em seu cotidiano. Para aqueles borados através deles.
que compartilham das ‘idéias ponteanas’, bas-
ta enxergar-se o projeto com olhos que nunca Uma das primeiras barreiras quebradas
esperaram por algo assim. Para entender o que pela educação ponteana é o fato de na escola
está sendo visto lá, não é preciso centralizar as crianças possuírem identidade e terem o
o pensamento em teorias, em fundamentações reconhecimento desta por parte de todos os
técnicas que, na prática, nada fazem. Na poe- funcionários. Todos se conhecem pelo nome.
sia de Alberto Caeiro, vemos que “Pensar é Os alunos não são apenas números listados
estar doente dos olhos...”, e a escola deseja nas chamadas, que no caso da Escola da Ponte
justamente isto: tratar como poesia o que tem são desnecessárias, pois há, dentro das crian-
sido pensado, transformado em teoria e siste- ças que lá convivem, o ‘desejo de estar na es-
matizado por tantos séculos. Sobre a visão e cola’, de ‘tornar a escola um acontecimento’.
as impressões que construímos, Alves (2001, A Escola cerne deste artigo é aquela em que
p.28) declara: o desejo predomina em todas as suas esferas.
O que importa são o sentidos e, mais do que
Nietzsche dizia que a primeira função tudo, o existir deles em cada aluno.
da educação é ensinar a ver. Ver é coisa
complicada, não é função natural. Precisa As crianças, por desde o início terem uma
ser aprendida. Os olhos são órgãos anatô- visão diferenciada da relação professor-aluno,
micos que funcionam segundo as leis da ou seja, uma visão não autoritária e justamen-
física ótica. Mas a visão não obedece às te por isso profundamente democrática, não
leis da física ótica. Bernardo Soares: ‘O têm o hábito de recorrer apenas aos mestres

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para solucionar quaisquer dificuldades. Todas, trário das ditas escolas normais, os alunos não
desde cedo, reconhecem o fato de estarem são colocados como meros receptáculos de in-
em uma sociedade cooperativa e sabem que formações através de planos que já chegam até
nela podem aprender umas com as outras. A eles prontos. Na Escola da Ponte não é desta
chamada ‘zona de desenvolvimento proximal’ forma que o saber acontece, ele se constrói em
não precisa de teorizações para ser vivenciada parceria e, por se tratar de uma escola que va-
pelos alunos. Eles aprendem que é importante loriza o ‘olhar do outro’, é justamente através
reconhecer a necessidade de se pedir ajuda. desse olhar que o saber se motiva e é construí-
Talvez por isso, devido ao pensamento co- do pelas mentes inquietas que lá trabalham. Os
letivo introjetado desde o início nos alunos, professores sugerem caminhos e, através do
não seja enfatizada a questão da competição olhar do outro, desenvolvem a sensibilidade
desmedida e individualista, pois os membros necessária para avaliar qual será a melhor via
compreendem por si mesmos a durabilidade de aquisição do conhecimento a ser seguida.
do aprendizado diferenciado que edificam.
Como resultado de uma convivência amistosa, III - Os Alicerces da
saberes coletivos e de natureza democrática Aprendizagem Ponteana
norteiam todas as atividades. Sobre o tema,
relata Alves (2001, p.14):
A lógica única exercida pela Escola da
A Ponte é, desde logo, uma comunidade Ponte deixa alguns educadores tradicionais
profundamente democrática e auto- um tanto quanto estarrecidos. Lá não existem
regulada. Democrática, no sentido de que as turmas criadas pelos professores, mas sim
todos os seus membros concorrem genui- grupos que incluem alunos em busca de um
namente para a formação de uma vontade interesse comum e que se unem justamente
e de um saber coletivos - e de que não por vontade própria. Lá, os alunos têm seus
há, dentro dela, territórios estanques, fe- desejos respeitados e é justamente ele, o de-
chados ou hierarquicamente justapostos. sejo, que move seus interesses. Desta forma,
Auto-regulada, no sentido de que as nor- a educação é vista como um percurso e, para
mas e as regras que orientam as relações que este seja facilitado, é importante que seja
societárias não são injunções impostas ou percorrido da maneira mais agradável possível,
importadas simplesmente do exterior, mas que é , segundo os próprios alunos da escola,
normas e regras próprias que decorrem da ao lado de quem se deseja.
necessidade sentida por todos de agir e
interagir de uma certa maneira, de acordo A principal razão que leva as crianças à
com uma idéia coletivamente apropriada formação do grupo de estudos é a afetividade
e partilhada do que deve ser o viver e o entre elas. Ao concretizar mais esta meta, a
conviver numa escola que se pretenda escola desconstrói uma repetição educacio-
constituir como um ambiente amigável e nal sem reflexão e que é responsável por, em
solidário de aprendizagem. parte, anular a identidade e as peculiaridades
dos seres humanos que ali estão: o conceito
de turma. Na Escola da Ponte não há turmas
Tendo diluídas em seus princípios questões tradicionais; o que há são grupos de estudos
como cooperatividade, solidariedade e afeto, estruturados em torno do desejo de estarem
seus alunos e professores fazem a escola ser juntos e, principalmente, do desejo de apren-
vivida em todas as suas dimensões. Ao con- derem em grupo para poderem trabalhar em

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espaços que abriguem com menos rigidez a esta mudança seja vista como proveitosa para
coletividade. Além disso, vêem a si mesmos elas e para o grupo.
como partes que se reconhecem em um mes-
mo processo, facilitado, a todo instante, por Nas palavras de Rubem Alves, a escola
esta integração permanente. portuguesa é “uma escola artesã” e não “uma
linha de montagem”. Segundo ele, há as que
Por não contar com a divisão por séries, funcionam como linhas de montagem a servi-
ou turmas, o trabalho no dia a dia da escola ço do mercado. São as que se preocupam em
se dá através de Núcleos de Projeto, a saber: formar peças e não indivíduos. Tais seres não
Iniciação, Consolidação e Aprofundamento. têm marcas pessoais e são vistos pelo mercado
como ‘produtos padrão’ que têm a capacidade
O desenvolvimento das primeiras com- de se encaixar em qualquer lacuna que este
petências necessárias para que seja possível mercado venha a oferecer. Já na ‘educação
trabalhar com autonomia é feito na Iniciação. artesã’, que acontece na Escola da Ponte, cada
Nesta fase, é objetivado o equilíbrio entre a aluno tem suas impressões do mundo formadas
criança e a administração de seu tempo e espa- de acordo com o próprio olhar. É este olhar que
ço utilizados no convívio diário. se torna o criador de um indivíduo que, através
de suas imperfeições, se mostra perfeitamente
No Núcleo intitulado Consolidação, são singular.
trabalhadas habilidades difundidas na Inicia-
ção. Ter a capacidade de autoplanejar as ati- Para estar totalmente integrado ao processo
vidades, exercitar a auto-avaliação, pesquisar educativo ponteano, são necessárias algumas
em grupo e entender como se processam as peculiaridades a quem a escola convencionou
metodologias de trabalho da escola, são requi- denominar Orientador Educativo. O perfil
sitos indispensáveis para aqueles que transita- requerido a este profissional é descrito no
ram do primeiro Núcleo para o segundo. É na Projecto Educativo da Escola da Ponte, elabo-
Consolidação que as competências relativas rado em maio de 2003, e que, dentre as atri-
ao primeiro ciclo do ensino básico são alcan- buições descritas, cabe ressaltar: assiduidade,
çadas. motivação, contribuição ativa e construtiva
para a resolução de conflitos, autonomia, res-
Já as competências definidas como fun- ponsabilidade e solidariedade. O perfil possui
damentos para o segundo ciclo do ensino atribuições direcionadas ao tratamento dado à
básico são desenvolvidas no Núcleo de Apro- escola e ao projeto, aos colegas de trabalho e
fundamento. Os alunos que possuem mais de aos alunos.
treze anos de idade têm ao seu dispor alguns
projetos de pré-profissionalização que podem O sistema artesanal incentivado pelos
ser trabalhados neste nível, caso julguem ne- orientadores educativos é algo que envolve
cessário. uma complexidade de natureza singular. Por
se tratar de um meio inovador, requer atenção
Por se tratar de uma educação que respeita constantemente e, por ser algo que necessita de
o aluno e faz de suas diferenças riquezas, em trabalho profícuo, é preciso total engajamento
alguns casos, após a análise de um conselho, por parte de todos que lá trabalham. Neste tra-
crianças com menos de sete anos poderão ser balho, grupos são formados e recebem nomes
inseridas no Núcleo de Consolidação, caso que são reconhecidos por todos os integrantes

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do projeto. Tais nomes refletem a faixa etária e aparente e utilidade no dia a dia do alunado.
as ideologias de seus participantes. Segundo os educadores da Ponte, esta forma
tradicional é ultrapassada e, por tal motivo, ati-
Após a escolha do nome pelo grupo, este tude totalmente abolida. Existe a preocupação
marca uma reunião com um Coordenador de de se vincular significados à aprendizagem e
Núcleo que poderá alterar a constituição do isso justifica a atitude de se adotar um método
mesmo caso existam alguns problemas de tão diferenciado. Tal iniciativa tem gerado na
convívio que gerem a necessidade de alguma escola leitores com proficiência comprovada e
reformulação e só então é estabelecido um um desejo pela leitura que ocorre, em vista de
plano de trabalho para os próximos quinze outras escolas, de forma antecipada.
dias. Neste plano, constarão o tema da pes-
quisa, através de quais metodologias ela será Por explorar o que a maioria das escolas
realizada e, principalmente, em quais fontes estereotipa, as diferenças não são norteadoras
o grupo poderá procurar por respostas. Por se do tratamento dispensado a cada membro. Por
tratar de uma educação ativa e modernizada, reconhecer que todos são diferentes e, justa-
os meios virtuais quase sempre norteiam as mente por isso, se complementam, portadores
pesquisas desses grupos de estudo organizado. de várias síndromes são tratados e tratam a si
Passados quinze dias, os alunos se reúnem mesmos com igualdade. Os alunos com ne-
com os professores para avaliarem primeira- cessidades especiais são dispostos e inclusos
mente se a aprendizagem foi proveitosa para verdadeiramente, ao contrário do que acontece
todos, depois, justificam-se as dificuldades em muitos ‘projetos de inclusão’ que são escri-
encontradas e só então verificam se houve so- tos e quase nunca postos em prática. O fato de
lidez nos conceitos adquiridos. Após realizar ser uma instituição que tem em sua natureza
tais constatações, o grupo se dissolve e seus o desejo de abrigar excluídos sociais, crianças
membros irão incluir-se na formação de outros não aceitas em outros sistemas são muito bem-
que reiniciarão todo o percurso novamente. vindas ao convívio ponteano. A escola não
Todo o trabalho realizado, embora orientado admite que fiquem fora do sistema quaisquer
pelo coordenador de núcleo, tem apenas um crianças vítimas de alguma restrição que as
objetivo: colocar o aluno na posição de agente impeça de estudar ou que, de alguma maneira,
do processo fazendo com que este perceba a as coloque fora da sociedade.
importância do seu engajamento na conquistas
de resultados para ele e seu grupo. Devido à aceitabilidade irrestrita exercida
pela escola, cerca de ¼ de seu corpo discente
Denominado pela comunidade ponteana é constituído por crianças com algum diagnós-
como Método de Leitura Natural, a aprendiza- tico psicológico comprometido ou até mesmo
gem lingüística nasce naturalmente, de forma alguma restrição psiquiátrica relevante. Com
ampla à restrita, ou seja, é nas palavras e frases isso, a educação ponteana vem trabalhando
inteiras que se tem o iniciar da alfabetização. as desigualdades em todas as sua instâncias e
Tais palavras são diretamente vinculadas à fazendo delas fontes para a extração do verda-
vida de cada aluno, isto é, de seu universo deiro potencial de seu alunado.
lingüístico-significativo e é a partir desta sig-
nificação que a alfabetização acontece. Não se Cidadania e solidariedade são questões
acredita na escola em sistemas como “ba – be presentes em muitos dispositivos criados pe-
– bi – bo – bu” ou “ a, e , i , o, u”, pois para los alunos e professores adeptos da educação
eles “ba” não é nada, não possui significação ponteana. Entre os dispositivos gerados está o

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quadro “Tenho necessidade de ajuda em...” Os espaços nos quais o conhecimento é


e “Posso ajudar em...” em que, alunos com compartilhado são variados e neles os alunos
dificuldades de aprendizagem e outros com produzem de forma livre tudo de que necessi-
uma facilidade um pouco maior trocam expe- tam para auxiliar em seus trabalhos. Em en-
riências e com elas criam uma rede de relações trevista à Revista Nova Escola, José Pacheco
de ajuda que os favorece como um todo. A es- (2002, p.25) cita:
tratégia gera mais que uma mera assimilação
de conteúdos, semeia um espírito participativo Não há salas de aula, e sim, lugares onde
e uma aprendizagem de valores, pois quem cada aluno procura pessoas, ferramentas e
sabe se propõe a ajudar quem ainda não sabe e soluções, testa seus conhecimentos e con-
quem tem alguma dificuldade consegue reco- vive com outros. São os espaços educati-
nhecer isso. vos. Hoje, eles estão designados por área.
Na humanística, por exemplo, estuda-se
Já os dispositivos “Eu já sei”, “Eu ainda História e Geografia; no pavilhão das ci-
não sei” e “Eu pensava que sabia” funcionam ências fica o material sobre Matemática,
como auto-avaliadores dos conhecimentos ad- e o central abriga a Educação Artística e
quiridos ao longo dos trabalhos. Educadores a Tecnológica.
da Escola da Ponte acreditam que através des-
ta rede de relações é possível exercer o que de
mais consistente há no que se refere ao pleno Em tais espaços, além do exercício cons-
exercício da cidadania, a preocupação com o tante em favor do cumprimento dos planos
outro e o trabalhar dos limites e habilidades quinzenais, há também o acontecimento de
humanas. trabalhos individuais. Embora os professores
acreditem na individualidade de alguns traba-
No quadro onde ficam expostas expressões lhos, não é encorajada a postura individualista,
como “Acho bom” e “Acho mau” os alunos muito menos solitária. O que se busca, contudo,
colocam as opiniões relativas às atitudes dos é a administração das necessidades humanas
colegas. Casos de indisciplina e dificuldades respeitando-se o outro e reconhecendo nele
de convívio são relatados e geram reflexões uma fonte inesgotável do que os educadores
após suas exposições nas respectivas listas. da escola chamam de saber compartilhado.
Embora seja buscado, com isso, o exercício de
O fato de lidar com questões sociais com- saberes nobres, como solidariedade e cidada-
plexas particulares ao seu alunado faz com que nia, por exemplo, muitos alunos e professores
a escola portuguesa seja mais que uma escola. que nesta escola ingressam acabam deixando-
Ela é vista por educadores de todo o mundo a em busca de novos sistemas que tenham uma
como uma instituição diferenciadora em todos adequação mais exata às necessidades particu-
os sentidos, tanto com relação aos métodos lares que, na Escola da Ponte, não são as que
inovadores como com relação à conduta de mais importam.
seus membros. Esta diferenciação metodoló-
gica não os obriga a cumprirem os mesmos Partilhando do pensamento grego que
prazos seguidos por outras instituições. Todo acreditava que todo pensamento se inicia no
trabalho é realizado respeitando-se o tempo e espanto, as crianças envolvidas no projeto têm
as peculiaridades dos grupos envolvidos em o conhecer iniciado a partir do espanto causado
todo o processo de aprendizagem. pelo desconhecido. Por serem extremamente
curiosas, buscam responder ao que não sabem

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e é desta forma que se inicia o movimento. como aqueles tradicionais que comparecem à
Em busca dos temas dos projetos que trazem escola para apenas ouvir críticas e reclamações
contidos em seu fazer a capacidade de resol- a respeito do comportamento de seus filhos
ver questões que vão das mais simples, como indisciplinados.
responder a perguntas tais como “Por onde as
árvores respiram?” até outras mais complexas, Partilhando dos conceitos e adepta desta
como “e quando não têm folhas, por onde as ideologia está a Associação de Pais de Portugal
árvores respiram?” ou “Como, há tanto tempo que financia o referente às lacunas deixadas
atrás, as caravelas portuguesas chegaram tão pelo governo. Tal governo, por discordar das
longe e hoje, com tanta tecnologia, na come- vias inovadoras escolhidas pela escola, mes-
moração dos 500 anos do Brasil, a réplica não mo sem conhecer o projeto de forma aprofun-
conseguiu navegar?” “Que tecnologias foram dada, tentou diversas vezes fechá-la alegando
usadas naquela época que hoje, 500 anos de- incompatibilidade com o sistema nacional de
pois, ainda não conseguimos entender?” As educação vigente no país. Contudo, mesmo
crianças fazem questões que são resultados de sofrendo com processos e repressões gover-
um ensino que acontece de forma consistente namentais, ela é uma das poucas instituições
e que, seja ele realizado de forma conjunta ou públicas do mundo com autonomia suficiente
individualizado, ocorre naturalmente. para escolher, por exemplo, seu próprio corpo
docente.
A singularidade do projeto se deve também
ao fato de pais e filhos estarem do “mesmo IV - Considerações finais
lado do jogo”. Ambos se envolvem em prol de
um trabalho único, conjunto, a fim de se alcan-
çar um bem comum. Não é encorajada entre Ao retomar-se as palavras de Fernando
eles uma relação de troca utilitária em que o Pessoa, “Quando te vi, amei-te muito antes”,
filho que produz é recompensado pelo pai, en- encontra-se a essência do Projeto Fazer a Pon-
quanto o que não se adequa como é devido se te. Para entendê-lo, é preciso ter-se um olhar
esconde do sistema e engana os pais através de diferenciado capaz de captar as peculiaridades
métodos milenares de desonestidade cotidiana envolvidas em sua confecção. É preciso, antes
executados entre filhos e pais sempre que o de mais nada, navegar de forma livre, sem
assunto gira em torno de notas, boletins, faltas medo do que está por vir. Aceitar este projeto
e atrasos... é muito mais do que aceitar simplesmente. É
vivê-lo em todas as suas vicissitudes e através
Os alunos da Escola da Ponte não escon- delas incorporar-se às questões difundidas e
dem o que fazem na escola. Ao contrário, exercidas por ele.
contam com a cooperação cotidiana de fa-
miliares e amigos da comunidade que estão Ao ser perguntado a respeito de fórmulas
constantemente engajados no processo de mágicas que acabem com a apatia educacional
aprendizagem coletiva. O engajamento é tão que envolve os alunos e se realmente há algo
forte que, contrariando o sistema tradicional na Escola da Ponte que possa ser ‘copiado’,
vigente na maioria das escolas do mundo, a José Augusto Pacheco declara:
reunião de pais é mensal e tida por todos como
um encontro de colaboradores entretidos e dis- “Viemos de um velho edifício, sem me-
postos a trabalhar. Na Escola, os pais e demais sas e portas nos banheiros. Tínhamos
responsáveis de forma alguma se caracterizam que fazer paredes para que fosse possível

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usá-los e hoje me perguntam se o modelo muitos séculos são buscadas por aqueles que
de educação da Ponte pode ser instalado ainda acreditam que a educação, e somente ela,
aqui ou lá. A respeito disso eu digo: a pode ser a responsável por gerar um indivíduo
Escola da Ponte não é um modelo a ser responsável, crítico e pleno na construção de
seguido. A Ponte é para se inspirar...” seus valores.
(2006, p.64)

Visto como uma ‘utopia pedagógica’ no Sobre o autor:


ano de 1976, o Projeto Fazer a Ponte é, atual-
mente, um dos pólos de educação mais visita- Mestre em Educação pela Faculdade de
do e tido como exemplo por muitas realidades Educação da Universidade Federal do Rio
educacionais vigentes no mundo. Grupos de de Janeiro. Professora do Curso de Letras e
professores vindos dos cinco continentes es- Coordenadora do Curso de Pós-graduação em
tão constantemente na escola com o objetivo Educação e Práticas Pedagógicas do Centro
de buscarem soluções ou, pelo menos, um Universitário Augusto Motta (UNISUAM).
caminho que possa levar às respostas que há

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir. 6 ed.
São Paulo: Papirus, 2001.

ILLICH, IVAN. Sociedade Sem Escolas. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

PACHECO, José. Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos. São Paulo: Papirus, 2006.

PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. Santiago: Klick, 1997.

Projeto Educativo da Escola da Ponte. São Tomé de Negrelos, maio de 2003.

Regulamento Interno da Escola da Ponte. São Tomé de Negrelos, jun. 2003.

Só aprende quem tem fome. Revista Nova Escola, Rio de Janeiro, p.95, maio. 2002.

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