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MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA

HISTÓRIA
DO
DIREITO PORTUGUÊS

COIMBRA

1989
NOTA 19
PRÉVIA

INTRODUÇÃO

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.
PLANO DA EXPOSIÇÃO

1. Noção de história do direito ............................


23
1.1. A história do direito como ciência histórica .....................
26
1.2. A história do direito como ciência jurídica .....................
27
2. Objecto da história do direito ...........................
29

3. Classificações da história do direito .......................


31
3.1. História externa e história interna do direito ....................
32
3.2. História geral e história especial do direito ......................
33

4. O método cronológico e o método monográfico na exposição da


história do direito ....................................
34

5. Enquadramento do direito português. Seus factores básicos .......


36

6. Plano da exposição....................................
40

7. Formação e evolução da ciência da história do direito português ... 42


a) Os estudos histórico-jurídicos anteriores à segunda metade do século XVIII ........
42
b) Criação da ciência da história do direito português .....................
44
c) Consolidação da história do direito português como disciplina cientifica ...........
50
d) Individualização da historiografia júri dica portuguesa.....................
54
e) Renovação moderna da ciência da história do direito português ...............
55

9
índice geral

PARTE I

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DO DIREITO PENINSULAR

CAPÍTULO I

PERÍODO PRIMITIVO

8. Característica básica. Fontes de conhecimento ................


67
9. Povos anteriores à conquista romana .......................
69
9.1. Principais povos autóctones ..............................
69
9.2. Colonizações estrangeiras ...............................
71
10. Organização política e social ............................
72
10.1. Organização política...................................
72
a) Os Estados peninsulares. Regimes políticos ......................
72
b) Confederações e subordinações de Estados .......................
74
10.2. Classes sociais ..................................... 75
11. Direito peninsular pré-romano ...........................
76
11.1. Direito dos povos autóctones .............................
77
a) Fontes de direito ....................................
77
b) Instituições jurídicas ...................................
79
11.2. Direito dos povos colonizadores ...........................
81

CAPÍTULO II

PERÍODO ROMANO

12. A conquista da Península pelos Romanos .................... 85


13. A romanização da Península .............................. 86
13.1. Assimilação lenta da cultura e da civilização dos Romanos pelos povos autóc-
tones ............................................ 87
13.2. Romanização jurídica ................................. 89
a) A concessão da latinidade ............................... 90
b) A concessão da cidadania ............................... 93
14. Fontes de direito romano relativas à Península .............. 93
15. Direito vigente na Península ao tempo das invasões germânicas.
O direito romano vulgar ................................ 95

10
ÍNDICE GERAL

CAPÍTULO III

PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

16. Razão de ordem ............................ ..


101
17. Os Germanos antes das invasões ......................
101
a) Assentamento primitivo. Grupos em que se subdividiram .................
101
b) Cultura, religião e direito ..................................
103
18. As invasões germânicas ...............................
104
a) Natureza e causas determinantes...............................
104
b) Formação dos novos Estados germânicos ..........................
105
c) Persistência do direito romano nos Estados germânicos ..............„....
106
19. Fontes de direito dos Estados germânicos. Documentos de aplica-
ção do direito ......................................
108
19.1. Fontes de direito ...................................
108
a) Carácter exclusivamente consuetudinário do primitivo direito germânico. Redução
desse direito a escrito após as grandes invasões .....................
108
b) Leis dos bárbaros ou leis populares...........................
109
c) Leis romanas dos bárbaros ..............................
111
d) Capitulares.......................................
112
19.2. Documentos de aplicação do direito. Os formulários e os textos de actos jurí-
dicos ...........................................
112
20. Traços gerais da história política da Península desde as invasões
germânicas até à queda do Estado Visigótico ................
114
a) Estabelecimento, na Península, dos Alanos, I 'ândalos e Suevos .............
114
b) O Reino Suevo (409/585). A figura de S. Martinho de Dume na história sueva ....
115
c) Ocupação da Península pelos I 'isigodos ..........................
117
I — Instalação na Gália ................................
118
II — Incursões no território peninsular durante o século V .............
105
III — Estabelecimento definitivo na Península ....................
119
IV — O Estado Visigótico na Península .......................
120
21. Condições em que os Visigodos se instalaram na Península ....... 120
a) Repartição de terras entre Visigodos e Hispano-Romanos ..................
121
b) Diferenças étnicas e culturais na Península depois da ocupação visigótica. Seu desapareci-
mento lento ..........................................
123
22. Fontes de direito do período visigótico .....................
126
22.1. Referência sumária às principais fontes de direito do período visigótico ....
127
I — Código de Eurico ..............................
128
II — Breviário de Alarico ...............................
129

11
índice geral

III — Código Revisto de Leovigildo ........................ 130


IV — Código l Isigótico .............................. 131
22.2. O problema da personalidade ou territorialidade da legislação visigótica . . . 133
a) lese de personalidade ................................. 134
b) Tese da territorialidade ................................ 135
c) Posição actual do problema ............................... 136
22.3. Direito consuetudinário visigótico .......................... 139
22.4. Direito canónico. Os Concílios de Toledo .................... 140
23. Ciência do direito e prática jurídica na época visigótica ........ 141
23.1. Ciência do direito. A personalidade e a obra de Santo Isidoro, bispo de Sevilha 141
23.2. Prática jurídica ..................................... 143
a) Falta de documentos desta época. Os formulários ................... 143
b) Fórmulas I 'isigóticas .................................. 144

CAPÍTULO IV

PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO


E DA RECONQUISTA CRISTÃ

24. A invasão muçulmana e o seu significado ................... 149


a) Breve nótula sobre a história política dos Muçulmanos na Península ............ 151
b) Os invasores e o seu direito. As fontes do direito muçuhnano ............... 153
c) Os Cristãos e os Judeus submetidos ao domínio muçulmano ............... 155
25. A Reconquista. Formação dos Estados cristãos ................ 157
26. A separação de Portugal. O problema jurídico da concessão da
terra portugalense a D. Henrique ......................... 159
27. Características e elementos constitutivos do direito da Recon-
quista ............................................ 162

PARTE II

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

CAPÍTULO I

PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

28. Visão de conjunto da evolução do direito português ............ 173

12
ÍNDICE GERAL

CAPÍTULO II

PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

29. Fontes do direito português anteriores à segunda metade do


século XIII ........................................
183
a) Fontes de direito do Reino de Leão que se mantiveram em vigor ..............
183
I — Código Visigótico .................................
169
II —Leis dimanadas de Cúrias ou Concílios reunidos em Leão, Coianca e
Oviedo .......................................
186
III — Forais de terras portuguesas anteriores à independência ...........
187
IV — Costume ......................................
190
b) Fontes de direito posteriores à fundação da nacionalidade ..................
191
I — Leis gerais dos primeiros monarcas ......................
191
II — Forais .......................................
193
III — Concórdias e concordatas ............................
193
30. Aspectos do sistema jurídico da época .....................
194
a) Considerações gerais .....................................
194
b) Contratos de exploração agrícola e de crédito ........................
196

CAPÍTULO III

PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO


ROMANO-CANÕNICA

$1.°
ÉPOCA DA RECEPÇÃO DO DIREITO ROMANO RENASCIDO
E DO DIREITO CANÓNICO RENOVADO (DIREITO COMUM)

31. O direito romano justinianeu desde o século VI até ao século XI 205


32. Pré-renascimento do direito romano ........................
207
33. Renascimento propriamente dito do direito romano com a Escola
de Bolonha ou dos Glosadores ............................
210
a) Origens da escola e seus principais representantes ......................
210
b) Sistematização do "Corpus luris Civilis" adoptada pelos Glosadores ...........
212
c) Método de trabalho .....................................
213
I — A glosa e outros tipos de obras .........................
214
II — Os Glosadores perante o texto do "Corpus luris Civilis" .........
215
d) Apogeu e declínio da Escola dos Glosadores. A "Magna Glosa". O ciclo pós-acursiano 216

13
ÍNDICE GERAL

34. Difusão do direito romano justinianeu e da obra dos Glosadores 218


a) Na Europa em geral. Causas dessa difusão ........................ 218
I — Estudantes estrangeiros em Bolonha ..................... 218
II — Fundação de Universidades .......................... 219
b) Na Península Ibérica e especialmente em Portugal .................... 222
I — Em que época se inicia ............................ 222
II — Quando se verifica em escala relevante .................... 224
35. Factores de penetração do direito romano renascido na esfera jurí-
dica hispânica e portuguesa ............................ 225
a) Estudantes peninsulares em escolas jurídicas italianas e francesas. Jurisconsultos estrangeiros
na Península ........................................ 226
b) Difusão do "Corpus Iuris Civilis" e da Glosa ...................... 228
c) Ensino do direito romano nas Universidades ........................ 228
d) Legislação e pratica jurídica de inspiração romanística ................... 231
e) Obras doutrinais e legislativas de conteúdo romano .................... 231
36. Escola dos Comentadores ................................ 235
a) Origem e evolução da escola. Principais representantes ................... 236
b) Significado da obra dos Comentadores ........................... 238
37. O direito canónico e a sua importância ..................... 239
38. Conceito de direito canónico ............................ 240
39. O direito canónico anteriormente ao século XII ............... 242
4(). Movimento renovador do direito canónico ................... 244
40.1. Colectâneas de direito canónico elaboradas desde o século XII. O "Corpus
Iuris Canonici" ................................... 244
40.2. Renovação da ciência do direito canónico. Decretistas e decretalistas ...... 247
41. Penetração do direito canónico na Península Ibérica ........... 248
41.1. Considerações gerais ................................ 249
41.2. Aplicação judicial do direito canónico ....................... 250
a) Aplicação nos tribunais eclesiásticos .......................... 250
b) Aplicação nos tribunais civis............................... 251
42. O direito comum ................................... 252
43. Fontes do direito português desde os meados do século XIII até às
Ordenações Afonsinas ............................... 253
I — A legislação geral transformada em expressão da vontade do monarca. Publi-
cação e entrada em vigor da lei............................. 257
II — Resoluções régias.................................... 258
III — Decadência do costume como fonte de direito .................. 258

14
ÍNDICE GERAL

IV — Forais e foros ou costumes...............................


258
V — Çoncórdias e concordatas ............................. 260
VI — Direito subsidiário ..................................
261
44. Colectâneas privadas de leis gerais anteriores às Ordenações Afonsinas 263
a) Livro das Leis e Posturas ..................................
264
b) Ordenações de D. Duarte .................................
264
45. Evolução das instituições ...............................
265

§2.°
ÉPOCA DAS ORDENAÇÕES

46. Ordenações Afonsinas ................................


269
a) Elaboração e início de vigência ................................
269
b) Fontes utilizadas. Técnica legislativa ............................
272
c) Sistematização e conteúdo ..................................
273
d) Importância da obra .....................................
274
e) Edição ...........................................
275
47. Ordenações Manuelinas ..................................
276
a) Elaboração ...........................................
276
b) Sistematização e conteúdo. Técnica legislativa ........................
279
c) Edição ...........................................
280
48 Colecção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião ..........
281
a) Elaboração, conteúdo e sistetnatização.............................
281
b) Edição ...........................................
283
49. Ordenações Filipinas ..................................
284
a) Elaboração ..........................................
284
b) Sistematização e conteúdo. Legislação revogada .......................
285
c) Confirmação por D. João IV ...............................
287
cl) Os "filipismos" .......................................
287
e) Edição.............................................
288
50. Legislação extravagante. Publicação e inicio da vigência da lei — 290
a) Considerações introdutórias .................................
290
b) Espécies de diplomas......................................
291
c) Publicação e início da vigência da lei .............................
294
51. Interpretação da lei através dos assentos ....................
296
52. Estilos da Corte. O costume .............................
300
a) Estilos da Corte .......................................
300
b) O costume...........................................
301

15
ÍNDICE GERAL

53. Direito subsidiário ..................................


304
a) O problema do direito subsidiário .............................
304
b) Fontes de direito subsidiário segundo as Ordenações Ajonsinas .............
307
I — Direito romano e direito canónico .......................
308
II — Glosa de Acúrsio e opinião de Bártolo ...................
309
III — Resolução do monarca .............................
309
c) Alterações introduzidas pelas Ordenações Manuelinas e pelas Ordenações filipinas - -
310
d) (Jtilização das fontes subsidiárias .............................
312
54. Reforma dos forais ............................•......
313
55. Humanismo jurídico ...................................
314
a) Causas do seu aparecimento. (Características ........................
316
b) Precursores e apogeu da escola ................................
317
c) Contraposição do humanismo ao banolismo .......................
318
56. Literatura jurídica ...................................
320
a) Considerações gerais ....................................
320
b) Civilistas ..........................................
322
c) Canonistas ........................................
323
d) Cultores do direito pátrio .................................
323
57. O ensino do direito ..................................
327
a) Antes de D. João III ...................................
327
b) Instalação da l 'niversidade em Coimbra ..........................
330
c) Organização dos estudos jurídicos segundo os "Estatutos Velhos" ...........331
58. A segunda escolástica. Seus contributos jurídicos e políticos . . . .
335

CAPÍTULO III
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

§ L°

ÉPOCA DO JUSNATURALISMO RACIONALISTA

59. Correntes do pensamento jurídico europeu ...................


345
a) Escola Racionalista do Direito Natural ...........................
345
b) í/50 Moderno ........................................
348
c) Jurisprudência Elegante ...................................
349
d) Iluminismo .........................................
350
e) Humanitarismo .......................................
353
60. Reformas pombalinas respeitantes ao direito e à ciência jurídica 354
a) Considerações introdutórias .................................
354

16
índice geral

b) A Lei da Boa Razão ................................... 356


c) Os novos Estatutos da Universidade ............................ 362
61. Literatura jurídica ................................... 367
62. O chamado "Novo Código". Tentativa de reforma das Ordenações 372

§2.»

ÉPOCA DO INDIVIDUALISMO

63. Aspectos gerais do individualismo político e do liberalismo eco-


nómico .........................................
379
64. Transformações no âmbito do direito político ..............
383
65. Transformação no âmbito do direito privado ...............
386
66. Publicação e início da vigência da lei ..................... 391
67. As codificações ...................................... 394
a) Aspectos introdutórios .................................... 394
b) O movimento codificador português ............................. 397
I — Direito comercial ................................... 398
II — Direito administrativo ................................ 401
III — Direito processual ................................... 403
IV — Direito penal ..................................... 406
V — Direito civil ...................................... 410
68. Nova perspectiva do direito subsidiário ..................... 417
69. Extinção dos forais ................................... 419
70. O ensino do direito ................................... 422
a) Fusão das Faculdades de Leis e de Cânones na moderna Faculdade de Direito ...... 422
b) O ensino do direito nos começos do século XX ....................... 425
c) A criação da Faculdade de Direito de Lisboa ..................... 428
71. Ciência do direito e literatura jurídica ..................... 430
a) Considerações gerais ..................................... 430
b) Direito potitico e direito administrativo ............................ 432
c) Outros domínios jurídicos .................................. 434

§ 3.°
ÉPOCA DO DIREITO SOCIAL

72. Considerações gerais ................................. 449

17
NOTA PRÉVIA

Este livro destina-se, sobretudo, a estudantes universitários. Píetende for-


necer tópicos que constituam uma condensação de prelecções orais. Com vista
ao aprofundamento que se queira fazer dos vários temas, proporciona-se biblio-
grafia adequada. Sempre que, em face de aspectos controversos, se fica na
síntese das posições básicas, nunca se elude a sua problematicidade e indicam-se
pistas para ir mais adiante. Assim impõe o equilíbrio da exposição.
Talvez fosse dispensável salientar que, mesmo dentro dos objectivos
visados, não se considera a presente obra um trabalho acabado: nem pelo que
toca à concepção global do ensino da história do direito, nem, tão-pouco, relati-
vamente à substância e à forma. O futuro dirá sobre a sua melhoria.
Quando, em Í979, retomei esta disciplina, após um hiato de alongados
anos, socorri-me de um texto policopiado, decorrente de reproduções sucessivas
de alunos, que trazia a lembrança muito grata da docência da matéria em
ligação estreita com o Prof Doutor Guilherme Braga da Cruz. Logo efectuei
acrescentos, supressões e modificações sensíveis, que depois prosseguiram.
Tratou-se de uma remodelação necessária. É completamente nova, por exem-
plo, a exposição posterior à segunda metade do século XVIII.
Adverte-se, todavia, que, apesar das transformações realizadas, ainda
poderão detectar-se vestígios do texto originário, em especial nos aspectos intro-
dutórios e a respeito dos ciclos mais antigos. Continuam uma presença desejada
do saudoso Mestre.
Havia o propósito de Braga da Cruz dar à estampa, com a minha
colaboração, umas lições que partissem do referido esboço policopiado — que,
em múltiplos pontos, aliás, não corresponde ao seu exacto ou último pensa-
mento. Diversos motivos levaram à demora da execução dessa iniciativa, até

19
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

quando não seria mais possível. Pela minha parte, verificou-se, entretanto, o
desempenho de honrosas e absorventes funções públicas. Depois, as circunstân-
cias deslocaram-me para o estudo predominante do direito das obrigações.
De qualquer modo, não se procedeu agora a simples revisão ou
actuali-
zação de um projecto que as mudanças metodológicas e os próprios resultados
da investigação ultrapassaram inexoravelmente. Publico uma obra autónoma.
Daí que não parecesse certo, sem a palavra definitiva de Braga da Cruz,
colocar o presente livro sob o signo e a fiança de uma co-autoria que tanto me
honrava.

11 de Junho de 1989
M. J.
Almeida Costa

20
< INT CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.
ROD PLANO DA EXPOSIÇÃO
UÇÃ
O
1. Noção de história do direito

Do mesmo modo que a filosofia, distingue-se a história


da
generalidade dos ramos do saber e da cultura, além do mais, pelo
facto de não possuir rigorosamente um objecto próprio e em exclu-
sivo seu. Pode dizer-se que se ocupa do objecto de todas as outras
disciplinas, se bem que de uma perspectiva diferente da adoptada
nessas múltiplas esferas do pensamento, da ciência e da técnica.
Há uma história do direito, tal como existe uma história
da
economia, da medicina, da arte, da filosofia, da religião, da mate-
mática, etc. Compreende-se, de resto, que assim seja, porquanto a
história e a filosofia constituem de certo modo denominadores
comuns: embora partindo de ângulos diversos, consideram a globa-
lidade do homem, ao passo que as demais disciplinas o tomam ape-
nas em cada uma das suas várias expressões ou significações.
Por outras palavras: ao contrário dos restantes sectores cultu-
rais, científicos e técnicos, que versam áreas limitadas da realidade,
onde existe como que uma divisão do conhecimento, a filosofia e a
história dedicam-se, afinal, a todos esses domínios, suscitando a res-
peito deles os problemas característicos do espírito ou discurso filo-
sófico e do espírito ou discurso histórico. Voltam-se, em suma, para
questões relativas ao objecto das outras ciências, mas de que estas
não tratam directamente ou dão como resolvidas ( ).
Pressupomos conhecidos os conceitos de direito e de história,
aliás, não isentos de algumas difíceis controvérsias. Em decorrência,
numa noção introdutória, define-se a história do direito como a

(') Pode cônsultar-se, a propósito da filosofia do direito, a exposição


de
L. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, Coimbra,
1947,
págs. 1 e segs.

2.3
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

disciplina que descreve e explica as instituições e a vida jurídica do


passado, nos seus múltiplos aspectos normativos, práticos, científi-
cos e culturais. Apenas se acrescentam breves esclarecimentos a
este conceito básico.
Torna-se necessário, desde logo, não confundir a história do
direito com o direito actual historicamente estudado, ou seja, com
a análise do passado estrito do direito que vigora em nossos dias.
Àquela corresponde um âmbito mais vasto, porque se ocupa, não só
dos precedentes históricos das instituições e dos princípios jurídicos
que permanecem na actualidade, mas também dos que, entretanto, se
viram superados ou abolidos. Somente a consideração dessas duas
direcções oferece uma visão completa e adequada da evolução
jurídica.
Problema importante é o da posição que a história do direito
deve ocupar no âmbito das disciplinas históricas e das disciplinas
jurídicas. Trata-se de um aspecto discutido.
A orientação tradicional parte da ideia de sistema jurídico
como elemento aglutinador dos fenómenos jurídicos de cada época
e considera o estudo da transformação desses sistemas o fulcro da
história do direito. Esta compreensão da história jurídica através de
uma sucessão de sistemas e o facto de se encarar o direito numa
interdependência com os vectores materiais e ideológicos coetâneos
constituem corolários do seu enfoque como uma história especial.
Sublinha-se, pois, o aspecto de disciplina histórica.
Numa outra directiva, acentua-se o enquadramento da
histó-
ria do direito entre as ciências jurídicas e assinala-se-lhe o precípuo
objectivo de determinar o estável e o transitório das instituições,
quer dizer, destacando-se, não só o vário e peculiar, consoante é
próprio de uma determinada visão tipicamente histórica, mas tam-
bém o atípico e permanente, como fundamental. Daí que se aponte
um critério de exposição de conjunto, a partir das situações ou
relações da vida, que, na essência, se revelam intemporais.
Não vamos aqui deter-nos nestes problemas de teoria historio-
lógica e de metodologia. Já resulta das rápidas considerações prece-
dentes que, por muito que se postule a inserção da história do

24
INTRODUÇÃO

direito na área das ciências jurídicas, nunca ela pode ser conside-
rada exactamente ao lado das outras. Sempre haverá que entendê-
-la como um ramo da história que se ocupa do direito, embora
profundamente influenciado pelas particularidades do seu objecto e
consequentes parâmetros e orientações da ciência jurídica moderna.
Mostra-se, em síntese, uma disciplina tributária desses dois
domínios.
A consideração da história do direito sob um caracterizado
ângulo jurídico salientará a sua utilidade para o jurista dogmático,
que se dedica ao estudo do direito vigente com finalidades práticas.
Pelo contrário, encarando-a mais comprometida no terreno histó-
rico, ou seja, em última análise, de uma visão global do homem e
da sociedade, melhor se alcança a relacionação das instituições e
dos princípios jurídicos com as outras realidades sociais.
A preferência por uma das referidas concepções da história do
direito depende, evidentemente, de um prévio acerto de posição no
plano da teoria historiológica. Há problemas de filosofia da história
a meditar e a decidir. Mas também não se afigura estranho à ques-
tão o facto de a história do direito poder ser cultivada por estudio-
sos que tenham uma formação básica de juristas ou de historiado-
res. De qualquer modo, as duas perspectivas — a mais jurídica ou a
mais historicista — até certo ponto como que se completam(l).

(') Existe larga bibliografia estrangeira sobre o problema. Destacam-


-se, por ex., H. Mitteis, Vom Lebenswert der Rechtsgeschichte, Weimar, 1947, K. S.
Bader, Aufgabe und Methoden des Rechtshistorikers, Tiibingen, 1951, A. García-
-Gallo, Historia, Derecho e Historia dei Derecho e Cuestiones de historiografia jurídica, in
"Anuário de Historia dei Derecho Espanol", respectivamente, tomo XXIII,
Madrid, 1953, págs. 5 e segs., e tomo LXIV, págs. 741 e segs., e Manual de Historia
dei Derecho Espanol, tomo I — El Origen y la Evolución de Derecho, 10.a reimpres-
são, Madrid, 1984, págs. 15 e segs., B. Paradisi, Apologia delia Storia Giuridica,
Bologna, 1973, e Storia dei diritto moderno e palingenesi delia scienza giuridica, in "La
formazione storica dei diritto moderno in Europa", Firenze, 1977, vol. I, págs. 1
e segs., e Peter Landau, Bemerkungen zur Methode der Rechtsgeschichte, in "Zeit-
schrift fiir Neuere Rechtsgeschichte", Wien, ano 1980, n.os 3/4, págs. 117 e segs.
Muito expressivas, a respeito da relevância da história do direito na formação do
jurista, são as reflexões de António Guarino, O direito e a história, in "Revista
da

25
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Independentemente dessas opções, todavia, interessa averiguar


o sentido da história do direito, no quadro da ciência histórica e da
ciência jurídica. E o que se faz em seguida, explicitando um pouco
melhor a noção básica de que partimos.

1.1. A história do direito como ciência histórica

Consideremos a orientação que deve imprimir-se à história do


direito, enquanto disciplina de carácter histórico. Serve de ponto de
referência um critério divulgado, embora não pacífico, que classi-
fica a história em narrativa, pragmática e genética (!).
De acordo com o referido esquema, diz-se história narrativa a
que tem como finalidade única a pura descrição dos factos e perso-
nagens do passado. Não se intenta teorizá-los, mas apenas transmi-
tir o seu conhecimento aos vindouros. Constitui, sem dúvida, a
primeira e mais simples forma de conceber a disciplina histórica. Aí
se incluem as crónicas, os anais, as genealogias, os relatos de acon-
tecimentos relevantes ou as listas cronológicas de reis e de outras
figuras.
Representa um certo passo em frente a chamada história prag-
mática. Esta procura extrair do passado ensinamentos para orienta-
ção dos homens. Os seus adeptos acreditam na lição da história
como fonte de regras e princípios de conduta futura, reconduzindo-
-se, pois, de modo significativo, a uma disciplina de "factos de
repetição", quando se trata sempre, em rigor, de puros "factos de
sucessão". Surgiu tal perspectiva, no século v a.C, com Tucídides.

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa", vol. XXV, Lisboa, 1984, págs.


221 e segs. (trad. de J. A. Duarte Nogueira).
(l) Deve-se esta classificação a E. Bernheim, Introducción ai estúdio de la
Historia, Barcelona, 1937 (trad. castelhana da 3.a ed. alemã, por Pascual
Galindo
Romeo). Sobre a trilogia mencionada e a sua crítica, pode ver-se o livro clássico
de Manuel Torres, Lecciones de Historia dei Derecho Espátiol, vol. I, 2.a ed.,
Sala-
manca, 1935, págs. 7 e segs.

26
INTRODUÇÃO

Diversamente, a história genética visa uma compreensão dos fac-


tos, das ideias e das instituições do passado na sua sequência ou
dependência orgânica, dentro de um processo causal e teleológico.
Passa-se, em suma, à história científica, que obedece a métodos
rigorosos de investigação e de análise. Só foi possível chegar-se a
este modelo com a evolução, desde o século XVIII, dos alicerces
culturais e filosóficos dos tempos modernos, onde avultam, como se
sabe, as reflexões epistemológicas kantianas e o positivismo.
Em crítica à mencionada classificação, observa-se que nunca
se conseguirá uma história que corresponda, pura e simplesmente, a
uma dessas três categorias. Não se infere, porém, a inviabilidade de
uma historiografia com predominância narrativa, pragmática ou
genética.
Ora, a história do direito deve revestir natureza essencial-
mente genética, quer dizer, científica. Mais do que a mera descri-
ção, pretende-se, sobretudo, a explicação dos fenómenos jurídicos
do passado: há que apurar por que nos diversos momentos históri-
cos vigoraram e prevaleceram determinados princípios, instituições
e métodos jurídicos, em vez de outros. O que postula o aprofunda-
mento dos motivos, porventura de múltipla natureza, que se encon-
tram na respectiva origem ou levaram à sua transformação.
Também aqui se levantam questões importantes de
indagação
filosófica e metodológica, que, aliás, são em parte comuns às res-
tantes ciências humanas. Designadamente, o tipo de inteligibilidade
possível e desejável na explicação ou compreensão dos factos jurídi-
cos do passado.

1.2. A história do direito como ciência jurídica

Importa observar, por outro lado, a posição da nossa disciplina


em confronto com as restantes cujo objecto consiste igualmente no
estudo do direito, embora utilizando prismas diferentes. Repare-se
que este pode ser olhado sob três aspectos: o técnico, o filosófico e
o histórico — como que o presente, o futuro e o passado.

27
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Existe um conjunto de normas jurídicas vigentes que discipli-


nam a vida social. Quando se encaram estas normas em si mesmas,
apenas com a finalidade da sua interpretação, sistematização e apli-
cação, estuda-se o direito de um ângulo técnico ou dogmático.
Outra é, sem dúvida, a óptica filosófica de análise do direito,
que pretende colocar, na órbita do jurídico, os problemas ou inter-
rogações que constituem o discurso filosófico. Tais são, como não
se ignora, o problema gnoseológico ou do conhecimento (qual
a natureza e a validade do conhecimento humano?), o problema
ontológico ou do ser (em que consiste a realidade nas suas diteren-
tes estruturas?), o problema axiológico ou do valor (qual o sentido
e a hierarquia dos fins de acção?) e, ainda, embora sem verdadeira
especificidade no campo do direito, o problema metafísico ou do
absoluto (qual o sentido último do mundo e da vida?).
Ao nível filosófico, considera-se o direito numa dimensão
supratemporal, isto é, põem-se essas aludidas interrogações a res-
peito da ideia de direito independentemente da forma ou formula-
ção específica que assume em determinado momento histórico. Por-
tanto, constitui sempre uma atitude crítica de aferição da
juridicidade.
Em consequência, pode dizer-se que, de algum modo, a com-
preensão filosófica do direito se encontra voltada para o futuro, que
se mostra prospectiva. Por outras palavras: ela averigua se as normas
jurídicas vigentes encerram ou não justiça bastante para continua-
rem a sê-lo e quais os preceitos, porventura integrados noutros
complexos normativos (maxime, a moral), que devem ascender a
essa categoria.
Há, finalmente, um terceiro modo de abordar o direito: o
da
dimensão histórica. Estudam-se as instituições e os princípios jurí-
dicos no seu passado, apurando como e por que surgiram. Intenta-
-se, além do mais, investigar os precedentes e as causas da juridici-
dade do direito actual.

28
INTRODUÇÃO

2. Objecto da história do direito

Quanto ao objecto ou conteúdo, a história do direito com-


preende três áreas fundamentais. São elas: a) a história das fontes;
b) a história das instituições; c) a história do pensamento jurídico. Represen-
tam, de certa maneira, outras tantas subdisciplinas, naturalmente em
íntima relação, mas susceptíveis de estudo autónomo. Impõem-se
algumas considerações a seu respeito.

a) História das fontes — Recorde-se que a expressão fontes de


direito assume diversos significados na terminologia jurídica ('). Pode
ser tomada em cinco acepções principais: como fundamento da
validade ou obrigatoriedade do direito [sentido filosófico), como
órgãos criadores deste (sentido politico), como modos de formação e
de revelação do direito (sentido técnico-jurídico ou formal), como textos
ou diplomas em que o mesmo se contém (sentido material ou instru-
mental) e, ainda, como factores que representam a causa próxima da
génese e do conteúdo concreto das normas jurídicas (sentido socio-
lógico). Todos os referidos aspectos interessam, sem dúvida, à histó-
ria do direito.
A consideração do problema naquele primeiro sentido prende-
-se directamente com a filosofia do direito e a sua história. Mas a
atitude tomada, em cada época, perante essa magna questão tam-
bém concerne ou, no mínimo, não se mostra de todo alheia à histó-
ria do pensamento jurídico.
Pelo que toca aos órgãos de onde emanam as normas jurí-
dicas, trata-se de específica história do direito político e constitu-
cional. Pois é no respectivo âmbito que se definem tais órgãos.
Relativamente ao modo de formação e revelação dos preceitos
jurídicos, procura-se averiguar se o direito de um povo, em certo

(') Sobre este debatido tema, ver, por ex., A. Castanheira Neves,
Fontes
de direito. Contributo para a revisão do seu problema, in "Boletim da Faculdade de
Direito", vol. LVIII — "Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo
Merêa e G. Braga da Cruz", Coimbra, 1982, tomo II, págs. 169 e segs.

29
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

momento histórico, derivou da lei, do costume, da jurisprudência


ou da doutrina. Em regra, concluir-se-á pela simples predominân-
cia e não exclusividade de uma ou de algumas dessas fontes. O
problema reveste-se de apreciável interesse, porque a perfeição dos
modos de formação e revelação das normas jurídicas está relacio-
nada com o grau de cultura e de civilização dos seus destinatários.
Por outro lado, visando a história do direito reconstituir os
sistemas jurídicos do passado, torna-se manifesto que terá de
ocupar-se dos textos onde se encontram as respectivas normas.
Igualmente, o próprio facto da sua elaboração e a técnica, que pre-
side às colectâneas ou codificações reflectem os conceitos e o
ambiente jurídico dos ciclos históricos em que surgiram.
Assim como pertence ao historiador do direito apurar
as
razões que determinaram a criação dos preceitos jurídicos, as quais
podem ser de índole económica, política, cultural, etc. Atinge-se
a última das referidas acepções da expressão fontes de direito. Na
verdade, não se deve encarar o direito fora da circunstância ou
realidade em que se insere, ou seja, desligado dos restantes factores
que integram a evolução social. Por exemplo, determinadas provi-
dências legislativas sobre o contrato de arrendamento podem
explicar-se, em dado período histórico, pela crise de habitação.
Dir-se-á, então, que este facto social e económico constitui a fonte
ou causa de tais normas.

b) História das instituições — Eis a segunda direcção assinalada à


nossa disciplina e cujo objectivo consiste em estudar o próprio
direito tal como se acha contido nas normas jurídicas das diferentes
épocas. Mas importará orientar esse estudo com um duplo alcance.
Evidentemente, não basta a averiguação das instituições jurí-
dicas configuradas pelas normas. Interessa apurar, além disso, se, na
prática, essas instituições eram vividas, ou se, e em que medida,
constituíam letra morta. Nesta última hipótese, cabe ainda deter-
minar qual o ordenamento jurídico efectivamente seguido.
Uma coisa é o direito que o legislador estatui para os compo-
nentes de um certo agregado social e coisa diversa pode representar

30
INTRODUÇÃO

o direito que de facto se adopta. Hoje em dia, as normas contidas


nos diplomas legais coincidem fundamentalmente com os preceitos
jurídicos que os seus destinatários na realidade observam. Contudo,
entre os povos antigos, verifica-se, não raro, um esforço constante
dos legisladores para estabelecer a observância de normas jurídicas
inovadoras e mais perfeitas, enquanto, a seu lado, se encontra uma
forte resistência da população, que continua apegada às instituições
tradicionais.
Essa sobreposição de sistemas produz-se, de modo especial, no
âmbito do costume. Se as instituições consuetudinárias têm a sua
localização geográfica em pontos distantes da sede do poder cen-
tral, muitas vezes, tais instituições persistem para além da promul-
gação de normas legislativas, passando, assim, a haver um "direito
prático" ao lado de um "direito oficiar'.

c) História do pensamento jurídico — O conceito de pensamento


jurídico é complexo e questionado. Reporta-se à formação e à ati-
tude mental do jurista como "operador do direito", quer dizer, na
função mediadora que lhe compete entre o mundo das normas ou
dos valores jurídicos e a vivência destes nas situações concretas.
Portanto, a história do pensamento jurídico ocupa-se da actividade
científica, cultural e também prática que, em cada época, sempre
acompanha o direito.
A aplicação das normas jurídicas exige, na verdade, a sua
interpretação e sistematização, o que pressupõe ou traduz inevita-
velmente certa posição metodológica. Relacionados com esses
aspectos se encontram os da formação dos juristas, das correntes
doutrinais e da literatura jurídica. Tanto basta para realçar a
importância desta área da história do direito.

3. Classificações da história do direito

Têm sido feitas algumas classificações da história do direito.


Com elas se pretende, partindo de pontos de vista diversos, a orde-

31
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

nação e um melhor esclarecimento da matéria histórico-jurídica.


Apenas se referem duas classificações correntes ( ).

3.1. História externa e história interna do direito

Pertence a Leibniz a autoria da divisão da história do direito


em interna e externa. Atribuiu-lhe, porém, um sentido diverso do
actual.
Nessa primeira formulação, a história interna constitui o que se
designa genericamente por história do direito, ou seja, ocupa-se dos
sistemas jurídicos que vigoraram no passado em todos os seus aspec-
tos. Ao lado dela, a história externa tem como objecto o estudo dos
factores metajurídicos de ordem política, social, económica, reli-
giosa, cultural, etc, que exerceram influência na formação do
direito das várias épocas.
Parte-se, em suma, do pressuposto exacto de que o direito de
um povo se integra no conjunto do seu movimento social, que é
reflexo dos correspondentes factores culturais e civilizacionais.
Assim: na história interna, procura-se o conhecimento do próprio
sistema jurídico em si; e, na história externa, realiza-se a análise
dos elementos exteriores a um sistema jurídico, mas que nele se
repercutiram directa ou indirectamente.
A crítica fundamental dirigida à classificação de Leibniz é a de
que apenas a história interna constitui autêntica história do direito.
A história externa, enquanto trata de aspectos que se revelam exte-
riores ao direito, traduz-se antes numa faceta da história da civili-
zação. O reparo tem sentido. Mas isso não significa, como se apre-
ciará, que o apelo a tais elementos condicionantes e explicativos
seja inadequado numa exposição histórico-jurídica, maxime no capí-
tulo da chamada história geral do direito (2).

(') Quanto a ambas, ver os desenvolvimentos de Manuel Torres, Leccio-


nes, cit., vol. I, págs. 43 e segs.
(2) Em certa medida aderindo à criticada formulação leibniziana, ver,

32
INTRODUÇÃO

Em todo o caso, confere-se modernamente um sentido diverso


aos dois referidos termos. Deslocou-se a distinção para a dentro da
história do direito. E, deste modo, entende-se por história interna o
ramo da história jurídica que se ocupa das instituições, ao passo que
a história externa incide sobre as fontes de direito do passado.
Afigura-se rigoroso qualificar de história interna o estudo das
instituições, porque estas representam o conteúdo ou parte interior
das normas jurídicas. Tal como parece adequada a designação de
história externa com o alcance de história das fontes, pois, ao
averiguarem-se os órgãos estatuidores de preceitos jurídicos, os
modos de formação e revelação destes, os textos em que se contêm
ou as circunstâncias que ocasionam o seu aparecimento, estamos a
considerar as normas à distância ou de fora. Quer dizer, não se
investiga o conteúdo.
Mesmo assim, a distinção entre história interna e externa tem
sido atacada com o fundamento de que estes dois aspectos não esgo-
tam o objecto da história do direito. Ela preocupa-se com outros
problemas, além das fontes e das instituições. E o caso do pensa-
mento jurídico.

3.2. História geral e história especial do direito.

Maior acolhimento vem obtendo a distinção entre história


geral e história especial, devida a Brunner. A história geral pertence
fornecer uma visão de conjunto do direito de cada época, uma
apreciação em globo dos sucessivos sistemas jurídicos, Diversa-
mente, a história especial dedica-se ao estudo monográfico e porme-
norizado das várias instituições.
A diferença que separa esta classificação da anterior não é
absoluta, porquanto a história interna tem o mesmo objecto que a

entre nós, L. Cabral de Moncada, O "século XVIII" na legislação de Pombal,


in
"Estudos de História do Direito", vol. I, Coimbra, 1948, págs. 83, 85 e 105.

33
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

história especial. As discrepâncias só existem relativamente à histó-


ria externa e à história geral, em virtude de a última se apresentar
mais extensa do que a primeira: toda a história externa constitui
história geral, mas já a proposição inversa não se verifica.
A história geral procura fornecer uma visão de conjunto do
direito de um povo, em cada época da sua evolução. Para tanto,
deve ocupar-se, antes de tudo, do ambiente histórico em que o
direito desse povo se desenvolveu, das suas ideias e instituições
sociais, políticas, económicas e culturais, atendendo à influência que
as mesmas exerceram no mundo jurídico. Será com referência a
um tal quadro que se entra, depois, propriamente, no estudo da
história das fontes, das instituições e do pensamento jurídico.
Observe-se que à história geral não cumpre a ponderação minu-
ciosa das instituições jurídicas — tarefa que pertence à história
especial —, mas tão-só investigá-las com o propósito de obter
uma perspectiva de fundo a seu respeito, descobrir os princípios que
as modelam, as tendências que manifestam. Não cabe na finalidade
da história geral do direito, por exemplo, conhecer concreta e
pormenorizadamente o regime jurídico da propriedade numa
determinada época. Interessa-lhe apenas averiguar as linhas funda-
mentais desse regime e os reflexos que sobre ele tiveram a organi-
zação tamihar e social, os princípios religiosos, os meios de produ-
ção, a técnica, etc.

4. O método cronológico e o método monográfico na exposi-


ção da história do direito

Ainda em conexão com as classificações da história do direito


precedentemente mencionadas, vejamos qual o método expositivo
mais adequado. São possíveis dois métodos nos estudos histórico-
-jurídicos: o cronológico e o monográfico.
Como o nome sugere, o método cronológico consiste em expor as
fontes, as instituições e o pensamento jurídico, segundo vários
períodos preestabelecidos, de forma a ficar-se com uma visão de

34
INTRODUÇÃO

conjunto de cada um deles. O método monográfico, diferentemente,


traduz-se numa análise da linha evolutiva das diversas instituições,
consideradas de per si, sem a preocupação de avaliar as influências
e interdependências, no mesmo ciclo histórico, de umas em relação
às outras.
Não parece difícil demonstrar as vantagens e os inconvenien-
tes destes dois métodos. Pode dizer-se que as vantagens de um
constituem os inconvenientes do outro e vice-versa. Assim, o
mérito do método cronológico é permitir uma visão de conjunto
das instituições jurídicas num determinado momento histórico. Mas
a essa vantagem liga-se também o inconveniente de introduzir na
evolução das instituições certas quebras que ela na verdade não
possui.
A divisão cronológica da história do direito nunca pode fazer-
-se de uma maneira tão perfeita que satisfaça igualmente a todas as
instituições jurídicas. Estas, ou, pelo menos, os seus grandes grupos,
evoluem sob influência de factores próprios. Muitas vezes, cada
uma segue determinada linha evolutiva que não coincide exacta-
mente com a das outras instituições.
Desde logo, o critério mais conveniente para a periodização
da história do direito público é imposto por elementos que não
definem com igual rigor a evolução do direito privado. Mesmo
neste último domínio, por exemplo, se procedermos à divisão da
história do direito de um povo com base num critério económico,
poder-se-á explicar de maneira satisfatória, com referência aos
períodos fixados, a evolução do direito de propriedade. Mas será
difícil fornecer, paralelamente, uma visão perfeita da história das
instituições familiares, muito mais dependentes de elementos de
ordem moral e religiosa do que de valores patrimoniais.
Inversamente, o método monográfico evita as desvantagens
referidas. Apresenta, contudo, o defeito de não consentir o con-
fronto das diversas instituições dentro do mesmo período histórico.
Ponderados os recíprocos inconvenientes e vantagens, é
comum utilizar-se o método cronológico na exposição da história
geral e o método monográfico para o estudo da história especial ou

35
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

interna. Aproveitam-se, portanto, os méritos dos dois métodos nas


áreas em que mais intensamente se afirmam e onde menos se fazem
sentir os deméritos respectivos.

5. Enquadramento do direito português. Seus factores básicos

Interessa, nestas reflexões introdutórias, apontar as matrizes


da génese e evolução do direito português. Em função delas, na
verdade, se orientará a exposição subsequente.
A ciência do direito comparado — ou, talvez melhor, a ciên-
cia da comparação de direitos (*) — tem procurado reconduzir as
várias ordens jurídicas actuais a alguns sistemas ou famílias. Por
outras palavras: é reconhecida a existência de uma grande varie-
dade de direitos, que se traduz, não só em conjuntos de normas
mais ou menos diversas umas das outras, mas também na especifici-
dade dos conceitos, técnicas e princípios que estão subjacentes a
esses ordenamentos e os acompanham; entende-se, todavia, que a
verificada multiplicidade jurídico-positiva não impede, antes pos-
tula, o seu agrupamento num restrito número de grandes unidades
que atendam aos correspondentes elementos fundamentais e está-
veis, quer dizer, aos aspectos que conferem fisionomia típica a um
sistema e impressivamente o demarcam dos restantes ( ).

( ) A expressão "direito comparado" não corresponde a um ramo ou divi-


são do direito, a um corpo de normas jurídicas, ao invés do que sucede com as
designações paralelas de direito civil, direito comercial, direito internacional,
direito marítimo, direito administrativo, etc. Trata-se, antes, de referir a disci-
plina que se dedica ao confronto das várias ordens jurídico-positivas. Em virtude
dessa equivocidade, os autores alemães referem-se a "comparação de direitos" ou
"comparação jurídica" (Rechtsvergleichung), que precisamente evoca um pro-
cesso de confronto ou comparação e não deixa supor a existência de um con-
junto de preceitos jurídicos ou ramo especial do direito.
( ) "Elementos determinantes" lhes chama L.-J. Constantinesco
(Traité
de Droit Compare, Paris, 1972, tomo I, pág. 314). Sobre quanto se escreve, podem
ver-se desenvolvimentos em René David, Les grands systèmes de droit contemporains,

36
INTRODUÇÃO

Torna-se, assim, possível definir a convergência dos diversos


direitos em famílias e aproximá-los ou contrapô-los, tendo em vista
certos traços característicos de natureza substancial ou puramente
formais. E claro que essas dissemelhanças não excluem o estudo
recíproco e mesmo uma natural interinfluência. Mas a aludida
redução possui o mérito de pôr em destaque os elementos intrínse-
cos de cada ordem jurídica e o seu consequente enquadramento
num determinado sistema ou família de direitos.
Até este ponto, verifica-se uma concordância básica dos com-
paratistas. Existem querelas, porém, sobre o critério de classifica-
ção: alguns autores, por exemplo, partem da análise das fontes de
direito, ao passo" que outros conferem relevo primordial a conside-
rações de fundo.
Não vem para o caso entrar nesses problemas. Apenas se
acrescenta que uma orientação muito seguida sublinha, com razão,
o carácter eminentemente didáctico ou expositivo e de sensibiliza-
ção que possui o conceito de família ou sistema de direitos. Ele
serve para destacar as semelhanças e dissemelhanças que se regis-
tam entre as várias ordens jurídicas. A pertinência ou adequação
dos diversos critérios depende, portanto, da perspectiva de que se
parte e dos aspectos cujo esclarecimento se procura. Daí o mérito
sempre relativo e nunca absoluto das classificações propostas.
Nesta linha de ideias chama-se a atenção para os quatro gran-
des sistemas jurídicos que costumam ser apontados como predomi-
nantes no mundo contemporâneo: a. família romano-germânica; a. família
do direito comum ("common law") ou do direito anglo-americano; a família

8.a ed. (por Camille Jauffret-Spinosi), Paris, 1982 (existe tradução da 7.a
ed.
francesa, com o título Os Grandes Sistemas de Diréto Contemporâneo — Direito Com-
parado, 2.a ed., Lisboa, 1978, de Hermínio A. Carvalho), J. de Oliveira
Ascen-
são, Sistemas actuais de direito, in "Boletim do Ministério da Justiça", n.° 252,
Lisboa, Janeiro de 1976, págs. 5 e segs., Fernando José Bronze, A comparação
de
ordens jurídicas integradas em sistemas económicos diferentes, e Manuel Nogueira
Serens, Sobre a classificação das ordens jurídicas em sistemas ou famílias de direito, in
"Revista de Direito e Economia", respectivamente, ano II, Coimbra, 1976, págs.
363 e segs., e ano XII (1986), págs. 129 e segs.

37
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dos direitos socialistas, sobretudo do Leste europeu; e a família dos direi-


tos religiosos (muçulmano, judaico, hindu) e tradicionais (alguns direitos
orientais e africanos). Insiste-se em que esta divisão só imperfeita-
mente traduz toda a realidade jurídica hodierna. Fornece, porém,
uma visão aproximada que satisfaz o nosso propósito (*).
Ora, o direito português integra-se na família ou sistema
romano-germânico. Nele se incluem, do mesmo modo, as ordens
jurídicas dos restantes países do Ocidente europeu continental, bem
como as dos que destes derivaram em outras áreas, mormente da
América Latina.
O que importa aqui salientar são, evidentemente, as coordena-
das históricas que envolveram a génese e o processo evolutivo do
nosso direito. Neste domínio, pode afirmar-se que, para além de
indestrutíveis particularismos nacionais, existe um substracto
comum aos direitos que pertencem à família romano-germânica. A
própria designação logo sugere dois elementos: o romano e o ger-
mânico. A estes se acrescenta o cristão.
Na verdade, cada um dos referidos factores proporcionou à
vida e ao pensamento jurídico europeu contribuições próprias. O

(l) A mencionada relatividade dos critérios de distribuição dos vários


direitos em sistemas patenteia-se, por exemplo, no confronto das famílias
romano-germânica, anglo-americana e dos direitos socialistas. Na verdade, as
diferenças entre aqueles dois primeiros sistemas assentam principalmente em
diversidades de natureza técnica, visto que, quanto ao fundo, se trata de ordens
jurídicas que revelam idêntica valoração de interesses e de soluções. O sistema
anglo-americano apresenta uma típica feição judicial e jurisprudencial ("case
law"), com a regra do precedente judiciário ("rule of precedem"), ao passo que,
na área romano-germânica, preponderam os aspectos legislativo e doutrinário.
Por isso mesmo, do ponto de vista do conteúdo, o sistema romano-germânico e o
sistema anglo-americano configuram um direito ocidental que pode contrapor-se
ao direito dos países socialistas. Já sob um puro ângulo técnico ou formal os
ordenamentos jurídicos desta última família se encontram muito aproximados dos
romano-germânicos, em contraste com os anglo-americanos (ver a bibliografia
referida, supra, na nota 2 da pág. 36).

38
INTRODUÇÃO

seu caldeamento e a evolução posterior explicam modernas apro-


ximações jurídicas, substanciais e formais.
O elemento romano ocupa uma posição de relevo. Está nos ali-
cerces da consciência jurídica europeia contemporânea. O direito
romano difundiu-se na sequência da expansão política de Roma,
impondo-se mercê da sua perfeição, posto que combinado com
elementos locais. E, depois, desde o século XII, estudado pelas suces-
sivas escolas europeias, jamais deixou de estar presente, até aos
tempos modernos, na actividade legislativa, na ciência e na prática
jurídicas.
Ao mundo romano se ficaram a dever as concepções da
gene-
ralidade e da abstracção do direito, o conceito de lei como ordem
soberana de coercibilidade geral e, ainda, o entendimento do direito
como uma criação científica. Em suma, foram os Romanos que
afirmaram a compreensão espiritual do direito e a ideia de que ele
traduz uma criação do Estado, é certo, de algum modo já ínsitas no
pensamento especulativo helénico.
Também o elemento cristão forneceu à consciência jurídica
europeia valores muito significativos. Antes de mais, através da
influência exercida sobre o direito romano durante a última fase
evolutiva deste. Acresce que, até ao século XVIII, a Europa foi inin-
terruptamente dominada pela ética social cristã, nas suas diferentes
expressões, que representa, sem dúvida, o terreno da evolução jurídica
viva. Mesmo após esse século, o Cristianismo continuou a modelar
a consciência jurídica europeia, ainda quando os legisladores e os
juristas já não se apercebiam dessa influência ou, inclusive, a
negavam.
O germanismo ou elemento germânico constitui o terceiro com-
ponente básico referido. Ele trouxe, por sua vez, ao direito euro-
peu uma contribuição específica. Com efeito, correspondem aos
povos germânicos um novo sentimento de vida e uma diversa com-
preensão social que determinou as mudanças de onde partiram as
formações estatais da Idade Média. Por assim dizer, o elemento
germânico representa "o tronco vital bravio em que se enxertaram
os germes do pensamento jurídico antigo e cristão primitivo", pro-

39
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

porcionando "o encontro de vida jovem com espiritualidade ama-


durecida'^1). Foi relevante o contacto das concepções e instituições
romanas com outras provenientes do chamado direito popular
("Volksrecht") germânico.

6. Plano da exposição

Está relacionado com o que acaba de referir-se o plano de


exposição que adoptamos. Abordam-se a história do direito penin-
sular e a história do direito português (2). Aquela em termos mais
sucintos.
Numa primeira parte, efectivamente, será analisado o direito
peninsular anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Como que
resultaria um edifício sem alicerces a história do nosso direito, se
não se considerassem os seus antecedentes peninsulares. Tanto mais
que à independência política do Condado Portucalense não corres-
pondeu uma contemporânea autonomia de sistema jurídico. Esta
apenas se verificou com o decurso do tempo. As fontes leonesas
continuaram, portanto, em plena vigência.

(') Como sugestivamente escreve Franz Wieacker (Ursprunge und


Elemente
des europaischen Rechtsbewusstseins, in "Europa — Erbe und Aufgabe. Internationa-
ler Gelehrtenkongress — Main 1955", Wiesbaden, 1956, pág. 107). É muito elu-
cidativa a síntese de Wieacker (ibid., págs. 105 e segs.).
( ) A propósito dos vários temas, serão feitas referências bibliográficas
concretas. Remete-se, entretanto, para as amplas indicações pacientemente reco-
lhidas por António Manuel Hespanha, Introdução bibliográfica à história do
direito
português, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLIX, págs. 47 e segs., continuada
sob a epígrafe Bibliografia da história do direito português, vol. L, págs. 1 e segs., e vol.
LV, págs. 39 e segs. Ver, também, a Difusão Bibliográfica — Iniciação bibliográfica à
História da Administração Pública, em 4 números, Lisboa, 1983/1984 (ed. pelo Centro
de Informação Científica e Técnica da Reforma Administrativa, sob a responsa-
bilidade de Carlos C. L. S. Motta), onde se encontra uma lista de fontes e
estudos da mais diversa natureza, inclusive de fundos arquivísticos, com algumas
considerações introdutórias.

40
INTRODUÇÃO

Observe-se, a propósito, que a aludida falta de sincronismo


entre a independência política de um Estado e a plena individuali-
zação ou personalização do seu direito, sobretudo no campo priva-
tístico, constitui um fenómeno natural e comum. Aliás, facilmente
se compreende que assim suceda. Por exemplo, quando se operou a
separação política do Brasil, nos começos do século xix, as leis
portuguesas, designadamente as Ordenações Filipinas, permanece-
ram aí em vigor, apenas se verificando o seu completo afastamento
com o Código Civil brasileiro de 1916.
No estudo do direito peninsular, acolhe-se um critério étnico,
que satisfaz os objectivos pretendidos. Começaremos pelo sistema
jurídico primitivo ou ibérico, isto é, fornecer-se-ão alguns elemen-
tos sobre o direito dos povos que habitaram a Hispânia antes da sua
conquista pelos Romanos. Segue-se o período romano, em que se
indicam os factores de romanização jurídica. Passa-se, depois, ao
período germânico, que corresponde à permanência na Península
dos povos germânicos, com destaque para os Suevos e os Visigodos.
E termina a primeira parte da nossa exposição com o período da
conquista árabe e da reconquista cristã. Não se ignora que a nacio-
nalidade portuguesa desponta nessa época.
Sem quebra de continuidade, entraremos, assim, na história do
direito português propriamente dito. Nesta segunda parte, impõe-se a
tarefa prévia de definir os grandes períodos e subperíodos da evolu-
ção do nosso direito até à actualidade. Dentro de cada um deles,
consideraremos os aspectos que pertencem ao âmbito da chamada
história geral do direito (*).
Não haverá a preocupação de uma forçosa simetria de pro-
blemas a respeito desses ciclos. Embora mantendo o sentido de uma
visão de conjunto, afigura-se que interessa, acima de tudo, salientar
as contribuições sucessivas e mais específicas de cada época para a
evolução do direito. Ora, esse factor predominante pode situar-se,
tanto no plano das fontes, como no das instituições ou do pensa-
mento jurídico.

(') Cfr., supra, págs. 33 e seg.

41
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

7. Formação e evolução da ciência da história


do direito português

Antes de iniciarmos o plano de exposição traçado, ainda se


dedicam algumas considerações à história desta disciplina. Como
despontou e se desenvolveu a ciência da história do direito
português? (*).
Adiante-se que existem três ciclos básicos na formação da his-
toriografia jurídica nacional, que se alicerçam noutros tantos vultos
decisivos: Mello Freire, pelos fins do século xvm, Gama Barros, no
trânsito do século xvm para o século XIX, e Paulo Merêa, desde a
segunda década do nosso século até aos anos setenta. Trata-se dos
momentos significativos da criação, da individualização e da renovação
da ciência histórica do direito português.
Entre os dois primeiros não deve ignorar-se, é certo, o esforço
de consolidação apoiado na obra de Alexandre Herculano. Este
comunicou à historiografia portuguesa métodos que tiveram uma
enorme importância.

a) Os estudos histórico-jurídicos anteriores à segunda metade do século XVIII

Justificadamente se indica a segunda metade do século XVM


como a época que viu surgir a ciência da história do direito portu-
guês. Essa relativa modernidade da disciplina é assinalada, quanto

(') Sobre o tema, consultar Paulo Merêa, De André de Resende a Herculano


(Súmula histórica da história do direito português), in "Estudos de História do Direito",
Coimbra, 1923, págs. 7 e segs., M. J. Almeida Costa, História do Direito, in
"Dicionário de História de Portugal", dirigido por Joel Serrão, vol. I, Lisboa,
1963, págs. 828 e segs., e in "Temas de História do Direito", Coimbra, 1970,
págs. 7 e segs. (sep. do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLIV), e Significado de
Alexandre Herculano na evolução da historiografia jurídica, in "A Historiografia Portu-
guesa de Herculano a 1950 — Actas do Colóquio da Academia Portuguesa da
História", Lisboa, 1978, págs. 235 e segs., Marcello Caetano, História do Direito
Português, vol. I — Fontes. Direito Público (1140-1495), Lisboa, 1981, págs. 35 e segs.,
e NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, História do Direito Português, vol. I — Fontes
de
Direito, Lisboa, 1985, págs. 19 e segs.

42
INTRODUÇÃO

aos respectivos direitos, também pelos autores de outros países, em


especial alemães, italianos e espanhóis. Apenas na França se apon-
tam historiadores do direito com cerca de um século de
antecedência.
Conhecem-se as causas do referido atraso dos estudos
histórico-jurídicos, que, aliás, coincidem, aproximadamente, em
toda a parte. Sabe-se que, até essa época, o direito romano renas-
cido e o direito canónico constituíam o objecto absorvente do
ensino universitário e da literatura jurídica. Apenas em plano subal-
terno os jurisconsultos se dedicavam ao estudo do direito nacional,
sob forte orientação dogmática, que então imperava. Compreende-
-se, portanto, o desinteresse pelas instituições e vida jurídica do
passado. A isto se acrescentavam, da parte dos historiadores, as
também detectadas características e carências de que a historiogra-
fia em geral enfermava.
Contudo, não se conclua pela absoluta inexistência, anterior-
mente à segunda metade do século XVIII, de autores que hajam
legado alguns informes valiosos sobre antiguidades do direito por-
tuguês ou aspectos conexos. O movimento renascentista trouxe,
sem dúvida, uma nova perspectiva de encarar os problemas jurídi-
cos, a que não era estranha determinada orientação histórica. As
atenções, porém, continuaram voltadas para os direitos romano e
canónico. Daí que, durante os séculos XVI e XVII, poucos sejam os
autores que se dedicam ao direito nacional do ponto de vista histó-
rico. Cabe recordar, no entanto, o considerável interesse por certos
problemas de direito público.
Já o quinhentista André de Resende se ocupou da organização
da primitiva Hispânia (!). É claro que os eventos que o País viveu
nos séculos xvi e xvil — mormente os ligados à crise de indepen-
dência e à restauração —justificam que jurisconsultos e escritores
políticos do tempo versassem algumas questões publicísticas, tais

(l) Ver as suas obras Historia da antiguidade da Cidade de Évora, 3.a ed., Lis-
boa, 1783 (reprodução da 2.a ed., Évora, 1576, corrigida pelo autor), e De antiaui-
tatibus Lusitaniae, Eborae, 1593.

43
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

como as regras de sucessão da Coroa e o papel das Cortes. Avulta


o nome famoso de João Pinto Ribeiro (]).
Entretanto, o incremento dos estudos históricos, de matiz eru-
dito, logo nos começos do século xvm, pode simbolizar-se com a
fundação da Academia Real da História. Reconduzem-se a dois os
tipos de obras que traduzem a contribuição mais expressiva da
primeira metade deste século nos caminhos da historiografia do
direito: a recolha de inúmeras fontes de interesse histórico-jurídico,
devida a António Caetano de Sousa (2), e o não menos conhecido
trabalho biobibliográfico de Diogo Barbosa Machado (3), que apre-
senta importância fundamental para a história da literatura jurídica.

h) Criação da ciência da história do direito português

Mas, como se aludiu, só na segunda metade de setecentos se


nos depara uma autêntica historiografia jurídica em moldes científi-
cos. Os progressos que doravante se verificam estão na razão
directa do concurso de causas convergentes. Da perspectiva dos
historiadores, assiste-se à definição de um conceito filosófico da sua
disciplina, a preocupações metodológicas, assim como à superação
das fronteiras da crónica de factos e da biografia de altas figuras da
cena política ou militar, em proveito de uma simpatia crescente
pela evolução da cultura e das instituições dos povos. Paralela-
mente, testemunha-se uma renovação da ciência jurídica, durante a

(') A bibliografia é vasta. Consultem-se as indicações de J. Veríssimo


Ser-
rão, Fontes de Direito para a História da Sucessão em Portugal, Coimbra, 1960 (sep. do
"Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXV), F.-P. de Almeida Langhans,
Funda-
mentos Jurídicos da Monarquia Portuguesa, Lisboa, 1951, Martim de Albuquerque,
O
Poder Político no Renascimento Português, Lisboa, 1968, págs. 78 e segs., Nuno J.
Espinosa Gomes da Silva, Um "Conselho de Pedro Barbosa sobre a sucessão do
Reino
antes de El Rey Dom Sebastião partir para Africa", Lisboa, 1972 (sep. da "Rev. da Fac.
de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. XXIII), e Luís Reis Torgal, Ideologia
política
e teoria do Estado na Restauração, 2 vols., Coimbra, 1981/1982.
(2) Provas da-Historia Genealógica da casa Real Portugueza, Lisboa, 1735 (nova
ed., Coimbra, 1946, por M. Lopes de Almeida/César Pegado).
(3) Biblioteca Lusitana, Lisboa, 1741 (2.a ed., Lisboa, 1930; 3.a ed., Coimbra,
1965/1967).

44
INTRODUÇÃO

segunda metade do século XVIII, mercê da projecção, no campo do


direito, de duas tendências básicas: o racionalismo, que se desen-
volve no âmbito do pensamento jurídico como posição filosófica
sobretudo comprometida com os aspectos metodológicos ou for-
mais; e o iluminismo, voltado predominantemente para o conteúdo
normativo, que tem como finalidade precípua colocar o direito de
acordo com os dados captados na "situação histórica" da época.
Estas ideias entraram em Portugal quando já faziam larga car-
reira além-fronteiras. E mais do que isso. A chamada época da
Ilustração ou do Iluminismo não se desenvolveu uniformemente em
todos os países que acolheram os seus princípios. Houve compro-
missos derivados dos condicionalismos de cada caso( ). Ora, o Ilu-
minismo português, analogamente ao espanhol, revela influência
italiana. Tal foi, na verdade, a feição do Iluminismo que Verney,
em íntima ligação a Muratori, introduziu entre nós(2), abrindo a
campanha com a publicação, pouco antes dos meados de setecentos,
do seu Verdadeiro Método de Estudar ( ).

(') Ver, infra, págs. 350 e segs.


(2) A respeito das ideias de Verney, consultar L. Cabral de
Moncada,
Um "iluminista"português do século XVIII: Luís António Verney e Itália e Portogallo nel'
settecento, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. III, Coimbra, 1950, respectiva-
mente, págs. 1 e segs., e págs. 153 e segs., e Conceito e junção da jurisprudência
segundo Verney, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 14, págs. 5 e segs., e António
Alberto B. de Andrade, Vernei e a cultura do seu tempo, Coimbra, 1966.
Ver,
ainda, quanto a aspectos gerais e relativamente ao país vizinho, José Luís Peset,
La influencia dei Barbadino en los saberes filosóficos espamles, in "Bracara Augusta", vol.
XXVIII, Braga, 1974, págs. 223 e segs., e J. L. Peset/Antonio Lafuente,
Ciência
e Historia de la Ciência en la Espana ilustrada, in "Boletín de la Real Academia de la
Historia", tomo CLXXVIII (cuaderno II), Madrid, 1981, págs. 267 e segs. Sobre
Muratori, consultar Enrico Pattaro, II pensiero giuridico di L. A. Muratori tra meto-
dologia e politica, Milano, 1974.
(3) Verdadeiro Método de Estudar, etc, cuja l.a ed. é de 1746 (dada como
impressa em Nápoles e depois na cidade espanhola de Valença). Interessam,
sobretudo, as Cartas XIII e XV, onde Verney se ocupa, sucessivamente, da juris-
prudência civil e da jurisprudência canónica. Não se deve esquecer, também,
quanto à reforma da pedagogia da época, a obra do famoso médico Ribeiro
Sanches, Cartas sobre a Educação da Mocidade, Colónia, 1760.

45
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Todo o livro, redigido por um homem que teve longa resi-


dência no estrangeiro e dotado de um forte senso crítico, constituiu
pesado requisitório que atingia muitos aspectos da mentalidade por-
tuguesa da época e dos diversos ramos do ensino em Portugal.
Quanto às Faculdades de Leis e de Cânones, invectiva as orienta-
ções escolásticas ou bartolistas, preconizando as histórico-críticas ou
cujacianas, e aconselha o método expositivo sintético-compendiário,
para que servia de modelo o alemão Heineccius, altamente apre-
ciado nos países latinos. Não se esquece de indicar o estudo do
direito nacional e da sua história, bem como o do direito compa-
rado e de outras disciplinas que proporcionem ao jurisconsulto uma
concepção viva da realidade social, com destaque para a economia
e a ciência política.
O espírito reformador insuflado pela acrimónia e admoestação
do "Frade Barbadinho" — tal o pseudónimo de Verney — atingiu a
legislação, a prática juridico-científica e o ensino do direito, mas só
veio a frutificar decorrido cerca de um quarto de século.
Conhecem-se os trâmites (]): em 1770, uma Junta de Providência
Literária recebe o encargo de examinar as causas da "decadência"
e da "ruína" da Universidade e de indicar os remédios eficazes para
lhes pôr cobro; e, logo no ano imediato, os resultados a que se
chega são reunidos no Compêndio Histórico (2). Como corolário
lógico deste minucioso relatório, os Estatutos Novos, de 1772, intro-
duziram disposições que operaram uma transformação poderosa no
ensino universitário, designadamente no sector jurídico: cria-se uma
cadeira de "direito natural e das gentes" e manda-se ensinar o

(') Para um primeiro contacto com a reforma pombalina, podem ver-se


Mário Brandão/M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra. Esboço da
sua
História, Coimbra, 1937 (parte II, págs. 63 e segs., da autoria de Lopes
de
Almeida). Consultar, também, José Antunes, Notas sobre o sentido ideológico
da
rejorma pombalina. A propósito de alguns documentos da Imprensa da Universidade, in "O
Marquês de Pombal e o seu tempo" (número especial da "Revista de História
das Ideias"), tomo II, Coimbra, 1982/1983, págs. 143 e segs.
(2) A Carta de Lei de 23 de Dezembro de 1770, que cria a Junta de
Providência Literária, pode ler-se no início do Compêndio Histórico do estado da
Universidade de Coimbra, etc, Lisboa, 1771 (reedição, Coimbra, 1972).

46
INTRODUÇÃO

direito pátrio e a respectiva história; o direito romano passa a ser


ministrado apenas segundo o "uso moderno" e o método sintético-
-compendiário substitui o analítico em todas as disciplinas do curso,
à excepção de duas, onde ele continuava a justificar-se como exer-
cício de exegese dos textos legais.
Observemos que os Estatutos não se limitaram a determinar,
pela primeira vez, o ensino da história do direito pátrio. Fixaram
mesmo o programa, devendo o professor começar "pela Historia das
Leis, Usos, e Costumes legítimos da Nação Portugueza: Passando depois á
Historia da Jurisprudência Theoretica, ou da Sciencia das Leis de Portu-
gal: E concluindo com a Historia da Jurisprudência Prática, ou do Exer-
cício das Leis; e do modo de obrar, e expedir as causas, e negócios
nos Auditórios, Relações, e Tribunaes destes Reinos'^1). A fim de
que tais propósitos tivessem uma adequada execução, estabeleceu-
-se que o professor da cadeira seria obrigado à redacção de um
compêndio elementar dessa disciplina ( ). Aparece, assim, a Historiae
iuris ciuilis lusitani liber singularis, de Pascoal José de Mello Freire dos
Reis, editada em 1788, por iniciativa da Academia Real das Ciên-
cias, e que foi, mais tarde, aprovada oficialmente para o ensino.
Com razão se considera Mello Freire o "fundador da história do
direito português" (3).

(') Estatutos da Universidade de Coimbra, ele, Lisboa, 1772, liv. II, tít. 3, cap.
9, §§ 1 e 2 (na reedição, Coimbra, 1972, págs. 357 e segs.).
(2) "E porque entre os muitos Systemas, Compêndios, e Summas da Histo-
ria do Direito Romano, não ha algum, que seja accommodado para o uso das Lições
desta Cadeira; não só por não haver alguma, em que se ache escrita a Historia do
Direito Portuguez; mas também porque igualmente não ha algum, que compre-
henda todos três objectos próprios, e isseparaveis da dita Historia que versam
sobre ellas: Será o Professor obrigado a formar hum Compendio Elementar da
dita Historia do Direito, e de todas as suas partes, próprio, e accommodado para
as Lições annuaes desta Cadeira" (Estatutos, liv. II, tít. 3, cap. 9, § 14 — na reed.,
cit., pág. 364).
(3) Paulo Merêa, De André de Resende a Herculano, cit., in "Est. da Hist. do
Dir.", pág. 28. Pode ver-se, também, M. J. Almeida Costa, in "Temas de
História do Direito", cit., págs. 16 e segs. A referida obra de Mello Freire
encontra-se traduzida sob o título de História do Direito Civil Português, in "Boi. do
Min. da Just.", cit., n.os 173/175. Aliás, nesse mesmo "Boletim", estão traduzi-

47
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Segue-se um período muito fecundo para a nossa historiogra-


fia jurídica. Os esforços polarizam-se em torno da Academia Real
das Ciências, criada em 1779, e da Universidade de Coimbra.
Aquela merece, em todo o caso, um particular destaque.
Recordemos alguns nomes de entre os colaboradores das
publicações da Academia: António Caetano do Amaral, que realizou
uma primeira tentativa de estudo sistemático das instituições ( ),
desempenhando "na evolução da nossa disciplina um papel compa-
rável ao do grande Martínez Marina na história do direito caste-
lhano'^2); Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, autor do bem
apreciado Elucidário Q), que constitui auxiliar valioso para o estudo
das antiguidades do nosso direito; José Anastásio de Figueiredo,
cuja obra versa relevantes problemas histórico-jurídicos, como a
origem dos juízes de fora, o sentido da palavra "façanha", as
beetrias e a sua distinção dos coutos e honras, a época da introdu-
ção do direito justinianeu em Portugal (4), e que, além disso, publi-

das as suas Instituições de Direito Criminal Português (n.os 155/156) e Instituições de


Direito Civil Português — Tanto Público como Particular (n.os 161/166, 168 e 170/171).
Tais versões portuguesas são da autoria de Miguel Pinto de Meneses.
Não deve esquecer-se, contudo, que, já décadas antes da Historia de Mello
Freire, existiu uma exposição impressa da evolução do direito português, embora
sucinta e sem grandes apuros científicos. Trata-se da obra atribuída a Gerardo
Ernesto de Frankenau, De Lusitanorum Legibus, Hannoverae, 1703 (secção
XII
dos Sacra Themidis Hispanae Arcana), que se encontra vertida para a nossa língua,
com o título Das leis dos Portugueses, igualmente por Miguel Pinto de Meneses,
in
"Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. XXVI, págs. 567 e segs.
Sobre esta obra e as controvérsias a respeito da identificação do seu autor, veja-
-se Martim de Albuquerque, ibid., págs. 563 e segs.
( ) Memorias para a Historia da Legislação, e Costumes de Portugal, in "Memo-
rias de Litteratura Portugueza", tomos I, II, VI e VII, Lisboa, 1792/1806.
(2) Paulo Merêa, De André de Resende a Herculano, cit., in "Est. de Hist. do
Dir.", pág. 32, que recorda (ibid., nota 2) observação semelhante de Alexandre
Herculano, in "Opúsculos", vol. V, pág. 192.
(3) Elucidário das Palavras, Termos e Frases, etc, ed. crítica, Porto/Lisboa,
1965/1966 (a 1.» ed. é de 1798/1799 e a 2.a ed. de 1865).
(4) Ver "Mem. de Lit. Port.", cit., tomo I, respectivamente, págs. 31 e
segs., págs. 61 e segs., págs. 98 e segs., e págs. 258 e segs.

48
INTRODUÇÃO

cou valiosíssima lista de leis portuguesas anteriores às Ordenações


Filipinas, de 1603 (*); J oão Pedro Ribeiro, o ilustre paleógrafo e
diplomatista a que se ficaram devendo duas importantes monogra-
fias sobre as fontes do Código Filipino e sobre a época da introdu-
ção das Decretais em Portugal (2), ao lado de outros assinaláveis
contributos contidos nas suas conhecidas obras Reflexões Históricas,
Dissertações Chronologicas e Criticas, Observações Diplomáticas e índice
Chronologico e remissivo da legislação portugueza (3); e o 2.° Visconde de
Santarém, que se dedicou ao estudo das Cortes (4).
Por seu turno, a Universidade de Coimbra promoveu a publi-
cação, na respectiva imprensa, de uma colectânea de fontes (5),
abrangendo as Ordenações Afonsinas, nunca antes dadas à estampa,
as Ordenações Manuelinas, a Colecção das Leis Extravagantes de
Duarte Nunes do Lião, as Ordenações Filipinas e uma compilação
cronológica de assentos de tribunais superiores, isto é, da Casa da
Suplicação e da Casa do Cível. Ao mesmo tempo, alguns mestres
da Universidade iam também favorecendo o progresso dos estudos
histórico-jurídicos. Lembremos: Luís Joaquim Correia da Silva,

(') Synopsis Chronologica, Lisboa, 1790, tomo I (desde 1143 até 1549) e tomo
II (desde 1550 até 1603). Recorde-se, ainda, a sua Nova Historia da Militar Ordem de
Malta e dos Senhores Grão-Priores Delia, em Portugal, Lisboa 1800, partes I, II e III
(refundida sobre a l.a ed., de 1793).
(2) Memorias sobre as Fontes do Código Philippino e Qual seja a Época da introduc-
ção do Direito das Decretaes em Portugal, e o influxo que o mesmo teve na Legislação
Portugueza, in "Mem. de Lit. Port.", cit., repectivamente, tomo II, págs. 46 e
segs., e tomo VI, págs. 5 e segs.
(3) Esta última obra (6 tomos em 7 volumes; Lisboa 1805/1807, 1818 e
1820) constitui uma continuação da Synopsis Chronologica de J. AnastAsio de
Figueiredo. Ver, também, de JoAo Pedro Ribeiro os Additamentos e
Retoques á
Synopse Chronologica, Lisboa, 1829.
(4) Memorias para a Historia, e Theoria das Cortes Geraes que em Portugal se
celebrarão pelos Três Estados do Reino, Lisboa 1828 (parte l.a e parte 2.a). Há uma
nova edição desta obra, Lisboa, 1924, precedida de um estudo de António
Sardinha.
(5) Trata-se da "Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de
Portugal".

49
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

erudito prefaciador da edição impressa das Ordenações Afonsi-


nas ('); Ricardo Raimundo Nogueira, autor de importantes prelec-
ções que resultaram do seu ensino como catedrático de direito
pátrio (2); António Ribeiro dos Santos, a quem se devem estudos de
grande interesse para a história do direito público e das doutrinas
políticas (3); Coelho da Rocha, que igualmente elaborou um com-
pêndio para a cadeira de história do direito pátrio e que fez acom-
panhar a sua produção civilística de inúmeras notas históricas de
considerável mérito (4).

c) Consolidação da história do direito português como disciplina científica

Neste contexto se insere a obra científica de Alexandre Her-


culano e a influência que ela exerceu sobre o espírito e a cultura
portuguesa, mormente nos domínios historiográficos. Herculano
não foi um historiador do direito no sentido mais técnico e com-
prometido da designação. Contudo, desempenhou papel de relevo

(') Ver, infra, págs. 275 e seg., e a breve referência de Paulo


Merêa,
Notas sobre alguns lentes de Direito Pátrio no período 1772-1804, in "Boi. da Fac. de
Dir.", cit., vol. XXXVI, pág. 326.
(2) As lições que fez na docência dessa disciplina foram primeiramente
publicadas in "Jornal de Jurisprudência" (vol. III) e in "O Instituto" (vols. VI,
VII, VIII e XII), mais tarde reeditadas, em parte, sob os títulos de Prelecções de
Direito Público, Coimbra, 1858, e Prelecções de História de Direito Pátrio, Coimbra,
1866. Sobre a obra de Raimundo Nogueira, ver Paulo Merêa, Notas sobre
alguns
lentes de Direito Pátrio no período 1772-1804, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.
XXXVI, págs. 323 e segs.
(3) Ver a sua obra Notas ao Plano do Novo Código de Direito Publico de Portu-
gal, do Doutor Paschoal José de Mello, feitas e appresentadas na Junta da Censura e Revisão
pelo Doutor António Ribeiro em 1789, Coimbra, 1844. Sobre este autor, cônsul te-se a
bibliografia indicada por Paulo Merêa, De André de Resende a Herculano, cit.,
in
"Est. da Hist. do Dir.", pág. 34, nota 1, e José Esteves Pereira, O
pensamento
político em Portugal no século XVIII: António Ribeiro dos Santos, Lisboa, 1983.
(4) Manuel A. Coelho da Rocha, Ensaio sobre a Historia do Governo e
da
Legislação de Portugal, etc, 7.a ed., Coimbra, 1896, e Instituições de Direito Civil Portu-
guez, 4.a ed., Coimbra, 1857.

50
INTRODUÇÃO

no desenvolvimento desta disciplina, sob um duplo aspecto: pelos


progressos introduzidos na ciência geral da história e pelo estudo de
alguns importantes temas histórico-jurídicos.
Constitui Herculano um expoente decisivo na evolução da
historiografia portuguesa. Por muito que os seus posicionamentos
filosóficos e métodos de investigação tenham sofrido a inclemente
superação do tempo e de novos conceitos, entretanto, surgidos ou
desenvolvidos, por muito que as conclusões a que chegou hajam
sido sujeitas a revisão, sempre deveremos considerá-lo como um
modelo, um daqueles raros homens de génio que inauguram
épocas.
Não cabe insistir aqui em aspectos gerais. Limitamo-nos a
breves considerações a respeito do que Herculano trouxe para a
historiografia jurídica nacional.
O século xix, como é por demais sabido, marca o encontro
dos cânones historiográficos românticos, predominantes na sua pri-
meira metade e que envolviam uma vinculação ao presente e à
literatura, com o novo espírito científico. Este, postulando rigor e
objectividade, apontava para o império do estrito conteúdo das fon-
tes e para a compreensão dos acontecimentos através de leis ou
causas gerais. Mas que posição teve Alexandre Herculano entre a
historiografia romântica e a historiografia científica?
Talvez se possa dizer dele que foi, simultaneamente, ainda
um
ponto de chegada e. já um ponto de partida dos novos rumos. Existe
em Herculano, sob este ângulo, como que uma bivalência.
O passado é a substância comum aos seus trabalhos de
histo-
riografia e de novelística. Mesmo em datas próximas da publicação
das suas novelas saem os volumes da História de Portugal. Todavia, as
duas faces da obra do autor não se confundem. Não se pretende
que pareçam inteiramente nascidas de penas distintas. Pensa-se,
sim, que o historiador do movimento romântico e o historiador de
obediência aos rígidos preconceitos de cientista souberam conviver
nele e completaram o seu espírito criador, a um tempo, empolgado
e sereno. A adesão de Herculano ao tipo novelístico iniciado, na
primeira metade do século, por Walter Scott recusa anacronismo

51
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

quanto à reconstituição do passado em que se movimentam os per-


sonagens; e nem a sua índole e pendor científico comportam oposi-
ção a factos historicamente averiguados, posto que não lhe repug-
nem ficções ou lendas. Escreveu Hernâni Cidade que "Herculano,
artista e poeta, ao realizar o esforço fatigante da heurística dos
documentos, da sua leitura e interpretação, da sua crítica minu-
ciosa, não se contentava com a arte de submeter o material assim
seleccionado ao plano arquitectónico que lhe desse unidade e signi-
ficado político e social: procura imprimir-lhe movimento de
vida" O-
São patentes na obra de Herculano as directrizes do espírito
científico que triunfava. Deste modo, reflecte o conceito historio-
gráfico que aponta para os factos significativos da Nação, para a
obra colectiva realizada no decurso dos séculos e que seria necessá-
rio, portanto, encarar segundo épocas histórico-culturais e não por
reinados. Abandona-se, em resumo, a "crónica dos reis" e passa-se
a uma "história da Nação". Tal conceito não deixou de fazer-se
sentir na historiografia dos períodos seguintes.
Procurou Herculano alicerces para as suas construções em
elementos fornecidos pelas fontes documentais. Teve precursores,
sem dúvida, no alcobacense Frei António Brandão, em António
Caetano do Amaral e no espanhol Martínez Marina, considerados
como "os fundadores da história social dos povos da Península, os
iniciadores de um novo esforço investigativo" (2). Mas o passo que
se deu em frente foi expressivo. Como se sabe, presidiu e dirigiu
efectivamente a comissão da Academia Real das Ciências que des-
ventrou a generalidade dos arquivos nacionais, públicos, eclesiásti-
cos e particulares, e trouxe à luz do dia milhares de documentos
neles esquecidos, coligindo-os e publicando-os depois de análise crí-
tica. Ora, perante as fontes, enquanto puro historiador, Herculano

(') Hernâni Cidade, Portugal Histórico-Cultural, 3.a ed., Lisboa, 1972,


pág.
291. É primoroso todo o estudo dedicado a Herculano (ihid., págs. 280 e segs.).
(2) Consultar Hernâni Cidade, oh. cit., págs. 295 e segs. Ver, ainda,
supra,
pág. 48, nota 2.

52
INTRODUÇÃO

procurou nunca perder de vista os limites construtivos, as conclu-


sões objectivas que elas consentiam, refreando entusiasmos da ima-
ginação ou excessos devidos a prejuízos do tempo.
Não se duvida do enorme esforço e do escrúpulo postos na
edição dos Portugaliae Monumenta Histórica. Tarefa poderosa que, só
por si, assinala culturalmente uma época e constrói o prestígio de
quem interveio na sua elaboração. Posteriormente, com o progresso
dos estudos paleográficos e diplomáticos, detectaram-se importan-
tes deficiências dessa colectânea. Talvez algumas faltas tivessem
podido evitar-se. Tudo, porém, deve ser visto no tempo e na
dimensão do trabalho empreendido e realizado.
A dispersão em que as fontes se encontravam criava aos estu-
diosos enormes entraves à sua consulta, atendendo a que as comu-
nicações eram difíceis e penosas. Acrescia que a falta de cuidado na
conservação dos diplomas mantidos em arquivos disseminados pelo
País ocasionara a destruição de muitos documentos preciosos e
ameaçava outros que ainda restavam. A organização de edições
críticas de fontes ia-se impondo, aliás, por toda a parte: E o exem-
plo frutificou entre nós. Pode dizer-se que os Portugaliae Monumenta
Histórica não destoam ao lado de colectâneas estrangeiras, como os
Germaniae Monumenta Histórica ou os Documents Inédits concernant l'His-
toire de France.
A outra face do significado de Herculano para a evolução da
ciência da história do direito consiste, como se salientou, no estudo
de matérias especificamente jurídicas. Os temas por ele abordados
neste âmbito referem-se, sobretudo, ao campo publicístico. Não
faltam na sua obra estudos relativos ao direito político e administra-
tivo, ao direito fiscal e financeiro, analisando numerosos impostos e
tributos, e até ao direito penal e processual, designadamente em
matéria probatória. Mas também se encontram aspectos de direito
privado, como o casamento ( ).

\ ) Sobre alguns 'importantes temas Vistónco-juríàicos àboraados por Her-


culano, pode ver-se o já cit. estudo de M. J. Almeida Costa, Significado de Ale-
xandre Herculano na evolução da historiografia jurídica, in "A Historiografia Portuguesa

53
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Os resultados da investigação de Alexandre Herculano, posto


que assinaláveis, afiguram-se de relevância menor para a historio-
grafia jurídica do que os métodos, os pontos de partida, as concep-
ções de crítica histórica e de crítica filosófica da história que trouxe
à luz da ribalta. De então para diante, nenhum historiador
— qualquer que fosse a área em que se movesse — poderia desco-
nhecer ou esquecer a existência de tais problemas e a necessidade
de os enfrentar liminarmente. Terminara, em definitivo, a época
das puras antiguidades, da erudição, da história pseudo-científica ao
serviço da literatura.

d) Individualização da historiografia jurídica portuguesa


Verificaram-se os grandes progressos salientados. A ciência da
história do direito português consolidara-se. Faltava, porém, o sen-
tido de uma teoria historiológica específica da esfera do direito.
Não se alcançara, ainda, que a história jurídica, como a história
política, ou a económica, ou qualquer outra, possui os seus concei-
tos, os seus esquemas ou formas mentais, o seu discurso analítico, as
suas intencionalidades, as suas conexões determinantes, que postu-
lam métodos de investigação peculiares.
Essa individualização científica seria realizada por Gama Bar-
ros, nos fins do século passado e começos do actual. Até aí não se
vislumbra uma diferença clara entre a historiografia do direito
devida a investigadores que tivessem ou não formação jurídica de
base. O que se relaciona, de algum modo, com o facto de os temas
então predominantes serem a história externa ou das fontes de
direito e a biobibliografia de antigos jurisconsultos,. Pouco de inves-
tigação histórica das instituições e nada de verdadeira história da
ciência do direito e do pensamento jurídico.

de Herculano a 1950 — Actas do Colóquio da Academia Portuguesa da Histó-


ria", págs. 252 e segs. Consultar, também, Martim de Albuquerque, A
Formação
Jurídica de Herculano: Fontes e Limites, in "Alexandre Herculano à Luz do nosso
Tempo — Ciclo de Conferências da Academia Portuguesa da História", Lisboa,
1977, págs. 341 e segs.

54
INTRODUÇÃO

Muito mudou com Gama Barros. A publicação da sua História


da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV(l) trouxe um
estudo minucioso das instituições publicísticas e privatísticas, desde
o período visigótico. Não existirão nesta obra as sínteses brilhantes
de Herculano ou as audácias sugestivas e belas de Oliveira Martins,
mas os problemas são cuidadosamente analisados e as conclusões
docilmente apoiadas em vasta documentação e amplas leituras.
Organizou uma biblioteca excepcional. Além disso, a formação
jurídica do autor permitiu-lhe, não raro, um enfoque mais rigoroso
dos problemas desta natureza.
Estava individualizada a historiografia jurídica portuguesa.
Gama Barros não foi professor universitário. Contudo, entre nós,
realizou como ninguém, quanto à história do direito, os ideais da
pedagogia jurídica do tempo, que as reformas de 1901 e de 1911
reflectiram. Pode ver-se na obra de Gama Barros a confluência da
Escola Histórica de Savigny e do positivismo então dominante.

e) Renovação moderna da ciência da história do direito português

Na actualidade, a investigação histórico-jurídica tem


sido,
entre nós, quase só cultivada por alguns especialistas ligados ao
ensino universitário. Devem salientar-se, todavia, os progressos
alcançados. Ei>auló Merêa (1889/1977) constitui, a diversos títulos,
uma figura paradigmática (2).

(l) A primeira edição saiu em quatro tomos, entre 1885 e 1922. Na


segunda edição, publicada de 1945 a 1954, a matéria foi distribuída por onze
tomos, contendo numerosas e importantes notas de Torquato de Sousa Soares,
que a dirigiu. Quando Gama Barros faleceu, aos 92 anos (1833/1925), continuava
a escrever a. obra em que trabalhou seis décadas, pois começara a redigi-la vinte
anos antes da publicação do primeiro tomo. Pode consultar-se, por todos, Tor-
quato de S. Soares, Henrique de Gama Barros, in "Revista Portuguesa de
Histó-
ria", vol. IV, Coimbra, 1949, págs. V e segs.
(2) Sobre Paulo Merêa, consultar L. Cabral de Moncada, Manuel
Paulo
Merêa — Esboço de um perfil, Coimbra, 1969, Torquato de Sousa Soares,
Prof.

55
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Em oreve apontamento àe síntese, observa que Pau\o Merêa


foi um vulto expressivo da cultura nacional contemporânea e um
dos expoentes mais representativos que a Universidade portu-
guesa teve em todo o seu passado. A obra que deixou publicada,
relativa aos domínios da história e da filosofia do direito, da legisla-
ção comparada e, inclusive, de disciplinas não jurídicas, como a
filologia, a diplomática e a paleografia, revela, caracteristicamente,
exaustiva investigação e reflexão dos temas, plena abertura às soli-
citações e complementaridade dos vários ramos do saber e da cul-
tura, precisão e elegância sugestiva da linguagem, pureza de estilo.
Quando Paulo Merêa entrou para o corpo docente da Facul-
dade de Direito de Coimbra (1914), os estudos de história jurídica e
de história política encontravam-se, no nosso país, manifestamente
decadentes. Isto, apesar dos esforços de Guilherme Moreira — o
patriarca da moderna civilística portuguesa—, que, pelos fins do
século XIX e começos do século XX, reformulou a exposição dos
primeiros períodos da história do direito peninsular, difundindo,
entre nós, a doutrina, então recente, de Eduardo de Hinojosa, sobre
as origens do regime municipal, e as pesquisas de Karl Zeumer,
acerca da legislação visigótica ('). Representaram pequeno avanço

Doutor Manuel Paulo Merêa — Historiador das Instituições Medievais, Coimbra, 1969, e
Mário A. dos Reis Faria, Bibliografia do Doutor Manuel Paulo Merêa, Coimbra, 1969
(seps. da "Rev. Port. de Hist.", cit., tomo XII), Doutor Manuel Paulo Merêa (1889-
-1977), Coimbra, 1979 (sep. da "Revista Portuguesa de Filologia", vol. XVII,
Coimbra, 1975/1978), e Algumas notas biográficas e bibliografia do Doutor Manuel Paulo
Merêa, Coimbra, 1983 (sep. do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII
— "Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga
da Cruz", tomo I). Neste mesmo tomo I do vol. LVIII do "Boi. da Fac. de
Dir.", págs. 41 e segs., encontra-se a publicação póstuma do estudo de Paulo
Merêa, A tradição romana no nosso direito medieval.
(') Cfr. Paulo Merêa, Esboço de uma história da Faculdade de Direito de
Coimbra, fase. III (1865-1902) — As várias disciplinas, Coimbra, 1956, págs. 18 e
segs. (sep. do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vols. XXIX a XXXI; ver, designada-
mente, vol. XXIX, págs. 103 e segs.), e G. Braga da Cruz, A Revista de Legisla-
ção e de Jurisprudência — Esboço da sua História, vol. I, Coimbra, 1975, nota 1051 da
pág. 431, especialmente págs. 433 e seg.

56
INTRODUÇÃO

as lições, destinadas ao ensino universitário, de Marnoco e Sousa


(1904) ou de Joaquim Pedro Martins (1906).
Eis o quadro de que Merêa partiu ao abalançar-se à renovação
da ciência da história do direito português. Já durante o seu curso
jurídico revelou notáveis capacidades intelectuais e dotes de inves-
tigador. Marcaram-no, logo de início, fortes influências das orien-
tações filosóficas idealistas e de reacção contra o positivismo jurí-
dico francês (Duguit e Jèze), que ao tempo predominava(l).
Daí em diante, desenrola-se toda uma vida consagrada ao
estudo e à elaboração de uma obra de extraordinário significado
científico e cultural. A minuciosa análise crítica dos factos e dos
documentos constitui um dos seus notáveis atributos. Mas essa
severa exegese apresenta-se sempre completada pela preocupação
de entender os problemas nos seus nexos e explicação de conjunto.
É neste aspecto que se revelam as permanentes preocupações cultu-
rais, a infatigável actualização e a fina e rara intuição de Paulo
Merêa, quer se movesse na área da história das instituições, quer na
das ideias.
Dedicou-se Merêa a inúmeros temas históricos, não só do
direito privado e do direito público, mas também relativos a alguns
aspectos do pensamento político nacional e europeu. O seu campo
de investigação alongou-se desde o período medieval até aos tem-
pos modernos. Só inexcedíveis escrúpulos científicos impediram que
essa obra fosse mais extensa (2). Dela decorrem preciosas sugestões

(') Ver o estudo de Paulo Merêa, Idealismo e Direito, Coimbra,


1913
(republ. in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLIX, págs. 285 e segs.). Trata-
-se de uma conferência que, três anos antes, ainda estudante, Merêa proferiu no
Instituto de Coimbra. Aí se põem em causa os fundamentos ontológicos da téc-
nica jurídica que alicerçava a dogmática juspublicista nos postulados do positi-
vismo científico de Comte e do sociologismo de Durkheim e Lévy-Bruhl. É
nítida a simpatia do autor pelo institucionalismo de inspiração bergsoniana.
(2) Quanto a sínteses para uso dos alunos, Paulo Merêa chegou a publicar
vários textos com estrutura e opiniões que o seu espírito exigente considerava

57
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

e permanente estímulo, pelo que não admiram os reflexos que


alcançou nos meios científicos e culturais, de aquém e além-
-fronteiras, criando uma verdadeira "escola" de que se confessam
tributários destacados pensadores e investigadores, nacionais e
estrangeiros (*).
Circunscrevemos as nossas referências a historiadores do
direito portugueses, infelizmente já falecidos. Entre estes se contam
dois colaboradores e continuadores de Paulo Merêa: Luís Cabral de
Moncada, sem dúvida mais comprometido com a filosofia do
direito, e Guilherme Braga da Cruz.
O primeiro destes mestres, Cabral de Moncada (1888/1974) (2),
foi condiscípulo de Merêa nos bancos universitários e depois seu
colega e colaborador nos estudos histórico-jurídicos. Mas, desde
cedo, a filosofia esteve presente no modo como compreendeu a

muito provisórias. Assim: a Exposição sucinta da História do Direito Português (prelec-


ções compiladas por Adelino Marques/Constantino Cardoso),
Coimbra,
1922, as Lições de História do Direito Português, Coimbra, 1923, o Resumo das Lições de
História do Direito Português, Coimbra, 1925, e as Lições de História do Direito Português
(prelecções compiladas por Brites Ribas/Miranda Vasconcelos/Alves
Gomes),
Coimbra, 1933. Ao 5.° ano (Curso Complementar de Ciências Jurídicas), fez
Merêa algumas exposições monográficas, de que forneceu apontamentos polico-
piados, como sobre as Origens do testamento português, Coimbra, 1937, a História da
Enfiteuse, Coimbra, 1942, e as Disposições "pro anima", Coimbra, 1946.
(') Ver, por ex., o estudo de Paul Ourliac, Ce que 1'histoire du droit français
doit à Paulo Merêa et à G. Braga da Cruz, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII,
tomo I, págs. 771 e segs.
(2) Sobre Cabral de Moncada, podem consultar-se G. Braga da Cruz e
Afonso Queiró, Prof. Doutor Luís Cabral de Moncada, in "Boi. da Fac. de Dir.",
cit., vol. XXXVI, págs. 281 e segs. As investigações histórico-jurídicas de Cabral
de Moncada estão fundamentalmente reunidas nos seus "Estudos de História do
Direito", vols. I, II e III, Coimbra 1948/1950, e, também, in "Estudos Filosóficos
e Históricos", vols. I e II, Coimbra, 1958/1959. Existe um pequeno opúsculo com
o título História do Direito Português. Direitos de Família: Casamento e Regimes de Bens,
Coimbra, 1930, que contém as prelecções de Cabral de Moncada, coligidas
por
Artur A. de Castro/Mário M. ReymAo Nogueira.

58
INTRODUÇÃO

história do direito e a respectiva metodologia, bem como, conse-


quentemente, na sua produção historiográfica, a respeito da escolha
dos temas ou da forma de encará-los. Aliás, os trabalhos de Mon-
cada mais representativos ligam-se à história das ideias e dos siste-
mas filosófico-jurídicos e filosófico-políticos.
Deve considerar-se Braga da Cruz (1916/1977) (l) como o dis-
cípulo directo de Paulo Merêa. A morte colheu-o prematuramente,
quando muito se esperava ainda da sua personalidade multiforme,
mas que situou a matriz mais especializada, do ponto de vista cien-
tífico, nos domínios da historiografia do direito.
Igualmente numerosa e valiosa se apresenta a produção cientí-
fica de Braga da Cruz. Nela se compreende uma considerável
variedade de temas — do direito antigo e medieval aos precedentes
históricos imediatos do moderno sistema jurídico. A sua obra paten-
teia apurado rigor científico, uma inteligência esclarecida e culta, a
ponderação e a serenidade com que encarava os problemas. Nos
seus escritos se reflectem, de resto, os atributos de uma exemplar
personalidade moral e intelectual.

(') A respeito de Braga da Cruz, ver M. J. Almeida Costa, in História do


Dirdto e Ciência Jurídica — Homenagem póstuma a Guilherme Braga da Cruz, Porto,
1979, págs. 83 e segs., Manuel de Paiva Boléo, Dr. Guilherme Braga da
Cruz
(1916-1977), Coimbra, 1979 (sep. da "Rev. Port. de Filol.", cit., vol. XVII),
Rafael Gibert, Braga da Cruz, cien anos de Historia dei Derecho português, Madrid,
1979 (sep. do "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XLIX), Luís de Albu-
querque e Aníbal Pinto de Castro, ^4 Memória do Doutor Braga da Cruz.
Na
Abertura da Exposição Bibliográfica, em 31 de Março de 1980, in "Boletim da Biblioteca
da Universidade de Coimbra", vol. XXXVI, Coimbra, 1981, págs. 347 e segs.,
vários depoimentos in Guilherme Braga da Cruz, Um Homem para a Eternidade, vols.
I e II, Braga, 1981/1985, Mário A. dos Reis Faria, Bibliografia do Prof
Doutor
Guilherme Braga, da Cruz, Coimbra, 1983 (sep. do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
LVIII, tomo I), e Martim de Albuquerque, Elogio do Prof. Doutor Guilherme
Braga
da Cruz, Lisboa, 1985 (publ. da Academia Portuguesa da História). No cit. tomo
I do vol. LVIII do "Boi. da Fac. de Dir.", págs. 69 e segs., publica-se postuma-
mente o estudo de G. Braga da Cruz, Coimbra ejosê Bonifácio de Andrada e Silva.

59
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Como Paulo Merêa, jamais Braga da Cruz foi conquistado


pela sedução das conclusões e sínteses precipitadas. Nunca hesitou
em se limitar à preparação paciente e segura dos alicerces, sempre
que a sua escrupulosa probidade e a extrema insatisfação científica
não consideravam os temas suficientemente esclarecidos(l). Nesta
atitude humilde e sábia reside, afinal, a superioridade dos autênticos
intelectuais.
Também não se pode esquecer a moderna e importante histo-
riografia jurídica produzida por investigadores formados em torno
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Visto que nos
limitamos aos autores já falecidos, apenas se menciona Marcello
Caetano (1906/1980). Todavia, dessa escola continuam saindo estu-
dos do maior interesse e de apurado nível científico.
Distinguiu-se Marcello Caetano, principalmente, como um
cultor da ciência política, do direito constitucional e do direito
administrativo. No entanto, entre as outras áreas do ensino e da
investigação a que se dedicou, sobressai a história jurídica. Neste
domínio, pesquisou e escreveu como um historiador do direito a
tempo inteiro. Teve uma meditada concepção historiológica, adop-
tou uma segura metodologia, possuiu invulgar intuição das questões
históricas, nunca esqueceu a probidade que se impõe ao cientista,
foi dotado de raras qualidades de organização do trabalho e de
clareza. Não admira, dada a sua formação de base, que se haja
voltado, principalmente, para a história do direito público.

(') Referiu-se, em "Nota Prévia", que Braga da Cruz estava longe de


considerar definitivos vários dos pontos de vista que constam dos textos polico-
piados das suas exposições coligidas por alunos. Essa História do Direito Português
conheceu duas versões: a primeira (Coimbra, 1946/1947), da responsabilidade de
Ernesto Faria Leal/Ãngelo de Castro César; e a segunda
(Coimbra,
1955/1956), muito pouco divergindo da precedente, de que se encarregou A.
Barbosa de Melo. Existem, ainda, os Aditamentos de Direito Português — O pro-
blema da personalidade ou territorialidade da legislação visigótica, anteriormente a Recesvindo,
Coimbra, 1958, coligidos por Daniel Gonçalves.

60
INTRODUÇÃO

Aliás, a historiografia jurídica representou a absorvente tarefa


intelectual dos seus últimos anos de vida, dedicados a repensar e a
reformular escritos anteriores, com a utilização de fontes ainda não
exploradas. Infelizmente, deixou o projecto inacabado (*).

(') Como sua obra póstuma, foi publicada a já cit. História do Direito Português,
vol. I — Fontes. Diráto Público (1140-1495), Lisboa, 1981. Dos elementos didácticos
irosos que Teèbgru -para tjs vSttàaatea, WHJtfiBftft lhie "WíieVfc tS3rfcaifò X) ICtÉBfb
desta disciplina na Faculdade de Direito de Lisboa (de 1939 a 1942 e de 1961 a
1963), salientam-se as Lições de História do Direito Português, Coimbra, 1962. Ver
Jorge Borges de Macedo, Marcello Caetano, historiador, in "Brotéria", vol. 114,
n.°
2, Lisboa, 1982, págs. 151 e segs., e José Adelino Maltez, História do
Diráto
Português (1140-1495) de Marcello Caetano, in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de
Lisb.", cit., vol. XXVI, págs. 611 e segs.

61
PARTE I

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DO
DIREITO PENINSULAR
PARTE I

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DO
DIREITO PENINSULAR
PARTE I

ELEMENTOS DE HISTORIA DO
DIREITO PENINSULAR
CAPÍTULO I

PERÍODO PRIMITIVO
8. Característica básica. Fontes de conhecimento

Iniciamos a exposição da história do direito peninsular com


uma referência ao sistema anterior à dominação romana. Trata-se
do chamado período primitivo ou ibérico (').
A característica básica a pôr em evidência a respeito dele é a
de que a Península estava longe de oferecer uma unidade étnica,
linguística, cultural, religiosa, política, económica ou jurídica. Sob
qualquer dos ângulos referidos, constituía um conjunto bastante
diversificado.
Acrescenta-se que existe uma reconstituição muito fragmen-
tária e insegura das instituições desse período. As fontes disponíveis
para o seu estudo revelam-se escassas. Entre as mais importantes,
cabe destacar os restos epigráficos e arqueológicos. Assinalam-se,
também, os dados que se recolhem nas obras de escritores da
Antiguidade.
Nem todas as inscrições encontradas são presentemente utili-
záveis pelos investigadores, pois, ao lado de algumas escritas em
latim ou grego, há outras que se encontram redigidas em línguas
desconhecidas. Para a leitura destas últimas, não têm faltado tenta-
tivas mais ou menos frutuosas, ou com recurso a princípios filológi-

(') Sobre quanto se escreve a respeito deste período, podem consultar-se


as exposições gerais de Joaquín Costa, Estúdios ibéricos, Madrid, 1891/1895,
Manuel Torres, Lecciones, cit., vol. I, págs. 143 e segs., A. Garcia-
Gallo,
Manual, cit., tomo I, págs. 27 e segs., especialmente págs. 36 e segs., 233 e seg., e
327 e segs., Luís G. de Valdeavellano, Curso de Historia de las Instituciones
espãho-
las, 2.3 reimpressão, Madrid, 1986, págs. 109 e segs., e Enrique Gacto
FernAn-
dez/Juan António Alejandre García/José Maria Garcia Marín, El
Derecho
Histórico de los Pueblos de Espana (Temas para un curso de Historia dei Derecho), l.a
reimpressão, Madrid, 1982, págs. 15 e segs.

67
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

cos gerais ou baseadas na circunstância de se possuirem inscrições


duplas ou bilingues — ibéricas e latinas. Todavia, os resultados
obtidos mostram-se susceptíveis de dúvida(*).
As notícias fornecidas por historiadores e geógrafos gregos e
latinos são valiosas, embora parcelares e nem sempre concordantes.
Deve salientar-se que apresentam o traço comum de constituírem
pontos de vista de estrangeiros sobre as instituições peninsulares,
em que avulta o propósito de compará-las com as dos respectivos
países, deixando na sombra os aspectos específicos, que precisa-
mente conviriam à sua exacta perspectivação. Aliás, os estudos de
etnologia e de sociologia têm evidenciado, em geral, a dificuldade
de interpretar uma cultura antiga ou moderna com critérios de
outra, ainda que mostrem aparentes semelhanças.
As referidas fontes narrativas não possuem todas os mesmo
interesse para os estudos histórico-jurídicos. Desde logo, os elemen-
tos fornecidos pelos autores que viveram na Península são, via de
regra, mais atendíveis do que os recolhidos indirectamente, através
de escritos ou informações anteriores. Além disso, muitas de tais
obras abordam temas sem a mínima conexão com o direito.
Outras, contudo, fornecem dados importantes sobre as instituições
jurídicas dos primitivos povos peninsulares. Recordam-se autores
como Políbio, Diodoro da Sicília, Estrabão (2) e Apiano Alexan-
drino, que escreveram em grego, Avieno, Júlio César, Tito Lívio,
Plínio e Pompónio Mela, que nos deixaram textos latinos.

(') Acerca dos documentos pré-romanos, dificuldades da sua leitura e


interpretação, ver A. García-Gallo, Los documentos y los formulários jurídicos
en
Espana hasta el siglo XII, in "Estúdios de Historia dei Derecho Privado", Sevilla,
1982, págs. 347 e segs. (também publ. in "Anales de la Academia Matritense dei
Notariado", tomo XXII, vol. I, Madrid, 1978).
(2) Da obra deste autor existe uma tradução com comentários de A.
Garcia Bellido, Espana y los espãholes hace dos mil anos según la Geografia de
Strabón,
Madrid, 1945.

68
PERÍODO PRIMITIVO

9. Povos anteriores à conquista romana

Não se justificaria uma enumeração geral dos povos que habi-


taram o território peninsular, desde os tempos pré-históricos até à
chegada dos Romanos. As questões etnológicas e de localização des-
ses povos são secundários para o nosso tema.
Apenas nos propomos mencionar os povos autóctones
que
ocupavam a Península no século III a.C, quer dizer, antes da domi-
nação romana. Também terá interesse a indicação das colonizações
estrangeiras.

9.1. Principais povos autóctones

Às diversidades étnicas dos primitivos povos peninsulares


cor-
responderam, como se observou, entre outras, diferenças culturais e
de desenvolvimento económico. Alguns deles limitavam-se a redu-
zida produção agrícola e pecuária, enquanto outros, ao lado de uma
economia agrária próspera, tiveram actividades industriais e minei-
ras, assim como intercâmbios mercantis. Daí que não fosse desco-
nhecido, nestes últimos, o uso da moeda.
Tudo indica como zonas mais progressivas as
correspondentes
à actual Andaluzia, à parte oriental da Península e à orla marítima
que hoje constitui a costa portuguesa. Parece de admitir, pelo con-
trário, que os povos mais atrasados tenham sido os das' regiões inte-
riores, do Noroeste e do litoral cantábrico.
Não obstante a grande variedade de raças, torna-se
possível
reconduzir os povos que habitavam a Península, ao tempo da con-
quista romana, a cinco grupos fundamentais: Tartéssios, Iberos,
Celtas, Celtiberos e Franco-Pirenaicos.
Apresenta-se uma classificação bastante simplificada e sem
preocupações de extremo rigor. Deve salientar-se que cada um
destes grupos étnicos se subdividia em diversos povos. Daremos
indicações sucintas.

69
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

I. Tartéssios — Eram, segundo Estrabão, o povo mais culto


e
adiantado da Península. Encontravam-se estabelecidos ao Sul,
aproximadamente na região delimitada pelo rio Guadiana. De
entre os Tartéssios, destacam-se os Turdetanos, que ocupavam a
bacia do baixo Guadalquivir.

II. Iberos — Estavam acantonados na orla oriental,


expandindo-
-se para o interior através das actuais regiões da Catalunha e de
Aragão. Pertenciam à raça ibérica, por exemplo, os Cantabros ou
Cantábricos, fixados nas montanhas do Oriente das Astúrias e San-
tander. Recorde-se que o qualificativo de Iberos ultrapassou os que
o foram em sentido restrito para designar, ainda, outros povos
peninsulares.

III. Celtas — Ocupavam o Noroeste e o Sudoeste, quer


dizer,
respectivamente, as zonas que correspondem ao Minho e à Galiza
actuais e ao sul do rio Tejo, com excepção do território que hoje
integra o Algarve, então habitado pelos Cónios. Naquela primeira
área tomaram o nome de Galaicos, incluindo uma considerável série
de povos que se polarizavam no grupo dos Lucenses e no dos
Bracarenses.

IV. Celtiberos — Discute-se a sua génese. Porém, tenham


sido
os Celtas a dominar os Iberos ou o inverso, seguro é que os Celti-
beros resultaram de uma fusão ou mescla desses dois povos. Trata-
-se de um dos grupos mais importantes da Península. Nele se
incluíam os Lusitanos, situados entre os rios Douro e Tejo.

V. Franco-Pirenaicos — Localizaram-se no extremo norte


da
Península, a que correspondem as modernas regiões de Navarra e
Vascongadas. Aponta-se aos povos deste grupo uma significativa
expansão cultural. Destacam-se os Vasconsos, que se estendiam por
uma área que abrangia a actual cidade de Pamplona.

70
período primitivo

9.2. Colonizações estrangeiras

Completa-se a breve descrição dos grupos étnicos da


Hispânia
pré-romana com uma referência às colonizações estrangeiras.
Apontam-se correntemente viagens marítimas e contactos remotos
com povos europeus e norte-africanos. Todavia, apenas aludiremos
aos colonizadores que mais contribuiram para o progresso cultural
e económico dos povos indígenas: os Fenícios, os Gregos e os Car-
tagineses. Também agora se fará uma exposição resumida.

I. Fenícios — Caracterizam-se os Fenícios como um povo


de
comerciantes e navegadores da Ásia Menor, que conseguiu, nos
séculos IX e VIII a.C, alcançar a hegemonia mercantil do
Mediterrâ-
neo. Foram os interesses económicos que levaram os Fenícios, no
século IX a.C, a estabelecer várias colónias e feitorias ao longo da
costa africana, de entre as quais sobressai Cartago. Esses mesmos
interesses trouxeram os Fenícios até à Península. Fixaram-se na
costa meridional, fundando Cádiz e outras cidades.
A presença fenícia na Península entrou numa fase
regressiva
durante o século VII a.C, acelerada com a queda de Tiro. Conhe-
ceu o epílogo na centúria imediata.

II. Gregos — Aos Fenícios, sucederam-se os Gregos focenses,


assim chamados por terem como metrópole a cidade jónica de
Foceia, na Ásia Menor. Os seus primeiros contactos com a Penín-
sula recuam ao século vil a.C. Também vieram movidos por objec-
tivos comerciais. Criaram algumas colónias na Andaluzia oriental e
expandiram-se, depois, para o Norte, ao longo da costa, com a
ocupação das Ilhas Baleares e a fundação de Marselha.
Quando os Persas conquistaram Foceia, em meados do
século
VI a.C, Marselha passou a constituir o centro de onde irradiou
toda a colonização dos gregos focenses no Mediterrâneo.

III. Cartagineses — Entretanto, Cartago, antiga colónia fenícia,


tornou-se uma das mais fortes e ricas cidades da época, que procu-
rava disputar aos Focenses a supremacia política e económica no

71
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Mediterrâneo ocidental. Esforço desenvolvido pela luta armada e


através da fundação de colónias.
As relações comerciais dos Cartagineses com a Península
vinham de longe. Já no século VI a.C. se estabeleceram em Ibiza.
Todavia, a sua presença aumentou após a destruição de Tiro, visto
que, dando-se como continuadores dos Fenícios, se mostraram inte-
ressados em manter o domínio sobre as colónias que estes tinham
fundado na Hispânia. Depois de uma grande vitória naval sobre os
Focenses, ocuparam a Sardenha e, seguidamente, começaram a
deslocar-se para o Sul da Península. A cidade de Cartagena (Nova
Cartago) foi o seu pólo de irradiação.
Deve salientar-se uma diferença relativamente às colonizações
anteriores da Península. E que os Fenícios e os Gregos sempre se
centraram na costa mediterrânica. A mesma característica teve, de
início, a ocupação dos Cartagineses. Mas, a breve trecho,
transformou-se em verdadeira conquista territorial e penetração
nas zonas interiores, envolvendo lutas com os povos indígenas e as
colónias gregas.
Sabe-se que a II Guerra Púnica interrompeu o domínio carta-
ginês. A Península Hispânica passou então a fazer parte do mundo
romano.

10. Organização política e social

10.1. Organização política

a) Os Estados peninsulares. Regimes políticos

Chama-se a atenção para o facto, inicialmente salientado,


de
que a Península estava longe de constituir uma unidade política.
Existiam na primitiva Hispânia múltiplos Estados, inclusive dentro
do mesmo grupo étnico, com dimensões mais ou menos reduzidas.
Além disso, neles se adoptaram modelos diversos de organização
interna, em que se reflectiam o grau de evolução política e algumas
possíveis influências dos povos colonizadores.

72
PERÍODO PRIMITIVO

Discute-se, à partida, sobre se a unidade estadual seria consti-


tuída pela tribo ou pela cidade. De acordo com a opinião que se
afigura preferível, não houve um modelo uniforme: o Estado-tribo,
quer dizer, de natureza territorial, terá prevalecido entre os Celtas,
os Celtiberos e, de um modo geral, nas regiões ocidentais, ao passo
que no Sul predominaria o Estado-cidade, correspondente à "polis"
típica da Antiguidade mediterrânica. Atendendo ao conjunto da
Península, parece de concluir que a maioria dos Estados primitivos
assentava na tribo.
Essas unidades políticas eram integradas por clãs ou gentilida-
des e por grupos locais ou povoados, que se mantinham, uns relati-
vamente aos outros, como círculos fechados, em princípio, e
gozando de considerável autonomia. Os povoados radicavam na
comunidade de vida local, enquanto os clãs se baseavam num vín-
culo familiar. Estes últimos, como as "gentes" da antiga organiza-
ção social romana, consistiam em conjuntos de famílias descenden-
tes de um mesmo tronco, identificadas no culto religioso e na che-
fia política, e que tinham o seu direito próprio. A indicada auto-
nomia dos clãs e dos povoados, dentro das unidades políticas em
que se incluíam, afectava, evidentemente, a coesão estadual.
O carácter fechado desses grupos apresentava atenuações.
Uma delas resultava dos acordos de clientela, pelos quais se podia
estender a protecção visada a membros de comunidades diversas.
Paralelamente, praticaram-se acordos de hospitalidade, que diferiam
pelo facto de serem convencionados num plano igualitário e não
envolverem o vínculo de subordinação característico da clientela.
Tais acordos tinham, por vezes, natureza colectiva, isto é,
estabeleciam-se entre clãs ou povoados (').
Refira-se, ainda, que o número de Estados, na acepção acima
indicada, variava de povo para povo. Os autores latinos informam

(') Sobre os vários aspectos referidos, ver, por todos, Valdeavellano,


Curso, cit., págs. 115 e segs.

73
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

que os Lusitanos, por exemplo, se encontravam divididos em trinta


tribos, o que equivalia a outros tantos Estados independentes.

No que toca aos regimes políticos, infere-se que predomina-


vam as monarquias, hereditárias ou vitalícias. Quando se adoptava
o sistema republicano, este assumia uma feição aristocrática, pois a
eleição dos magistrados ou chefes políticos temporários e o exercí-
cio dos respectivos cargos estavam reservados a certos privilegia-
dos, como sejam os representantes dos grupos sociais.
Aventa-se que tenha desempenhado papel importante uma
assembleia de tipo "aristocrático. Ao lado desta, existiria uma
assembleia popular, de que faziam parte todos os homens livres da
comunidade. Também aqui se mostra muito inadequada qualquer
generalização.

b) Confederações e subordinações de Estados

Resulta do exposto que, em rigor, não se poderá falar, a res-


peito desta época, de um verdadeiro Estado no sentido moderno.
Ao. invés, a realidade era antes a da coexistência básica de numero-
sos grupos mais ou menos isolados e autónomos, tanto economica-
mente, como sob os aspectos políticos e ético-jurídicos.
Neste contexto, o elemento aglutinador revelava-se, sobre-
tudo, externo, não só ao nível das comunidades estaduais, mas
ainda das supra-estaduais. Recorde-se a frequente confederação de
tribos ou de cidades, sempre que algum invasor estrangeiro punha
em risco a sua segurança. Tinham, portanto, carácter transitório e
objectivos político-militares. As tribos lusitanas, por exemplo, ape-
sar da independência de umas em relação às outras e das lutas que,
não raro, travavam entre si, recorreram a esse sistema. Ficaram
célebres as confederações levadas a efeito no tempo de Viriato e de
Sertório.
Havia, também, situações de domínio e anexação de Estados.
E o caso frisante do Império Tartéssio, formado pela subordinação
de vários Estados à cidade-metrópole de Tartessos.

74
PERÍODO PRIMITIVO

10.2. Classes sociais

Analisamos mais um aspecto em que escasseiam informações.


Conjectura-se, todavia, que os povos da Hispânia pré-romana tive-
ram a estrutura social peculiar do mundo antigo. Basicamente,
distinguiram-se os homens livres dos servos ou escravos. Os primeiros
tinham personalidade jurídica, enquanto os segundos eram conside-
rados coisas e, assim, objectos de direitos.
Entre os homens livres havia uma classe privilegiada, uma espé-
cie de nobreza, que os autores latinos designam como "nobilies",
"príncipes", "primores" e "maximi natu". Dela faziam parte as
pessoas mais poderosas, embora se discuta se a diferenciação resul-
tava da linhagem, da riqueza, da força militar ou, inclusive, do
desempenho de cargos públicos.
Em posição inferior estava a maioria da população livre. A condi-
ção social e económica desta classe variava, naturalmente, de caso
para caso. Os Lusitanos concediam um tratamento especial aos
anciãos, que, portanto, representavam também uma classe privile-
giada, dentro dos plebeus ou homens do povo.
As dificuldades de vida, designadamente económicas, levavam
muitos homens livres a acolherem-se ao amparo dos poderosos,
através de uma relação de clientela. Consistia num vínculo em que o
patrono dispensava protecção económica e pessoal ao cliente, que,
por seu turno, se obrigava a absoluta fidelidade e submissão ao
patrono. Os clientes constituíam, deste modo, uma classe caracteri-
zada pela forte limitação da liberdade pessoal resultante da referida
dependência.
Forma específica de clientela, originária da Hispânia primi-
tiva, era a devotio, que os Iberos praticaram com frequência.
Tratava-se de uma variante da clientela militar, tipificada pela
intervenção de um elemento religioso. O cliente, que tomava o
nome de "devotus" ou "soldurius", além de ficar adstrito a seguir
o patrono na guerra, consagrava a sua vida a uma divindade para
que esta a aceitasse em troca da vida do patrono. Se o patrono
morria no combate, o soldúrio deveria suicidar-se, porque isso sig-
75
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

nificava que a divindade não aceitara o sacrifício e que, consequen-


temente, a sua vida se tornou ilícita (i).
O último estrato social compreendia os servos ou escravos.
Tem-se sustentado a existência de servos pertencentes a particula-
res c de servos públicos, cuja propriedade cabia a comunidades
políticas.

11. Direito peninsular pré-románo

Chegamos ao ponto fundamental da nossa exposição sobre


este período. Verifica-se, porém, a falta já assinalada de elementos
que permitam a reconstituição histórica.
Na sequência do que se observou, deve chamar-se a atenção
para o íacto de não ter existido um direito único, que vigorasse
uniformemente em todo o território, mas sim múltiplos ordena-
mentos jurídicos. Deste modo, quando se utilizam as expressões
"direito dos povos indígenas" ou "direito primitivo", intenta-se
com elas abranger o conjunto dos sistemas jurídicos que regeram os
primitivos povos peninsulares, em contraposição aos dos coloniza-
dores.
E manifesto, por outro lado, que, ao aludir-se a "direito
peninsular pré-romano", não se pretende significar que se trate de
sistemas jurídicos que desapareceram com o advento dos Romanos.
Os direitos primitivos prolongaram a sua vigência para além desse
facto histórico. Apreciaremos a medida em que o direito romano
foi abarcando, pouco a pouco, a população peninsular. De resto,
admite-se comummente a persistência, durante séculos, de institui-
ções e princípios de raiz pré-romana, até reforçados, porventura,
na época medieval.

(') A respeito da "devotio", ver o estudo clássico de J. M. Ramos y Los-


certales, La "devotio" ibérica. Los Soldurios, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit.,
tomo I, págs. 7 e segs.

76
PERÍODO PRIMITIVO

11.1. Direito dos povos autóctones

Vejamos o que se mostra possível admitir com alguma segu-


rança quanto ao direito dos povos indígenas. Consideram-se, em
separado, o problema das fontes de direito, designadamente o dos
modos de formação e revelação das normas jurídicas, e o problema
do conteúdo destas, ou seja, das instituições. Constituem, como
sabemos, os aspectos externo e interno do direito.

a) Fontes de direito

Não oferece dúvida que o direito primitivo teve exclusiva ou


predominante natureza consuetudinária na generalidade do territó-
rio peninsular. A grande maioria dos povos autóctones conheceu
como fonte de direito apenas o costume: as normas jurídicas surgi-
ram pela prática reiterada das mesmas condutas, perante os vários
problemas e situações sociais, acompanhada da convicção ou cons-
ciência da sua obrigatoriedade.
O monopólio do costume ter-se-ia atenuado, em certos povos,
mercê dos pactos de hospitalidade celebrados pelos diversos grupos
sociais que os integravam. Nesses acordos, uma comunidade conce-
dia equiparação de direitos a todos ou a parte dos membros de
outra e, algumas vezes, estabeleciam-se ainda normas para as rela-
ções jurídicas entre os grupos que os firmavam. Mais tarde, tam-
bém se convencionaram pactos de aliança ou amizade com os
Romanos.
Uma excepção que se aponta, alicerçada em indícios e
refe-
rências de autores antigos, encontrar-se-ia no Sul e no Levante da
Península. Nessas zonas, social e culturalmente mais adiantadas,
existiriam autênticas leis, que não chegaram até nós. Reíere-se,
sobretudo, o caso dos Turdetanos, a respeito dos quais há testemu-
nho de que o seu ordenamento se compunha, não só de preceitos
consuetudinários, mas também de normas resultantes de actos
legislativos.

77
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Assim depõe Estrabão, ao asseverar que esse povo possuiu leis


escritas em verso, com seis mil anos de antiguidade ('). Não se
conhecem tais leis e os autores divergem quanto ao seu conteúdo.
A redacção versificada de preceitos jurídicos era frequente nos
povos antigos e destinava-se a facilitar a sua memorização ( ).
Também não pode esquece r-se que as regiões meridionais e orien-
tais da Península sofreram grande influência dos colonizadores
estrangeiros, que, ao menos nas suas comunidades de origem, se
regiam por leis.
Continuamos, todavia, no plano impreciso da dedução histó-
rica. Daí que a opinião mais divulgada propenda para considerar
que não se trataria de leis no sentido rigoroso da palavra, mas de
preceitos consuetudinários, transmitidos por via oral durante várias
gerações, que algum monarca mandou reduzir a escrito a fim de
lhes dar maior fixidez e publicidade, com eventual acrescento de
um ou outro preceito novo.
Além disso, não se exclui que houvesse disposições emanadas
dos órgãos políticos estaduais. Essas disposições, se de facto existi-
ram, devem ter assumido mais a natureza de simples ordens execu-
tivas do que a de verdadeiras leis.
Concluímos, em síntese, que o direito dos povos peninsulares
autóctones foi indubitavelmente de base consuetudinária. Saliente-
-se que, não havendo uma separação nítida entre o jurídico e o
ético-religioso, parece de admitir que a mitologia constituísse o
veículo de transmissão e de sedimentação do costume, como suce-
deu na generalidade dos povos arcaicos.

( ) A difícil leitura do texto do famoso geógrafo grego, que se encontra


incompleto, permite também a interpretação alternativa de que se faz referência
a leis contidas em seis mil versos (ver, por ex., García-Gallo, Los documentos
y
los formulários jurídicos, cit., in "Estúdios de Historia dei Derecho Privado", pág.
347, nota 6).
(2) Cfr., entre outros, Eduardo de Hinojosa, Poesia y Derecho, in
"Obras",
tomo III — "Estúdios de Sintesis", Madrid, 1974, págs. 435 e segs., e Mircea
Eliade, Histoire des croyances et des idées religieuses, vol. II — De Gautama Bouddha au
triomphe du christianisme, Paris, 1984, pág. 139.

78
PERÍODO PRIMITIVO

Porém, torna-se difícil não aceitar a existência de casos em


que, sobre o lastro consuetudinário, ocorressem manifestações de
tipo legislativo. Mas estas devem sempre considerar-se localizadas e
raras.

b) Instituições jurídicas

Idênticas ou ainda maiores incertezas se encontram na recons-


tituição das instituições jurídicas da Hispânia primitiva. A falta de
fontes históricas imediatas, junta-se a escassez das fontes mediatas
ou indirectas.
Vários investigadores têm lançado mão de dois métodos para
suprir essa ausência de elementos: o comparativo e o das sobrevi-
vências. Ambos conduzem, todavia, às dificuldades próprias da
dedução em história.
O método comparativo serve a reconstituição das instituições de
uma determinada comunidade primitiva a partir de dados conheci-
dos de outra que apresenta desenvolvimento análogo, mercê das
identidades étnicas, das condições de vida ou das circunstâncias cul-
turais, sociais e económicas. A comunidade tomada como ponto de
referência não tem de ser coetânea da que constitui objecto de
estudo.
Com apoio neste processo, muito utilizado na investigação
antropológica, diversos autores têm chegado a alguns resultados
acerca do direito pré-romano da Península, derivando-os, por
exemplo, das instituições dos Celtas estabelecidos em França e na
Irlanda ou dos Iberos acantonados no Norte de Africa. Mas essas
conclusões apenas se poderão aceitar em termos aproximativos e
prudentes, pois a analogia entre as sociedades comparadas nunca se
apresenta absoluta.
O método das sobrevivências consiste em procurar o conheci-
mento de uma certa época através da pesquisa dos vestígios que
dela se encontram nas épocas posteriores. Tem sido aplicado ao
estudo do direito dos primitivos povos peninsulares, a partir do
sistema jurídico da Reconquista, do modo seguinte: uma vez detec-

79
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tada a origem romana, germânica, árabe, canónica, etc, das várias


instituições desse ciclo, fica um resto, um resíduo, para que não se
encontra precedente. Logo, tal resíduo constituirá uma sobrevivên-
cia das instituições pré-romanas.
E também manifesta a precariedade desta metodologia.
Exclui-se, por um lado, que estudos ulteriores possam definir a
génese exacta de algumas dessas figuras jurídicas residuais e, por
outro lado, que a Reconquista teve instituições surgidas em virtude
do seu condicionalismo próprio e sem qualquer ligação atávica ao
período primitivo.
As considerações precedentes demonstram que importará
encarar com reserva os resultados conseguidos quanto à pormenori-
zação das instituições jurídicas dos povos peninsulares anteriores aos
Romanos. A indiscutível falta de unidade, para mais, inviabiliza as
generalizações.
Poderá aceitar-se que a organização íamiliar predominante
haja sido de tipo monogâmico e patriarcal. Contudo, tem-se aven-
tado a existência, entre os Cantábricos e, porventura, também nou-
tros povos do Norte da Península, de instituições que denunciam um
sistema de matriarcado, quer dizer, de predomínio familiar e social
da mulher ou, pelo menos, de transição para o sistema patriarcal
mais corrente. Assim: o dote que o marido entregava à esposa; e a
transmissão da herança paterna às filhas, que ficavam obrigadas a
proporcionar aos irmãos varões o necessário para estes dotarem as
suas esposas quando se casassem.
Não falta quem sustente a importância atribuída aos esponsais
no casamento e que a lei do ósculo (') recua ao direito pré-romano,
do mesmo modo que a comunhão geral de bens entre cônjuges (2).
Outros pretendem que os Vaceus, povo celtibérico, ou aproximado,
que habitava o centro da Península, adoptaram um regime de pro-

(') Segundo essa instituição, o beijo dado à noiva exprimia o propósito de


tomá-la como esposa.
(2) Ver as considerações dubitativas de Paulo Merêa, Evolução dos regimes
matrimoniais, vol. I, Coimbra, 1913, págs. 10 e segs.

80
PERÍODO PRIMITIVO

priedade agrária de tipo colectivista. Também se encontra a afir-


mação de que os Tartéssios consagravam o princípio que proibia o
testemunho do mais jovem contra o mais idoso.
Relativamente ao direito penal, não oferece dúvida a rudeza
das sanções. A título exemplificativo, assinale-se que Estrabão
aponta que, entre os povos do Ocidente peninsular, os condenados
à morte eram "lançados do alto dos rochedos" e os parricidas
"apedrejados diante das fronteiras". Justifica-se a conjectura de que
a violência das penas, correspondente à barbaridade dos costumes e
à dureza do homem primitivo, encontrava legitimação, como no
geral das sociedades arcaicas, nos planos mitológico e religioso,
domínios onde se exaltavam a guerra e a vingança.
Em plena época da Reconquista, aparece difundida uma forma
de punição de certos delitos que se designa por "entrar às varas".
Ora, não se exclui que esta modalidade de castigo ou composição
corporal represente a sobrevivência de uma instituição peninsular
pré-romana(1).
A breve resenha feita bastará para corroborar o que de início
se afirmou: não obstante as tentativas realizadas pelos investigado-
res, existe um conhecimento muito incompleto e precário das insti-
tuições jurídicas dos povos peninsulares autóctones.

11.2. Direito dos povos colonizadores

Encontram-se iguais dificuldades para a reconstituição do


direito dos povos colonizadores. Sabe-se que tanto os Fenícios como
os Gregos estabeleceram na Península colónias importantes e que os
Cartagineses levaram a ocupação até às regiões interiores. Porém,
tudo se ignora ao certo sobre o direito por eles aqui adoptado.

(') Ver Paulo Merêa, Composição corporal, in "Estudos de Direito


Hispâ-
nico Medieval", tomo II, Coimbra, 1953, págs. 195 e segs., designadamente pág.
205.

Hl
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Admite-se que haja sido idêntico ao das metrópoles do Medi-


terrâneo oriental, onde esses povos tinham os seus centros de irra-
diação. Portanto, no capítulo das fontes, existiria, ao lado do cos-
tume, uma forte componente legislativa, inclusive de leis locais.
A dominação cartaginesa dos territórios peninsulares deve ter
ocasionado uma dualidade jurídica. Os conquistadores e a organiza-
ção pública, ao menos de cúpula, disciplinar-se-iam pelo direito
cartaginês, enquanto se consentiria aos povos submetidos que conti-
nuassem a observar os seus preceitos tradicionais que não contra-
riassem aquele.
Verificaram-se naturais influências. E crível que algumas insti-
tuições jurídicas dos povos colonizadores se transmitissem ao direito
dos povos peninsulares. Mas quanto se afirma não passa de simples
conjectura. Por exemplo, assim sucede a respeito da enfiteuse, uma
instituição de origem grega e também conhecida dos Romanos.
Todavia, não se pode demonstrar que os aforamentos ou empraza-
mentos, que assumiram grande importância entre os contratos de
exploração agrícola do direito peninsular, desde a Reconquista,
tenham esse antecedente primitivo, originado pelos colonizadores
gregos (').

(') Ver Gama Barros, Hist. da Adm. Púbi, cit., 2.a ed., tomo VII, págs. 69 e
segs., A. Vaz Serra, A Enfiteuse no Direito Romano, Peninsular e Português, vol.
II,
Coimbra, 1926, págs. 124 e segs., e M. J. Almeida Costa, Origem da Enfiteuse
no
Direito Português, Coimbra, 1957, págs. 29 e seg.

82
CAPÍTULO II

PERÍODO ROMANO
12. A conquista da Península pelos Romanos

Os Romanos tiveram uma longa e muito significativa presença


na nossa península. E corrente cindi-la em duas fases distintas: uma
jase de conquista, que termina em 19 a.C, com o domínio dos terri-
tórios cantábricos e astures; e uma jase de romanização, quer dizer, de
progressivo conhecimento e assimilação, pelos povos autóctones,
das formas de vida, da cultura e do direito dos Romanos. Esta
última tomou a sua maior ênfase nos dois primeiros séculos da
nossa era.
Durante a rase de conquista, assinala-se aos Romanos a finali-
dade dupla de subjugar os povos locais, em seguida à expulsão dos
Cartagineses, e de extrair o máximo possível de riqueza das suces-
sivas regiões anexadas. Na fase de romanização, pelo contrário, os
Romanos tiveram a preocupação de fazer participar os habitantes
da Península da sua civilização, das suas instituições políticas e
administrativas e, de um modo geral, do seu direito.
Não se deve encarar, todavia, a referida divisão em termos
absolutos. E que, já ao longo da primeira fase, os povos indígenas
começaram, naturalmente, a adaptar-se à civilização romana,
embora numa medida reduzida. Assim como, na segunda fase, os
Romanos não abandonaram as preocupações económicas e
militares.
A conquista da Península demorou dois acidentados séculos.
Teve início com a II Guerra Púnica, em 218 a.C, quando as legiões
romanas desembarcaram em Ampúrias, no extremo norte da Cata-
lunha, ao mesmo tempo que os exércitos cartagineses, comandados
por Aníbal, passavam os Alpes e invadiam a Itália. Atacado o seu

85
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

próprio território, os Romanos procuraram defender-se abrindo


uma outra frente na Hispânia, sob dominação dos Cartagineses, a
quem, desse modo, cortavam, pela rectaguarda, os apoios logís-
ticos.
Desceram as legiões romanas, ao longo da costa, até à
zona
meridional da Península. Entretanto, sofreram aí, em 212 a.C, uma
grande derrota, que comprometeu momentaneamente a sorte das
áreas ocupadas.
A reconquista inicia-se no ano de 209 a.C, tendo o seu desfe-
cho em 202, com a vitória da II Guerra Púnica e consequente
expulsão definitiva dos Cartagineses da Península. Os Romanos,
porém, não ficaram logo senhores de toda a Península Ibérica:
apenas eliminaram um concorrente à sua ocupação. A conquista das
zonas interiores mostrou-se difícil e vagarosa. Lembremos, por
exemplo, que os Lusitanos só foram subjugados em 137 a.C, na
sequência de uma expedição que os Romanos não levaram a eteito
antes de conseguir o assassínio de Viriato.
Quando das lutas civis entre Mário e Sila, tiveram também
os
Romanos de fazer face a várias revoltas locais, porque algumas
tribos aproveitaram o ensejo da confusão que se verificava em
Roma para lutar de novo pela independência. Foi o caso da suble-
vação dos Lusitanos, sob o comando de Sertório, general do partido
de Mário que abandonou Roma após a vitória de Sila. Com o
assassínio de Sertório, em 72 a.C, a Península passou a aceitar paci-
ficamente o jugo romano, excepção feita aos povos cantábricos e
astures, que, como se indicou, só foram plenamente vencidos por
Augusto, entre os anos 29 e 19 a.C.

13. A romanização da Península

Terminada a fase de conquista, inicia-se a de romanização.


Tal não significa, conforme observámos, que, naquele primeiro
ciclo, os povos peninsulares permanecessem de todo alheios à cul-
tura e à civilização bem superiores dos Romanos.
86
PERÍODO ROMANO

Sem dúvida, à medida que a conquista avançava, as popula-


ções peninsulares, mercê da simples convivência com os ocupantes,
começaram a adoptar muitos dos seus hábitos e costumes. No
entanto, a romanização metódica e intensiva só principiou depois
de plenamente dominado e pacificado o território cispirenaico.
Devemos considerar a romanização da Península como o pro-
duto de três elementos: a assimilação lenta da cultura e da civiliza-
ção dos Romanos pelos povos autóctones; a concessão da latinidade
aos habitantes da Península, devida a Vespasiano (73/74 d.C); e a
concessão da cidadania romana aos súbditos do Império em geral,
no tempo de Caracala (212 d.C). Os dois últimos aspectos
referem-se directamente à esfera jurídica (l).

13.1. Assimilação lenta da cultura e da civilização dos Romanos pelos


povos autóctones

As formas de vida, as práticas, as ideias, as atitudes mentais e


a própria língua, em suma, tudo o que integrava a cultura e a
civilização dos Romanos só paulatinamente foi absorvido pelos
povos peninsulares. Esse processo verificou-se através de uma série
de factores que se tornaria difícil enumerar de maneira exaustiva,
pois muitos deles escapam à análise mais cuidada. Indicamos apenas
alguns com especial importância.

I. Acção das legiões romanas — Cabe mencionar, antes de mais, a


acção dos militares romanos. O carácter insubmisso da população
indígena exigiu a permanência prolongada de legiões romanas em
inúmeros pontos do território, onde os legionários desempenharam

(') Sobre o tema, ver, por ex., J. M. BlAzquez, Causas de la romanización


de Hispânia, in "Hispânia — Revista Espanola de Historia", tomo XXIV, Madrid,
1964, págs. 5 e segs., 165 e segs., 325 e segs., e 485 e segs., e Jesus J. Urruela
Quesada, Romanidad e indigenismo en el Norte Peninsular a finales dei Alto Império. Un
punto de vista critico, Madrid, 1981.

87
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

também o papel de autênticos colonos. Não raros desses acampa-


mentos foram a base de povoações florescentes e, algumas vezes,
até originaram, com o decurso do tempo, grandes cidades.
A fixação de legionários em determinados locais levava a que
a população aí radicada tivesse com eles contactos frequentes e
duradouros. Estabeleciam-se relações mercantis, não raros autóctones
eram chamados a prestar-lhes serviços nos trabalhos agrícolas ou
industriais — e, deste modo, iam aprendendo a língua e os hábitos
dos invasores.

II. Acção dos funcionários administrativos e dos colonos — Aos solda-


dos, seguiam-se os funcionários administrativos, assim como nume-
rosos colonos, que vinham de Roma e do resto da Itália atraídos
pela fama das riquezas peninsulares. Aqui permaneciam, com fre-
quência, na mira de rápida fortuna. É evidente que a sua presença
representou um poderoso veículo de romanização dos povos locais.

III. Abertura de estradas — Esse acréscimo de população romana,


ao mesmo tempo que fomentava a romanização dos indígenas, fazia
progredir, dia após dia, o volume das transacções comerciais entre
Romanos e Peninsulares. Daí a necessidade de uma larga rede de
estradas que facilitasse o transporte das mercadorias e a livre circu-
lação dos comerciantes que, de Roma, vinham efectuar os seus
negócios à Península.
As estradas romanas não tiveram, portanto, o mero alcance
estratégico de proporcionar a rápida movimentação de tropas. Aos
objectivos militares somaram-se vantagens económicas e políticas
relevantes.

IV. Superioridade da técnica romana — Quer na abertura de


estra-
das, quer na construção de pontes e viadutos que a mesma exigia,
os indígenas prestavam activa colaboração, tomando um contacto
directo com a técnica dos Romanos. Não foi, de resto, só neste
âmbito que a superioridade técnica dos Romanos contribuiu para
revolucionar os métodos tradicionais de trabalho dos povos aboríge-

88
PERÍODO ROMANO

nes, mas em todos os ramos de produção económica: a agricultura,


a indústria e a exploração mineira.

V. Desenvolvimento do regime municipal — Outro aspecto que


não
pode ser esquecido consiste na introdução dos sistemas romanos de
administração local, sobretudo do regime municipal. A princípio
limitado a um círculo reduzido de localidades constituídas por
colonos cidadãos romanos, toi-se estendendo, pouco a pouco, às
povoações indígenas.

VI. Culto religioso — Deve salientar-se, ainda, o elemento


reli-
gioso, que unificava a população romana e autóctone na observância
dos mesmos preceitos litúrgicos. Às divindades greco-latinas
sucedeu-se a obrigatoriedade do culto ao imperador, introduzido
por Augusto e que se fundiu com o culto a Roma. Viria, depois, o
Cristianismo, que, ao expandir-se, punha termo às diferenças reli-
giosas e, inclusive, proclamava as relações fraternas para além da
raça.

11.2. Romanização jurídica

Salientaram-se vários factores que levaram os povos penin-


sulares a participar dos benefícios da cultura e da civilização dos
Romanos. Foi já um passo importante para a romanização, que
ocorreu de forma mais rápida e eficaz nas zonas do Sul do que nas
do Norte, em consequência de maiores dificuldades das comunica-
ções e da própria natureza dos seus habitantes. De qualquer modo,
faltavam os vectores jurídicos, pois, com ressalva de alguns centros
populacionais e de pessoas a quem a latinidade ou a cidadania
tinham sido concedidas isoladamente, os povos da Península conti-
nuavam a reger-se pelas instituições primitivas e não gozavam das
liberdades e regalias políticas dos cidadãos romanos. Eis o que
importava superar.
Ora, essa romanização jurídica operou-se mediante as
duas
providências que acima indicámos: a concessão da latinidade e a

89
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

concessão da cidadania romana. Mais de um século medeia entre


ambas.

a) A concessão da latinidade

No ano de 73 ou 74, o imperador Vespasiano outorgou o direito


latino ou latinidade ("ius latii") aos habitantes da Hispânia. Para apre-
ciarmos o significado deste privilégio, torna-se necessário averiguar
exactamente em que consistia.

I. Distinção entre cidadãos, latinos e peregrinos — As pessoas livres


classificavam-se, pelo direito romano, em três categorias: cidadãos,
latinos e peregrinos. Vejamos as diferenças que existiam.
O cidadão romano tinha uma capacidade jurídica plena em face
do "ius civile": no âmbito privatístico, gozava, não só do direito de
contrair matrimónio e constituir família legítima ("ius connubii"
ou "connubium"), mas também do direito de celebrar validamente
negócios jurídicos de conteúdo patrimonial ("ius commercii" ou
"commercium"); quanto à esfera publicística, possuía o direito de
votar nos comícios ("ius suffragii") e o direito de ascender às
magistraturas do Estado ("ius honorum"). Relacionado com estes
direitos, cabia-lhe também a faculdade de alistamento nas legiões
do exército ("ius militiae").
Diametralmente oposta se revelava a situação dos peregrinos,
habitantes das províncias submetidas ao domínio romano, que não
dispunham de nenhum dos privilégios acabados de apontar. Antes
de subjugados, tinham sido considerados "hostes", estrangeiros ou
inimigos, não podendo desfrutar de qualquer protecção jurídica por
parte do direito romano. Depois de submetidos, reconhecia-se-lhes
a liberdade pessoal e a faculdade de se regerem pelos seus direitos
nacionais. Além disso, como máxima regalia, admitia-se que se
subordinassem às normas do "ius gentium", quer nas relações entre
si, quer nas relações com os cidadãos romanos.

90
PERÍODO ROMANO

Numa posição intermédia encontravam-se os latinos. Estes, por


sua vez, subdividiram-se em latinos antigos ("latini veteres" ou
"prisci"), latinos coloniais ou coloniários ("latini coloniarii") e latinos
junianos ("latini iuniani").
Os latinos antigos eram os primitivos habitantes do Lácio e os
membros de outras cidades equiparadas, em qualidade, às da velha
liga latina. Tinham o "ius connubii" e o "ius commercii", tal como
os cidadãos romanos. Mas, no campo do direito público, só pos-
suíam o "ius suffragii". Cabia-lhes, além disso, uma regalia impor-
tante: a de adquirirem automaticamente a cidadania romana, se
vissem a fixar em Roma residência definitiva.
Consideravam-se latinos coloniais os habitantes das províncias, a
quem a latinidade fora concedida como privilégio. Na esfera do
direito público, a sua situação mostrava-se idêntica à dos latinos
antigos, gozando apenas do "ius suffragii". Pelo que tocava ao
direito privado, todavia, estavam menos favorecidos do que aque-
les, pois só desfrutavam do "ius commercii".
Tanto os latinos antigos como os latinos coloniais passariam à
categoria de cidadãos romanos quando desempenhassem certos car-
gos públicos da terra a que pertenciam. Gaio menciona, a propó-
sito, uma distinção entre latinidade maior ("ius latii maius") e latini-
dade menor ("ius latii minus"): no primeiro caso, para que o latino
ascendesse à categoria de cidadão romano bastava que tivesse feito
parte do senado local ou cúria, quer dizer, que tivesse sido decu-
rião; no segundo caso, a aquisição da cidadania romana pressupunha
o exercício de alguma das magistraturas locais.
Sem interesse específico para o nosso caso se apresentam,
finalmente, os latinos junianos, que derivaram o nome da circunstân-
cia de a respectiva situação jurídica haver sido definida pela "Lex
Iunia Norbana" (19 d.C). Integravam-se nessa categoria os antigos
escravos que alcançassem a liberdade ("status libertatis") desacom-
panhada da cidadania ("status civitatis"); durante a vida, estavam
equiparados aos latinos coloniais, mas morriam como escravos. A
sua condição híbrida envolvia consequências jurídicas importantes,
designadamente no aspecto sucessório.

91
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

II. Alcance da concessão da latinidade aos povos peninsulares — As


considerações precedentes habilitam a compreender a importância
que teve, como factor de romanização, no campo do direito, a
concessão da latinidade aos povos peninsulares. Em virtude de tal
providência, os habitantes da Península adquiriram a situação jurí-
dica de latinos coloniais, com as regalias inerentes.
Claro que, sob o ângulo do direito público, essas regalias eram
pouco expressivas, porque se resumiriam, possivelmente, à prerro-
gativa de votar nos comícios romanos, quando se encontrassem em
Roma à data da sua celebração, coincidência difícil de suceder,
tanto mais que os comícios tinham entrado num franco declínio e
só reuniam raras vezes. Acresce que é discutível se gozavam do
"ius suffragii", merecendo talvez preferência a solução negativa.
Mas, quanto ao direito privado, a concessão da latinidade
assumiu o significado de permitir a substituição dos sistemas jurídi-
cos indígenas pelo sistema jurídico romano. Na verdade, os povos
peninsulares, como latinos coloniais, adquiriram o "ius commercii" e,
assim, ficaram com a possibilidade de aplicar o direito romano a
todas as suas relações jurídicas de conteúdo patrimonial. Quer
dizer, passavam a regular-se por esse ordenamento em matéria de
obrigações ou direitos de crédito, de direitos reais e de direito
sucessório, gozando, além disso, da faculdade de litigar perante os
tribunais romanos.
A sua esfera jurídico-privada só ficava diminuída, em face
dos
cidadãos romanos, no que concerne aos direitos de família, porque
não gozavam do "ius connubii". Estava-lhes vedado, portanto, con-
trair casamento e constituir família nos moldes do "ius civile".
Nessas matérias continuavam submetidos ao seu direito tradicional.
A latinidade tinha ainda o alcance, como vimos, de facilitar
a
obtenção da cidadania romana. Foi a latinidade menor que Vespasiano
concedeu aos povos peninsulares. Logo, todo aquele que desempe-
nhasse uma magistratura local ascendia automaticamente à quali-
dade de cidadão romano, abrangendo-se nesse privilégio a sua
mulher, os seus pais e os seus filhos e netos por linha masculina.

92
período romano

b) A concessão da cidadania

Desta forma, a cidadania romana ia-se estendendo a um largo


número de Peninsulares. Além de que a sua concessão isolada a
indivíduos que prestavam serviço no exército, ou a cidades inteiras
que tinham ajudado a acção política e administrativa de Roma,
aumentava de dia para dia. Consequentemente, quando Caracala,
no ano de 212, generalizou a cidadania a todos os habitantes do
Império, de condição livre, os povos peninsulares encontravam-se
preparados para receber o novo estatuto jurídico.
Calcula-se que cerca de metade da população peninsular devia
possuir, nessa data, em virtude dos factos apontados, o direito de
cidadania. E a outra metade, beneficiando, há mais de um século,
da latinidade, recebia o privilégio da cidadania como um mero
complemento das regalias anteriormente obtidas. Podemos afirmar,
portanto, que a constituição de Caracala, se foi, em relação ao
conjunto do Império, um dos factores de romanização de maior
relevo, quanto à Península, significou apenas o coroamento de uma
evolução que estava prestes a consumar-se e cujo passo decisivo
tinha sido dado por Vespasiano com a concessão do "ius latii".

14. Fontes de direito romano relativas à Península

Intere-se das considerações precedentes que, em princípio,


tenderiam a vigorar na Hispânia todas as fontes de direito romano
de aplicação geral. Uma vigência, seguramente, mais teórica ou
restrita do que efectiva, dada a distância de Roma e dos seus juris-
consultos. Como quer que fosse, existiram, ao lado delas, fontes
peculiares desta parte do Império ( ).

( ) Ver as exposições desenvolvidas de Manuel Torres, Lecciones,


cit.,
vol. I, págs. 250 e segs., e Braça da Cruz, História do Direito Português
(lições
policopiâdas, coligidas por A. Barbosa de Melo), Coimbra, 1955, págs. 106
e
segs.

93
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Os estudos arqueológicos permitem concluir que a Península


Hispânica e, sobretudo, a sua antiga província da Bética, que
abrangia a região ao Sul do rio Guadiana, ou seja, mais ou menos, a
Andaluzia, se mostram bastante ricas em inscrições romanas. Pre-
dominam as leis relativas à fundação de colónias e de municí-
pios (l). Estes últimos conheceram um grande incremento após a
concessão da latinidade por Vespasiano e seguiam um modelo basi-
camente uniforme (2).
Particular importância, para nós, apresentam as chamadas
Tábuas de Aljustrel, cuja designação decorre de haverem sido des-
cobertas nessa região mineira do Alentejo, correspondente às anti-
gas minas romanas de Vipasca. Trata-se de duas tábuas de bronze

( ) Pertenciam à categoria das "leges datae", que os magistrados outorga-


vam no uso de poderes especiais que o povo expressamente neles delegava para esse
efeito. As "leges dictae", pelo contrário, eram proferidas no exercício dos pode-
res genéricos conferidos aos magistrados quando da sua eleição.
(") Os municípios tiveram uma difusão muito maior do que as colónias.
Isso explicará que chegasse até nós um único exemplar da lei colonial: a "Lex
Ursonensis" ou "Lex Coloniae Genitivae Iuliae", referente à cidade de Urso ou
Ossuna, situada na região de Sevilha. Em contraste, conhecem-se diversos frag-
mentos de leis municipais, como os da "Lex Salpensana", da "Lex Malacitana" e
da "Lex Irnitana". Ver, sobre o tema, Álvaro D'Ors, Epigrafia Jurídica de la
Esparta Romana, Madrid, 1953, La nueva copia Imitaria de la "Lex Flavia Municipalis" e
La Ley Flavia Municipalis, iti "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., respectivamente,
tomo LIII, págs. 6 e segs., e tomo LIV, págs. 535 e segs., JuliAn GonzAlez,
Inscriptiones romanas de la provinda de Cádiz, Cádiz, 1982 (onde se reúnem todas as
inscrições encontradas nessa província, em número de 545), Teresa
Giménez-
-Candela, La "Lex Irnitana". Une nouvelle loi municipale de la Bétique, in "Révue
Internationale des Droits de 1'Antiquité", 3.a série, tomo XXX, Bruxelles, 1983,
págs. 125 e segs., e Fernando Betancourt, Noticias Jurídicas de la "Reunión
sobre
Epigrafia hispânica de época romana-republicana", in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit.,
tomo LIV, págs. 575 e segs. Não deve esquecer-se a colectânea de fontes organi-
zada pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob o título
"Colecção de Textos de Direito Peninsular", vol. I — "Leis Romanas", Coim-
bra, 1912. Quanto a um aspecto aflorado na "Lex Ursonensis", ver A. Santos
Justo, A situação jurídica dos escravos em Roma (Um breve estudo a propósito duma
inscrição de Urso), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LIX, págs. 129 e segs.

94
período romano

do tempo de Adriano (117/138), embora não da mesma data. Repro-


duzem, fragmentariamente, dois textos legais que se afiguram
complementares (*).
Um dos bronzes diz respeito à organização administrativa da
região mineira de Vipasca, seguindo o modelo comum a todas as
minas do fisco imperial, que divergia, em parte, do regime muni-
cipal ordinário. Dá a conhecer normas relativas à exploração do
solo, sob os aspectos jurídico e técnico (2). O outro bronze refere-se
ao sistema de concessão das minas de Vipasca, que não eram explo-
radas directamente pelo fisco (3). Mas também daqui se podem tirar
conclusões gerais.
Há, ainda, notícia de diversas fontes de direito romano

respeitantes à Península, como éditos e decretos de magistrados,
senastusconsultos e constituições imperiais. Algumas destas fontes
são conhecidas na íntegra, ao passo que outras se encontram incom-
pletas.

15. Direito vigente na Península ao tempo das invasões germâ-


nicas. O direito romano vulgar

Não caberia, dentro dos limites que temos em vista, analisar


as instituições jurídicas que vigoraram na Península pelos fins do
período romano. Isto é, o direito que passou à época subsequente.

(') O original de uma das tábuas encontra-se no Museu Nacional de


Arqueologia e Etnologia de Lisboa e o da outra nos Serviços Geológicos de
Lisboa. Consultar, por ex., Álvaro D'Ors, Epigrafia Jurídica, cit., págs. 71 e segs.,
com extensa análise e largas indicações bibliográficas.
(2) Bronze descoberto em 1906, que constitui parte de uma "lex dieta"
geral ("lex metallis dieta") para todas as minas do fisco. Estas eram administra-
das por um "procurator metallorum".
(3) Esta tábua foi descoberta em 1876 e apresenta as características de uma
"lex locationis". O seu texto mostra-se gravado, com algumas variantes, no
anverso e no reverso do bronze.

95
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Escasseiam, aliás, os estudos monográficos sobre a matéria, o


que se compreende em virtude da grande falta de fontes históricas.
Existe um conhecimento reduzido do direito romano geral aplicado
à Península e também do direito romano-hispânico, quer dizer, das
normas específicas que os dominadores criaram para esta parte do
Império. Mas uma conclusão se afigura incontroversa: nem aqui,
nem nas outras províncias, o direito romano puro foi integralmente
recebido e aplicado, mesmo depois de generalizada a cidadania. Os
habitantes dos centros urbanos revelavam uma compreensível maior
receptividade ao romanismo do que as populações rurais.
O sistema jurídico hispânico, nas vésperas das invasões germâ-
nicas, encontrava-se longe da perfeição do direito romano clássico.
Vigorava o chamado direito romano vulgar ("Vulgarrecht"), que pos-
suía uma estrutura menos complexa e cuja disciplina resultava da
interferência de elementos autóctones. Era o reflexo do quadro
social, económico, cultural e jurídico da Península.
Relativamente a esse processo de "vulgarização" do direito
romano, ou "vulgarismo", continuam a levantar-se problemas con-
troversos, tais como: o da delimitação dos seus contornos; o da
diferenciação entre o direito pós-clássico e o direito vulgar; o de
saber se este último constituía, como parece, um movimento de
todo o Império, embora com intensidade e evolução distintas, ou
apenas da sua parte ocidental — que põe a questão conexa de
distingui-lo de um direito propriamente popular ("Volksrecht") das
províncias orientais; o dos vectores que nele influíram (1). Tem-se

(') Existe uma larga bibliografia sobre o tema. Destacam-se os consagra-


dos estudos de E. Levy, Westen und Osten in der nachklassischen Entwicklung des
romischen Rechts, in "Zeitschrift der Savigny-Stiftung fiir Rechtsgeschichte", rom.
Abt., vol. XLIX, Weimar, 1929, págs. 230 e segs., Zum Wesen des westrbmischen
Vulgarrechts, in "Atti dei Congresso Internazionale di Diritto Romano", vol. II,
Pavia, 1935, págs. 29 e segs. e West Roman Vulgar Law. The Law of Property,
Philadelphia, 1951, e F. Wieacker, Vulgarismus und Klassizismus im romischen
Recht
der ausgehenden Antike, in "Studi in Onore di Pietro de Francisci", vol. III, Milano,
1956, págs. 117 e segs., e Nochmals uber Vulgarismus (Ein Diskussionsbeitrag), in
"Studi in Onore di Emilio Betti", vol. IV, Milano, 1962, págs. 509 e segs. Ver,

96
PERÍODO ROMANO

salientado que não se tratou de um aspecto típico ou exclusivo da


esfera do direito, mas de um fenómeno cultural generalizado.
Manifestações análogas se verificaram a partir de um classicismo da
arte e da língua. Por exemplo, ao latim clássico correspondia o
latim vulgar, falado pelo comum das pessoas.
As referidas transformações e adaptações jurídicas não se
apresentaram uniformes, mercê da variação das circunstâncias e
dos elementos consuetudinários intervenientes. Portanto, em vez de
um único, detectam-se diversos direitos romano-vulgares, que
denunciam diferenças espaciais e temporais, até dentro da mesma
província, mas sem se excluirem semelhanças apreciáveis. Seria essa
a realidade Hispânica.
Múltiplos factores estão na génese do direito romano vulgar.
Podem, contudo, reconduzir-se a dois parâmetros básicos: a desca-
racterização do sistema romano clássico e a persistência ou revitali-
zação de direitos locais ou regionais.
Nunca terá havido na Hispânia jurisconsultos e órgãos judi-
ciais que pudessem assegurar uma aplicação sistemática do direito
romano em toda a sua pureza. A extensão da latinidade e da cida-
dania abrira esse ordenamento a um grande número de pessoas
impreparadas para conhecer as respectivas regras e por estas inte-
gralmente se disciplinarem. Além disso, a vida peninsular colocava
a tal direito, nascido tora dela, peculiares solicitações de tutela.
Desfavorável à difusão do direito romano puro mostrou-se,
ainda, a decadência do Império, desde o século III. A debilitação do

entre nós, Paulo Merêa, no "Prefácio" dos "Estudos de Direito


Visigótico",
Coimbra, 1948, págs. VII e segs., e A tradição romana no nosso direito medieval, in
"Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo III, págs. 41 e segs., Braga
da
Cruz, Direito romano vulgar ocidental, in "Obras Esparsas", vol. I — "Estudos de
História do Direito. Direito Antigo", l.a parte, Coimbra, 1979, págs. 317 e segs.,
Raul Ventura, Manual de Direito Romano, Lisboa, 1964, págs. 265 e segs.,
Sebas-
tião Cruz, Da "Solutio", vol. II—1 —Época Post-Clássica Ocidental. "Solutio" e
"Vul-
garrecht", Coimbra, 1974, págs. 17 e segs., e Teresa Luso Soares, Em torno
do
Direito Romano Vulgar, in "Revista Jurídica" (nova série), n.° 5, Lisboa, Janeiro/
/Março, 1986, págs. 119 e segs.

97
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

poder central levou a que as instituições romanas vigentes nas pro-


víncias fossem deixadas, pouco a pouco, entregues a si próprias.
Passaram a ter o destino que a marcha dos acontecimentos históri-
cos locais lhes determinava.
A falta de cultura jurídica dos povos das províncias e a ausên-
cia de jurisconsultos especializados que pudessem atingir a subtileza
das doutrinas romanas e facilitar a respectiva aplicação prática
conduziram à sua incompreensão. Assim, as obras do direito clás-
sico deixaram de ser utilizadas directamente e viam-se substituídas
por comentários, resumos ou antalogias que delas faziam juristas
mais ou menos hábeis e preparados.
Acompanhando a transformação local do direito romano, em
face de condicionalismos diversos, produziu-se um vagaroso recru-
descimento de instituições e princípios jurídicos provinciais, maxime
de índole popular e consuetudinária. Como resultado da conjugação
dos dois aspectos convergentes e interligados, as regras jurídicas
vividas na Península, ao tempo da chegada dos povos germânicos,
posto que continuassem a possuir fundo romano, não diferiam radi-
calmente das que os invasores traziam consigo. Daí o significado e
o alcance que teve para futuro o direito romano vulgar.
Não oferece dúvida que este se distanciou muitíssimo da
estru-
tura e do apuro dogmático do direito romano clássico: designada-
mente, quanto às formulações, aos esquemas processuais de base e à
conceitualização das figuras jurídicas, sobretudo em matéria de
contratos. Satisfez, todavia, as exigências da época. A simplificação
verificada, por exemplo, na redução dos princípios e dos institutos
ao essencial, traduziu o sentido pragmático com que a ordem jurí-
dica deve adaptar-se às realidades sociais. O fenómeno do "vulga-
rismo" tornou possível conformar o direito romano às novas situa-
ções. Facilitou, deste modo, o encontro com o direito germânico e
a continuidade de expressivos elementos romanísticos nos séculos
posteriores. Inclusive, através da legislação visigótica.

98
)
- CAPÍTULO III
s
. PERÍODO GERMÂNICO OU
VISIGÓTICO
-
16. Razão de ordem

Passamos a um novo ciclo da história do direito peninsular: o


da dominação germânica. Designa-se por período germânico ou período
visigótico, em virtude do contributo de longe mais relevante devido
aos Visigodos.
Isso não significa que tenha sido o único povo germânico com
presença valiosa na Península. Os Suevos, especialmente, consegui-
ram manter a independência do seu Reino ao longo de cerca de
cento e cinquenta anos. Alguns historiadores chegam mesmo a fun-
damentar a separação do Condado Portucalense num sentimento de
autonomia que subsistira durante o domínio visigótico. Não exis-
tem, contudo, elementos que permitam a reconstituição segura, ao
menos nos seus traços gerais, do sistema jurídico dos Suevos.
Para compreendermos a história do direito hispânico neste
período, importa consagrar previamente alguma atenção, quer à
cultura, quer às instituições políticas e jurídicas, dos povos germâ-
nicos em geral, antes das grandes invasões e na época imediata.
Far-se-á uma rápida síntese.

17. Os Germanos antes das invasões

a) Assentamento primitivo. Grupos em que se subdividiram

Os Germanos eram um povo de raça indo-europeia, vindo da


Ásia e da Europa central, que se fixou, ainda em tempos pré-
-históricos, pelas margens do Mar Báltico, aproximadamente na

101
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Dinamarca, no Sul da Suécia e na região alemã do Schleswig-


-Holstein. Seguir-se-iam as correntes migratórias que deram lugar
a subdivisões étnicas e linguísticas do povo germânico. Essas deslo-
cações deveram-se a vários factores, como as lutas que travaram
entre si e a procura de recursos económicos.
A primeira grande migração produziu-se em direcção ao
Norte, sendo ocupada toda a Península da Escandinávia. Daí partiu
outra migração para a Europa Oriental. E nasceu, assim, a diferen-
ciação dos povos de raça germânica em Germanos Antigos ou Ociden-
tais, Germanos do Norte e Germanos Orientais.
Portanto, os Germanos Orientais surgiram de um desmem-
bramento dos Germanos do Norte. Tal como estes tinham resul-
tado de uma separação dos primitivos Germanos.
Pertenciam aos Germanos Antigos ou Ocidentais, que
forma-
vam o grupo mais numeroso, os Francos, os Suevos, os Bávaros, os
Alamanos, os Turíngios, os Címbrios, os Teutões, os Anglos, os
Varnos, os Saxões e os Frísios. Nos Germanos do Norte integra-
ram-se os Suecos, os Noruegueses, os Dinamarqueses e os Islandeses.
Finalmente, faziam parte dos Germanos Orientais, entre outros
grupos de menor importância, os Alanos, os Vândalos, os Bergún-
dios e os Godos; estes últimos, por sua vez, repartidos em Ostrogo-
dos e Visigodos (!). Os Lombardos, mercê das suas afinidades com
os Germanos Ocidentais e Orientais, são de difícil classificação,
mas, geralmente, atribui-se-lhes a categoria de Germanos Antigos.
Alguns dos referidos grupos étnicos estavam autonomizados
antes das invasões: é o caso dos Visigodos e dos Ostrogodos. Outros
houve, porém, sobretudo entre os Germanos Ocidentais, que só
mais tarde se individualizaram, depois de ultrapassarem as frontei-
ras do Império Romano e de aí formarem Estados independentes.

(') Sobre o não relacionamento das designações de Ostrogodos (Godos


brilhantes) e Visigodos (Godos sábios) com uma localização geográfica oriental
e
ocidental, cfr. Manuel Torres, Lecciones, cit., vol. II, pág. 68.

102
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

b) Cultura, religião e direito

As informações contidas nas obras de César (Commentarii de


Bello Gallico) e de Tácito (De origine et situ Germanorum) são quase as
últimas que possuímos a respeito dos povos germânicos. Todavia,
ao aquilatar-se do valor de tais elementos, devemos ter presente
que César escreveu no século I a.C. e Tácito em fins do século I da
nossa era. Entretanto, desde essa época até ao início das grandes
invasões e, designadamente, até à sua chegada à Península Hispâ-
nica, no século v, os Germanos progrediram muito sob o aspecto
cultural — de modo particular os que se encontravam junto das
fronteiras do Império Romano, como sucedeu com os Visigodos.
Acresce que as obras daqueles dois autores constituem relatos de
estrangeiros que nem sempre oferecem uma visão rigorosa das ins-
tituições germânicas ('). É o que acontece, por exemplo, acerca do
"mundium" ou poder paternal germânico, que os autores romanos,
numa transposição de esquemas, tendem a identificar com a "pátria
potestas" do seu direito.
Também não podemos esquecer o facto de alguns grupos étni-
cos germânicos, ainda antes das invasões, terem adoptado o Cris-
tianismo, que exerceu influência sobre a sua índole e as suas con-
cepções. Foi o caso dos Visigodos, que estavam situados na zona do
baixo Danúbio e que se converteram ao Arianismo, forma herética
da religião cristã. Em suma, já não se apresentavam, ao tempo das
invasões, como os Germanos de costumes rudes e primitivos que
César e Tácito descreveram. Haviam ultrapassado essa fase.
Apesar de tudo, mesmo os mais avançados encontravam-se
num grau de civilização e de cultura bastante inferior ao dos
Romanos. Essa diferença tornava-se notória, precisamente, na
esfera jurídica. O direito romano vulgar, que regia os habitantes
das províncias, embora sem as soluções e a técnica do sistema da

(') Cabe aqui uma consideração paralela à que se faz a respeito dos escri-
tores gregos e latinos que analisam as instituições dos primitivos povos peninsula-
res (cfr., supra, pág. 68).

103
HISTÓRIA IDO DIREITO PORTUGUÊS

época clássica, oferecia uma estrutura muito mais evoluída do que


o trazido pelos invasores (').
Salientemos que se alude, relativamente aos povos
germânicos
e às respectivas leis, a Monarquias ou Estados "bárbaros" e a
leis romanas dos "bárbaros" ou a leis dos "bárbaros". Trata-se de
designações tradicionais, porquanto os Romanos qualificavam de
bárbaros ("barbari") — como que estrangeiros no sentido actual—os
povos estranhos ao Império e à sua cultura, com os quais existia
constante hostilidade, ao menos em potência (2).

18. As invasões germânicas

Também se afigura dispensável entrar em pormenores quanto


às invasões propriamente ditas (3). Apenas nos limitamos a algumas
referências sumárias.

a) Natureza e causas determinantes

Acentua-se, antes de mais, que as invasões germânicas não


foram um processo brusco, mas uma infiltração lenta. A ocupação
do Império Romano pelos Bárbaros fez-se, muitas vezes, de uma
maneira quase insensível e prolongou-se por largo período. Conse-
quentemente, não houve uma verdadeira solução de continuidade
entre a Idade Antiga e a Idade Média. Nessa transformação, que se
iniciou nos começos do século m da nossa era e que levou centos de

(') Quanto ao direito romano vulgar, cfr., supra, págs. 95 e segs.


(2) Acerca da utilização da palavra "bárbaros", ver as considerações de
Hans Tmif.mf, l!nidad y pluralidad en la historia dei Derecho europeo, in "Revista de
Derecho Privado", tomo XL1X, Madrid, 1965, págs. 691 e seg. (trad. de Antó-
nio QuiNTANO RlPOLLÉs).
(3) Ver, por ex., o conhecido estudo de Lucien Musset, Les lnvasions:
les
vagues germaniques, colecção "Nouvelle Clio", n.° 12, Paris, 1965 (trad. para
castelhano — Las invasiones, Barcelona, 1967).

104
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

anos a consumar-se, as invasões constituíram meros episódios.


Mesmo sem elas, por certo, a Idade Média teria existido. Pode
dizer-se que este período da história começa com o descalabro de
Roma e do seu império, que então se verificou. O mundo clássico
chegava irreversivelmente ao crepúsculo (*).
As causas que contribuíram para as invasões, ou, talvez
melhor, para essa "barbarização" do Império Romano, foram de
múltipla natureza. Repetem-se, em grande parte, os factores que
muito antes determinaram as migrações germânicas para o Norte e
para o Oriente da Europa (2). Devem destacar-se:
1.° — Motivos de carácter económico. Ou seja, o acréscimo
da população germânica e a falta de meios de subsistência, para o
que concorreria o esgotamento do solo ocupado.
2.° — O carácter guerreiro e aventureiro dos povos germâni-
cos. Inclusive, as constantes lutas em que se envolviam os seus dife-
rentes grupos.
3.° — A própria decadência económica, institucional e política
do Império Romano. As invasões não teriam sido possíveis, pelo
menos à data e do modo como decorreram, se uma tal crise não se
houvesse verificado. Foi uma decadência que facilitou a instalação
dos Germanos nas várias províncias do Império. Basta lembrar que,
muitas vezes, essa instalação se fez sem luta, amigavelmente, sendo
os Germanos recebidos como aliados de Roma ou como soldados
mercenários para a defesa do Império contra a invasão de outros
ramos étnicos do povo germânico.

b) Formação dos novos Estados germânicos

Os Germanos, na época dos seus primeiros contactos com o


universo romano, não eram nómadas, posto que tivessem uma ten-
dência migratória. Crê-se que, predominantemente, se agrupavam
em povoados, assentando cada um deles numa comunidade

(') Ver F. Lor, Lajin du monde antique et le début du Moyen Age, Paris, 1951.
( ) Cfr., supra, págs. 101 e seg.

105
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

económico-agrária — a marca ("Mark"). Todavia, avançava-se para


um sistema de propriedade privada. Os componentes da mesma
família ou estirpe ("Sippe") formavam uma unidade com grande
significado social e jurídico.
A organização política aparece denominada pelos autores lati-
nos de "civitas". Umas vezes, tinha à sua frente um rei e, outras
vezes, um conselho de "príncipes" dos diversos grupos que a com-
punham. Em qualquer dos casos, os poderes supremos residiam
numa assembleia popular, integrada pelos homens livres da comu-
nidade com capacidade para o exercício das armas.
Só depois das invasões nasceram os verdadeiros Estados germâ-
nicos, regra geral monarquias electivas. Na sua maioria, ficaram
instalados dentro das antigas províncias romanas, constituindo, por
assim dizer, os germes dos actuais Estados europeus. Alguns,
porém, estabeleceram-sem em regiões nunca ocupadas pelos Roma-
nos.

c) Persistência do direito romano nos Estados germânicos

Existem discrepâncias expressivas a respeito do tema agora


versado. E, contudo, opinião generalizada que os Germanos,
durante o ciclo de migração através do Império, conservaram os
seus costumes jurídicos. Mas, por outro lado, também se sustenta
que não os tenham imposto às populações romanizadas, muito mais
numerosas, em que se enquadraram. A situação correspondia, pois,
ao princípio da personalidade ou da nacionalidade do direito, quer dizer, à
coexistência de sistemas jurídicos diversos dentro do mesmo terri-
tório, devendo cada pessoa reger-se pelo direito da sua raça. Este
princípio contrapõe-se ao da territorialidade do direito, que consiste na
aplicação de um único ordenamento a todas as pessoas que habitam
o mesmo território (!).

(') Não falta quem sustente que os Germanos não conheceram, no século
V, o princípio da personalidade do direito, o qual se terá manifestado só mais
tarde, quando os Francos procuraram estruturar a convivência dos vários povos

106
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

Até se deu o caso de alguns monarcas germânicos promove-


ram codificações que reflectiam essa dualidade. Ao lado de colectâ-
neas de preceitos germânicos ou romano-vulgares, existiram outras
formadas de "iura" devidos aos juristas clássicos e de "leges" dos
imperadores.
Admite-se, todavia, que não tenha havido um nacionalismo
jurídico em termos rigorosos ou absolutos('). Isto é, a população
germânica e a população romana viviam, cada uma delas, funda-
mentalmente, de acordo com as instituições jurídicas próprias, mui-
tas vezes com vincadas semelhanças, mas, além disso, pautar-se-
-iam, em geral, pelas normas consuetudinárias nascidas da
convivência que, entre si, foram estabelecendo. Daí que as autori-
dades romanas e germânicas, sempre que necessário, criassem dis-
posições aplicáveis a ambos os povos.
A fixação dos Germanos dentro das fronteiras do Império não
implicou, via de regra, na esfera do direito público, mudanças sig-
nificativas da organização vigente. Assim aconteceu, sobretudo,
quando a instalação teve por base um pacto com os Romanos.
Também neste plano se verificou uma dualidade ou coexistência de
organizações político-administrativas. Entretanto, a queda do
Império ocidental, que culminaria em 476, conduziu ao reforço da
autoridade dos monarcas germânicos sobre toda a população.
Deve salientar-se que a persistência do direito romano nos
Estados bárbaros não impediu que fosse avançando uma sua con-
vergência ou fusão com o direito germânico. Desde cedo, começa-
ram os Germanos a adoptar alguns institutos e conceitos jurídicos
de origem romana, desconhecidos do respectivo sistema ou mais
perfeitos — designadamente, no âmbito privatístico, por exemplo,

sob o seu poder (cfr., por todos, Manuf.l Torres, Lecciones, cit., vol. II, 2.a
ed.,
Salamanca, 1936, pág. 56, e Giui.io Vismara, Le fonti dei diritto romano nelValto
medioevo secando la piú recente storiografia (1955-Í980), in "Studia et Documenta His-
toriae et Iuris", vol. XLVII, Romae, 1981, pág. 16).
(*) Analisando o problema relativamente aos Visigodos, ver A. García-
-Gai.lo, Consideraciân crítica de los estúdios sobre la legislación y la costumbre visigodos, in
"An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XLIV, págs. 430 e segs.

107
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

sobre a propriedade imobiliária e os contratos; em contrapartida,


o direito romano vulgar ia também assimilando um ou outro prin-
cípio germânico. Operou-se como que um segundo processo de
"vulgarização", caracterizado por soluções empíricas. Sublinhemos
que se assistiu, muitas vezes, a uma evolução concorrente de ambos
os sistemas jurídicos.
Dessa fusão ou interpenetração de elementos romanos e ger-
mânicos, produzida essencialmente a nível popular ou da prática do
direito, mercê, em grande parte, de normas consuetudinárias que
não apresentavam diferenças profundas, surgiu um lastro jurídico
unificado, embora com manifestas variedades locais. Por ele se
regeram os povos da Europa ocidental até ao chamado renasci-
mento do direito romano justinianeu, produzido, sobretudo, a par-
tir do século xiiC).

19. Fontes de direito dos Estados germânicos.


Documentos de aplicação do direito

Convirá fornecer uma visão global das fontes de direito dos


Estados germânicos. A este propósito, tomam-se naturalmente em
conta os modos de formação e revelação das normas jurídicas, os
textos ou monumentos que as continham e os seus órgãos criadores.
Abordaremos, também, os documentos de aplicação do
direito. Compreendem-se neles os formulários e os diplomas refe-
rentes à celebração de actos jurídicos concretos. Uns e outros são
indispensáveis para o rigoroso conhecimento histórico do direito e
da sociedade que o pratica (2).
19.1. Fontes de direito
a) Carácter exclusivamente consuetudinário do primitivo direito germânico.
Redução desse direito a escrito após as grandes invasões
Quanto ao seu modo de formação e revelação, basta esclare-
cer que, até ao século V, o direito germânico foi apenas consuetu-

(') Ver, infra, págs. 203 e segs.


(2) As fontes normativas dos Estados germânicos, assim como os docu-

108
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

dinário; e, daí em diante, continuou também a sê-lo predominan-


temente. As compilações organizadas a partir dessa época não dei-
xam de apresentar um acentuado carácter consuetudinário: repro-
duzem, via de regra, antigos preceitos jurídicos costumeiros, a que
poucas disposições inovadoras se acrescentam.
É entre os séculos V e IX que o direito dos Estados germâni-
cos começa a integrar-se em monumentos escritos, de conteúdo,
extensão e importância muito desiguais. Este movimento codifi-
cador constitui, sem dúvida, um reflexo do contacto estabelecido
pelos Germanos com a civilização romana e cristã.
Conserva-se, do referido período, um número apreciável de
textos que contêm normas jurídicas dos Estados germânicos. Podem
classificar-se em três categorias: leis populares ou leis dos bárbaros
("leges barbarorum"), leis romanas dos bárbaros ("leges romanae bar-
barorum") e capitulares. Analisaremos brevemente cada uma de tais
modalidades de fontes (!).

b) Leis dos bárbaros ou leis populares

O nome de leis ("leges") dado a estas codificações é inexacto e


pode levar a equívocos. A terminologia encontra-se consagrada.
Observemos, contudo, que não constituem autênticas leis, no sen-
tido técnico-jurídico romano e também moderno, quer dizer,
diplomas destinados a criar preceitos novos e produto de um órgão
dotado de especial competência para o efeito.
Quando se atribui às colectâneas germânicas a denominação
de "leges", ou as equivalentes de "Ewa' e "Edicta", apenas se

mentos da prática jurídica respectiva, podem cônsultar-se, basicamente, nos


vários tomos dos "Monumenta Germaniae Histórica", editados na Alemanha,
desde 1902, em que Karl Zeumer teve um papel significativo.
(') São valiosas as considerações de Giulio Vismara, in Scritti di Storia Giu-
ridica, vol. 1 —Fonti dei diritto nei regni germanici, Milano, 1987.

109
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

pretende significar que elas representam um conjunto de normas


reduzidas a escrito. Já salientámos que essas normas são, fundamen-
talmente, preceitos jurídicos consuetudinários, com uma existência
de séculos, que se compilaram para não continuarem sujeitos às
naturais deformações da sua transmissão oral de geração em
geração.
Incluem-se, por vezes, alguns dispositivos inovadores. Nestes
se faz sentir, em maior ou menor grau, a influência do direito
romano.
Comummente, designam-se as "leges barbarorum" por leis
populares e, em paralelo, as normas jurídicas aí contidas por direito
popular ("VolksrecHt" ou "Stammesrecht"). A nomenclatura tem
certa justificação, visto que o povo, além de constituir a genuína
fonte das regras consuetudinárias nelas condensadas, teve sempre
uma participação directa ou indirecta na organização dessas
codificações.
De facto, algumas "leges barbarorum" foram redigidas com a
colaboração activa das assembleias populares — que, de resto, nas
originárias concepções germânicas, não assumiam propriamente a
função de criar direito, mas a de definir, em face de problemas
determinados, qual a solução mais adequada, segundo o costume ou
a consciência do povo. Quando essas colectâneas resultaram de ini-
ciativa régia, houve, pelo menos, a aprovação da assembleia popu-
lar. Além de que nenhuma das suas disposições podia ser alterada
sem consentimento deste órgão.
A extensão e o conteúdo das "leges barbarorum" apresenta-
vam-se bastante variáveis. Disciplinavam, principalmente, o direito
e o processo criminal, a ponto de constituírem, não raro, verdadei-
ras tabelas de crimes e das composições pecuniárias que lhes cor-
respondiam ("compositio", "Wergeld") ('). Isso se verifica, por

( ) Os autores têm dedicado particular atenção ao direito penal dos povos


germânicos. Assinalam-se, na sua linha evolutiva, três ciclos essenciais: um pri-
meiro, em que prevalecia a perda da paz ("Friedlosigkeit"); um segundo, onde
predominavam as sanções pecuniárias de natureza privada ("Busssystem"); e um

110
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

exemplo, com a arcaica Lei Sálica e a Lei Ripuária que a segue de


perto. Diversamente, as leis dos Visigodos e dos Burgúndios
referem-se, sobretudo, ao direito civil e ao processo. Quanto ao seu
aspecto formal, as leis bárbaras encontram-se com frequência ela-
boradas sem qualquer espécie de ordem ou método e redigidas no
latim corrente da época.
Uma particularidade importante convém ter presente para a
interpretação e compreensão das disposições destas leis populares.
A de que todas elas foram elaboradas depois da conversão dos res-
pectivos povos ao Cristianismo.
Estabelecem-se vários grupos de "leges barbarorum", con-
soante as afinidades que entre si manifestam ou a identidade étnica
dos povos a que dizem respeito. Os mais importantes desses grupos
são o franco, o suevo, o gótico, o saxónico e o lombardo ( ).

c) Leis romanas dos bárbaros


Pertencem à categoria das "leges romanae barbarorum" as
colectâneas de textos de direito romano ("iura" e "leges") organi-
zadas nos Estados germânicos com finalidades diversas. Também
interessa fazer aqui uma advertência, pois não estamos diante de
colectâneas apenas dirigidas à população germânica, como o nome,
de certo modo, inculca.

terceiro, correspondente à publicização do direito penal, isto é, ao acréscimo das


penas públicas, não só das penas corporais e de morte, mas também das penas
pecuniárias públicas (ver, por ex., W. E. Wilda, Das Strafrecht der Germanen,
Halle, 1842, págs. 264 e segs., e 480 e segs.). Ora, as "leges barbarorum" situam-
-se na passagem da segunda para a terceira das fases indicadas (ver R. V. HlPPEL,
Deutsches Strafrecht, vol. I, Berlin, 1925, págs. 409 e 467, e P. Del Giudice, Diritto
penale germânico rispetto alVltalia, in Enrico Pessina, "Enciclopédia dei Diritto Penale
Italiano", vol. I, Milano, 1905, pág. 448). Para uma perspectiva de conjunto do
sentido da punição penal nesta época, ver, entre nós, António Manuel
de
Almeida Costa, O Registo Criminal—História. Direito Comparado. Análise politico-
-criminal do instituto, Coimbra, 1985, págs. 14 e segs., e 50 e segs.
(') Ver as exposições desenvolvidas de Manuel Torres, Lecciones,
cit.,
vol. II, págs. 58 e segs., e Braga da Cruz, Hist. do Dir. Port., cit., págs. 136
e
segs.

111
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Na verdade, ao aludir-se a leis romanas dos bárbaros, não se pre-


tende tomar partido antecipado sobre o âmbito de aplicação de tais
codificações de direito romano. E um problema discutido em face
de cada uma das fontes deste tipo.
Existem grandes discrepâncias sobre o tema. Atendendo ao
conjunto das opiniões dos investigadores, nem todas sustentadas
com igual fundamento, pode-se conjecturar que: umas se destina-
ram tanto à população romana como à germânica; outras foram
privativas da população romana; ainda outras tiveram natureza sub-
sidiária ou didascálica. Neste último grupo parece incluir-se a "Lex
Romana Visigothorum" ou Breviário de Alarico(').

d) Capitulares

As capitulares eram normas jurídicas avulsas promulgadas pelos


reis germânicos. O seu nome deriva da divisão em capítulos.
Destacam-se as dos monarcas francos. Ao contrário das "leges bar-
barorum", constituíam autênticos diplomas legislativos.
Quanto ao conteúdo, deve salientar-se que as capitulares ver-
savam predominantemente direito público. Não raro se ocupavam,
inclusive, de assuntos eclesiásticos.

19.2. Documentos de aplicação do direito.


Os formulários e os textos de actos jurídicos

Encerra-se o estudo da presente matéria com uma referência


aos documentos de aplicação do direito que ficaram dessa época.
Bem sabemos que tais documentos, quer dizer, os formulários e os
textos que contêm actos jurídicos, possuem enorme significado para a
reconstituição do direito vivido. Completam as fontes normati-
vas ( ). Além de que, dado o carácter lacónico ou rudimentar des-

(') Ver, infra, págs. 129 e seg., e 136 e segs.


(2) Consultar Giulio Vismaka, Scritti di Storia Giundica, cit., vol. 2 — Im vita
dei diritto negli atti privati medievali, Milano, 1987.

112
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

tas, a praxe documental representa um meio valioso do conheci-


mento de certas instituições jurídicas dos Estados germânicos.
Os formulários, como o nome indica, são colectâneas de fór-
mulas destinadas à celebração de contratos e outros actos jurídicos.
Chegaram até nós, da época germânica, cerca de vinte formulários,
via de regra, sem indicação de autor. O que mais interessa à histó-
ria do direito peninsular é conhecido pela denominação de Fórmulas
Visigóticas, adiante objecto, de especial atenção(l). Dos restantes,
sobressaem as Fórmulas Andecavenses e as Fórmulas de Marculfo, que
pertenceram à monarquia franca.
Todos estes formulários patenteiam uma grande influência do
direito romano vulgar, pois os Germanos não tinham tradições
tabeliónicas. Adoptaram, por isso, o sistema documental romano.
A respeito dos documentos de actos jurídicos concretos (diplo-
mas e cartas) (2), ou seja, que efectivamente tiveram lugar, observa-
-se que existem muito poucos relativos à Península. A invasão
muçulmana provocou a sua destruição, apenas subsistindo escassos
documentos do período visigótico, cuja fidedignidade de alguns,
aliás, se discute (3). Quanto à época da Reconquista, os que se con-
servam do século VIII são também poucos. Só desde o século IX a
documentação conhecida aumenta progressivamente (4).
Não sucede o mesmo com os outros Estados bárbaros. Da
monarquia franca, designadamente, existe vasta documentação a
partir do século VI.

(') Ver, infra, págs. 144 e seg.


(2) Com frequência, designam-se por diplomas os documentos que contêm
determinados actos solenes emanados do soberano ou de outra entidade pública e
por cartas os documentos que atestam actos de conteúdo diverso, como doações,
vendas, contratos agrários. Mas também, não raro, se alude a diplomas ou a cartas,
num sentido amplo, quer dizer, abrangendo as duas referidas espécies de docu-
mentos de actos jurídicos. Então, distingue-se entre documentos régios e documentos
particulares.
(3) Ver García-Gallo, Los documentos y los jormularios, cit., in "Est. de
Hist. dei Der. Priv.", págs. 362 e segs.
(4) Ver García-Gallo, Los documentos y los Jormularios, cit., in "Est. de
Hist. dei Der. Priv.", págs. 384 e segs.

113
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Acrescente-se que os documentos foram quase sempre


conser-
vados através dos cartulários, ou livros equivalentes, maxime de ins-
tituições eclesiásticas, como os mosteiros e as sés. Neles se copia-
vam os textos avulsos que corriam o risco de perder-se.

20. Traços gerais da história política da Península desde as


invasões germânicas até à queda do Estado Visigótico

Faremos uma breve referência à história política da Península


no período que decorre entre as invasões germânicas e a chegada
dos Muçulmanos ('). Portanto, dos começos do século v aos come-
ços do século viu.
Observe-se que, dos povos germânicos que estiveram na
Península, apenas os Suevos pertenciam ao grupo dos Germanos
Ocidentais. Os restantes, a saber, os Alanos, os Vândalos e os Visi-
godos, integravam-se nos Germanos Orientais, embora se acentue a
raiz asiática dos primeiros.

a) Estabelecimento, na Península, dos Alanos, Vândalos e Suevos

Os Germanos que mais cedo invadiram a Hispânia foram


os
Alanos, os Vândalos, subdivididos em Asdingos e Silingos, e os
Suevos. Conjuntamente, no Outono de 409, vindos das Gálias, estes
bárbaros transpuseram os Pirenéus. Não seriam muito numerosos,
mas a sua chegada apresenta duas características: por um lado,
constituíam povos inteiros, com todos os seus elementos populacio-
nais, a sua estrutura, os seus órgãos políticos, e não apenas tropas
militares; por outro lado, irromperam dentro das fronteiras do
Império sem indícios de contactos anteriores com os Romanos.
Durante os dois primeiros anos, não tiveram
assentamento
determinado, percorrendo e devastando o solo peninsular numa
completa libertinagem. Os Vândalos, sobretudo, cometeram as
maiores atrocidades.

(') Consultar as indicações de Emílio SAez, La dominación germânica en


His-
pânia. Perfil histórico e bibliografia, Barcelona, 1980.

114
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

A este período sucedeu-se uma relativa acalmia. Com efeito,


em 411, chegaram a um acordo sobre a ocupação da Península,
talvez com participação de Roma: os Suevos e os Vândalos Asdin-
gos estabeleceram-se na Galécia, os Alanos na Lusitânia e na parte
ocidental da Cartaginense, enquanto os Vândalos Silingos se fixa-
ram na Bética. O domínio romano continuou apenas nas regiões
mediterrânicas da Tarraconense e da zona oriental da Cartagi-
nense, que foram, assim, as que menos sofreram as consequências
da invasão.
Algum tempo depois, em 429, os Vândalos Asdingos,
com
incorporação do que restava dos Alanos e dos Silingos — estes já
antes destroçados por um incursão dos Visigodos—, mudaram-se
para o Norte de África, onde fundaram um Reino de duração efé-
mera. No ano de 533, foi conquistado pelos generais de Justiniano,
imperador romano do Oriente.

b) O Reino Suevo (409/585). A figura de S. Martinho de Dume na história


sueva

Como consequência da passagem dos Alanos e dos Vândalos a


África, os Suevos, que se mantinham estabelecidos no Noroeste da
Península — Minho e Galiza actuais —, conseguiram estender a sua
hegemonia para Sul, através da Bética, Lusitânia e Cartaginense.
Porém, a velha província da "Gallaecia" conservava-se como cen-
tro da monarquia sueva: nas restantes zonas da Península, então
ocupadas, encontravam-se eles em manifesta minoria relativamente
aos Hispano-Romanos.
Os dados disponíveis permitem fazer uma ideia dos
aspectos
políticos e sociais da história da monarquia sueva. Torna-se mesmo
possível considerar alguns períodos na sua evolução. Um facto sig-
nificativo na vida deste Estado foi a crise de independência que
atravessou nos meados do século v. Em 456, os Visigodos, vindos da
Gália como aliados dos Romanos, lançaram uma forte ofensiva con-
tra os Suevos, de que sairam vitoriosos. Apesar disso, retiraram-se

115
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

de novo para a Gália e a independência sueva continuou ainda por


mais um século.
Só em 576 é que os Visigodos, ao tempo já radicados definiti-
vamente na Península, levaram a efeito uma campanha destinada a
alargar os seus domínios às regiões ocupadas pelos Suevos. Essa
campanha, iniciada pelo rei Leovigildo, terminou em 585, com a
completa anexação da Monarquia Sueva (').
Onde os elementos mais escasseiam é no capítulo das fontes e
instituições jurídicas. Neste âmbito, muito pouco ao certo se
conhece.
Deve sahentar-se que os Suevos, ainda antes de invadirem a
Península, já haviam aceitado o Cristianismo, sob a forma herética
ariana. Mas, algum tempo após, em 448, no início do reinado de
Requiário, converteram-se ao Catolicismo. Salienta-se que os Visi-
godos apenas realizaram esta conversão cerca de cento e cinquenta
anos depois, ou seja, em 589, no tempo de Recaredo I (2).
A identificação religiosa com a população hispano-romana
facilitava e traduzia, manifestamente, uma paralela assimilação das
suas instituições jurídicas. Todavia, nada de concreto se pode afir-
mar a respeito do encontro do direito tradicional dos Suevos com o
direito romano, inclusive sobre a adopção do princípio da persona-
lidade ou da territorialidade da ordem jurídica.
Tenha-se presente que os Suevos — estimados, em cálculo
muito optimista, à volta de cinquenta mil pessoas, mas que,
segundo outras opiniões, não passavam de trinta a trinta e cinco
mil — constituíam um grupo étnico reduzido. Em todo o caso, che-
garam à Península bastante menos romanizados do que os Visigo-
dos. E natural, portanto, que tenham trazido instituições e costumes

(') Consultar, entre outros, Rfinhart, Historia General dei Reino Hispânico de
los Suevos, Madrid, 1952.
(2) Os Suevos seguiram uma trajectória religiosa em que foram: pagãos,
católicos, arianos e de novo católicos. Os Visigodos, pelo contrário, afirmaram-
-se, sucessivamente: pagãos, arianos e católicos.

116
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

germânicos em estado de maior pureza. Afigura-se provável que


esses costumes bárbaros se difundissem logo que surgiu o ambiente
propício com a decadência da romanização. Porém, tudo são conjectu-
ras, mais ou menos verosímeis.
Importa recordar, numa fase avançada, a influência de S.
Martinho de Dume, homem dotado de vasta cultura, que veio para
a Península, como missionário, a solicitação dos reis suevos, a fim
de combater as heresias que novamente se difundiam entre o seu
povo. Tendo chegado à Galécia pelo ano de 550, tornou-se bispo de
Dume e de Braga. Foi, sem dúvida, o grande conselheiro dos
monarcas suevos católicos, encontrando-se na base da reorganiza-
ção política do seu Reino, além de ter estruturado a província ecle-
siástica de Braga. Tomou parte relevante nos dois primeiros Concí-
lios de Braga, realizados em 561 e 572, ao segundo dos quais
presidiu. As obras que deixou escritas dividem-se em ascético-
-morais, canónicas e mesmo poéticas. Interessa aqui salientar, espe-
cialmente, a produção relativa ao direito canónico (').

c) Ocupação da Península pelos Visigodos

Entre os povos germânicos que invadiram a Península,


apresenta-se o dos Visigodos como aquele que maiores contactos
havia tido com os Romanos e que se iniciaram já antes do seu

( ) Foi autor dos Capitula Martini, uma colecção de 84 cânones de concílios


orientais, italianos, africanos e gauleses, que traduziu e completou, em 563. Ver
G. Braga da Cruz, A obra de S. Martinho de Dume e a legislação visigótica, in
"Obras
Esparsas", vol. 1, cit., 2.a parte, págs. 1 e segs., Luís Ribeiro Soares, A
Linhagem
Cultural de S. Martinho de Dume, Lisboa, 1963, Avelino i>e Jesus da Costa,
Marti-
nho de Dume ou Bracarense, in "Dic. de Hist. de Port.", cit., vol. II, Lisboa, 1965,
págs. 957 e segs., c G. Martínez Díez, La colección canónica de la iglesia sueva
los
capitula martini, m "Bracara Augusta", cit., vol. XXI, págs. 224 e segs. Sobre S.
Martinho de Dume, consultar, ainda, os estudos publicados nos "Anais da Aca-
demia Portuguesa da História", II série, vol. 28, Lisboa, 1982.

117
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

estabelecimento na Gália ('). Esses contactos foram umas vezes


pacíficos, até baseados em acordos de colaboração militar, e outras
vezes violentos.
Data de 376 a primeira penetração dos Visigodos no Império
Romano. Acossados pelos Hunos, atravessaram o Danúbio e ocu-
param a Trácia. Fizeram-no como aliados dos Romanos, contra os
quais logo se revoltaram, para tornarem a aliar-se e a sublevar-se
em ocasiões sucessivas.
A partir de 390, sob o comando de Alarico I (390/410), que
tinham eleito como chefe supremo, os Visigodos rompem o tratado
com os Romanos ç efectuam incursões pelas zonas orientais do
Império e através da Itália, chegando a ocupar Roma no ano de
410. Durante o tempo de Alarico I e de Ataúlfo (410/415), o rei
que lhe sucedeu, os Visigodos continuam a aparecer-nos, como
anteriormente. Ora se aliavam aos Romanos, ora se revoltavam
contra a supremacia destes.

I — Instalação na Gália

Tal situação só ficou definida quando os Visigodos se fixaram


na Gália, mercê do acordo de hospitalidade militar firmado, em
418, entre delegados do seu rei Valia (415/418) e o general Cons-
tâncio, representante de Honório, imperador do Ocidente. As rega-
lias nesse tratado concedidas pelos Romanos aos Visigodos consti-

(') Quanto à evolução do Reino Visigótico, ver, por ex., a síntese minu-
ciosa de Manuel Torres, Lecciones, cit., vol. II, págs. 68 e segs. Para
maiores
desenvolvimentos, consultar, entre outros, Rafael Gibert, El reino visigodo y el
particularismo espáhol, in "Cuadernos dei Instituto Jurídico Espanol", n.° 5
— "Estúdios Visigóticos", vol. I, Roma/Madrid, 1956, págs. 15 e segs., Ramon
de Abadal y de Vinyals, Del Reino de Tolosa ai Reino de Toledo, Madrid, 1960,
E.
A. Thompson, The Goths in Spain, Oxford, 1969 (trad. para castelhano — Los
Godos en Espdha, Madrid, 1971), H. Wolfram, Geschichte der Goten, Munchen,
1979, e Ana Maria Jimenez Garnica, Orígenes y desarrollo dei Reno Visigodo
de
Tolosa (a. 418-507), Valladolid, 1983.

118
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

tuem uma espécie de recompensa pelo facto de terem lutado na


Península, como seus aliados, contra os invasores Alanos e Vândalos
Silingos(1). Aí, no Sul da Gália, encontrou a sua sede, ao longo de
cerca de cinquenta anos, o Estado Visigótico, com capital em
Toulouse.

II — Incursões no território peninsular durante o século V

Nesse espaço de meio século, os Visigodos realizaram frequen-


tes incursões militares nos territórios da Península Ibérica. Estas
não tiveram, porém, um objectivo imediato de ocupação. Os Visi-
godos entravam na Península, saqueavam, devastavam e retiravam-
-se logo em seguida, sem efectuarem ocupações territoriais.

III — Estabelecimento definitivo na Península

Foi no reinado de Eurico (466/484) que os Visigodos iniciaram


a ocupação, em larga escala, do território peninsular. Aproveitou-
-se a desordem causada pela queda do Império Romano do
Ocidente.
Alarico II (484/507), filho e sucessor de Eurico, estendeu o
domínio dos Visigodos a toda a Hispânia, com excepção da parte
abrangida pelo Reino Suevo, e transferiu a capital para Toledo,
onde se conservou até à queda da monarquia visigótica. Essa defini-
tiva transformação do Estado visigodo-gálico em visigodo-
-hispânico relaciona-se com a derrota que os Francos infligiram aos
Visigodos, em 507, na batalha de Vougladum (Vouglé)(2). Os Visi-

(') Ver, supra, págs. 114 e seg.


(2) Assinalam alguns autores que este facto histórico simboliza a passa-
gem, no século vi, aos Estados germânicos da segunda geração, nomeadamente o
dos Francos e os dos Lombardos, por contraposição a uma primeira geração de
Estados romano-germânicos, como o dos Visigodos, o dos Ostrogodos e o dos
Burgúndios (ver Giulio Vismara, Lejonti dei diritto romano neWalto medioevo
secondo
la piú recente storiografia, cit., in "Stud. et Doe. Hist. et Iur.", vol. XLVII, págs. 20
e24.

119
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

godos perderam a Gália, salvo a pequena região da Septimânia e da


Provença, pelo que o seu reino logo passou a confinar-se, pratica-
mente, aos territórios hispânicos.

IV — O Estado Visigótico na Península

Em 576, como referimos ('), o rei Leovigildo (571/586) lançou


uma campanha contra os Suevos, que terminaria, no ano de 585,
com a anexação completa dos seus territórios. A Península fica,
então, a ser visigótica, apenas exceptuando a zona Sul, que conti-
nua a constituir uma espécie de província do Império Bizantino,
ocupada em meados do século VI pelas tropas de Justiniano, impe-
rador romano do Oriente ( ).
Nos começos do século VII, os Visigodos levantam-se, a seu
turno, contra os Bizantinos, que, depois de terem sido impelidos
para a actual região do Algarve, acabaram por sair definitivamente
da Península, em 622, com Suintila (621/631), o primeiro rei visigó-
tico de toda a Hispânia. A esta unificação definitiva da Península,
segue-se cerca de um século de domínio dos Visigodos, que só a
invasão muçulmana, em 711, interrompeu.

21. Condições em que os Visigodos se instalaram na Península

Oferece manifesto interesse para a história do direito o


aspecto político e social do estabelecimento dos Germanos na
Península. É, todavia, nebuloso o problema da eventual partilha de

(') Cfr., supra, pág. 116.


(2) A presença bizantina na Hispânia, que se seguiu à conquista da Itália e
do Norte de Átrica, explica-se por razões expansionistas. Pretendia-se restaurar
o antigo Império Romano do Ocidente. Essa presença, que durou cerca de
setenta anos, origina um problema de grande importância para a história jurídica:
o de saber se ocasionou algum conhecimento e diíusão do direito romano justi-
nianeu. Não se demonstra que tivesse relevo significativo a tal respeito (ver, infra,
págs. 203 e segs.).

120
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

terras entre a população hispano-romana c os Alanos, Vândalos e


Suevos. Não se pode definir, em termos seguros, o tipo de assenta-
mento económico-agrário desses povos ( ).
Também, a respeito dos Visigodos, não existem indicações
directas relativas à Península. Contudo, pensa-se que o sistema foi
idêntico ao da Gália, ou melhor, que teve a base jurídica no mesmo
acordo de hospitalidade militar.

a) Repartição de terras entre Visigodos e Hispano-Romanos

Já se indicou (") que o rei Valia e o imperador Honório cele-


braram, em 418, um "toedus" que disciplinava a instalação dos
Visigodos na Gália, maxime na sua província atlântica da Aquitânia
("Aquitânia II"), embora estes acabassem por expandir-se até à
costa mediterrânica, ocupando a Narbonense. O acordo constituía
uma retribuição dos Romanos pela ajuda na luta contra os Germa-
nos fixados na Hispânia e era também uma forma de os Visigodos
desistirem da ocupação dessa parte do Império.
Subsistem dúvidas consideráveis sobre os termos exactos do
referido acordo, que os textos legais, as tontes narrativas e o
recurso comparativo a "foedera" paralelos, como o romano-
-burgúndio, não conseguem dissipar inteiramente. Afigura-se que
algumas novas conjecturas deixam de pé as posições tradicionais (3).

(') Ver, em todo o caso, a exposição de Manuki. Torres, Lecciones, cit.,


vol. II, págs. 77 e segs.
(2) Cfr., supra, págs. 118 e seg.
(3) Chama-se a atenção para os estudos de A. García-Gallo, Notas sobre el
reparto de tierras entre visigodos y romanos, in "Hispânia", cit., tomo I, n.° IV, págs. 40
e segs., W. GoFFART, Barbariam and Romans. A.D. 418-584: the Techniques oj Acco-
modation, Princeton, 1980, e Luís A. Garcia Moreno, Hl término "sors" y relaciona-
dos en el "Liber Iudicum". De nuevo el problema de la división de las tierras entre godos y
provinciales, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIII, págs. 138 e segs., com
amplas indicações bibliográficas. E pouco esclarecedora a nótula de Alexandre
HERCULANO, Sortes Gothícae, in "Opúsculos", tomo V — "Controvérsias e Estudos
Históricos", tomo II, 3.a ed., Lisboa, 1907, págs. 289 e segs.

121
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Ao concederem terras aos Visigodos, os Romanos fizeram-no


de maneira que estes não ficassem em zonas isoladas, antes integra-
dos na população galo-romana. Mas qual a amplitude do objecto da
partilha, em que proporções, quando e como é que ela se verificou?
Os prédios rústicos eram divididos em três partes: duas para os
Visigodos ("sortes gothicae") e uma para os provinciais romanos
("tertia romanorum")^). Parece verosímil que só fossem abrangi-
dos os latifúndios e, quando muito, as propriedades médias — que
compreendiam terras aráveis, pastagens e floresta—, ficando de
fora as pequenas explorações agrícolas. Continuariam a existir os
baldios e as terras comuns ("compascua"), de que beneficiavam
todos os proprietários da localidade.
Também seriam objecto de divisão as alfaias agrícolas e os
escravos, embora verificando-se, talvez, uma divisão igualitária.
Presume-se, ainda, que houvesse partilha das casas de habitação.
Todavia, entramos em deduções a partir dos princípios gerais da
hospitalidade.
Sustenta-se que a execução do acordo foi iniciada no tempo
de Valia, que morreu no próprio ano da sua celebração, e se com-
pletou rapidamente. Tem-se como certo que houve, desde logo,
uma divisão física das terras e não apenas uma entrega aos Visigo-
dos de rendas fiscais correspondentes à parte que lhes competia.
Eis, em síntese, as conclusões que da Gália se transpõem para
a Hispânia. Contudo, admite-se que, mais tarde, ao lado desse sis-
tema, os Visigodos ocupassem também terras peninsulares na sua
totalidade, já sem a observância de qualquer divisão.

(') Na linha de F. Lot, admite García-Gallo que, na repartição dos lati-


fúndios, os Visigodos recebessem um terço das terras exploradas directamente
pelo proprietário ("terra dominicata") e dois terços das terras cultivadas por
colonos e arrendatários ("terra indominicata"), resultando, pois, uma repartição
em partes iguais; os dois terços dos Visigodos na "terra indominicata" seriam as
chamadas "sortes gothicae" e o terço que ficava aos colonos do latifundiário a
"tertia romanorum" (ver García-Gallo, Notas sobre el reparto de tierras, cit.,
in
"Hispânia", tomo I, n.° IV, págs. 52 e segs.). Será uma conjectura sugestiva, mas
que não se comprova suficientemente.

122
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

Tiram-se argumentos da toponímia espanhola e portuguesa(l).


Algumas povoações, que ainda hoje se chamam, por exemplo, Con-
sortes, Sortelhas, Suertes, Tercias, Tersos, Tertia, reflectem o sis-
tema de repartição de terras. Enquanto outras, que conservam
nomes como Godinhos, Godos, La Goda, Romainho, Romano,
Romão, denunciam que nelas viveram apenas, ou predominante-
mente, pessoas de uma das raças. Argumentos que, no entanto, não
se podem considerar definitivos (2).
Do mesmo modo, procuram-se vestígios da repartição de ter-
ras nos toponónimos derivados de explorações agrícolas que tive-
ram a denominação do seu proprietário romano ou visigodo: os
casos, respectivamente, de Villarcayo (de um Arcádio) e Villavin-
cencio (de um Vicente), ou de Villafáflla (de um Fávila) e Villa-
fruela (de um Fruela). Este argumento mostra-se menos convin-
cente do que o anterior. E natural que tais nomes resultem tão-só
do onomástico dos fundadores, nada demonstrando sobre a raça dos
habitantes. Nem se exclui que muitas dessas vilas já existissem na
época romana e que outras, cujo topónimo tem raiz gótica, proce-
dam ^la Reconquista (3).

b) Diferenças étnicas e culturais na Península depois da ocupação visigótica.


Seu desaparecimento lento
A instalação dos Visigodos na Península levou a que passassem
a existir nela três núcleos populacionais com características diver-

(') Ver, sobretudo, Menéndez Pidal, Orígenes dei Espaíbl, 5.a ed.,
Madrid,
1964. Entre nós, por ex., consultar Josf.ph M. Pif.l, Os nomes germânicos na
toponí-
mia portuguesa, I e II, Coimbra, 1937 e 1945, e O património visigodo na língua portu-
guesa, in "Congresso do Mundo Português", vol. I — "Memórias e comunica-
ções apresentadas ao Congresso de Pre e Proto-História (I Congresso)", Lisboa,
1940, págs. 563 e segs.
(2) Por ex., no sentido de que os termos "sors" e "consors" nada têm a
ver com os problemas suscitados pelo referido assentamento dos Visigodos se
pronuncia Luís A. García Moreno, El término "sors" y relacionados en el "Liber
ludicum", cit., in "An. de Hist. dei Der. Esp.", tomo LIII, págs. 137 e segs.
(3) Cfr. García-Gali.o, Notas sobre el reparto de tierras, cit., in "Hispânia",
tomo I, n.° IV, pág. 43, nota 11.

123
HISTÓRIA OO DIREITO PORTUGUÊS

sas: Hispano-Romanos, Suevos e Visigodos. O mais reduzido era o


dos Suevos (!). Também os Visigodos se calculam, apenas, entre os
dois e os cinco por cento da população total, que andaria talvez nos
dez milhões. Tudo estimativas, evidentemente, com larga margem
de incerteza, mas que sempre proporcionam alguma ideia dos valo-
res relativos.
Durante muito tempo, estes povos viveram, lado a lado, sem
se mesclarem. A separação apresentava-se mais marcada entre os
Hispanos-Romanos e os Visigodos. Para isso contribuíram, espe-
cialmente, as diferenças religiosas — os primeiros eram católicos e
os segundos arianos —, assim como a proibição de casamentos mis-
tos, quer dizer, de pessoas de uma das raças com as da outra, na
medida em que esta tenha recebido aplicação efectiva. As circuns-
tâncias se encarregariam, porém, da aproximação e miscigenação
das duas populações.
Apressou o fenómeno a conversão solene de Recaredo ao
Catolicismo, perante o III Concílio de Toledo, no ano de 589,
seguida de conversões em massa ( ). A par deste aspecto religioso,
outros vectores sociais e jurídicos actuaram no mesmo sentido. Foi
relevante o facto de os Visigodos, desde cedo, adoptarem a língua
latina. Saliente-se, também, a derrogação, atribuída a Leovigildo
(571/586), do preceito que vedava os casamentos mistos (3).
Tal proibição possuiria um alcance mais teórico do que prá-
tico. Tudo leva a pensar que não foi observada ou que, pelo menos,

(') Cfr., supra, pág. 116.


(") Sobre o tema, verJosÉ Orlandis, El Cristianismo en Ia Espãhi visigoda, in
"Estúdios Visigóticos", cit., vol. I, págs. 1 e segs.
() "Lex Visigothorum", III, 1,1 ("Antiqua"). A proibição dos matrimó-
nios mistos constava de um preceito do Código Teodosiano (3,14,1) que transitou
para o Breviário de Alarico (ver, infra, págs. 129 e seg.). Quanto ao problema,
consultar Paulo Merêa, Sobre os casamentos mistos na legislação visigótica, in "Est. de
Dir. Vis.", cit., págs. 231 e segs., e Álvaro D'Ors, La territorialidad dei derecho de los
visigodos, in "Estúdios Visigóticos", cit., vol. I, págs. 102 e segs.

124
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

conheceu inúmeras e crescentes violações. Ora, o cuidado posto na


revogação de um preceito ao tempo sem vigência concreta, como o
próprio legislador reconhece, constitui um testemunho manifesto da
unidade social de todos os súbditos do Estado Visigótico, indepen-
dentemente da raça. Em consonância, aliás, com a orientação dos
monarcas visigodos.
Pode concluir-se que, pelos fms do século VI e começos do
século Vil, se produziu a fusão generalizada das populações da
Península. O que não significa que tenham desaparecido completa-
mente as diferenças. Ainda no ocaso da Monarquia Visigótica havia
famílias que reconheciam os seus avoengos romanos ou germânicos.
Mas isto verificou-se quase só com as classes aristocráticas. Ao
nível do grosso da população, em meados do século VII, a conver-
gência era absoluta.
Resulta do que ficou exposto que, através do longo período de
ocupação visigótica, se combinaram na Península dois elementos
culturais: o romano e o germânico. Ponto importante é o de saber
qual deles teve a primazia na formação do ambiente cultural e
jurídico em que a Península se encontrava, quando a invasão
muçulmana abiu um novo ciclo da sua história. De qualquer modo,
não parece lícito exagerar o papel do elemento germânico, como
fazem vários autores. As invasões germânicas não representaram a
substituição de uma civilização por outra muito diferente, mas o
simples enxerto de um elemento novo na romanidade "vulgari-
zada". Muitas instituições culturais dos Romanos foram assimiladas
pelos povos invasores e adaptadas à sua feição específica, sem per-
derem, contudo, as características fundamentais, que a procedência
lhes conferia. Além disso, a cultura romana teve do seu lado, ainda
nesta época, representantes e defensores de extraordinário prestí-
gio, como, por exemplo, S. Martinho de Dume ( ) e S. Isidoro de
Sevilha ( ).

(') Ver, supra, pág. 117.


(2) Ver, infra, págs. 141 e segs.

125
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Considera-se, em síntese, que o elemento romano não foi,


nem de longe, ofuscado pelo elemento germânico, na contribuição
que prestou para a formação do novo quadro cultural da Península.
Voltaremos ao tema a respeito dos aspectos jurídicos.

22. Fontes de direito do período visigótico

Não cabe nos limites da presente exposição uma análise


desenvolvida da legislação visigótica e das instituições jurídicas que
a mesma patenteia. Recorde-se, em todo o caso, que as ideias tradi-
cionais sobre o direito visigótico têm sido modernamente objecto
de profunda revisão crítica, com realce para os estudos de Ernst
Levy, Paulo Merêa, Garda-Gallo e Álvaro d'Ors.
Encontra-se superada a concepção que encarava as fontes visi-
góticas de um puro ângulo germânico. Pelo contrário, entende-
-se actualmente que essas fontes constituem um inestimável reposi-
tório do chamado direito romano vulgar do Ocidente. Tal
perspectiva faz surgir questões novas e ressuscita questões antigas
que pareciam ter recebido um juízo definitivo.
Uma longa e sucessiva investigação vem sujeitando a exegese
aturada os textos jurídicos e os testemunhos literários e narrativos,
respeitantes ao direito visigótico ('). Apesar disso, subsistem pro-
blemas difíceis, tanto relativamente à evolução geral e às fontes
desse direito, como sobre as suas instituições. Aos pontos de vista
que eram aceitos, juntaram-se outros que, mais do que carrearem
certezas, têm posto em dúvida as teses anteriores.

(') Ver a extensa resenha analítica de García-Gallo, Consideración critica de


los estúdios sobre la legislación y la costumbre visigodas, cit., in "An. de Hist. dei Der.
Esp.", tomo XLIV, págs. 343 e segs. No mesmo sentido, ver Giulio Vismara, Le
fonti dei diritto romano nelValto medioevo secondo lapiú recente storiografia (1955-1980), cit.,
in "Stud et Doe. Hist. et Iur.", vol. XLVII, págs. 1 e segs.

126
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

Abstraindo das controvérsias levantadas no âmbito das insti-


tuições, podemos seriar os problemas seguintes: o do elenco das
fontes normativas visigóticas; o do carácter pessoal ou territorial
destas; o da persistência de um antigo direito consuetudinário; e o
das fontes jurídico-canónicas. Daremos conta de cada um deles.

22.1. Referência sumária às principais fontes de direito do período


visigótico

Apenas se conhecem, do Reino Visigodo, três textos legais


completos é com elementos seguros sobre a autoria e a data: o
Breviário de Alarico (506), a Lei de Teudis (546) e o Código Visi-
gótico, nas suas versões de Recesvindo (654) e de Ervígio (681) ( ).
E muito pouco.
As restantes fontes normativas encontram-se incompletas e
não contêm indicações precisas que autorizem a sua atribuição
líquida aos Visigodos e, às vezes, até uma definição inequívoca da
respectiva natureza. Porém, a crítica histórica não as coloca no
mesmo plano, pois a respeito de algumas delas existem menores
dúvidas. Assim sucede com o Código de Eurico e o Código Revisto
de Leovigildo.
Deixaremos de parte os textos jurídicos sobre que se acumu-
lam conjecturas bastante incertas (2). Estes apresentam, aliás, algu-

, ( ) Cír. García-Gallo, Consideración crítica de los estúdios, cit., in "An.


de
Hist. dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 357 e segs.
(2) Assim: os Fragmentos Gaudenzianos ou de Holkham — constituem-nos
catorze capítulos, cujo carácter é problemático, respeitantes a questões de direito
privado e de processo, que integravam uma compilação jurídica relativamente à
qual nada se sabe; mesmo relacionando-os com a Península, mostram-se de
importância reduzida para a sua história, visto que deviam ter conseguido nela
uma vigência mais teórica do que prática; foram descobertos por Gaudenzi num
códice da Biblioteca de Holkham (Inglaterra) (ver, por todos, Paulo Meréa,
Fragmenta Gaudenziana (para a solução de um enigma), in "Est. de Dir. Vis.", cit.,

127
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mas conexões entre si. Por outro lado, pode dizer-se que não se
relacionam com a evolução legislativa unicamente baseada nas fon-
tes que, sem quaisquer dúvidas ou com as maiores probabilidades,
se consideram visigóticas^).

I — Código de Eurico

Aceita-se, em geral, a existência de leis promulgadas pelos


monarcas visigodos logo a seguir à sua instalação na Gália. Essas
leis — as chamadas Leis Teodoricianas, porque devidas a Teodorico I

págs. 121 e segs., e Edictum Theodorici e fragmenta gaudenziana (A propósito de um


recente trabalho do Prol Vismara), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXII, págs.
315 e segs., GarcíA-Gallo, Consideración crítica de los estúdios, cit., in "An. de Hist.
dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 382 e segs., e Giui.io Vismara, Le jonti dei
diritto romano nell'alto medioevo, cit., in "Stud. et Doe. Hist. et Iur.", vol. XLVU,
págs. 13 e seg.j. A "Lectio legum"—trata-se de seis capítulos de conteúdo jurídico
secai,ir incluídos numa colectânea que, sob essa epígrafe, reúne textos muito
variados, em regra de direito canónico, que se encontra na Biblioteca Vallice-
liana de Roma (ver, por todos, García-Gali.o, Consideración crítica de los estúdios,
cit., in "An. de Hist. dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 388 e segs.). E o "Edic-
tum Theodorici regis"—um texto jurídico muito mais importante do que os dois já
referidos, com data posterior a 458, integrado por um prólogo, cento e cinquenta
e cinco capítulos e um epílogo; mercê do seu conteúdo, pertence às "leges roma-
nae barbarorum"; têm-lhe sido atribuídas diversas origens, prevalecendo as teses
que sustentam a sua proveniência ostrogoda ou visigoda, mas não existindo, de
qualquer modo, dados que demonstrem que haja sido conhecido ou utilizado na
Hispânia (ver, por todos, Paulo Mi-réa, Edictum Theodorici e jragmenta gaudenziana,
cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXII, págs. 315 e segs., Giulio Vismara, El
"Edictum Theodorici,y, in "Estúdios Visigóticos", cit., vol. I, págs. 49 e segs., e Le
jonti dei diritto romano nell'alto medioevo, cit., in "Stud. et. Doe. Hist. et Iur.", vol.
XLVII, págs. 8 e segs., e García-Gallo, Consideración crítica de los estúdios, cit., in
"An. de Hist. dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 390 e segs.).
(') As fontes de direito visigótico podem ser consultadas na "Colecção de
Textos de Direito Peninsular e Português"—"Textos de Direito Visigótico",
vols. I e II, Coimbra, 1923 e 1920, respectivamente. Esta colectânea, organizada
por Paulo Merêa, baseia-se nos "Monumenta Germaniae Histórica", cit., cuja
edição, como se observou, foi dirigida pelo famoso germanista K. Zeumer.

128
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

(419/451) e a Teodorico II (453/466) — ocupam-se, além de outros


aspectos de direito privado, sobretudo, da repartição de terras con-
sequente ao acordo de hospitalidade militar ocorrido entre Visigo-
dos e Romanos.
Todavia, a primeira colectânea importante de direito visigó-
tico foi o Código Euriciano, promulgado pelo rei Eurico, à volta de
475, talvez mesmo em 476. Trata-se de uma fonte tradicionalmente
enquadrada na categoria já nossa conhecida das leis dos bárbaros
("leges barbarorum")^). Mas é de todas elas a que mais larga-
mente se ocupa do direito privado. Além disso, a reconstituição que
a moderna crítica histórica fez do Código de Eurico mostra a sua
larga receptividade ao direito romano vulgar. O que não causa
estranheza, dado o grau de civilização adquirido pelos Visigodos e
a possível intervenção nos trabalhos legislativos de pessoas conhe-
cedoras do direito romano ( ).

II — Breviário de Alarico

Como referimos ( ), existe o texto completo do Breviário Alari-


ciano ou Lei Romana dos Visigodos ("Lex Romana Visigothorum"),
que Alarico II promulgou em 506. Integra-se, pois, na categoria das
leis romanas dos bárbaros ("leges romanae barbarorum")( ).

(') Cfr. supra, págs. 109 e segs.


(") Quanto ao conteúdo desta importante fonte e aos problemas que sobre
ela se levantam, consultar Ai.varo D'Ors, El Código de Eurico — Edicción, Palinge-
nesia, índices, in "Cuadernos dei Instituto Jurídico Espanol", n.° 12 —"Estúdios
Visigóticos", cit., vol. II, Roma-Madrid, 1960. Sobre o específico problema da
data, ver Álvaro D'Ors, ibid., pág. 4, La territorialídad dei derecho de los visigodos,
cit., in "Estúdios Visigóticos", vol., I, pág. 112, nota 71, e CE. -277 y La fecha dei
CE, in "An. da Hist. dei Der. Esp.", cit., tomos XXVII-XXVIII, págs. 1164 e
seg., e Juan García Gonzalez, Consideraciones sobre la fecha dei Código de Eurico,
in
"An. de Hist. dei Der.'Esp.", cit., tomo XXVI, págs. 701 e segs.
(3) Cfr., supra, pág. 127.
(4) Cfr., supra, págs. 111 e seg.

129
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Consiste numa selecção de fontes romanas, quer dizer, de


"iura" e de "leges". Estas últimas encontram-se representadas pelo
Código Teodosiano (438) e por novelas pós-teodosianas. A parte de
"iura" é constituída, sobretudo, por duas obras de carácter elemen-
tar: o Epítome de Gaio — resumo das Instituições deste mesmo
jurista — e as Sentenças atribuídas a Paulo, outro notável juriscon-
sulto da época clássica. Há, ainda, disposições dos Códigos Grego-
riano e Hermogeniano, incluídas nos "iura" por serem constituições
imperiais mais antigas, e um fragmento de Papiniano, talvez porque
gozava de um prestígio tão grande que um texto seu não pudesse
faltar numa colectânea desta natureza.
Tem importância a interpretação ("interpretado") do Breviário.
Na verdade, sempre que se entendeu necessário, os excertos dos
"iura" e das "leges" foram acompanhados de interpretações
("interpretationes"). Constituem pequenos comentários destinados
a esclarecer o conteúdo dos fragmentos transcritos, mas que, algu-
mas vezes, chegam a modificar completamente o preceito
interpretado.

III — Código Revisto de Leovigildo

Posteriormente ao Breviário de Alarico, conhece-se o


diploma promulgado pelo rei Teudis, em 546, a chamada Lei de
Teudis, que se destinou a reprimir abusos cometidos na cobrança das
custas judiciais. Todavia, o Código Revisto ("Codex Revisus") de
Leovigildo representa a grande colectânea que se segue ao
Breviário.
Parece de admitir, com efeito, que o Código de Eurico foi
refundido e actualizado, entre os anos de 572 e 586, ou, mais con-
cretamente, cerca de 580(1), por iniciativa do rei Leovigildo.

( ) Cfr. Álvaro D'Ors, La territorialidad dei derecho de los visigodos, in "Estú-


dios Visigóticos", cit., vol. I, pág. 122.

130
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

Desconhece-se o texto original deste Código Revisto. Só podemos


reconstituí-lo através dos preceitos que dele passaram ao Código
Visigótico de 654, sob a epígrafe de leis antigas ("antiquae").

IV — Código Visigótico

A legislação avulsa dos monarcas visigodos, desde o reinado


de Leovigildo até ao de Recesvindo, não é abundante, mas toda ela
se apresenta, inequivocamente, de aplicação indistinta ao conjunto
da população. Chindasvindo (642/653) incrementou essa actividade
legislativa, promulgando, pelo menos, oitenta e nove leis(1), com
que introduziu reformas relevantes nos mais variados sectores da
vida jurídica: orgânica do Estado, sistema judiciário, processo,
direito privado e direito penal.
Procurava Chindasvindo abrir caminho para uma projectada
obra codificadora que substituísse o Código de Leovigildo. Con-
tudo, esse objectivo só foi Concretizado — também.após uma legis-
lação abundante—-no tempo de seu filho e sucessor Recesvindo
(649/672).
Assim surgiu o Código Visigótico por antonomásia, também
designado "Lex Visigothorum Recesvindiana", "Liber Iudicio-
rum", "Liber Iudicum" e "Fórum Iudicum"(2). A sua promulgação
ocorreu em 654. Deve observar-se que, depois desta primeira ver-
são, a chamada forma recesvindiana, o Código Visigótico teve outras
duas: a forma ervigiana, ainda com carácter oficial, de 681, devida ao
rei Ervígio; e a. forma vulgata, de iniciativa particular.
Na verdade, dá-se o nome de forma vulgata do Código Visi-
gótico a um conjunto de manuscritos de épocas muito diversas,

(') Tantas são as que no Código Visigótico contêm o nome deste


monarca.
(2) Existe uma versão bilingue sob a epígrafe Fuero Juzgo en Latin y Cas-
tellano, Madrid, 1815 (ed. de "La Real Academia Esparbla").

131
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

que vão desde a última fase da dominação visigótica até à Recon-


quista. Trata-se de revisões não oficiais, mas de origem privada,
que tomam por base a forma ervigiana, introduzindo-lhe modifica-
ções e acrescentos diversos (!).
Quanto à natureza intrínseca das suas disposições, o Código
Visigótico pode considerar-se um produto do cruzamento de três
correntes jurídicas: romana, germânica e canónica. A que maior
influência exerceu foi a romana. E não admira que assim tenha
sucedido, pois a romanização oferecida pelo Código de Eurico foi
incrementada no Código de Leovigildo e na legislação que poste-
riormente se publicou.
Discute-se sobre se os juristas e legisladores visigodos conhe-
ceram e utilizaram as fontes justinianeias. Ainda que se responda de
modo afirmativo, nunca se poderá encontrar no Código Visigótico
mais do que uma influência muito diminuta do direito justinianeu.
O direito romano que o influenciou foi o antejustinianeu, quer
dizer, o contido nas "leges" e nos "iura" anteriores às colectâneas
do Corpus Iuris Civilis.
O Código Visigótico está sistematizado em doze livros — tal
como o Código de Justiniano—, que se subdividem em títulos,
integrados por leis. Aproximadamente, três quintas partes destas
leis são encimadas pelas palavras "antiqua" ou "antiqua emen-
data"(2). As restantes, em vez disso, apresentam-se com o nome do
monarca que as estabeleceu ou, inclusive, tão-só alterou. Não é
pacífico que todas as leis "antigas" ou "antigas emendadas" proce-
dam do Código de Leovigildo, embora algumas delas tenham uma
origem anterior.

(') Sobre a existência, em Lisboa, de um códice da forma vulgata, cuja


letra parece ser dos séculos XII ou xm, veja-se Paulo Merêa, Um códice da
"Lex
Visigothorum" existente em Lisboa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. VI, págs. 789
e seg., e vol. VII, págs. 300 e.seg.
(') Observe-se que algumas leis, embora levem apenas a indicação de
"antiquae", mostram alterações da sua versão originária.

132
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

22.2. O problema da personalidade ou territorialidade da legislação


visigótica

Conforme observámos(l), em certos Estados germânicos


vigorou o princípio da personalidade ou da nacionalidade do direito, o
que significa que havia um ordenamento jurídico para a população
germânica e outro para a população romana. Diverso é o princípio
da territorialidade do direito, segundo o qual se aplica em todo o Estado
um único ordenamento jurídico. Ora, que sistema se adoptou entre
os Visigodos?
Deve esclarecer-se, liminarmente, que o problema se põe
apenas em relação a uma primeira fase. Mesmo os defensores da
tese da personalidade estão de acordo em que no Código de Leovi-
gildo existiu já uma certa tendência para a aplicação territorial. Ao
menos alguns dos seus preceitos, por exemplo, o que autorizava os
casamentos mistos entre Visigodos e Hispano ou Galo-Romanos,
eram de aplicação a toda a população. E concorda-se que a legisla-
ção avulsa posterior a Leovigildo, consoante acima salientámos (2),
se apresenta de carácter territorial, assim como não surgem dúvidas
a tal respeito em relação ao Código Visigótico de Recesvindo.
O problema levanta-se, portanto, a propósito do período ante-
rior. Analisemos as teses em confronto, embora não se entre nas
minúcias da controvérsia (3).

(') Cfr., supra, págs. 106 e segs.


(2) Cfr., supra, pág. 131.
(3) Ver, por todos, Álvaro D'Ors, La territorialidad dei derecho de los visigo-
dos, eit., in "Estúdios Visigóticos", vol. I, págs. 91 e segs., que historia a questão
e fornece amplas indicações bibliográficas, Também faz uma síntese do problema
Paulo Merèa, Para uma crítica de conjunto da tese de Garcia Gallo: 1 — Breve
noticia
acerca da tese, in "Est. de Dir. Vis.", cit., págs. 199 e segs. Ver, ainda, as exposi-
ções resumidas de Braga da Cruz, Aditamentos de Direito Português — O problema
da personalidade ou territorialidade da legislação visigótica, anteriormente a Recesvindo (lições
policopiadas, coligidas por Daniel Gonçalves), Coimbra, 1958, e Nuno
Espi-
nosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 44 e segs.

133
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

a) Tese da personalidade

Até à segunda metade do séc. XIX, aceitava-se unanimemente


que a legislação visigótica tivesse sido de aplicação territorial. Não
havia, porém , investigações históricas capazes de fundamentar esta
opinião.
Em 1843, o historiador alemão Eichhorn(1) sustentou, pela
primeira vez, a tese da personalidade. Partiu de uma suposta exis-
tência de dois juízes entre os Visigodos: o thiuphadus para julgar as
causas em que interviessem Visigodos; e o iudex ou defensor para
julgar as questões entre Romanos.
A ideia encontrou logo o melhor acolhimento entre outros
germanistas consagrados. Mas foi Zeumer quem, nos fins do século
XIX, através de uma série de estudos, alicerçou cientificamente a
doutrina da personalidade (2), aceita a partir de então, durante mais
de trinta anos, pelo comum dos historiadores.
De harmonia com esse ponto de vista, o Código de Eurico e o
Código de Leovigildo aplicavam-se somente aos Visigodos, ao
passo que o Breviário de Alarico se destinava apenas aos Romanos.
O historiador espanhol Urena, não obstante a sua aceitação da tese
da personalidade, defendia que o Código Revisto de Leovigildo
tinha já vigência territorial.
Onde os partidários da personalidade estavam em desacordo
era na solução do problema dos assuntos mistos, para que não

(l) Record e-se que este autor foi um dos pioneiros da Escola Histórica do
Direito, que teve em Savigny o seu maior expoente (ver, por ex., F. Wieacker,
História do Direito Privado Moderno, Lisboa, 1980, especialmente págs. 405, 443, e 460 e seg.;
trad. de A. M. Botelho Hespanha com base na 2.a ed. de Privatrechtsgeschichte
der
Neuzeit unter besonderer Beriicksichtigung der deutschen Entwicklung, Góttingen, 1967).
( ) Ver Karl Zeumer, Historia de la legislación visigoda (trad. para castelhano
de Carlos Claveria), Barcelona, 1944. Sobre o cuidado com que deve ser
utili-
zada esta tradução, consultar Paulo Merèa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
XX, págs. 640 e seg.

134
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

encontravam resposta satisfatória. Qual seria a lei aplicável aos lití-


gios que surgissem entre Visigodos e Romanos?
Segundo Dahn, este conflito de legislações solucionava-se
dando aos litigantes a faculdade de eleger um dos dois ordenamen-
tos: o romano ou o visigótico. Todavia, a opinião era inaceitável,
pois não apresentava em sua defesa qualquer argumento válido. E
quando não existisse acordo das partes?
Para Bethmann-Hollweg, tinha prevalência o "fórum rei".
Isto é, aplicava-se a lei do tribunal que devia dirimir o pleito.
Brunner e Zeumer, por sua vez, propenderam para a supre-
macia da lei visigótica, havendo conflito entre as duas legislações.
Mas o apoio aduzido foi a analogia com o que se passava relativa-
mente à "Lex Burgundionum", a qual — depois de declarar no
prefácio que apenas se aplica a Burgúndios e que os Romanos
continuam com o privilégio de se regularem pelo seu direito —
determina que nos conflitos mistos vigorasse a lei burgúndia de
preferência à lei romana. Esta analogia não possui, contudo, fun-
damento convincente. De facto, a tese da personalidade nunca ofe-
receu para o problema dos assuntos mistos uma resposta que assen-
tasse em dados históricos seguros, limitando-se a meras conjecturas.

b) Tese da territorialidade

Estavam as coisas neste pé, quando, em 1941, Garda-Gallo


ressuscitou com bases científicas a velha doutrina da territoriali-
dade (*). Segundo o ilustre historiador, já as leis teodoricianas

( ) Ver García-Gallo, Nacionalidad y territorialidade dei Derecho en la época


visigoda e La territorialidad de la legíslación visigoda, in "An. de Hist. dei Der. Esp.",
cit., respectivamente, tomo XIII, págs. 168 e segs., e tomo XIV, págs. 593 e segs.
(também in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XIX, págs. 194 e segs.). Ver, ainda,
o seu estudo Consideración critica de los estúdios, cit., in "An. de Hist. dei Der. Esp.",
tomo XLIV, págs. 343 e segs.

135
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

foram de aplicação conjunta à população goda e romana; e o


mesmo se verificou com todas as restantes leis avulsas e codifica-
ções visigóticas.
Assim, o Código de Eurico teria sido substituído pelo Breviá-
rio de Alarico. Este, por seu turno, cederia o lugar ao Código de
Leovigildo, também revogado depois pelo Código de Recesvindo.

c) Posição actual do problema

Acabamos de descrever, sucintamente, as duas orientações


básicas que têm sido apresentadas a respeito da natureza da legisla-
ção visigótica. Abstrai-se de algumas controvérsias secundárias tra-
zidas à colação. Consideremos, portanto, o estado actual do
problema.
Devem distinguir-se dois aspectos: um deles consiste na terri-
torialidade das várias codificações e leis avulsas visigóticas nossas
conhecidas; o outro é o da revogação do Código de Eurico pelo
Breviário de Alarico e deste pelo Código Revisto de Leovigildo.
García-Gallo não os separou ao formular a sua tese. Para o
referido historiador esses aspectos confundem-se. Torna-se necessá-
rio, porém, dissociá-los, autonomizá-los, porque, enquanto o pri-
meiro vem concitando a adesão dos autores, o segundo não parece
encontrar confirmação satisfatória.
Foi Paulo Merêa que chamou a atenção para os dois referidos
ângulos do problema e para a possibilidade de harmonizá-los. As
suas conclusões constituem uma terceira posição — uma solução
conciliatória —, a que estudos ulteriores acrescentaram novos e valio-
sos créditos (*).

(') Ver Paulo Mf.rka, Uma tese revolucionária (A propósito do artigo de Garcia
Gallo publicado no tomo XIII do A.H.D.E.), Ainda sobre a tese de Garcia Gallo, Sobre a
tese de Garcia Gallo (opiniões várias), Para uma critica de conjunto da tese de Garcia Gallo:
I— O capítulo 321 do Código Euriciano e a tese da territorialidade. II— O capítulo 312 do

136
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

Após uma ponderação dos argumentos que militam a favor da


tese da territorialidade e da tese da personalidade, reconheceu
Merêa que esta última se encontra, no mínimo, bastante abalada.
Inclinou-se, portanto, para uma territorialidade do direito visigó-
tico. Mas daí não terá necessariamente de inferir-se a revogação do
Código de Eurico pelo Breviário de Alarico e deste pelo Código
de Leovigildo. Trata-se do aspecto que em especial choca na tese
de García-Gallo.
É a esse propósito que surge a contribuição original de Paulo
Merêa. Segundo o eminente professor, haverá que considerar o
Breviário de Alarico fora da sequência da legislação visigótica;
quer dizer, importa vê-lo como uma compilação subsidiária, que
nem substituiu o Código de Eurico nem foi substituída pelo Código
de Leovigildo. Este é que, de facto, revogou o Código de Eurico,
cuja vigência ininterrupta se manteve até então.
O Código de Eurico terá continuado como lei geral. A seu
lado, o Breviário constituiu uma compilação organizada com o
objectivo de limitar os "iura" e as "leges" que podiam invocar-se
em juízo. Visto que a população romana, sobretudo, continuava
arreigada a esse direito, convinha impedir os inconvenientes da sua
alegação discricionária.

Código FMriciano e a pretensa onerosidade da doação visigótica, Sobre os casamentos mistos na


legislação visigótica (Nova contribuição para uma crítica de conjunto da tese de Garcia Gallo)
e Ainda a tese de Garcia Gallo (Estado da questão), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit.,
respectivamente, vol. XVIII, págs. 417 e segs. (também in "An. de Hist. dei Der.
Esp.", cit., tomo XIV, págs. 593 e segs.), vol. XX, págs. 259 e segs., vol. XXI,
págs. 358 e seg., vol. XXII, págs. 426 e segs. (também in "Est.. de Dir. Vis.",
cit., págs. 209 e segs.), vol. XXXIII, págs. 56 e segs. (também in "Est. de Dir.
Vis.", cit., págs. 231 e segs.), e vol. XXIV, págs. 202 e segs. Consultar, ainda,
Para uma crítica de conjunto da tese de Garcia Gallo: 1 — Breve notícia acerca da tese, cit., in
"Est. de Dir. Vis.", págs. 199 e segs., e a recensão ao estudo de Álvaro D'Ors, La
territorialidad dei derecho de los visigodos, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXI,
págs. 433 e segs.

137
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Assim, a ordem por que se sucederam e sucessivamente revo-


garam as várias colectâneas visigóticas seria a seguinte: Código de
Eurico (+_475), Código de Leovigildo (^580) e Código de Reces-
vindo (654). Mas o Código de Rescevindo não se limitou a substi-
tuir o Código de Leovigildo, pois revogou também o Breviário de
Alarico (506).
A solução de Paulo Merêa afigura-se convincente e recebeu
adesões. Na sua linha se encontra a conclusão de Álvaro d'Ors ao
sugerir que o Breviário de Alarico possuía natureza didascálica. Ou
seja: não representou uma nova lei que substituiu o Código de
Eurico, mas uma colectânea de carácter geral, para formação dos
juízes e ajuda dos mesmos nos casos naquele não previstos ( ).
Estará, assim, o problema encerrado? Pensa-se que não.
Argumentos poderosos, é preciso reconhecê-lo, militam a favor das
diversas conjecturas. Constitui, em suma, um dos enigmas do
direito visigótico que subsistem (2).

(') Ver Álvaro D'Ors, La territorialidad dei derecho de los visigodos, cit., in
"Estúdios Visigóticos", vol. I, págs. 91 e segs., especialmente pág. 121.
(2) Posteriormente, ver, por ex., Paulo Merêa, recensão ao estudo
de
Álvaro d'Ors, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXI, págs. 433 e segs., C.
Sánchez-Albornoz, Tradición y derecho visigodos de Léon y Castilla, in
"Cuadernos
de História de Espana", n.os XXIX-XXX, Buenos Aires, 1959, págs. 244 e segs.,
e Pervivencia y crisis de la tradición jurídica romana en la Espana goda, in "Settimane di
Studio dei Centro Italiano di Studi sull'alto Medioevo", IV — "11 passagio dallAn-
tichità ai Medioevo in Occidente", Spoleto, 1962, págs. 128 e segs. (também
in "Estúdios sobre las Instituciones medievales espanolas", México, 1965, págs.
547 e segs.), García-Gallo, Consideración crítica de los estúdios, cit., in "An. de Hist.
dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 343 e segs., maxime págs. 445 e segs., Giulio
Vismara, Lefonti dei diritto romano nelValto medioevo, cit., in "Stud. et Doe. Hist. et
lur.", vol. XLVII, págs. 15 e segs., e NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Hist.
do
Dir. Port., cit., vol. I, págs. 44 e segs.

138
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

22.3. Direito consuetudinário visigótico

Também se discute a eventual persistência de um antigo


direito consuetudinário visigótico ( ). Seria um sistema efectiva-
mente vivido, com diferenças marcadas em relação às normas do
direito oficial escrito. A vasta legislação promovida pelos monarcas
visigodos intentaria sobrepor-se a esses costumes de origem germâ-
nica. Chega-se ao ponto de aproximá-los do direito consuetudiná-
rio noruego-islandês.
Estamos, de novo, no domínio das conjecturas e da investiga-
ção histórica de base dedutiva. A querela envolve o estudo das
fontes da Reconquista. O que aconselha toda a prudência, em vez
das posições extremas, favoráveis ou desfavoráveis aos costumes
visigóticos, defendidas, respectivamente, pelos chamados "germa-
nistas" e "romanistas".
Parece arrojado, perante os elementos disponíveis, sustentar
que houve um abismo entre o direito oficial e a prática jurídica.
Seria estranho que uma minoria populacional germânica (2), tendo
assimilado a língua, a cultura, a religião e os hábitos de vida roma-
nos, ficasse isolada no seu direito originário, que, aliás, se desco-
nhece. Mas, em contrapartida, não há razões decisivas para negar a
possível manutenção de alguns costumes do antigo direito germâ-
nico, de procedência sueva ou visigoda, assim como de velhas
regras consuetudinárias pré-romanas e hispano-romanas. Isso
verificar-se-ia com maior probabilidade nas regiões periféricas,
afastadas dos centros políticos e legislativos.
Contudo, mesmo que se admita a existência desse direito con-
suetudinário germânico, terá de convir-se que no Estado Visigótico

(') Ver García-Gallo, Consideración crítica de los estúdios, cit., in "An. de


Hist. dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 409 e segs., onde uma análise pormeno-
rizada da controvérsia é acompanhada de largas indicações bibliográficas. Con-
sultar, também, o estudo posterior de Carlos Petit, Consuetudo e Mos en la
Lex
Visigothorum, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, págs. 209 e segs.
(2) Cfr., supra, págs. 117 e 123 e segs.

139
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

triunfou o direito escrito. Comprova-o a intensa actividade legisla-


tiva que conhecemos e que culminou, pelos meados do século vil,
com a elaboração do Código Visigótico recesvindiano.

22.4. Direito canónico. Os Concílios de Toledo

Não pode ignorar-se a importância considerável do direito


canónico, isto é, das normas jurídicas próprias da Igreja Católica,
no Reino Visigodo. Esse ordenamento disciplinava, para além
da estrutura da Igreja e dos assuntos espirituais, certos aspectos
seculares da vida dos fiéis. Estão neste caso o regime dos bens das
instituições religiosas e os actos temporais — como doações, testa-
mentos, contratos agrários — que lhes diziam respeito, as sanções
canónicas e o processo judicial seguido nos tribunais eclesiásticos.
Ora, após a conversão de Recaredo ('), tornou-se católica a genera-
lidade da população hispânica.
Vigoravam no Estado Visigótico, evidentemente, as normas
jurídico-canónicas comuns a toda a Igreja. Mas possuiu grande sig-
nificado o direito canónico nacional (2). Nesse período, mercê da
dificuldade das comunicações e de outros factores, a centralização
da Igreja Católica era menor do que na época moderna. Daí o
relevo dos concílios nacionais, que reuniam os altos dignitários ecle-
siásticos de cada Estado. Na monarquia visigótica, esses concílios
nacionais, os Concílios de Toledo, desempenharam um papel muito
activo relativamente à criação de preceitos jurídico-canónicos. E
também, pelo menos em época mais tardia, com uma composição

(') Cfr., supra, pág. 124.


(2) A mais importante compilação canónica visigoda é, sem dúvida, a
chamada Collectio Hispana ou Collectio canonum ecclesiae Hispaniae, do séc. vil, que
tem sido equivocadamente atribuída a Santo Isidoro de Sevilha (ver G. Martínez
DiEZ,La Colección canónica Hispana, I — Estúdio, Madrid/Barcelona, 1966). Quanto
aos Capitula Martini, cfr., supra, pág. 117, nota 1.

140
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

mista de eclesiásticos e de leigos, foram uma instituição auxiliar da


realeza, para assuntos políticos e legislativos.
Deve salientar-se a influência que os princípios canónicos
exerceram sobre os institutos jurídicos seculares, no âmbito do
direito público e do direito privado. Existia uma conexão íntima
entre a legislação civil e os cânones conciliares: umas vezes, nestes
se recolhiam normas temporais já consagradas por leis régias,
enquanto, outras vezes, lhes serviam de base ou eram transforma-
dos em leis civis, mediante disposições confirmativas. Foi especial-
mente valiosa a legislação secular emanada dos concílios sobre
questões de Estado, portanto, matérias que hoje se considerariam
de direito constitucional. Indicam-se as relativas à eleição e protec-
ção do monarca, à condição dos juízes e aos direitos das pessoas em
face do rei(l).

23. Ciência do direito e prática jurídica na época visigótica

23.1. Ciência do direito. A personalidade e a obra de Santo Isidoro,


bispo de Sevilha

As escolas de direito romano da época pós-clássica parecem


ter entrado em franca decadência depois das invasões, visto que não
se lhes encontram quaisquer referências. Possuímos, no entanto,

(') Sobre o tema, ver, entre outros, José Vives/T. Marín


Martínez/G.
Martínez Díez, Concílios visigóticos e hispano-romanos, vol. I,
Barcelona/Madrid,
1963, G. Martínez Díez, Canonística Espahola Pregraciánica, in "Repertório de Histo-
ria de las Ciências Eclesiásticas en Espana", vol. I, Salamanca, 1967, págs. 377 e
segs., e José Orlandis, La problemática conciliar en el reino visigótico de Toledo, in "An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XLVIII, págs. 277 e segs. Deste último autor,
consulte-se, ainda, La iglesia visigoda y los problemas de la sucesión ai trono en el siglo
VII, Spoleto, 1960 (sep. de "Settimane di studio dei Centro italiano di studi
sull'alto medioevo", VII — "Le chiese nei regni deli'Europa Occidentale e i loro
rapporti con Roma sino ali '800"). Pode ver-se uma síntese dos Concílios de
Toledo in P.e Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de Portugal, 4.a ed.,
Lisboa,
1968, págs. 45 e segs.

141
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

várias informações acerca da existência de juristas de valor e de


importante literatura jurídica do período visigótico. Aliás, as com-
pilações legislativas que analisámos logo induzem a pressupor a par-
ticipação de juristas de mérito considerável. Entre estes se inclui
Leão de Narbona.
Dispomos da obra de Santo Isidoro, bispo de Sevilha, que,
apenas por si, bastaria para atestar o nível da ciência jurídica da
época. Viveu nos fins do século vi e começos do século vil
(570/636), tendo presidido ao Concílio de Sevilha de 619 e ao IV
Concílio de Toledo (633).
Conhecia o direito romano, tanto o pré-justinianeu, como o
contido nas próprias compilações de Justiniano. A obra mais rele-
vante de Isidoro de Sevilha foram as Etimologias, correspondendo ao
que hoje se designa enciclopédia, em que a entrada dos assuntos se
faz por vocábulos (').
O seu livro V, que se ocupa do direito e de temas de cronolo-
gia ("De legibus et temporibus"), bem patenteia a cultura do
autor ( ). Claro que esse pequeno tratado jurídico que a primeira
parte do referido livro constitui não se revela profundamente origi-
nal e terá de colocar-se numa posição modesta, quando confron-
tado com as obras da literatura jurídica da época clássica. Mas não
é com esse critério que devemos avaliar o mérito do trabalho de
Santo Isidoro. Cabe apreciá-lo dentro do quadro da época; e, assim,
terá de reconhecer-se que representa um texto importante, em
que se mostra um domínio expressivo do direito romano,

(l) Ver San Isidoro de Sevilla, Etimologias, vols. I (livros I/X) e II


(livros
XI/XX), Madrid, 1982/1983 (ed. bilingue de José Oroz Reta/Manuel-A.
Mar-
cos Casquero, com uma introdução geral de Manuel C. Diaz y Diaz).
(2) A primeira parte do liv. V (capítulos 1/27) trata de matéria jurídica.
Também no liv. II ("De rhetorica et dialéctica") se dedica um capítulo
(10 — "De lege") ao estudo da lei. E, ainda, no liv. IX ("De linguis, gentibus,
regnis, militia, civibus, affinitatibus") se encontram capítulos sobre a nomencla-
tura real e militar (3 — "De regnis militiaquae vocabulis") e sobre os cidadãos
(4— "De civibus"), que apresentam algumas relações com o direito.

142
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

descobrindo-se, aqui e além, algumas concepções próprias. Santo


Isidoro é, ainda, autor de uns "Libri Sententiarum", onde se alarga
em reflexões acerca de problemas políticos.
A obra deste bispo de Sevilha teve grande divulgação, mesmo
fora da Península. Chegaram à actualidade centenas de manuscritos
das Etimologias, o que revela a sua difusão.
Podemos ainda considerar Santo Isidoro como um cultor do
direito canónico. Há quem sustente que organizou uma colecção
canónica, a chamada Collectio Hispana(l). Trata-se, contudo, de
uma opinião infundada. Mas é suficiente o papel por ele desempe-
nhado nos concílios a que presidiu para aquilatarmos dos seus méri-
tos de canonista ( ).

23.2. Prática jurídica

a) Falta de documentos desta época. Os formulários

Vamos, por último, referir a prática do direito. O modo mais


exacto de conhecê-la é através dos documentos que consubstanciam
ou realizam actos jurídicos concretos, como vendas, doações, per-
mutas, testamentos, contratos agrários. Porém, consoante já se
observou (3), perdeu-se a grande maioria das fontes históricas dessa
espécie respeitantes ao período visigótico. Acresce que alguns dos
poucos documentos que chegaram até nós ou são apócrifos ou
apresentam-se muito truncados e inconclusivos.
Resta-nos o recurso aos formulários, isto é, às colectâneas de
modelos ou paradigmas que os notários tinham presentes para a
redacção dos vários actos jurídicos. Mas também neste capítulo

(') Cfr., supra, pág. 140, nota 2.


(2)Ver a extensa e documentada introdução de Manuel C. Diaz y
DiAzà
cit. edição bilingue das Etimologias, vol. I, págs. 7 e segs., em que se integra a
personalidade e a obra de Isidoro de Sevilha na situação histórica.
(3) Cfr., supra, págs. 112 e segs.

143
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

deparamos com dificuldades, em consequência da escassez e das


dúvidas que se levantam.
Ao lado das Fórmulas Visigóticas, seguidamente consideradas,
recordam-se as Fórmulas de Holkham. Só que não se encontra
demonstrada a origem visigótica destas últimas (1).

b) Fórmulas Visigóticas

Dá-se esta designação ao conjunto de quarenta e seis fórmulas


encontradas num códice da Catedral de Oviedo (2). A maioria delas
refere-se a actos privados: manumissões, vendas, doações, testamen-
tos, permutas, etc.
Merece destaque a fórmula 20, consagrada à "morgengabe",
que consistia no presente oferecido pelo noivo à noiva, como retri-
buição da sua castidade. Corresponde a uma instituição germânica
que não se encontra na legislação visigótica. O facto de essa fór-
mula estar redigida em verso — o que constitui caso único na

( ) Trata-se de duas fórmulas contidas num códice conservado na Biblio-


teca de Holkham. Uma delas retere-se ao juramento das testemunhas, visando
provar a inocência do réu. A outra diz respeito à prova caldária, um dos deno-
minados juízos de Deus ou ordálios, que consistia no seguinte: o acusado, na
presença de um júri, mergulhava a mão num recipiente com água a ferver e
tirava dele um objecto; a mão era depois untada e ligada; ao fim de certo
número de dias, o mesmo júri procedia ao seu exame e, conforme estivesse ou
não curada ou em vias de cura, considerava-se o acusado inocente ou culpado.
Existia a prova análoga do ferro candente, que apenas diferia por se exigir que o
acusado desse alguns passos transportando na mão um ferro incandescente.
Argumento a favor da procedência visigótica das Fórmulas de Holkham
reside na suposição de que a prova caldária foi aceita nos últimos tempos do
Reino dos Visigodos, por Egica ou Vitiza (ver García-Gallo, Consideración crítica
de los estúdios, cit., in "An. de Hist. dei Der. Esp.", tomo XLIV, págs. 407 e
segs.). As Fórmulas de Holkham podem ser consultadas nos "Textos de Direito
Visigótico", cit., vol. II, págs. 124 e segs.
(2) Ver García-Gallo, Los documentos y los formulários, cit., in "Est.
de
Hist. dei Der. Priv.", págs. 364 e segs.

144
PERÍODO GERMÂNICO OU VISIGÓTICO

diplomática medieval — suscita dúvidas sobre a sua verdadeira


natureza de modelo de documentos jurídicos.
Quanto à redacção e ao estilo, o formulário analisado
baseia-
-se no sistema documental romano. Também, pelo que toca ao
conteúdo, pode dizer-se que reflecte um ambiente romano e cris-
tão. As influências germânicas mostram-se reduzidas.
A data deste formulário é duvidosa. Correntemente,
aparece
situado entre os anos 615 e 620. Talvez seja mais tardio. De qual-
quer modo, está-se em face de uma colecção de fórmulas que na
sua grande parte derivavam de uma época bastante anterior.

145
CAPÍTULO IV
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO
E DA RECONQUISTA CRISTÃ
24. A invasão muçulmana e o seu significado

A vinda dos Árabes para a Península ocasionou a quebra da


unidade estadual que o Reino Visigótico conseguira após a expulsão
dos últimos redutos bizantinos (!). Durante séculos, passam a existir
no território hispânico dois blocos diferenciados, embora com fron-
teiras mais ou menos instáveis: o cristão e o islâmico.
Essa separação política conduziu a uma paralela dualidade
jurídica básica. Os invasores trazem para a Península o direito
muçulmano, que continuam a adoptar. Enquanto, por outro lado, a
desorganização político-administrativa provocada pela queda do
Estado Visigótico faz com que, entre os Cristãos, o ordenamento
jurídico tradicional, baseado no "Liber ludiciorum", fique entregue
ao seu próprio destino, sujeito à influência de múltiplos factores.
Verifica-se a ruptura do pano de fundo romanístico que existira ao
longo do período anterior.
E na sequência da Reconquista cristã que a Península se divide
em vários Estados. Daí que surjam correspondentes sistemas jurídi-
cos que a marcha do tempo individualizaria.
Como a nossa exposição tem directamente por objecto a his-
tória do direito, abstrai-se de pormenorizações sobre a alteração
profunda que se produziu das estruturas política, económica, social
e religiosa da Península. Sabe-se, aliás, que todo o mundo islâmico
patenteou uma cultura uniforme. Esta não possuiu originalidade
expressiva. Caracterizou-se pelo sincretismo ou combinação dos
elementos culturais dos extensos e muito diferentes povos domina-

(') Cfr., supra, págs. 119 e seg.

149
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dos, alguns deles com fortes influências helénicas e romanas. Foi


valiosa, sob tal aspecto, a presença dos Muçulmanos na Península
Ibérica, que beneficiou dos seus diversificados conhecimentos cien-
tíficos e técnicos, das suas ideias e filosofia, das suas formas artísti-
cas e literárias. As zonas do Sul conheceram uma época de acen-
tuada prosperidade económica (!).
Interessa recordar, especialmente, os pontos fulcrais da histó-
ria política dos Árabes na Península. Desse modo se facilita a com-
preensão da Reconquista cristã e dos aspectos jurídicos concomi-
tantes.

(') A evolução económico-financeira da Península Ibérica pode ser repre-


sentada, graficamente, no seu conjunto, por um W, enquanto nela se intercalam
duas fases de regressão, de rumo gradual para um sistema de trocas directas, e
duas fases de nítido progresso da circulação monetária. Cada uma das fases
regressivas tem a sua ordenada mais baixa, respectivamente, nos começos do
século viu e nos meados do século xh. Assim, não há exacta coincidência com a
marcha da Europa transpirenaica, onde faltou o travão árabe: agora a linha
evolutiva desdobra-se num simples V. A um ciclo regressivo, desde a queda do
Império Romano do Ocidente e que atinge o rubro no decurso do século IX, na
época de Carlos Magno, sucede-se, sobretudo a partir do século XI, um ciclo
ascendente, em correspondência com o renascimento económico europeu e
caracterizado, não só pelo progressivo acréscimo monetário, mas até pela cria-
ção, a breve trecho, de alguns instrumentos de crédito e financeiros que estão na
base da vida moderna. Voltando ainda à economia peninsular, parece admissível
que ela nunca tenha atingido, talvez, um ponto de regressão comparável aos da
francesa ou alemã: no primeiro período, impediu-o a invasão muçulmana; e no
terceiro, ou seja, no segundo regressivo, porque à medida que a influência islâ-
mica ia afrouxando se caminhava, por outro lado, para a integração no movi-
mento económico europeu, já em pleno curso. Reproduz-se o que escreve M. J.
Almeida Costa, Raízes do Censo Consignatwo. Para a História do Crédito Medieval
Português, Coimbra, 1961, págí 67, nota 1, onde se remete para A. H. de Oliveira
Marques, A moeda portuguesa durante a Idade Média, Porto, 1959, págs. 5 e segs.
(sep. do "Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto", vol. XXII, desig-
nadamente págs. 497 e segs.). A respeito das influências e das relações económi-
cas entre Cristãos e Árabes, consultar César E. Dubler, Ober das Wirtschaftsleben
auf der Iberischen Halbinsel vom XI. zum XIII. Jahrhundert. Beitrag zu den islamisch-
-cristlichen Beziehungen, Genève, 1943.

150
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTA

a) Breve nótula sobre a história política dos Muçulmanos na Península

Os Muçulmanos chegaram à Península como aliados do par-


tido rebelde dos filhos de Vitiza contra o rei Rodrigo, que foi
derrotado e morto, em 711, na batalha de Guadalete( ). Mas este
apoio, tendo-se os Árabes apercebido da decadência do País,
transformou-se numa campanha de conquista que acabou com o
Estado Visigótico e alargou, em pouco tempo (711/713), a domina-
ção dos invasores à quase totalidade da Península. Só alguns peque-
nos núcleos dos Pirenéus e da Cordilheira Cantábrica, a bem dizer
inacessíveis, conseguiram manter-se independentes. Do mesmo
modo, certos "territórios" ou "condados" — que eram importantes
circunscrições administrativas da época visigótica—conservaram a
sua organização, mediante pactos ou tratados que envolviam o
reconhecimento da soberania muçulmana.
Assim nasceu o que se denominaria "país de al-Andalus". As
áreas peninsulares conquistadas pelos Árabes ficaram a constituir
uma espécie da província do grande Estado Muçulmano, sob a
suprema autoridade política e religiosa do Califado de Damasco. O
governador da Ibéria árabe era um emir que estava subordinado ao
emir do Norte de África e, através deste, ao califa de Damasco.
A referida situação, pela qual existia na Península um Emirado
dependente do Califado de Damasco, termina em meados do século VIII
(711/755). Nessa altura, a dinastia Omíada é destronada pela família
dos Abácidas; e, devido a isso, um príncipe omíada, o futuro
Abderramão I, foge para a Península, obtém o apoio de alguns
poderosos que se conservaram fiéis à dinastia destronada e desenca-
deia a guerra contra o emir local. Vitorioso da luta, torna-se ele
próprio emir, proclamando a autonomia dos domínios muçulmanos

(l) A luta pelo poder caracterizou a vida política do Estado Visigótico,


que, ao menos teoricamente, se manteve até final como monarquia electiva.
Recordamos que, no período ariano, portanto, até 589 (cfr., supra, págs. 116 e
124), houve dezasseis monarcas, dos quais nove morreram assassinados. Após a
conversão ao Catolicismo, existiram igualmente dezasseis monarcas, tendo sido
assassinados dois e depostos três.
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

peninsulares. Surge, deste modo, o Emirado independente da Espanha


ou Emirado de Córdova, por ter aí a sua capital (756/929).
Nos fins do século VIII, o Emirado atravessa uma crise grave.
Há rivalidades entre os nobres e manifestam-se tendências de desin-
tegração. A unidade só foi restabelecida em começos do século X,
com Abderramão III (912), que consegue impor uma política cen-
tralizadora e eleva o Emirado à categoria de Califado (929).
Durante cerca de cem anos, o Califado de Córdova (929/1031)
corresponde ao período de apogeu da presença muçulmana.
Traduz-se, especialmente pelos finais do século X, nos maiores
reveses dos príncipes cristãos.
A esse ciclo de grandeza seguiu-se um outro de franca
deca-
dência (1031/1090), que levou ao fraccionamento do Califado de
Córdova em numerosos pequenos Estados dissidentes — os Reinos de
Taifas —, que chegaram a ser vinte e três. Das rivalidades entre os
Árabes se aproveitaram, mais uma vez, os monarcas cristãos, alar-
gando a sua hegemonia para o Sul.
A divisão dos domínios muçulmanos nos Estados de
Taifas
prolongou-se até à invasão dos Almorávidas, povo berbere oriundo do
Sara Ocidental que se convertera ao Islamismo e que chegou à
Península, em 1090, sob o comando de Yusuf. Este, depois de bre-
ves campanhas coroadas de êxito, consegue reunificar todos os
domínios muçulmanos e formar com elas o Império Almorávida.
Em meados do século XII, novas dissidências e cisões afectam
os Árabes. O poder dos Almorávidas entrara em declínio. Seguiu-se
a invasão dos Almóadas (1147), que levaria, embora menos rapida-
mente do que a dos Almorávidas, a uma última unificação do
mundo islâmico peninsular (1072). Também esta efémera. Mas a
história política muçulmana oferece, desde então, menor interesse,
dada a consolidação manifesta que já na altura possuía a Recon-
quista cristã (').

( ) Sobre as vicissitudes da permanência dos Muçulmanos na Península,


ver a exposição minuciosa de David Lopes, O Domínio Árabe, in "História
de

152
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

b) Os invasores e o seu direito. As fontes do diráto muçulmano

Como já se observou (*), a fixação dos Árabes na Península


conduziu à perda da unidade jurídica, que, pelo menos em princí-
pio, o Código Visigótico polarizava. O direito que os invasores
trouxeram consigo tinha natureza confessional. Não havia uma dis-
tinção entre a religião e o direito, ou melhor, este ia buscar àquela
o conteúdo dos seus critérios normativos. Portanto, afirmava-se
como um sistema jurídico personalista, que apenas abrangia a
comunidade de crentes que integrava o mundo islâmico. Não era a
raça que definia o direito aplicável (2), mas sim o credo religioso.
Embora se mostre reduzido o contributo árabe para a evolu-
ção do direito peninsular, sempre forneceremos, em traços rápidos,
o quadro geral das suas fontes (3). Convirá, entretanto, salientar

Portugal", dirigida por DamiAo Peres, vol. I, Barcelos, 1928, págs. 389 e segs.
Consultar, ainda, o livro clássico de R. Dozy, Histoire des Musultnans d'Espagne
jusqu'à la conquête de 1'Andalousie por les Almoravides (711/1110), 2.a ed., Leyde, 1932,
É. Lêvi-Provençal, L'Espagne musulmane au X.èm siècle. Institutions et vie sociale,
Paris, 1932, La civilisation árabe en Espagne. Vue générale, Caire, 1938, e Histoire de
l'Espagne musulmane, 2.a ed., vol. I — La conquête et 1'Emirat hispano-umayade (711-
-912), Paris, 1950, vol. II — Le califat umayade de Cordoue (912-1031), Paris, 1950, e
vol. III— Le siècle du Califat de Cordoue, Paris, 1953 (trad. para castelhano desta
obra e introdução de E. García Gómez, in "Historia de Espana", dirigida por R.
Menéndez Pidal, tomo IV, Madrid, 1950, e tomo V, Madrid, 1957), C.
Sánchez-Albornoz, La Espana Musulmana. Según los autores islamitas y cristianos
medievales, tomos I e II, Buenos Aires, 1946, e "The Encyclopaedia of Islam", 2.a
ed., Leiden/London (em publicação desde 1960).
(') Cfr., supra, pág. 151.
( )Cfr., supra, págs. 106 e segs., o que se referiu a propósito dos povos
germânicos.
(3) Ver J. López Ortiz, Derecho musulmán, Barcelona, 1932, F. M.
Pareja,
Ismalogie, Beyrouth, 1957/1963, e E. Tyan, Histoire de l'organisation judiciaire en pays
d'Islam, 2.a ed., Leiden, 1960. Sobre as fontes, evolução e instituições do direito
islâmico, existem as sínteses elementares, mas bastante esclarecedoras, de
Raymond Charles, Le droit musulmán, colecção "Que sais-je?", n.° 702, 4.a ed.,
Paris, 1972, e Joseph Schacht, Introduction au droit musulmán, Paris, 1983.

153
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dois aspectos: por um lado, que o direito dos Muçulmanos, quando


estes chegaram à Península, se encontrava numa fase de formação,
que ainda levaria tempo a consumar-se de modo definitivo; por
outro lado, como decorre da referida confessionalidade, que a cria-
ção do direito não oferece autonomia substancial relativamente à
revelação divina.
Devem referir-se, antes de mais, o Alcorão (]) e a "Sunna".
Trata-se das fontes básicas do direito muçulmano.
O Alcorão consiste no conjunto de revelações de Alá que os
fiéis se habituaram a recitar e que, segundo Maomé, lhe foram
feitas de modo explícito. Só depois da morte deste se reduziram a
escrito. Tais ensinamentos possuem um conteúdo variado, mas
sobressaem as regras de carácter religioso, moral e jurídico. A
"Sunna" corresponde à conduta pessoal de Maomé, traduzida em
actos, palavras e silêncios tidos como concordância ao que presen-
ceava. São ensinamentos recebidos de forma implícita. Conhecidos,
de início, apenas pela tradição oral ("hadith"), procedeu-se à sua
compilação, desde meados do século VIII.
Contudo, o Alcorão e a "Sunna" estavam longe de propor-
cionar resposta a todas as questões jurídicas. Por isso, desenvol-
veram-se as fontçs complementares do direito maometano. Adquire
importância o consenso unânime da comunidade («ijma'»), que era
considerado uma manifestação indirecta e difusa da vontade de
Deus. Para o efeito, discutia-se a amplitude da noção de comuni-
dade. De harmonia com o critério dominante na Península, esse
consentimento unânime apura-se dentro do âmbito de uma escola
de direito ou da comunidade nacional, não de todo o povo islâmico,
reconduzindo-se à opinião do comum dos teólogos e juristas da
mesma época.

(') O árabe "al-Qur'an" passou à nossa língua como Alcorão e não


Corão. O mesmo se deu com outros vocábulos: por. ex., de "al-Garb" resultou
Algarve, em vez de Garbe.

154
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

Também a ciência do direito ("fiqh"), sem perder o nexo


religioso, contribuiu de maneira decisiva para a evolução dos pre-
ceitos jurídicos islâmicos, que afeiçoava às novas situações. Esse
"esforço activo" ("idjtihad"), apoiado nas fontes básicas, era reali-
zado pelos jurisconsultos — os alfaquis ("fuqaha")—, através da
analogia ("qiyas") e do raciocínio lógico ("ra'y")- As interpreta-
ções e as soluções da ciência jurídica têm aqui um significado idên-
tico aos dos "iura" romanos, quer dizer, constituem direito posi-
tivo, concretizado nos pareceres ("fatwàs") de juristas especial-
mente qualificados ("muftís").
Desde cedo, surgiram vários ritos ou escolas de interpretação
jurídica, mas apenas se reconheceu a ortodoxia de quatro: Hanifita,
Maliquita, Chafeíta e Hanbalita, que derivam o nome dos seus fun-
dadores. Havia entre tais escolas ou ritos diferenças sensíveis. Na
Península, prevaleceu a doutrina maliquita (J).
O consenso dos especialistas retirou ao costume a categoria de
fonte oficial, que, em todo o caso, concorreu largamente para a
formação do direito muçulmano. Outro tanto sucedeu com os pre-
cedentes judiciais ("amai").
Resta acrescentar que o progresso dos Estados muçulmanos
levaria à admissão de normas jurídicas emanadas da autoridade
soberana ("qanum"). Só que o destino desta fonte de direito foi
sempre condicionado pelos preceitos sagrados fundamentais.

c) Os Cristãos e os Judeus submetidos ao domínio muçulmano

A doutrina islâmica distinguia entre os idólatras ou


pagãos
("kãfir") e as "gentes do Livro" ("ahl al-kitãb"), quer dizer, os
que, como os Cristãos e os Judeus, possuíam textos sagrados resul-

(l) Ver J: López Ortiz, La recepción de la escuela malequí en Espana, in


"An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo VII, págs. 1 e segs. Consultar, do mesmo
autor, La jurisprudência y el estilo de los tribunales musulmanes en Espâm, in "An. de
Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo IX, págs. 213 e segs. Ver, ainda, Abdel Magid
Turki, Théologiens et juristes de 1'Espagne musulmane. Aspects polemiques, Paris, 1982.

155
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tantes de revelações divinas anteriores a Maomé. Os primeiros


estavam obrigados a converter-se ao Islamismo, sob pena de serem
liquidados; enquanto os segundos, mediante o pagamento de um
imposto de capitação (' jizya"), podiam conservar o seu credo reli-
gioso, embora reduzidos à condição de protegidos do Islão ("ahl
al-dhimma").
Foi esse o estatuto adquirido pela maioria dos hispano-godos,
de que apenas uma parte apostatou — os chamados muladís
("muwalladun"). Converteram-se ao Islamismo, sobretudo, pessoas
da classe servil, a quem o Alcorão garantia a liberdade no caso de
aceitarem a religião muçulmana. Aos que mantiveram a fé cristã é
dado o nome de moçárabes.
Na verdade, os Muçulmanos só em períodos excepcionais, de
grande agitação, moveram perseguições à população cristã peninsu-
lar. Ordinariamente, seguiram o caminho da tolerância religiosa,
que lhes oferecia a vantagem de, sem infringir o Alcorão, realiza-
rem uma política de captação e alcançarem vultosas receitas fiscais.
Mas a situação dos moçárabes variava, consoante a sua submissão
resultasse de acordos de capitulação ("sulh"), que levavam a uma
dependência absoluta, ou de tratados de paz ("ahd"), que confe-
riam certa autonomia político-administrativa.
Neste último caso, os moçárabes continuavam distribuídos em
"territórios" ou "condados'^1). E, do ponto de vista judicial, con-
servavam os seus juízes próprios, perfeitamente diferenciados dos
muçulmanos. Também continuavam a reger-se, nas relações priva-
das, pelo direito que vinha da monarquia visigótica, designada-
mente o que derivava do Liber ludiciorum e, em matéria canónica, da
Collectio Hispana (2). Ambos os textos foram traduzidos para árabe.
O direito islâmico aplicava-se tão-só às relações mistas entre moçá-
rabes e Muçulmanos, assim como na esfera penal (3).

(') Cfr., supra, pág. 151.


(2) Cfr., supra, págs. 131 e segs., e 140, nota 2.
(3) Ver García-Gallo, Manual, cit., tomo I, pág.
361.

156
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

Não resta dúvida, porém, que a população moçárabe veio a


aceitar insensivelmente, mercê do contacto diário com os Muçul-
manos, muitos dos seus usos e costumes. Por isso mesmo, apresenta
características diversas dos Cristãos que viveram sempre fora do
domínio islâmico. Este elemento moçárabe exerceu, mais tarde,
uma influência considerável nos Estados cristãos, quer por efeito
das migrações, quer devido às conquistas efectuadas pelos respecti-
vos monarcas.
Uma idêntica autonomia jurídica se produziu em relação aos
Judeus. As comunidades hebraicas assentes na Península, tanto sob o
domínio árabe como sob o domínio cristão, continuaram, igual-
mente, a tutelar-se pelo seu direito. Ele próprio um sistema confes-
sional e personalista (*).

25. A Reconquista. Formação dos Estados cristãos

Como sabemos, os Árabes, tendo chegado à Península Ibérica


em 711, rapidamente dominaram todo o seu território, com excep-
ção das regiões pirenaicas e cantábricas (2), onde se tinham refu-
giado nobres, bispos e os restos de um exército desmantelado. Daí
partiu, sem demora, o movimento da Reconquista.
Foi nas Astúrias, de facto, que nasceu a primeira monarquia
cristã. Mas isto não significa a inexistência de outros grupos de
oposição à conquista árabe e que, em certas zonas, os Cristãos não

(!) O direito judaico tem na base do seu sistema de fontes a Tora (lei
ditada por Deus a Moisés no Monte Sinai), a Mischna (interpretação da Sagrada
Escritura) e o Talmud (compilação dos preceitos e doutrinas das duas fontes ante-
riores). Acrescem as respostas dos rabinos (mestres e juízes das comunidades judai-
cas) e as determinações ("taqqanot") das comunidades hebraicas locais. Sobre a
situação dos Judeus na Monarquia Visigótica e nos Estados da Reconquista, ver,
por ex., respectivamente, Manuel Torres, Lecciones, cit., vol. II, págs. 162
e
segs., e L. G. de Valdeavellano, Curso, cit., págs. 309 e segs.
( ) Cfr., supra, pág. 151.

157
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mantivessem uma situação de semi-autonomia, através de pactos


celebrados com os Muçulmanos (l). No entanto, independência
absoluta e plena só a ficou possuindo a nova monarquia asturiense,
mais tarde também chamada monarquia de Oviedo, por nesta
cidade ter sido fixada a sua capital.
Não se entrará em pormenores sobre as vicissitudes da forma-
ção e desenvolvimento dos Estados cristãos da Reconquista: como
do Reino das Astúrias se chegou ao Reino de Leão; a respeito da
constituição dos Reinos de Navarra, Castela e Aragão; ou como
se operaram as sucessivas fusões e secessões entre Leão e Castela,
até Fernando III (1230). Foi com os Reis Católicos, Fernando de
Aragão e Isabel de Castela, que, nos fins do século XV, se operou a
unificação da Espanha ( ).
Apenas recordaremos que os monarcas cristãos, a partir do
Noroeste e do Nordeste da Península, orientaram os esforços, natu-
ralmente, no sentido de dilatar os seus domínios, recuperando os
territórios que os Árabes tinham conquistado. Essa tarefa, todavia,
não só era dificultada pelo poderio muçulmano, mas também pelas
rivalidades e dissensões que constantemente se verificaram entre os
Cristãos.
Pode dizer-se que a história da Reconquista gravita em torno
dos referidos pólos: a maior ou menor unidade dos Árabes — muito
diversificados do ponto de vista étnico e que apenas os vínculos de
uma religião recente, ou interesses conjunturais, aproximavam; e a
maior ou menor coesão dos Cristãos.
O poder dos Árabes e as constantes cisões dos nobres cristãos
dificultaram o êxito da Reconquista. Nessas disputas internas dos
Cristãos, assistia-se mesmo ao facto de alguns nobres, em luta uns
contra os outros ou contra o rei, pedirem o auxílio dos chefes

(') Cfr., supra, págs. 155 e segs.


(2)Ver, por ex., DamiAo Peres, A Reconquista Cristã, in "História de Por-
tugal", cit., vol. I, págs. 433 e segs., Braga da Cruz, Hist. do Dir. Port.,
cit.,
págs. 247 e segs., e Valdeavellano, Curso, cit., págs. 225 e segs.

158
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTA

árabes. Assim, a cada cisão dos Cristãos correspondia um enfraque-


cimento do ímpeto da Reconquista. Tal como cada diminuição de
força entre os Muçulmanos facilitava novos avanços dos Cristãos.
Até que, em 1492, tudo terminaria, quando se deu a incorporação
do Reino de Granada, último reduto islâmico peninsular, a Leão e
Castela.
Com o progresso da Reconquista, ao longo de oito séculos,
produziu-se, nos Estados cristãos, um fenómeno simétrico ao dos
moçárabes: o dos Muçulmanos que permaneciam em território
conquistado, mantendo a religião, o direito e os costumes próprios.
Estes eram os mudéjares, que ocupavam locais diferenciados e cuja
influência, em múltiplos aspectos, não deve ser negligenciada.

26. A separação de Portugal. O problema jurídico da concessão


da terra portugalense a D. Henrique

Na época do rei leonês Afonso VI, operou-se a separação de


Portugal (!). A sua base jurídica envolve uma controvérsia atinga e
muito debatida.
Conhece-se o quadro político em que essa autonomização se
verificou. Pelos fins do século XI, chegaram à Península D. Rai-
mundo e D. Henrique, nobres da Borgonha, que desposaram duas
filhas do referido monarca de Leão, respectivamente, D. Urraca,
descendente primogénita e legítima, que viria a suceder ao pai, e
D. Teresa, de pouca idade e que nascera de uma ligação extracon-
jugal de Afonso VI.
Torna-se desnecessário recordar outros aspectos. É, com
efeito, a partir do casamento de D. Teresa e D. Henrique que

(') Sobre as vicissitudes que conduziram à independência, ver o estudo


póstumo do medievalista muito distinto que foi Torquato de Sousa
Soares,
Formação do Estado Português (Í096-ÍÍ79), Trofa, 1989.

159
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

surge o problema. Afonso VI outorgou-lhes a terra portuga-


lense(1). Mas a que título?
Não se conhece o documento que formalizou a concessão.
Levantam-se mesmo dúvidas sobre se existiu. Toda a querela se
apoia, portanto, em referências acidentais a tal concessão, aos
poderes de D. Henrique e de D. Teresa, constantes de diplomas
seus e de documentos particulares, bem como numas poucas fontes
narrativas. Apreciemos as posições que têm sido sustentadas com
apoio nesses escassos elementos (2).
Ao tempo de Alexandre Herculano, predominava a orienta-
ção de que a outorga da terra portugalense constituirá o dote de D.
Teresa e que revestiu a natureza de senhorio hereditário. Colo-
cava-se, assim, na origem da fundação de Portugal, um título jurí-
dico, em vez de se reconhecer que os primeiros passos da naciona-
lidade foram dados em subordinação política ao Estado leonês e
que a independência resultou, afinal, de uma rebelião culminada de
êxito.
Diversamente, Herculano viria sustentar a tese de que Afonso
VI apenas confiou a D. Henrique o governo da terra portugalense
como cargo temporário, sempre revogável a arbítrio do monarca.
Era, pois, uma simples tenência amovível, análoga às dos distritos em
que comummente os reis leoneses proviam ricos-homens de
confiança (3).

(') Sobre a amplitude da terra portugalense e a data da concessão, que


seria nos últimos anos do século xi, ver Paulo Merèa, De "Portucale" (civitas) ao
Portugal de D. Henrique, in "História e Direito (Escritos Dispersos)", tomo I,
Coimbra, 1967, págs. 177 e segs. Trata-se da última versão das reflexões do
insigne Mestre acerca do tema.
( ) Não entraremos em pormenores. A explanação e a discussão minu-
ciosa das várias soluções podem ver-se em Marcello Caetano, Hist. do
Dir.
Port., cit., vol. I, págs. 136 e segs., e Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist.
do
Dir. Port., cit., vol. I, págs. 79 e segs.
(3) Alexandre Herculano, História de Portugal, 8.a ed., dirigida por
David
Lopes, Lisboa, s.d., tomo II, págs. 20 e segs., e nota VI do fim desse tomo, págs.
240 e segs., assim como Carta III sobre a História de Portugal, in "Opúsculos", cit.,

160
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

Paulo Merêa fez uma ponderada apreciação crítica deste


ponto de vista (*). Após salientar os alicerces dedutivos da constru-
ção de Herculano, defende Merêa que a concessão da terra portu-
galense se configurou como uma doação de senhorio hereditário, com
vínculo de vassalagem. Representaria, em síntese, uma doação alodial,
a título de apanágio (2), para compensar D. Teresa relativamente à
sucessão de D. Urraca no trono.
A doutrina de Paulo Merêa, como vemos, compreende dois
aspectos: o da doação de senhorio e o da hereditariedade. Só este
último transitou em julgado.
Pelo que toca à natureza da doação, alguns autores pretendem
tratar-se de uma concessão hereditária de tipo feudal, portanto, sem
transferência de domínio pleno, como é próprio do feudo (3).
Outros voltam-se para a figura da tenência hereditária (4).

tomo V — "Controvérsias e Estudos Históricos", tomo II, págs. 50 e segs. Pre-


tende Herculano que D. Teresa e D. Henrique, todavia, receberam em proprie-
dade alodial, ou seja, como próprios e hereditários, os bens do património da
Coroa (regalengos) existentes na terra portugalense (Hist. de Port., cit., tomo II,
pág. 20). Num outro trecho, admite Herculano, embora sem abdicar da tese da
tenência amovível, que, quando muito, pudesse sustentar-se a ideia de uma tenên-
cia hereditária (Hist. de Port., cit., tomo II, nota VI, pág. 243).
(') Paulo Merêa, Sobre a concessão da Terra Portugalense a D. Henrique, in
"Hist. e Dir.", cit., tomo I, págs. 233 e segs., onde reúne, com aditamentos, os
três estudos que publicou, desde 1925, a respeito do problema.
( ) A ideia de apanágio encontra-se também no antigo estudo de A. Helf-
ferich/G. de Clermont, Fueros francos. Les communes françaises en Espagne et
en
Portugal pendant le moyen-âge. Etude historique sur leur formation et leur développement,
accompagnée d'un grand nombre de textes inédits tires de manuscrits espagnols et portugais,
Berlin/Paris, 1860, pág. 43 ("...Henri reçut en apanage la province de
Portugal.").
(3) Consultar, por ex., C. Verlinden, Quelques aspects de l'histoire de la tenure
au Portugal, in "Recueils de la Société Jean Bodin", tomo III — "La tenure",
Bruxelles, 1938, págs. 231 e segs. Ver a apreciação de Paulo Merêa, in
"Hist.
e Dir.", cit., tomo I, págs. 249 e segs.
(4) C. Sánchez-Albornoz, Espana, enigma histórica, 2.a ed., Buenos
Aires,
1962, tomo II, págs. 426 e segs., e L. G. de Valdeavellano, Historia de Espana,
3.a

161
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Eis os passos essenciais da controvérsia. Concordamos que o


enigma acerca da natureza jurídica da concessão da terra portu-
galense só desapareceria com o conhecimento do acto que a forma-
lizou (*). Entretanto, permanecem as conjecturas. Neste plano, con-
tinuamos a propender para a solução de Paulo Merêa. As restantes
não lhe levam vantagem. Certo é que, de direito ou apenas de
facto, D. Henrique e D. Teresa exerceram, com independência
manifesta, desde o começo, amplos poderes soberanos dentro da
terra portugalense, designadamente, outorgando forais, cartas de
couto, doações e prestamos, proferindo sentenças, cobrando tribu-
tos, convocando os senhores do Condado para o serviço militar e a
participarem na sua Cúria. As circunstâncias ratificaram a solidez e
a hereditariedade de concessão, tal como a marcha rápida dos acon-
tecimentos apagaria os deveres de vassalagem.

27. Características e elementos constitutivos


do direito da Reconquista

As exposições precedentes, desde a ápoca pré-romana, habili-


tam a compreender a estrutura do direito da Reconquista. O que
vai referir-se constitui, em grande parte, como que um fecho de
abóbada.

ed., Madrid, 1963, tomo II, págs. 378 e seg. (embora este autor não se afaste
fundamentalmente da tese de Merêa, pois admite uma tenência hereditária pos-
suída pelo conde como coisa própria), cujas opiniões são analisadas por Paulo
Merêa, in "Hist. e Dir.", cit., tomo I, págs. 256 e segs. Também Nuno
J.
Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 87 e segs., se
inclina
para posição análoga à de Sánchez-Albornoz — a da tenência hereditária —, mas
não coincide na argumentação. Paulo Merêa, in "Hist. e Dir.", cit., tomo
I,
págs. 269 e segs., aprecia uma versão precedente (1965) do ponto de vista deste
último autor, Consulte-se, ainda, A. Almeida Fernandes, Do Porto veio
Portugal
(séc. v-xn), Porto, 1965, estudo igualmente analisado por Paulo Merêa, in
"Hist.
e Dir.", cit., tomo I, págs. 272 e segs.
(') Como opina Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I,
pág.
147.

162
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTA

Não correspondeu a este período, nem mesmo tendencial-


mente, uma unidade jurídica. Ainda que se admita a persistência do
direito visigótico em amplas zonas da Península, é forçoso reconhe-
cer que muitas outras tiveram ordenamentos locais. Chegou-se,
todavia, a um lastro comum resultante de sucessivos elementos que,
ao longo de séculos, se sobrepuseram, combinaram ou convergi-
ram. Dessa base partiu a individualização dos sistemas jurídicos das
regiões e dos Estados peninsulares.
Era um direito essencialmente consuetudinário. Mas assumi-
ram certo relevo as decisões judiciais, que, umas vezes, fixavam ou
esclareciam o costume e, outras vezes, chegavam a enunciar, de
modo casuístico, preceitos ínsitos na consciência colectiva.
Tiveram menor significado as normas gerais emanadas dos
soberanos, que, porém, assinalam a sua presença a partir do século
XI. Até então, as disposições dos reis e de outros senhores autóno-
mos possuem, via de regra, a natureza de preceitos especiais, que
atribuíram privilégios ou isenções. Tudo se explica pelas circuns-
tâncias sociais, políticas e económicas da Reconquista crista; e, até,
de algum modo, em correspondência com possíveis concepções
herdadas da Monarquia Visigótica.
Conhecemos esse direito, principalmente, através de amplas
compilações designadas costumes ou foros e também dos forais. Daí a
caracterização geral do sistema jurídico da Reconquista como um
direito consuetudinário e foraleiro. Quais foram os seus elementos
constitutivos? (*).
Não se ignora que vários investigadores procuram descobrir,
nesta época, sobrevivências de instituições pré-romanas, designa-
damente celtibéricas. Têm-se centrado no direito da Reconquista
grandes esforços de reconstituição do elemento primitivo. Poderá

(') Ver os desenvolvimentos de Paulo Merêa, Lições de História do Direito


Português (ed. de 1923), cit., págs. 22 e segs., e Resumo das Lições de História do
Direito Português, cit., págs. 56 e segs., e Braga da Cruz, Hist. do Dir. Port.,
cit.,
págs. 302 e segs.

163
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

admitir-se, inclusive, que determinadas instituições, afastadas pelo


direito romano-hispânico, se conservassem num estado latente, res-
surgindo logo que um processo de involução jurídica criou clima
propício. Contudo, a falta de dados históricos seguros torna sempre
arriscada qualquer afirmação categórica acerca da influência exer-
cida pelas instituições primitivas na formação do direito peninsular
medieval (1).
Muito mais importante se apresenta o elemento romano. Como
sabemos, o que está em causa é o chamado direito romano vulgar,
que a própria legislação visigótica reflecte largamente. Também a
este respeito nos reportamos ao que antes se esclareceu sobre os
vectores da inequívoca e valiosa presença romana no direito
peninsular (2).
Discute-se, todavia, a expressão relativa do elemento romano
e do elemento germânico. A experiência jurídica suevo-gótica teve
relevância. Mas não se pode cair no exagero de considerá-la deci-
siva na formação do sistema jurídico hispânico medieval, a ponto
de este ser encarado como um puro e simples desenvolvimento do
direito germânico (3).

(') Cfr., supra, págs. 77 e segs., e 139 e seg.


(2) Cfr., supra, págs. 95 e segs., 126 e segs., e 139 e seg.
( ) Ver J. Ficker, Sobre el intimo parentesco entre el derecho hispano y el noruego-
-islandico, trad. para castelhano, Barcelona, 1928 (o original alemão é de 1888),
Eduardo de Hinojosa, El elemento germânico en el Derecho espánol, in "Obras",
cit.,
tomo II — "Estúdios de Investigación", Madrid, 1955, págs. 407 e segs. (a l.a ed.
deste estudo, em alemão, é de 1910), E. Wohlhaupter, Das germanische Element im
altspanischen Recht und die Rezeption des rómischen Recht in Spanien, in "Zeitschrift der
Savigny-Stiftung fiir Rechtsgeschichte", cit., rom. Abt., vol. LXVI, págs. 135 e segs.,
A. García-Gallo, La historiografia jurídica contemporânea (Observaciones en torno
de la "Deutsche Rechtsgeschichte" de Planitz), in "An. de Hist. dei Dei. Esp.",
cit., tomo XXIV, págs. 605 e segs., designadamente págs. 606 e segs. (El Derecho
germânico y su importância en la formación dei espãfcl), e El carácter germânico de la épica y
dei Derecho en la Edad Media espâhola, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo
XXV, págs. 583 e segs. Entre nós, o relevo do elemento germânico foi salien-

164
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

Já aludimos à discussão que se trava entre "romanistas" e


"germanistas", bem como à inconveniência de uma radicalização
de posições (*). Parece fora de dúvida o alcance expressivo
do contributo germânico para a formação do sistema jurídico da
Reconquista. O Código Visigótico, onde não podem deixar de
reconhecer-se marcas de tal procedência (2), manteve-se como
fonte de direito. Além disso, várias instituições que floresceram
nessa época por via consuetudinária, maxime em matéria de direito
político, de direito penal e de processo, compreendem-se mais
facilmente a partir da tradição germânica.
O que se afigura inaceitável é uma explicação exclusivista.
Nunca deve meriosprezar-se o peso da longa vivência peninsular do
direito romano, embora uma posição unilateral neste sentido seja
também inadequada.
Está demonstrado que diversas instituições medievais, a que se
atribuia raiz germânica, possuem uma génese romano-vulgar ou
que resultam das próprias circunstâncias da Reconquista. Acresce,
por outro lado, que determinadas instituições se encontram, no
essencial, tanto no direito romano vulgar como no direito germâ-
nico, ou mesmo no direito primitivo, tornando-se, pois, difícil assi-
nalar a sua origem exacta. Algumas vezes, ter-se-á produzido a
fusão de preceitos, sem que se observe uma predominância (3).
Em todo o caso, considera-se primacial o elemento romano.
Mas não se esqueçam, ainda, os restantes factores detectáveis no direito
medievo da Península.

tado, sobretudo, por Teophilo Braga, Historia do Direito Portuguez—Os


foraes,
Coimbra, 1868.
(') Cfr., supra, pág. 139.
( ) Cfr., supra, pág. 132.
(3) Ver, por todos, Paulo Merêa, no "Prefácio" dos "Est. de Dir.
Hisp.
Med.", cit., tomo I, Coimbra, 1952, págs. IX e seg. As investigações deste
Mes-
tre são conclusivas a respeito de vários institutos. Consultar, ainda, a bibliografia
indicada, supra, pág. 96, nota 1.

165
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Conta-se, entre estes, o elemento cristão e canónico. O seu reflexo


na formação do direito peninsular produziu-se, desde logo, de uma
forma indirecta, através da legislação romana posterior a Constan-
tino, designadamente dos preceitos incluídos no Breviário de Ala-
rico. Todavia, foi de uma maneira directa que essa influência mais
se exerceu, durante o período medieval, quer combatendo barba-
rismos característicos da época, quer abrangendo na esfera do
direito canónico certos aspectos jurídicos, como o matrimónio (l).
A respeito do elemento muçulmano, há que referir o seu reduzido
significado. Destacámos, oportunamente, não só a natureza confes-
sional do direito islâmico (2), mas ainda a autonomia jurídica e judi-
cial de que gozou uma grande parte da população que se manteve
cristã ( ). De qualquer modo, conhecem-se instituições de prove-
niência árabe. Constitui um exemplo a "terça", isto é, a quota
sucessória disponível que se manteve no direito português até à
reforma de 1910 ( ). Acresce a existência de vestígios islâmicos na
nomenclatura técnico-jurídica, como sucede com as palavras
alcaide , alcaide , almoxarife , alvazil , aiboroque e alca-
vala". O papel dos moçárabes foi neste campo saliente.
Também se situa num plano subalterno o elemento hebraico. É
que se trata, igualmente, de um direito confessional (5). A popula-
ção judaica tornou-se expressiva nos Estados da Reconquista. Não

(') Cfr., supra, págs. 140 e seg., o que se indicou a propósito do direito
canónico na Monarquia Visigótica.
(2) Cfr., supra, págs. 153 e segs.
(3) Cfr., supra, págs. 155 e segs.
(4) Ver Paulo Merêa, Sobre as origens da terça, in "Est. de Dir.
Hisp.
Med.", cit., tomo II, págs. 55 e segs. A reforma referida operou-se com o
Decreto de 31 de Outubro de 1910, que alargou para metade a porção disponível,
nos casos gerais, e para dois terços, tratando-se da sucessão de ascendentes do 2.°
grau ou de grau superior (arts. 1.°, § único, 3.° e 4.°). Estas soluções foram
incorporadas no Código Civil de 1867, através da nova redacção que a alguns dos
seus preceitos foi dada pelo Decreto n.° 19126, de 16 de Dezembro de 1930.
(5) Cfr., supra, pág. 157.

166
PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ

obstante, o contributo do direito hebraico ter-se-á operado, sobre-


tudo, por meio das influências cristãs e muçulmanas.
Autores antigos e modernos têm chamado a atenção para o
elemento franco. Será exagerado, sem dúvida, atribuir qualquer pre-
ponderância franca no direito hispânico medieval ( ). Mas não
podem ignorar-se alguns factos que propiciariam importações jurí-
dicas: a origem borgonhesa de D. Raimundo e D. Henrique; o
estabelecimento de colónias de Francos em múltiplas localidades da
Península — como, no território portugalense, Atouguia, Azam-
buja, Lourinhã, Vila Franca e Vila Verde — a que se concederam
privilégios especiais ( ); a expansão dos mosteiros clunicenses e cis-
tercienses. E natural que essas influências se hajam exercido mais
acentuadamente nas regiões do Nordeste, em consequência da pro-
ximidade desse Estado transpirenaico ( ).
Assim, considera-se provada a origem franca da "posse de ano
e dia", que colocava o possuidor, em relação à coisa possuída,
perante terceiros, numa posição jurídica privilegiada (4). E não
parece de excluir que o mesmo se verifique com certas instituições a
que, comummente, se atribui uma raiz suevo-gótica(5).

(') Ver. A. Helfferich/G. de Clermont, Fueros francos. Les communes


fran-
çaises en Espagne et en Portugal pendant le moyen-âge, cit., que, na pág. 2, declaram:
"Nous ne pensons pas exagérer en disant qu'il n'y a presque pas de province, de
district en Espagne ou n'aient pénétré des français et des coutumes françaises".
Com referência ao território português, ver, especialmente, págs. 42 e segs.
Pode, ainda, consultar-se Helfferich, Entstehung und Geschichte des Westgothen-
-Rechts, BerYm, 1858, pág. 289.
(2) Ver os dados recolhidos por A. Helfferich/G. de Clermont,
Fueros
francos, cit.
(3) Sobre a população franca na Reconquista, ver, por ex., a síntese de L.
G. DE VALDEÃVELLANO, Curso, cit., pág. 308.
(4) Ver Paulo Merêa, Sobre a posse de ano e dia no direito dos foros, in "Est. de
Dir. Hisp. Med.", cit., tomo II, págs. 163 e segs., e G. Braga da Cruz, A
posse
de ano e dia no direito hispânico medieval, in "Obras Esparsas", vol. I, cit., l.a parte,
págs. 259 e segs.
(5) Como adianta Paulo Merêa, no "Prefácio" dos "Est. de Dir.
Hisp.
Med.", cit., tomo I, págs. XI e seg.

167
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Apreciados os elementos que, mais ou menos, intervieram na


formação do direito da Reconquista cristã, convém salientar que
não se encontram neles a inteira explicação das instituições da
época. A originalidade do sistema jurídico desse período resulta, em
boa medida, das condições sociais, políticas e económicas que o
rodearam.
A confusão lançada pela conquista árabe, seguiu-se um longo
ciclo de guerra constante. Estava-se numa conjuntura em que a
organização social era ditada pelas necessidades militares, se desco-
nheceu uma autoridade central forte e a economia assentava na
produção agrícola e familiar. Compreende-se que deste condiciona-
lismo tenha decorrido um direito caracterizado por normas e prin-
cípios jurídicos rudimentares e de índole primitiva. Muitas das suas
instituições representam uma criação da época, da peculiaríssima
situação histórica vivida. É um aspecto a ter em linha de conta ao
assinalarem-se antecedentes, correspondências ou paralelismos.

168
PARTE II

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DO
DIREITO PORTUGUÊS
CAPÍTULO I
PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA DO
DIREITO PORTUGUÊS
28. Visão de conjunto da evolução do direito português

A divisão da história do direito português em períodos


tem sido encarada a partir de critérios diversos (*). Cada um
deles salienta os aspectos que os seus autores consideram pre-
dominantes ou decisivos na evolução jurídica, ou que mais
perfeitamente a traduzem. As opções relacionam-se também
com as áreas que constituem objecto de estudo. É que não se
mostra fácil, por exemplo, uma divisão cronológica igual-
mente adequada à história do direito político e do direito pri-
vado, assim como se verificam dissemelhanças na evolução das

(') Ver L. Cabral de Moncada, O problema metodológico na ciência da história


do direito português, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. II, Coimbra, 1949, págs.
179 e segs., que analisa os critérios a que chama "étnico-políticos" e "jurídico-
-externos", seguidos pela nossa mais antiga historiografia do direito, e adopta
uma orientação "jurídico-interna". Na mesma linha, embora com diferenças
mais ou menos salientes, poderão considerar-se G. Braga da Cruz, Hist. do Dir.
Port., cit., págs. 39 e segs., I. Galvão Telles, História do Direito Português, Lisboa,
1942, parte I, págs. 55 e segs., Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do
Dir.
Port., cit., vol. I, págs. 16 e segs., e M. J. Almeida Costa, Uma perspectiva da
evolução do direito português, Coimbra, 1988 (sep. do "Anuário da Universidade de
Coimbra" —1988/1989). Neste quadro se inclui a periodização aqui seguida.
Acentuam outras coordenadas importantes Marcello Caetano, Liç. de Hist. do
Dir. Port., cit., págs. 10 e segs., e Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 29 e segs.,
António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas medieval e
moderna,
Coimbra, 1982, págs. 35 e segs., e Martim de albuquerque/Rui de
Albuquer-
que, História do Direito Português, vol. I, Lisboa, 1984/1985, págs. lie segs.

173
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

fontes, das instituições e do pensamento jurídico (*). Aliás,


acabam por existir nexos de complementaridade entre alguns
desses critérios. E, de qualquer modo, tais diferenças de pon-
tos de vista apresentam o incontestável interesse de uma com-
preensão da mesma realidade sob ângulos diversos, o que con-
tribui, sem dúvida, para o seu melhor conhecimento.
Afigura-se pertinente reduzir o processo evolutivo do direito
português, desde os alvores da nacionalidade, pouco antes dos mea-
dos do século XII, até à época presente, a três ciclos básicos, bem
distintos, com duração, perspectiva e significado muito diversos.
São eles: a) o período da individualização do direito português; b) o
período do direito português de inspiração romano-canónica; c) o
período da formação do direito português moderno.
Não pressupõe tal periodização um critério homogéneo,
enquanto se assinalam, em assimetria, os problemas específicos ou
fulcrais que conferem personalidade própria às sucessivas épocas (2).
Por outro lado, obviamente, atribui-se às datas concretas que se
apontam para delimitá-las um mero valor simbólico ou de referên-
cia. Pois, como apreciaremos, ainda quando os eventos que marcam
o termo de um ciclo histórico ocasionam transformações profundas,
nunca as mudanças jurídicas são, no seu conjunto, radicais e
instantâneas.
Openodo da individualização do direito português decorre da funda-
ção da nacionalidade aos começos do reinado de Afonso III, por-
tanto, de 1140 a 1248. Com efeito, a independência política de Por-
tugal não envolveu uma autonomia imediata no campo do direito.
Verificou-se a manutenção do sistema jurídico herdado do Estado
leonês. Só pouco a pouco foram surgindo fontes tipicamente
portuguesas. Tratava-se, de resto, de um direito de base consuetu-

(') Isto mesmo se observou ao tratar-se dos métodos cronológico e mono-


gráfico (ver, supra, págs. 35 e seg.).
(2) Ver o que se escreveu, supra, pág. 41.

174
PERIODIZAÇÃO DA HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dinária e foraleira, caracterizado pelo empirismo jurídico, com


predomínio da actividade dos tabeliães na sua evolução.
begue-se o período do direito português de inspiração romano-canónica,
que, iniçiando-se em meados do século XIH, apenas se encerra na
segunda metade do século XVIII. Corresponde-lhe a força de pene-
tração avassaladora do chamado direito comum ("ius commune")^).
Convirá assinalar, dentro desta longa fase da evolução do
nosso sistema jurídico, dois subperíodos: d) época dajecepjc^Ja^^to
romano renascido e do direito canónico renovado (direito comum);b) época das
Ordenações. Na verdade, embora permaneçam as influências roma-
nísticas e canonísticas, verifica-se, pelos meados do século XV, em
1446 ou 1447, o início da vigência das Ordenações Afonsinas (2). E
essa primeira codificação oficial, que não tardaria muito a ser
reformulada, alicerçou um marco importante na evolução do nosso
direito. Corresponde-lhe uma centralização legislativa que tem
pressupostos políticos evidentes e consequências, a vários títulos, de
enorme relevância. Justifica um "antes" e um "depois". Até por-
que se acentua a independência, ao menos formal, do direito pró-
prio do reino em face do direito comum, subalternizado no posto
da fonte subsidiária e apenas devido a concessão do monarca. Tudo
se analisará a seu tempo.
Atingimos, por fim, o período da formação do direito português
moderno. O seu começo comcidé com õ consulado- do Marquês de
'Pombal. Já nos meados do século xvill, Luís António Verney pro-
clama novas directivas (3). Mas só a chamada Lei da Boa Razão, de
1769, e os Estatutos da Universidade, de 1772, concretizam uma
viragem expressiva, tanto da ciência e da prática do direito como
da pedagogia jurídica. Essas constituem as datas carismáticas.
Abre-se, então, o ciclo genético imediato que conduz ao sis-
tema jurídico de nossos dias. Representa, antes de mais, a grande

(') Sobre este conceito, ver, infra, págs. 252 e segs.


(2) Ver, infra, págs. 269 e segs.
(3) Ver, supra, págs. 45 e segs.

175
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mudança operada com o advento e a generalização das correntes


doutrinárias do direito natural racionalista, do Iluminismo e do uso
moderno ("usus modernus pandectarum"). Acresce, nos começos
do século xix, o individualismo postulado pela ideologia da Revo-
lução Francesa, em conexão com o liberalismo político e econó-
mico, o qual desemboca no positivismo jurídico, nas construções de
feição abstracta e formalista, assim como no movimento de
codificação.
Depois, já particularmente no século XX, deram-se novas
mudanças da reflexão jusfilosófica e do pensamento do direito,
acompanhadas de conhecidos factores noutros planos, que conduzi-
ram a um sentido de democratização económica e ao intervencio-
nismo da legislação do Estado a limitar — maxime na esfera do
direito privado — os excessos dos anteriores dogmas da autonomia
da vontade e da liberdade contratual, edificando-se por toda a
parte um direito social, ou, se preferirmos, uma tendência social do
direito. Em decorrência, assiste-se ao aparecimento de neoforma-
ções jurídicas, assim como a profundas mudanças no campo da
dogmática. Tudo traduzindo a preocupação de soluções que reali-
zem a justiça material.
Conclui-se do exposto que este último período da história do
direito português deve ser desdobrado em três subperíodos. Assim:
a) época do jusnaturalismo racionalista^ desde a segunda metade do
século xvín até aos começos do século xix — fixando-se como
limite o ano de 1820, quando se deu a Revolução Liberal: b) época do
individualismo, desde os referidos começos de oitocentos até à
segunda década do século XX — ou, mais concretamente, até à I
Grande Guerra (1914/1918); c) época do direito social, a partir desta
última data.
O segundo dos mencionados subperíodos costuma receber
o
nome de épocaliber^em. virtude da corrente política que lhe mar-
cou o início. Afigura-se preferível, contudo, a designação mais
ampla e também consagrada de época do individualismo —ou,

176
PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mesmo, de época do individualismo filosófico ou crítico (*)—,


capaz de denunciar o seu carácter poliédrico, isto é, enquanto
reduz ao mesmo denominador os aspectos político, económico, cul-
tural e jurídico-privado.

(') Cfr. L. Cabral de Moncada, Origens do moderno direito português


— Época do individualismo filosófico ou crítico e O problema metodológico na ciência da
história do direito português, cit., in "Est. de Hist. do Dir.", vol. II, respectivamente,
págs. 55 e segs., e págs. 179 e segs.

177
QUADRO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

PERÍODO DA INDIVI- PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO


DUALIZAÇÃO DO INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA PORTUGUÊS MODERNO
Época do individualismo Época do direito social
DIREITO PORTUGUÊS Época das Ordenações Época do jusnaturalismo
Época da recepção do racionalista
direito romano renascido e
do direito canónico reno-
vado (direito comum)
Formação e evolução do — Direito natural raciona- — Liberalismo económico
direito comum: lista e político
— Escola dos Glosadores — Escola do "usus moder- — Individualismo
(século XII) nus" — Positivismo jurídico (po-
— Escola dos Comentado- — Iluminismo sitivismo científico e po-
res (século XIV) — Humanitarismo sitivismo legalista)
— Escola Humanista — Construções de feição
(século XVI) — Reformas pombalinas: abstracta e formalista
-Manutenção das fontes Alterações pontuais — Movimento de codifica-
de direito herdadas do Lei da Boa Razão ção
Estado leonês (18 de Agosto — A certeza e a segurança
- Aparecimento progres- de 1769) como valores essenciais
sivo de fontes tipica- c) Estatutos da Univer- do direito (prevalência
mente portuguesas dade (1772) dos métodos axiomáti-
- Sistema jurídico de base cos e dedutivos)
Começos do século XIX
consuetudinária e fora- (1446/1447) (1820) (1446/1447)
leira — Ordenações Manuelinas
-Empirismojurídico, com (1521)
predomínio da acção
— Colecção das Leis Extra-
Meados Actualidade
do século XIII (1248) Segunda metade
do século XVIII (1769/1772)
dos tabeliães ou notá- vagantes de Duarte Nu-
rios na evolução do nes do Lião (1569)
direito — Ordenações Filipinas
(1603) confirmadas por
D. João IV (1643)
h)
Difusão do direito comum:
— Na generalidade da Eu-
ropa (século XII)
— Em Portugal
Meados (século XIII)
do século XII (1140) Meados do século XV
— Revoluções industriais ao. lado das instituições e — Preocupação de soluções
e dos ramos clássicos do que realizem a justiça
tecnológicas direito material (prevalência dos
— Doutrinas solidaristas e — Tendência social do direi- métodos tópicos e juris-
de democratização to e desenvolvimento da prudenciais)
econó- sua publicização Começos do século XX
mica — Dinâmica do princípio in- (1914/1918)_____________
— Neoformações tervencionista no âmbito
jurídicas, da autonomia privada

CAPITULO II -?

PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO
DO DIREITO PORTUGUÊS
29. Fontes do direito português anteriores à segunda
metade do século xni

Analisemos, antes de mais, as fontes do nosso direito respei-


tantes ao período que se inicia com a fundação da nacionalidade e
termina nos meados do século xm. Apenas a partir desta última
data, ou seja, desde o reinado de Afonso III, inclusive, se verifica,
como salientámos, uma acentuada tendência para a personalização
do direito português.
Trata-se de uma fase que representa a continuação básica do
quadro jurídico tradicionalmente estabelecido. Visto que o nosso
país surgiu de um desmembramento do Reino de Leão, nada admira
que as fontes do direito leonês tenham vigorado também ^m Por-
tugal nos primórdios da sua indepejidêrtria.. Importa, pois, a indica-
ção separada das fontes que se conservaram em vigor e das que
surgiram após a autonomia política portuguesa.

a) Fontes de direito do Reino de Leão que se mantiveram em vigor.

I — Código Visigótico

Menciona-se, primeiramente, o Código Visigótico, que per-


manece como fonte de direito no território português
ainda
durante todo o século XII. É frequente a sua citação em
documen-
tos dessa área geográfica, anteriores e posteriores à fundação da
nacionalidade: umas vezes, trata-se de invocações formais ou gené-
ricas do Código Visigótico, designado por "lex gothorum" ou ape-

183
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

nas "lex", "fórum iudicum", "liber iudicum" e "liber iudicialis";


outras vezes, aduz-se mesmo o respectivo conteúdo, de modo mais
ou menos preciso, embora, não raro, com alterações sensíveis (!).
Daqui se infere que as alusões ao Código Visigótico, tanto
podem significar meras reminiscências eruditas ou fórmulas roti-
neiras dos juízes e dos tabeliães, que não traduziam uma verdadeira
aplicação prática daquela fonte (2), como, pelo contrário, serem tes-
temunhos de vigência efectiva dos seus preceitos. O ambiente jurí-
dico da época propiciava tais discrepâncias. Constituía, em todo o
caso, o único corpo de legislação geral capaz de, ao tempo, servir

(') Refiram-se, por ex.: um doe. de 1099 — "Magnus est titulus donationis
in quo nemo potest actum largitatis inrumpere ne foris legis proicere ut quicquid
omnis ingenuus vir atque fernina de omni sua re vel hereditate faciat quod volue-
rit..." (Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, tomo I, Braga, 1965, n.° 151, pág.
177 — edição crítica pelo P.e Avelino de Jesus da Costa); um doe. de 1101

"...et ad ipsum locum sanctum pariat quantum inde abstulerit in quadruplum et
insuper auri talenta una et hoc factum nostrum firmitatis roborem habeat in
secula seculorum sicut scriptum est in Libro iudicatum (sic por "Iudicum") V.°,
kapitulo I.°, sententia III.a "de donationibus ecclesie datis sive famulorum meri-
tis..." (Liber Fidei, cit., tomo I, n.° 232, pág. 274); um doe. de 1130 — "...Si autem
aliquis homo tam de extraneis quam de propinquis hoc factum meum inrum-
pere voluerit quod fieri non credo tibi vel qui vocem tuam pulsaverit illam
hereditatem componat in quadruplum et regiae potestati quod liber iudicum pre-
cipit..." (Documentos Medievais Portugueses — Documentos Régios, vol. I, tomo I, Lis-
boa, 1958, n.° 106, pág. 129); um doe. de 1146 — "...Quoniam regum est necnon
etiam cuiusque uiri ingenuitatis titulo decorati sicut in legibus gotorum inuenitur
de propriis possessionibus propriam implere uoluntatem..." (Doe. Med. Port.—
Doe. Reg., cit., vol. I, tomo I, n.° 216, pág. 265). Com data posterior, indica-se o
doe. de 1187 referido por Alexandre Herculano, Portugaliae Monumenta
His-
tórica— Leges et Consuetudines, vol. I, Olisipone, 1856, pág. X (Lex gotorum libe-
ras a servicio duplicia non sedeat crebantado, sed semper sit ingénuo").
(2) É o ponto de vista para que propende G. Braga da Cruz, O direito
subsidiário na história do direito português, Coimbra, 1975, pág. 180, nota 1 da pág.
anterior (sep. da "Rev. Port. de Hist.", cit., tomo XIV, com a mesma paginação;
estudo republ. in "Obras Esparsas", cit., vol. II, 2.a parte, Coimbra, 1981,
págs. 245 e segs.).

184
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

de lastro jurídico comum ou ponto de referência dos povos peninsu-


lares, inclusive para efeitos supletivos.
É afirmação corrente que, desde o início do século xm, come-
çam a escassear as referências ao Código Visigótico nos documen-
tos portugueses, como reflexo de uma progressiva perda da sua
autoridade. Assim deve ter sucedido, mercê da oposição de precei-
tos consuetudinários locais e, sobretudo, à medida que a legislação
geral e a eficácia do direito romano-canónico se foram incremen-
tando. Antes, porém, de um levantamento sistemático dos largos
fundos documentais inéditos, essa afirmação translatícia dos auto-
res, desacompanhada de comprovação (*), representa uma simples
conjectura, posto que muito verosímil.
Em Leão e Castela, o Código Visigótico teve uma vigência
mais prolongada. Na primeira metade do século xm, com Fer-
nando 111, àeu-se uma revitalização desse corpo legislativo. Então
traduzido para romance e recebendo o nome de Fu&o Juzgo, foi
outorgado, a várias cidades, como estatuto municipal ( ).

(') Tem-se considerado que existe referência ao Código Visigótico num


diploma de Afonso II, sem data conhecida, no qual o monarca proíbe o acata-
mento de certas determinações de Soeiro Gomes, prior dos dominicanos, cujo
conteúdo se discute. Um dos argumentos que fundamentam a proibição consiste
no facto de tais determinações serem contra "illum librum legum qui dicit quod
non recipiamus nouam legem in regno nostro per quem librum et per quale
fórum debent iudicari filiis de algo Port." {Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit.,
vol. I, n.° XXI, pág. 180). Já Alexandre Herculano (ibid., "Nota
Introdutória",
págs. X/XI) relaciona o trecho mencionado com o Código Visigótico (liv. II, tít.
I, lei VIII). Poderá conjecturar-se, com base no mesmo texto, que o Código
Visigótico se aplicava à classe nobre, regendo-se a classe popular por direito
consuetudinário? (Ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port.,
cit.,
vol. I, pág. 113, nota 6).
(2) Ver García-Gallo, Manual, cit., tomo I, págs. 90 e 377.
Consultar,
também, Maria Luz Alonso, La perduración dei Fuero Juzgo y el Derecho de
los
castellanos de Toledo, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XLVIII, págs. 335
e segs.

185
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

II — Leis dimanadas de Cúrias ou Concílios reunidos em Leão, Coiança


e Oviedo

Outras fontes de direito que se mantiveram vigentes no terri-


tório português foram as leis gerais saídas de algumas Cúrias ou
Concílios que se realizaram antes da fundação da nacionalidade.
Referimo-nos às assembleias com essa índole celebradas em^Leão
(1017)0, Çoiança (1055)Qe Oviedojl 115)Q.
Discute-se sobre se tais assembleias solenes constituíam Cúrias
extraordinárias ou Concílios. A Cúria, filiação da Aula Régia visigó-
tica, era um órgão auxiliar do rei que tinha, portanto, um carácter
eminentemente político. Das reuniões extraordinárias ou plenárias
da Cúria resultou, mais tarde, a instituição das Cortes (4).
Diversamente, os Concílios caracterizavam-se pela sua
natu-
reza eclesiástica. Todavia, como os altos dignitários da Igreja parti-
cipavam nas reuniões da Cúria e também os Concílios, mercê das
circunstâncias da época, não raro eram convocados pelo rei e neles
colaboravam leigos, as duas instituições tendiam a confundir-s,e (5).
Para a diferenciação a estabelecer, em cada caso, deve
atender-se à entidade convocante, às matérias versadas e à sanção

(') Ver, por todos, Alfonso García-Gallo, El Fuero de León. Su


historia,
textos e redacciones, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XXXIX, págs. 5 e
segs.
(2) Ver, por todos, Alfonso García-Gallo, El Concilio de Coyanza.
Contri-
bución ai estúdio dei Derecho canónico espánol en la Alta Edad Media, in "An. de Hist.
dei Der. Esp.", cit., tomo XX, págs. 275 e segs.
(3) Podem consultar-se os Port. Mon. Hist.—Leges et Cons., cit., vol. I,
págs. 140 e segs.
(4) A diferença consiste no facto de, nestas últimas, os representantes do
clero, nobreza e povo poderem tomar a iniciativa de propor assuntos a aprecia-
ção e decisão: os chamados agravamentos e, depois, artigos ou capítulos.
(5) Ver José Maldonado y FernAndez del Torço, Las relaciones
entre el
derecho canónico y el derecho secular en los concílios espãnoles del siglo XI, in "An. de Hist.
del Der. Esp.", cit., tomo XIV, págs. 227 e segs., especialmente págs. 304 e segs.

186
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

canónica ou régia das decisões que se tomam. Talvez possamos


falar, com algum rigor, da Cúria de Leão e de Concílios de
Coiança e de Oviedo.
De qualquer modo, presume-se que as normas gerais resultan-
tes dessas assembleias tiveram aplicação no nosso país. Aponta nesse
i sentido a circunstância de parte das disposições emanadas de Leão e
de Coiança se encontrarem em cartulários portugueses (*). Quanto
às leis de Oviedo, foram juradas por D. Teresa e D. Afonso
Henriques (2).

III — Forais de terras portuguesas anteriores à independência

Também continuaram a ter plena eficácia, depois da fundação


da nacionalidade, forais do século XI e dos começos do século XII.
Os monarcas leoneses, na verdade, outorgaram um número apre-
ciável desse tipo de fontes de direito local cuja força vinculativa se
conservou após as respectivas localidades se transformarem em ter-
ritório português.
Exemplifica-se com os forais de S. João da Pesqueira, Penela,
Paredes, Linhares, Anciães e Santarém. Alguns deles receberam
confirmação dos nossos reis. Há igualmente forais de D. Henrique
e D. Teresa, como os de Guimarães, Azurara da Beira, Tentúgal e
Coimbra. E ainda outros da iniciativa de entidades eclesiásticas ou
[/ de senhores leigos (3).

(') As pertencentes ao "Fórum Legionensis" (ou "Fuero de León") no


Liber Fida, cit., tomo I, n.° 1, págs. 3 e segs., e os decretos do Concílio de
Coiança no Livro Preto da Sé de Coimbra, vol. III, 1979, n.° 567, págs. 242
e segs. — edição crítica por P.e Avelino de Jesus da Costa/Leontina Ven-
tura/M. Teresa Veloso.
(2) Ver Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 140, III, e 142.
(3) Ver os forais anteriores à fundação da nacionalidade nos Port. Mon.
Hist.—Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 343 e segs., ou na colectânea de fontes
promovida pela Faculdade de Direito de Coimbra, sob o título "Colecção de
Textos de Direito Português", I —"Foraes", vol. I, Coimbra, 1914, págs. 3 e segs.

187
HISTÓRIA IDO DIREITO PORTUGUÊS

Recordemos, todavia, oque se entende por foral ou_ carta de


foral(*). Assim se qualifica o diploma concedido pelo rei, ou por um
senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo nor-
mas que disciplinam as relações dos povoadores ou habitantes, entre
si, e destes com a entidade outorgante. Representa o foral a espécie
mais significativa das chamadas cartas de privilégio (2).
Observam-se, primeiro, documentos muito rudimentares, que
se estruturam fundamentalmente como contratos agrários colecti-
vos: as cartas de povoação, onde avulta o intuito de povoar o que está
ermo, ou apenas atrair nova mão-de-obra a locais já habitados.
Para o efeito, o rei, o senhor ou a instituição eclesiástica — cada
qual a respeito do seu domínio fundiário—, dirige-se, as mais das
vezes de todo em abstracto, aos que queiram fixar-se em certa
localidade, mediante adesão às cláusulas estabelecidas no diploma.
Muitos desses actos ficaram na base de núcleos populacionais
autónomos.
Passamos, quase insensivelmente, do simples contrato de afo-
ramento à carta de povoação. E, do mesmo modo, não existe ver-
dadeira quebra de continuidade entre esta e o foral.
Alexandre Herculano adopta, a respeito do tema, uma posição
demasiado estreita: apenas qualifica de forais os diplomas que con-.

(') Ver a síntese e as referências bibliográficas de M. J. Almeida Costa,


Forais, in "Dic. de Hist. de Port.", cit., vol. II, págs. 279 e segs., e in "Temas de
História do Direito", cit., págs 52 e segs. Destacam-se, especialmente, Paulo
Merêa, Em torno da palavra "fórum" (Notas de semântica jurídica), in "Rev. Port. de
Filol.", cit., vol. I, tomo II, págs. 485 e segs., e Alfonso García-Gallo, Aporta-
ción ai estúdio de los jueros, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XXVI, págs.
387 e segs., onde se começa por abordar o problema da origem e das acepções da
palavra "fuero". Mm,^ <£( fa///7.ej./d
(2) Como tais se designam, num sentido amplo, todos osMocumentos que
atribuem prerrogativas ou isenções de qualquer natupeaa. Porém, num sentido
restrito, circunscreve-se o conceito de cartas de privilégio aos diplomas que, embora
de carácter diverso, criam para certas comunidades ou localidades uma disciplina
jurídica específica e mais favorável do que a comum.

188
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

ferem existência jurídica a um município, indiciada que seja por


uma qualquer magistratura própria e privativa. Deste mínimo
requisito, sobe, na sua divulgada classificação, até aos documentos
onde a orgânica concelhia se estrutura de forma perfeita, conside-
rando que sem ele, pelo contrário, se está em face de meras cartas
de povoação ou contrários agrários colectivos(l).
Não se trata de um critério exacto. Como bem adverte Paulo
Merêa, "importa não ligar valor excessivo à questão das magistra-
turas municipais, manifestação visível, mas muitas vezes serôdia,
duma formação concelhia. Não resta dúvida de que a ideia munici-
pal podia existir antes que existissem aquelas magistraturas,
enquanto por outro lado se observa que pequenas povoações com
juiz de sua eleição não eram havidas como concelhos" (2).
Logo se conclui, do que antecede, que as dimensões e o con-
teúdo dos forais são variáveis. Via de regra, os seus preceitos disci-
plinam as matérias seguintes: liberdades e garantias das pessoas e
dos bens dos povoadores; impostos e tributos; composições e multas
devidas pelos diversos delitos; imunidades colectivas; serviço mili-
tar; encargos e privilégios dos cavaleiros vilãos; ónus e forma das
provas judiciais, citações, arrestos e fianças; aproveitamento dos
terrenos comuns.

(') Quanto às posições de Alexandre Herculano a respeito dos


forais,
ver a sua História de Portugal, cit., 8.a ed., tomo VII, págs. 83 e segs., e tomo VIII,
págs. 20 e segs., e Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 337 e segs.
(2) Sobre as Origens do Concelho de Coimbra, in "Rev. Port. de Hist.", cit.,
tomo I, págs. 49 e segs., designadamente pág. 50. No que toca ao problema da
classificação dos concelhos por Herculano, assim como quanto à sua doutrina
acerca da origem romana dos municípios medievais — teses hoje superadas—,
consultar a síntese de Torquato de Sousa Soares, Concelhos, in "Dic. de Hist.
de
Port.", cit., vol. I, págs. 651 e segs., onde se indica a bibliografia fundamental.
Ver, posteriormente, Humberto Baquero Moreno, Herculano e a História de
Por-
tugal, in "Herculano e a sua Obra", Porto, 1978, págs. 14 e segs.

189
HISTÓRIA IX) DIREITO PORTUGUÊS

Portanto, incluem-se, fundamentalmente, normas de direito


público. Os preceitos de direito privado ocupam nos forais um
plano muito secundário. Mas, nem mesmo na esfera publicística, há
uma preocupação exaustiva, podendo dizer-se que vastas e impor-
tantes matérias continuaram, no todo ou em parte, a ser reguladas
pelo costume.
Frequentes vezes, ao conceder-se o foral a determinada terra,
tomava^-se por modelo um outro anterior, que se reproduzia inte-
gralmente ou com modificações. Daí os vários grupos ou famílias
de forais (').

IV — Costume _
Por último, refere-se o costume. Este conservou, entre nós, a
sua vigência anterior. O direito privado, designadamente, tinha
como fonte principal ou quase exclusiva o costume, que prosseguia
a linha das normas consuetudinárias leonesas. Importa, porém,
salientar a amplitude com que no período medieval se entendia essa
fonte de direito.
Em sentido rigoroso, o costume é o modo de formação e reve-
lação de normas jurídicas que se traduz na prática constante e reite-
rada de uma certa conduta (elemento material), acompanljada_da
convicção da sua obrigatoriedade (elemento psicológico). Ora,
nesta época, utilizava-se o conceito de costume num sentido amplo
ou residual (2): abrange todas as fontes de direito tradicionais que
não tenham carácter legislativo. Denominação genérica em que se
incluíam sentenças da Cúria Régia, depois designadas costumes da

(') Assim aconteceu, por exemplo, com o "fuero breve" de Salamanca,


que foi o ponto de partida, quando menos, de vinte e seis forais de terras portu-
guesas, sobretudo da Beira Baixa (ver Ana Maria Barrero, El fuero breve
de
Salamanca. Sus redacciones, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo L, págs. 439
e segs.
(2) Ver Braga da Cruz, Hist. do Dir. Port., cit., págs. 288 e 292 e seg., e O
direito subsidiário, cit., nota 3 da pág. 180, Martim de Albuquerque/Rui de
Albu-
querque, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 161 e segs., e Nuno J.
Espinosa
Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 114 e seg.

190
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

Corte, de juízes municipais e de juízes arbitrais (juízes "alvidros"),


isto é, nomeados por acordo das partes, cujas decisões se tornavam
precedentes vinculativos (!), assim como, segundo se afigura prová-
vel, pareceres de juristas consagrados.

b) Fontes de direito posteriores à fundação da nacionalidade

Ao lado das referidas fontes herdadas do Estado leonês,


começaram a surgir outras tipicamente portuguesas, se não quanto
ao conteúdo, pelo menos, do ponto de vista formal. A elas se deve
a progressiva individualização ou autonomização do sistema jurí-
dico do nosso país.

Entre as mais antigas fontes de direito de origem portuguesa,


começamos por enumerar as leis de aplicação geral. Compreende-
-se que, nos primórdios da nacionalidade, não tenha sobrado tempo

(') Dá-se o nome de façanhas às decisões judiciais que adquiriam força


vinculativa para futuros casos análogos. Às vezes, restringe-se o seu âmbito às
sentenças arbitrais. Outros autores, inversamente, ampliam o conceito, susten-
tando que os casos paradigmáticos que se tomavam como precedentes não seriam
apenas sentenças judiciais. Deste modo, julgar "por façanhas" equivalia a julgar
"por exemplos". Tal possibilidade de julgar "por exemplos" ter-se-á limitado,
mais tarde, às decisões de proveniência ou confirmação régia. Acrescente-se que
o termo façanhas, muito usado em Castela, teve, entre nós, pequena difusão. Ver,
além do estudo antigo de José AnastAsio de Figueiredo, Memoria sobre qual seja
o
verdadeiro sentido da palavra Façanhas, que expressamente se achão revogadas em algumas
Leis, e Cartas de Doações e Confirmações antigas, como ainda se acha na Ord. liv. 2 tit 35 §
26, in "Memorias de Litteratura Portugueza", cit., tomo I, Lisboa, 1792, págs. 61
e segs., Gama Barros, Hist. da Adm. Públ, cit., 2.a ed., tomo I, págs. 62 e seg.,
Paulo Merêa, Lições de História do Direito Português (ed. de 1923), cit., pág. 71, e
Resumo das Lições de História do Direito Português, cit., págs 49 e seg., Martim de
Albuquerque/Rui de Albuquerque, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs.
175 e
segs., e NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág.
115,
nota 4. Quanto à Espanha, consultar Juan GarcIa González, Notas sobre
fazahas,
in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XXXIII, págs. 609 e segs.

191
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

aos monarcas para um esforço legislativo que incutisse, desde logo,


personalidade relevante ao direito português. Encontravam-se absor-
vidos com problemas de consolidação da independência, definição
dos limites territoriais e acções de fomento.
Contudo, sabe-se que, embora pouco, alguma coisa se legis-
lou. Temos conhecimento indirecto de uma lei de Afonso Henri-
ques, através das referências que lhe são feitas em bulas pontifí-
cias (*). Também chegou até nós uma provisão de Sancho I(2).
Com Afonso II, a legislação geral começa a tomar incre-
mento. Este soberano convocou uma reunião extraordinária da
Cúria, por vezes qualificada impropriamente como Cortes (3), que se
realizou em Coimbra, no ano de 1211. Dela saíram várias leis, onde
já parece vislumbrar-se influência do direito romano das compila-
ções justinianeias (4).
Tais disposições apresentam uma certa ligação e sistematiza-
ção. Posto que não formem um corpo legislativo unitário, são, em
todo o caso, um conjunto de preceitos ordenados com algum
método. Aí se inclui uma norma em que se tem encontrado a solu-
ção da possível antinomia entre o direito canónico e as leis do
Reino, dando-se prevalência ao primeiro (5).
Pode dizer-se que começa com Afonso II a desenhar-se a ten-
dência de o monarca sobrepor a lei aos preceitos consuetudinários
que se considerem inconvenientes. Todavia, esta legislação ainda
não é o produto directo da vontade do rei, mas por ele promulgada
depois de ouvida a Cúria.

(') Ver os Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, pág. 161.
(2) Publicada nos Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, pág. 162.
(3) Ver, supra, pág. 186, nota 4.
(4) As leis da Cúria de 1211 encontram-se publicadas nos Port. Mon.
Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 163 e segs. Ver, também, DamiAo Peres,
As cortes de Í2ÍÍ, m "Rev. Port. de Hist.", cit., tomo IV, págs. 1 e segs.
(5) Ver, por ex., Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir.
Port.,
cit., vol. I, pág. 124. Põe em dúvida essa interpretação Braga da Cruz, O direito
subsidiário, cit., pág. 188, nota 16.

192
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

II — Forais

Compensando a escassez das leis gerais, são abundantes nesta


época as fontes de direito local. Durante os primeiros reinados,
sobretudo, concederam-se muitos forais e cartas de povoação (*).
As preocupações de conquista e de povoamento das terras,
que, em última análise, se reconduziam às de defesa contra as inves-
tidas sarracenas e as ameaças de absorção leonesa, determinaram a
necessidade de conceder cartas de povoação e forais. Estes consti-
tuem, sem dúvida, até Afonso III, uma das mais importantes fontes
de^direito português (2).
Como estamos a ocupar-nos do período delimitado pelos
meados do século XIII, não pertence referir os costumes ou foros.
Trata-se de outra valiosa fonte de direito local, distinta dos forais,
que, entre nós, surge apenas no ciclo imediato (3).

III — Coneórdias e concordatas


<^—11 in. )»■■ -i mm

Consistiam as coneórdias e as concordatas em acordos efectuados


entre o rei e as autoridades eclesiásticas, comprometendo-se, reci-
procamente, a reconhecer direitos e obrigações relativos ao Estado
e à Igreja. Não raro esses acordos resultavam de respostas aos agra-
vamentos proferidos em Cortes pelos representantes do clero.
Outras vezes, derivavam de negociações do rei com as autoridades
eclesiásticas, apenas nacionais ou intervindo o Papa. Neste último

(') Sobre estes conceitos, ver, supra, págs. 188 e segs.


(2) Os forais concedidos desde 1140 podem ser consultados nos Port. Mon.
Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 376 e segs., ou na "Gol. de Text. de Dir.
Port.", I —"Foraes", vol. I, cit., págs. 61 e segs. Ver a lista de forais de Fran-
cisco Nunes Franklin, Memoria para servir de indice dos foraes das terras do Reino
de
Portugal e seus domínios, Lisboa, 1816 (2.a ed., Lisboa, 1825).
(3) Ver, infra, págs. 258 e segs.

193
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

caso, utilizava-se frequentemente a designação de concordatas, que se


mantém na actualidade.
Os primeiros de tais convénios que se conhecem recuam aos
reinados de Sancho I, Afonso II e Sancho II. No período imediato
haveriam de incrementar-se ( ).

30. Aspectos do sistema jurídico da época

a) Considerações gerais

Confirma-se, pelo exposto, que o direito português, até mea-


dos do século XIII, teve uma base consuetudinária e foraleira, como
sucedeu nos restantes Estados peninsulares medievos, onde o
Código Visigótico cada vez mais perdia terreno e a legislação ia
aflorando timidamente. Por outro lado, o esforço de fomento social
e económico conduzia à difusão de fontes de direito local: as cartas
de povoação e os forais.
Compreende-se, de resto, que este sistema jurídico dos come-
ços da nacionalidade portuguesa fosse um direito rudimentar, carac-
terizado por instituições de tipo primitivo (2). Como sabemos, o
direito hispânico da Reconquista cristã, quanto ao seu conteúdo,
traduz o resultado de uma amálgama de camadas jurídicas
sobrepostas. Aos resíduos indígenas, que resistiram às diversas

(') Consultar Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal,


Coim-
bra, 1910, vols. I e II, António Domingues de Sousa Costa, As
Concordatas
Portuguesas, in "Itinerarium", ano XIII, n.° 51, Braga, 1966, págs. 24 e segs., e
Eduardo BrasAo, Colecção de Concordatas estabelecidas entre Portugal e a Santa Sê de
1238 a Í940, Lisboa, 1941.
(2) Ver a exposição desenvolvida de Gama Barros, Hist. da Adm. Publ,
cit., 2.a ed., passim, e as sínteses de Paulo Merêa, Resumo das Lições de História do
Direito Português, cit., págs. 72 e segs., e de Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port.,
cit., vol. I, págs 247 e segs., ocupando-se este último somente do direito criminal
e do direito processual da época.

194
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

dominações estrangeiras da Península, acrescentaram-se sucessiva-


mente: preceitos do chamado direito romano vulgar, fixados em
virtude da permanência prolongada dos Romanos na Hispânia;
influências canónicas, que se verificam, quer indirectamente, mercê
da legislação romana posterior a Constantino, quer directamente,
na época medieval; costumes germânicos, devidos sobretudo aos
Suevos e aos Visigodos; restos visíveis provenientes dos Árabes,
apesar da natureza confessional do seu direito; e mesmo outras
influências, como a franca, motivada principalmente pelas colónias
estabelecidas no solo peninsular.
Numa palavra, encontramo-nos diante de exemplo expressivo
de um daqueles sistemas a que já se deu o nome de "direitos de
cultura", por contraposição a "direitos de estirpe'^1). Mas convém
ainda não esquecer que o ordenamento jurídico da época deve uma
grande parte da sua originalidade e como que regressão atávica à
situação histórica em que se desenvolveu. Recordem-se as condi-
ções económicas, políticas e sociais do tempo, que assinalámos, em
geral, a propósito do direito hispânico da Reconquista cristã ( ).
Completa o quadro uma referência ao empirismo que presidia
à criação jurídica, orientada, no âmbito do direito privado, funda-
mentalmente, pelos tabeliães, através dos contratos e outros actos
que elaboravam, não existindo, via de regra, preceitos gerais indi-
vidualizadores dos vários institutos. Na verdade, são as escrituras
tabeliónicas, redigidas de acordo com a vontade concreta dos
outorgantes, que paulatinamente, acto após acto, modelam os
vários negócios jurídicos (3). A perfeita autonomia, a definição e a

(') Cfr. Arrigo Solmi, Storia dei Diritto Italiano, 3.a ed., Milano, 1930,
pág. 4.
(2) Ver, supra, págs. 162 e segs., o que se escreveu a respeito das caracterís-
ticas e dos elementos constitutivos do direito da Reconquista.
(3) Muito expressivamente, sugere Paulo Merêa que a actuação dos tabe-
liães "pode talvez ser aproximada, mutatis mutandis, da do jogral — meio termo
entre o bobo e o trovador — na esfera literária" ("Est. de Dir. Hisp. Med.", cit.,
tomo I, nota 5 do "Prefácio", pág. XVIII).

195
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

disciplina destes só vieram a operar-se à medida que se deu a pene-


tração das normas e da ciência do direito romano renascido e do
direito canónico renovado (*).

b) Contratos de exploração agrícola e de crédito

Não cabendo passar aqui de simples exemplificações, parece


adequada uma alusão aos contratos agrários, visto que constituíam
uma das traves mestras da vida económica e social medieva (2).
Aliás, tais contratos, antes das influências romanísticas, configuram-
-se como um conjunto de negócios inominados e sem contornos
rigorosos. Daí que, ao procurar-se a individualização, no período
anterior ao advento da ciência do direito romano, dos vários negó-
cios agrários sobre os quais viriam a encaixar-se, como cúpula, as
doutrinas elaboradas pelos Glosadores e Comentadores, se torne
necessário equacionar, caso a caso, a forma jurídica com a respec-
tiva finalidade económica que as partes tinham em vista.

Assinalam-se dois contratos de exploração agrícola: a enfiteuse,


também depois designada aforamento ou emprazamento( ), e acomplan-
tação. Ambos os contratos reflectem o movimento que se verifica,
durante o século XII, no sentido de conduzir o concessionário de
prédio alheio à conquista de uma posição mais firme em face do
senhorio. Este resultado constitui o produto de causas convergentes

(*) Ver, infra, págs. 203 e segs.


(2) Sobre tais contratos, ver a síntese e as indicações bibliográficas de M.
J. Almeida Costa, Os contratos agrários e a vida económica em Portugal na Idade
Média,
in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LV, págs. 111 e segs. (estudo anteriormente
publicado, sob o, título Die Vertràge iiber Rechte an Grund und Boden und das Wirt-
schaftsleben Portugals im Mittelalter, in "Zeitschrift der Savigny-Stiftung fiir Rechtge-
schichte", cit., germ. Abt., vol. XCV, Weimar, 1978, págs. 34 e segs.).
( ) E, ainda, prazo ou foro.

196
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

de ordem política, económica e social, como o nascimento e cres-


cimento dos Estados hispano-cristãos e o esforço de fomento da
época, onde se pode vislumbrar certo progresso das classes rurais.
O aspecto propriamente jurídico revela-se no princípio da con-
quista da propriedade através do trabalho, que representa um dos
conceitos fulcrais do direito medievo.
Consistia ajnfttgy&e.(l) num contrato pelo qual se operava a
repartição, entre os contraentes, daquilo a que a ciência do direito
chamaria mais tarde "domínio directo" e "domínio útij" de um
prédio. O primeiro pertencia ao senhorio e traduzia-se essencial-
mente na faculdade de receber do foreiro ou enfiteuta, a quem
cabia o domínio útil, uma pensão anual (foro ou cânon), em regra
consistindo numa parte proporcional dos frutos que o prédio pro-
duzia. O instituto teve uma larga importância para o cultivo de
terras ainda não arroteadas ou insuficienteente produtivas, visto que
caracterizava o negócio o encargo assumido pelo agricultor de
aplicar diligente esforço no seu aproveitamento. Entre as faculda-
des compreendidas no domínio útil do enfiteuta contava-se a de
alienar a respectiva posição a terceiro, com ou sem direito de pre-
ferência do senhorio.
Ao lado da enfiteuse, difundiu-se na vida agrária medieval
portuguesa, como em outros países, a complantação_ ("complanta-

( ) Além da síntese indicada, supra, no*-^ 2 da pág. anterior, veja-se, por


todos, o já cit. estudo de M. J. Almeida Costa, Origem da Enfiteuse no Direito Portu-
guês, Coimbra, 1957. O instituto manteve-se no nosso direito até ao Código Civil
vigente, que o disciplinava nos seus arts. 1491.° a 1523.°. Entretanto, a enfiteuse e
a subenfiteuse relativas a prédios rústicos e a prédios urbanos foram extintas,
respectivamente, pelo Decreto-Lei n.° 195-A/76, de 16 de Março (alterado atra-
vés do Decreto-Lei n.° 546/76, de 10 de Junho, e da Lei n.° 22/87, de 24 de
Junho), e pelo Decreto-Lei n.° 233/76, de 2 de Abril (com sucessivas alterações
decorrentes do Decreto-Lei n.° 73-A/79, de 3 de Abril, do Decreto-Lei n.°
226/80, de 15 de Julho, e do Decreto-Lei n.° 355/84, de 18 de Outubro). Podem
consultar-se as reflexões gerais sobre esta figura jurídica de Robert
Feenstra,
L'emphytéose et le problème des droits réels, in "La formazione storica dei diritto
moderno in Europa", cit., vol. III, págs. 1295 e segs.

197
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tio'^1), derivada das mesmas necessidades económico-sociais e


ideias jurídicas. Simplesmente, o trabalho e a propriedade da terra
são equilibrados de modo diverso. Analisava-se este contrato no
seguinte: o proprietário de um terreno cedia-o a um agricultor para
que o fertilizasse, em regra, com a plantação de vinhas ou de outras
espécies duradouras; uma vez decorrido o prazo estabelecido, que
variava de quatro a oito anos, procedia-se à divisão do prédio entre
ambos, geralmente em partes iguais. Claro que, tal como na enfi-
teuse, os intervenientes podiam incluir certas cláusulas acessórias,
que variavam de contrato para contrato.

Além dos referidos institutos, que se dirigiam à exploração


agrícola ou a indústrias conexas (moinhos, marinhas de sal),
desenvolveram-se, um pouco mais tarde, outros dois negócios que,
embora tendo igualmente a terra por objecto, desempenharam, em
vez disso, uma relevante função de crédito ou financeira: a compra e
venda de rendas, que posteriormente receberia a designação de censo
consignativo, e o penhor imobiliário. Ao seu desenvolvimento não foi
estranha a proibição canónica e civil da usura ou mútuo oneroso,
de que constituíam uma espécie de sucedâneo.
Através da compra e venda de rendas (2), o proprietário de um
prédio, carecido de capitais, cedia a uma pessoa que deles dispu-

(') À síntese referida, supra, pág. 196, nota 2, acrescentam-se as exposições


de M. J. Almeida Costa, A Complantação no Direito Português-,— Notas para o seu
estudo, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXIV, págs. 93 e segs., e de Rafael
Gibert, La "complantatio" en el Derecho medieval espárbl, in "An. de Hist. dei Der.
Esp.'\ cit., tomo XXIII, págs. 766 e segs.
(2) Remete-se, de novo, para a síntese mencionada, supra, pág. 196, nota 2,
a que se acrescenta a já cit. monografia de M. J. Almeida Costa, Raízes do Censo
Consignativo — Para a História do Crédito Medieval Português, Coimbra, 1961, com
largas referências ao desenvolvimento do instituto noutros países. O censo con-
signativo ainda chegou ao nosso Código Civil de 1867, que o regulava nos arts.
1644.° a 1652.°. Descendem desta figura jurídica as actuais renda perpétua e renda
vitalícia (Código Civil, arts. 1231.° a 1237.° e 1238.° a 1244.°), que, em todo o caso,

198
PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

sesse, em compensação de determinada soma para sempre recebida,


o direito a uma prestação monetária anual imposta como encargo
sobre esse prédio. O negócio representava, portanto, uma forma de
investimento que teve função análoga à do empréstimo a juros, sem
que fosse abrangido pela proibição da usura, ao menos em termos
tão radicais.
O direito medieval português conheceu também o penhor imobi-
liário^). Aqui, a transmissão do prédio pelo proprietário-devedor ao
seu credor podia ser feita com vários objectivos: desde o de pura
função de garantia e de compensação da cedência do capital, até ao
de lhe proporcionar o reembolso progressivo da dívida, que se ia
amortizando com o desfrute do prédio. Deste modo, o penhor
imobiliário apresentou-se sob diversas modalidades. Ponto impor-
tante é o da evolução do instituto para a hipoteca de moldes roma-
nos, ocorrida já na fase ulterior.

perderam a natureza de ónus real para se deslocarem inteiramente para a esfera


do direito das obrigações.
(') Mais uma vez se remete para a síntese indicada, supra, pág. 196, nota 2.
Ver, ainda, M. J. Almeida Costa, Rezes do Censo Consignativo, cit., nota 11
da
pág. 14 e passim, e Penhor imobiliário, in "Temas de História do Direito", cit., págs.
102 e segs., e Luís G. de Valdeavellano, Sobre la prenda inmobiliaria en el
Derecho
Espánol Medieval, Madrid, 1959.

199
CAPÍTULO III

PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE


INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
§1.°

ÉPOCA DA RECEPÇÃO
DO DIREITO ROMANO RENASCIDO
E DO DIREITO CANÓNICO RENOVADO
(DIREITO COMUM)
31. O direito romano justinianeu desde o século vi até ao
século XI

Entramos num ciclo da história jurídica portuguesa relacio-


nado com o movimento da revitalização intensa do direito romano
justinianeu, que se inicia em Itália, ainda durante o século XI, mas
se desenvolve, sobretudo, a partir da centúria imediata. Marco
relevante no trânsito da alta para a baixa Idade Média, esse novo
interesse teórico e prático pelas colectâneas do Corpus Iuris Civilis(l)

(') Recordemos que se designa por Corpus Iuris Civilis um conjunto hetero-
géneo de fontes de direito romano ("ius" e "leges") promulgadas no tempo de
justinianeias (ver, infra, págs. 212 e seg.; neste sentido, FrancescoCalasso,
Médio
de 529 a 565. A expressão Corpus Iuris Civilis não é originária: terá surgido com os
Glosadores para abranger todas as partes em que sistematizaram as compilações
justinianeias (ver, infra, págs. 212 e seg.; neste sentido, FrancescoCalasso,
Médio
Evo dei Diritto, vol. l-Le Forti, reimpressão, Milano, 1970, pág. 527); mas, de
qualquer modo, a sua consagração deve-se a Dionísio Godofredo, quando da
primeira edição conjunta das fontes justinianeias, feita em Genebra no ano de
1583. Compõem o Corpus Iuris Civilis: as Institutiones ou Enchiridion (533) — na
designação latina e grega, respectivamente—, que constituem um pequeno
manual com noções básicas de direito e se dividem em quatro livros; os Digesta
ou Pandectae (533), colectânea de "ius", quer dizer, de fragmentos de obras de
juristas clássicos e abrangendo cinquenta livros; o Codex repetitae praelectionis (534),
que representa uma actualização do Codex vetus (529) e se encontra repartido em
doze livros; e as Novellae leges ou Constitutiones (535/565), isto é, as constituições
imperiais promulgadas após o Codex e até à morte de Justiniano. Da obra legisla-
tiva justinianeia só não se incluem no Corpus Iuris Civilis o Codex vetus ou Codex
primus (529), substituído pelo Codex repetitae praelectionis, e as Quinquaginta decisiones
(530), que se podem considerar trabalhos preparatórios dos Digesta. Às várias

205
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

transformou-se em verdadeiro fenómeno dos Estados da Europa oci-


dental. Recebe o nome consagrado de renascimento do direito romano.
Não se trata de designação inteiramente pacífica. Na verdade,
| a palavra "renascimento" inculca a ideia de que o direito*romano
| justinianeu tenha deixado, em absoluto, de ser conhecido, estudado
' e aplicado. Ora, isso jamais se verificou (').
No Oriente, as fontes justinianeias permaneceram até à queda
de Constantinopla (1453). Claro que não pode pensar-se numa apli-
cação completa e inalterada ao longo de tantos séculos. Após a
morte de Justiniano, a sua obra legislativa tornou-se largamente
objecto de paráfrases, traduções para grego, resumos, etc. E essa
literatura deu ensejo a que se introduzissem modificações
substanciais.
A vigência das colectâneas justinianeias, no Ocidente, foi, sem
dúvida, algo efémera. Liga-se, a bem dizer, à Itália, mercê do
domínio bizantino e de uma promulgação expressa, pelos meados
do século VI (a "pragmática sanctio" de 554), cuja eficácia persisti-
ria cerca de catorze anos. Seguiu-se a conquista dos Lombardos
(568), que não abrangeu todo o território transalpino, embora que-
brasse a sua unidade política e circunscrevesse o direito justinianeu
a determinadas cidades, como Roma e Ravena, que conservaram
relativa autonomia.
Também sabemos que as tropas bizantinas ocuparam o Sul da
Península Ibérica. Não terá sido, contudo, uma presença susceptível
de conduzir a grandes influências jurídicas (2).

partes do Corpus Iuris Civilis corresponde a tradução portuguesa, respectivamente,


de Instituições (que se afigura preferível à tradicional de Institutos), Digesto (esta
designação no singular, hoje corrente, recua talvez ao século XII), Código e Nove-
las. Sobre o Corpus luris Civilis, ver Sebastião Cruz, Direito Romano, I — Introdução.
Fontes, 4.a ed., Coimbra, 1984, especialmente págs. 35 e segs., e 441 e segs.
(') Consultar Manlio Bellomo, Società e istituzioni in Itália dal medioevo agli
inizi delYetà moderna, 2.a reimpressão, Catania, 1987 (4.a ed., 1982), págs. 47 e segs.
i2) Ver, supra, pág. 120.

206
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

De qualquer modo, as colectâneas justinianeias chegaram ao


mundo ocidental, ainda nessa época. Uma vez conhecidas, conti-
nuaram, mais ou menos, a ser conservadas e até analisadas, desig-
nadamente nos centros de cultura eclesiástica (*). Mas isto não sig-
nifica que, durante os primeiros séculos medievos, tenham
conseguido divulgação notória ou alcance efectivo. Pelo contrário,
os textos justinianeus, de um modo geral, perderam-se ou cairam
no esquecimento. Ora, é para assinalar o contraste entre essa difu-
são muito modesta ou indiferença e o interesse decisivo que o seu
estudo, já com antecedentes no século XI, assume do século XII
em
diante que se explica e mesmo justifica a qualificação de renasci-
mento do direito romano. Nele reside o ponto de partida de uma
evolução longa e diversificada que conduziria à ciência jurídica
moderna.

32. Pré-renascimento do direito romano

Fez carreira a opinião de que o renascimento do direito


romano apenas surgiu no século XII, com a chamada Escola de
Bolonha ou dos Glosadpres. Assentava essa convicção numa lenda
de que o Digesto fora descoberto, casualmente, em 1135, durante o
saque da cidade de Amalfi e depois levado para Pisa, sede da Corte
lombarda. Atribuia-se ao imperador germânico Lotário II uma lei
que restituirá aos textos justinianeus força vinculativa.
A moderna crítica histórica rejeita a referida justificação, con-
siderada fantasiosa. Sabe-se que o Digesto era conhecido e citado
antes do século XII. Além disso, a explicação da génese do renasci-
mento do direito romano nunca poderia limitar-se a um aspecto
episódico, porquanto se articula num conjunto de forças de vária
ordem.

(!) Ver, supra, págs. 132 e 141 e segs.

207
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Torna-se necessário, de facto, ter presente um quadro com-


plexo de causas ou conexões. Dentro dele se compreende que o
movimento de intensificação do estudo do direito romano justinia-
neu despontasse e se desenvolvesse (!).
Desde logo, a restauração do Império do Ocidente, o cha-
mado Sacro Império Romano-Germânico, que aí encontrava o seu
sistema jurídico. Sob a égide da Igreja, operou-se, não só essa reno-
vação política, mas também a aplicação do direito das colectâneas
justinianeias às matérias temporais. A seguir à morte de Carlos
Magno, todavia, agudizaram-se as relações entre o Papado e o
Império. Desponta a grande querela que encheu a época e de que
constituem aspectos mais ou menos velados as controvérsias a res-
peito do problema do Estado, da sua função social e das formas de
governo, do problema da Igreja e da respectiva orgânica interna.
Procurava-se no direito justinianeu apoio para o robustecimento da
posição imperial, a que não era mesmo estranho um desejo de pre-
domínio sobre os soberanos dos restantes Reinos (2).
Lembre-se, por outro lado, o universalismo decorrente da fé e
do espírito de cruzada, que unifica os homens acima das fronteiras
da raça e da história. Acresce o imprevisto fervor, entre os séculos
XI e XII, na exaltação da romanidade, em consequência da interpre-
tação cristã do mundo. Assiste-se, além disso, a um progresso geral
da cultura.
Não se podem, ainda, perder de vista determinados factores
económicos. Assim, o aumento da população, o êxodo do campo,
as potencialidades da nascente economia citadina, com o seu carác-
ter essencialmente monetário, a sua indústria, o seu comércio, as

(') Continua paradigmática a síntese de Francesco Calasso, Médio


Evo
dei Diritto, cit., vol. I, págs. 345 e segs.
( ) Quanto ao problema em geral, assim como no respeitante à Península
e, mais concretamente, ao nosso país, ver Martim de Albuquerque, Portugal e
a
"Iurisdictio Imperii", in "Rev. da Fac. de Din da Univ. de Lisb.", cit., vol. XVII,
págs. 303 e segs.

208
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

suas novas classes sociais. Colocavam-se ao direito problemas de


maior complexidade.
Em síntese: motivos de ordem política, religiosa, cultural e
económica apontavam para o incremento_ do estudo do direito
romano justinianeu. Formou-se uma dinâmica que se aceleraria no
século XII com os juristas bolonheses. Mas existem sinais notórios
que precederam a sua acção específica. Nessa medida se alude a
um pré-renascimento romanístico, maxime durante o século XI.
Salienta-se, primeiramente, que, antes de surgir a Escola de
Bolonha, houve, na Itália, vários centros onde se conhecia o direito
justinianeu e se utilizavam esquemas didácticos depois adoptados
pelos Glosadores. Os mais importantes de que temos notícia foram
os de Pavia e Ravena.
As escolas de direito, junta-se o testemunho da literatura jurí-
dica. Bastaria referir as Exceptiones Petri e o Brachylogus iuris civilis,
duas obras famosas do século XI, com reflexos do Digesto.
Recordem-se, igualmente, certas colecções canónicas da mesma
época, atribuídas a Ivo, bispo de Chartres ( ), que contêm direito
justinianeu em larga escala.
E quanto à Península Ibérica? Afigura-se que, do mesmo
modo que a recepção do direito romano renascido aqui se atrasou
relativamente à generalidade da Europa, também os seus primeiros
vestígios foram mais tardios (2). As provas invocadas a favor de
uma participação hispânica nesse pré-renascimento não parecem
satisfatórias ou, pelo menos, incontroversas (3).

(') O Decretum, a Panormia e a Tripartita.


(2) Ver, infra, págs. 222 e segs.
(3)A Collecúo Caesaraugustana e os Usatici ou Usaticos Barchinonenses (Usat-
ges de Barcelona). Ver, por ex., Galo Sanchez, Curso de Historia dei Derecho.
Intro-
ducción y fuentes, 9.a ed., Madrid, 1960, págs. 61 e seg., e 110 e seg., e García-
-Gallq, Manual, cit., tomo I, págs. 375 e 388. Quanto à segunda das fontes
referidas, ver especialmente F. Valls Taberner, Los Usatges de Barcelona.
Estúdios,
comentários e edición bilingue dei texto (Prólogo de Jesus FernAndez
Viladrich/Ma-

209
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Pode concluir-se que os esforços e os sintomas


pré-
-renascentistas do direito romano se reconduzem essencialmente à
Itália. O que se compreende, pois nas outras regiões ocidentais os
textos justinianeus nunca tiveram promulgação oficial e, decerto,
foram muito menos conhecidos.

33. Renascimento propriamente dito do direito romano com a


Escola de Bolonha ou dos Glosadores

a) Origens da escola e seus principais representantes

O verdadeiro renascimento do direito romano, quer dizer, o


estudo sistemático e a divulgação, em largas dimensões, da obra
jurídica justinianeia, inicia-se apenas no século xu, com a Escola de
Bolonha^1). É certo que os começos desta escola, quando bem se
definam as suas raízes, situam-se pelos tins do século XI (1088) e
começos do século XII.

nuel J. Peláez. Preparação da obra, selecção de originais e correcções de


Manuel J. PelAez/Enrique M. Guerra), Barcelona, 1984. Entre nós,
consultar
Braga da Cruz, Hist. do Dirt. Port., cit., pág. 317.
(') Sobre o tema, consultar Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I,
págs. 521 e segs., P. Koschaker, Europa y el Derecho Romano, Madrid, 1955, págs.
101 e segs. (trad. castelhana de José Santa Cruz Teijeiros; a 4.a ed. alemã
Europa
und das romisches Recht, Munchen, 1966), Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit.,
págs. 38 e segs., Peter Weimar, Die legistische Literatur und die Methode des Rechtsun-
terrichts der Glossatorenzeit, in "lus Commune", vol. II, Frankfurt, 1969, págs. 43 e
segs., Helmut Coing, Trois formes historiques d'interprétation du droit. Glossateurs, pan-
dectistes, école de 1'exégèse, in "Revue Historique de Droit Français et Etranger", 4.a
série, ano 48, Paris, 1970, págs. 531 e segs., Otte Gerhard, Dialektik undjurispru-
denz. Untersuchungen zur Methode der Glossatoren, Frankfurt, 1971, Paolo Mari,
Fenomenologia deWesegesi giuridica bolognese e problemi di critica testuale, in "Rivista di
Storia dei Diritto Italiano", vol. LV, Roma, 1982, págs. 5 e segs., e Adriano
Cavanna, Storia dei diritto moderno in Europa, vol. l — Le fonti e il pensiero giuridico,
reedição, Milano, 1982, págs. 105 e segs.

210
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Na base, encontramos Irnério, a quem se reconhece o grande


rasgo, não só de conferir ao ensino do direito a autonomia antes
denegada dentro do conjunto das disciplinas que compunham o
o saber medieval — nomeadamente, em relação à lógica e à
ética —, mas também de estudar os textos justinianeus numa versão
completa e originária, com superação dos extractos e resumos da
época precedente. Trouxe para essa obra os conhecimentos gramá-
ticos e dialécticos da sua formação de mestre em artes liberais (*).
A Escola de Bolonha não nasceu logo como uma Universi-
dade. Limitou-se a constituir, ao estilo do tempo, um pequeno cen-
tro de ensino baseado nas prelecções de Irnério — a "candeia do
direito" ("lucerna iuris"), segundo o cognome que lhe ficou. Este
ia formando discípulos e o seu prestígio transpondo os limites da
cidade e da Itália. De toda a parte vinham estudantes em número
elevado. Paulatinamente, a "pequena escola transformou-se numa
autêntica Universidade, que era o pólo europeu de irradiação da
ciência jurídica.
Entre os discípulos imediatos de Irnério, que morreu talvez
em 1130, destacam-se os chamados "quatro doutores": Bulgarus
Martinus, Hugus e Jacobus. Em época mais tardia, sobressaem Pla-
centino e Azo. Já na fase de decadência, aponta-se Acúrsio, que
elaborou uma colectânea em que sistematiza a obra dos autores
precedentes.
A Escola de Bolonha recebe, também, as designações de
Escola Irneriana e de Escola dos Glosadores.. A primeira atende ao
fundador, enquanto a segunda deriva do método científico ou
género literário fundamental utilizado por Irnério e seus sequazes,
que era a zlosçL Apreciaremos, adiante, no que esta consiste.
O qualificativo de Escola dos Glosadores possui um sentido
mais amplo que permite abranger nessa orientação jurídica, tanto a

(') Sobre Irnério, ver Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I,
especial-
mente págs. 367 e segs., e 507 e segs.

211
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Universidade de Bolonha, o Estudo ("Studium") por antonomásia,


como as chamadas Universidades menores. É que não houve uma
perfeita identidade metodológica: estas últimas tiveram maiores
ligações à ciência prática, em virtude da forte influência que sofre-
ram dos profissionais do direito ( ).

b) Sistematização do "Corpus luris Civilis" adoptada pelos Glosadores

Os Glosadores estabeleceram uma divisão das várias partes do


Corpus luris Civilis diferente da originária (2). Atribui-se essa nova
sistematização a razões históricas e didácticas.
Com efeito, por um lado, as colectâneas justinianeias não
foram conhecidas, no seu conjunto, ao mesmo tempo. E, por outro
lado, uma vez que tais colectâneas tinham características e ampli-
tude muito diversas, tornava-se necessário dividi-las de modo a
facilitar o seu ensino em cadeiras autónomas.
A sistematização que os Glosadores adoptaram e que se gene-
ralizou nas escolas de direito, entre nós seguida até à Reforma
Pombalina, consiste numa divisão das colectâneas justinianeias em
cinco partes. A saber:
I — Digesto Velho ("Digestum vetus"), que abrangia os livros
I a XXIII e os dois primeiros títulos do livro XXIV do
Digesto;

II — Digesto Esforçado ("Digestum infortiatum" ou apenas


"Infortiatum") (3), compreendendo os livros XXIV, este
desde o título III, inclusive, a XXXVIII do Digesto;

(') Ver Ennio Cortese, Scienza di giudici e scienza di professou tra XII e XIII
secolo, in "Legge, giudici, giuristi. Atti dei Convegno tenuto a Cagliari nei giorni
18-21 maggio 1981", Milano, 1982, págs. 93 e segs.
(2) Ver, supra, pág. 205, nota 1.
(3) De acordo com uma explicação divulgada, recuperaram-se, primeiro,
as matérias que integram o Digesto Velho e, depois, as do Digesto Novo. Daí as

212
período do direito português de inspiração romano-
canónica

III — Digesto Novo ("Digestum novum"), integrado pelos


livros XXXIX a L, ou seja, até final do Digesto;

IV — Código ("Codex"), composto simplesmente pelos nove


primeiros livros do Código Justinianeu, que tinha, como
já se recordou, doze livros;

V— Volume Pequeno ("Volumen parvum" ou só "Volumen"),


que incluía os últimos três livros do Código Justinianeu
("Três Libri"), as Instituições de Justiniano e uma colec-
tânea de Novelas conhecida pelo nome de "Authenti-
cum"; mais tarde, foram-lhe ainda acrescentadas certas
fontes de direito feudal ("Libri Feudorum") e algumas
constituições extravagantes de imperadores do Sacro
Império Romano-Germânico. Observe-se que este
quinto volume é também, por vezes, chamado Autêntico
('' Authenticum'').

c) Método de trabalho

I — A glosa e outros tipos de obras

O principal instrumento de trabalho dos juristas pertencentes


a esta escola foi, como se observou, ajj/os^1). Consistia num pro-
cesso de exegese textual já antes utilizado mesmo em domínios
culturais estranhos ao direito. Cifrava-se, de início, num pequeno
esclarecimento imediato, via de regra, numa simples palavra ou

respectivas designações. Só mais tarde seria conhecida a parte intermédia, cor-


respondente ao Digesto Esforçado, que derivaria o nome de uma famosa exclama-
ção atribuída a Irnério, a propósito de tal evento: "ius nostrum infortiatum est".
Discute-se, todavia, se a qualificação traduz o "reforço" trazido ao direito ante-
rior, o "esforço" realizado para obter esses textos ou ainda outra ideia. De
qualquer modo, antes do século XII, apenas se encontram citações do Digesto
Velho e do Digesto Noiw.
(') Ver, supra, pág. 211.

21*
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

expressão, com o objectivo de tornar inteligível algum passo consi-


derado obscuro ou de. interpretação duvidosa. Eram nótulas ou
apostilas tão breves que se inseriam entre as linhas dos manuscritos
que continham os preceitos analisados. Chamavam-se, então, glosas
interlineares.
Com o tempo, as interpretações tornaram-se mais completas e
extensas. Passaram a referir-se, também, não apenas a um trecho
ou a um preceito, mas a todo um título. Escreviam-se, por isso, na
margem do texto. Daí adveio a designação de dosas marginais, que
chegaram a formar uma exposição sistemática (^apparatus^J.

Ainda foram usados outros meios técnicos. Desde cedo, se


organizaram: as regulae iuris (também designadas generalia e brocarda),
quer dizer, definições que enunciavam de forma sintética princípios
ou dogmas jurídicos fundamentais, depois normalmente reunidas
em colectâneas; os casus, 3e~corneço, meras exemplificações de
hipóteses concretas a que as normas se aplicavam, embora, mais
tarde, viessem a transformar-se em exposições interpretativas; as
dissensiones dominorum, que davam a conhecer os entendimentos
diversõs~Eè~ãutC)res consagrados sobre problemas jurídicos relevan-
tes; as quaestiones, através das quais, a propósito de casos jurídicos
controvertidos, se enunciavam os textos e as razões favoráveis
("pro") e desfavoráveis ("contra") às soluções em confronto,
concluindo-se pela interpretação própria ("solutio"); as distinctiones,
que se traduziam numa análise dos vários aspectos em que o tema
jurídico considerado podia ser decomposto; as sutnmae, um género
difícil, em que os Glosadores mais famosos, como os filósofos e os
teólogos, abordavam de maneira completa e sistemática certos
temas, superando a "littera" que tinha representado o seu primitivo
objecto de estudo.
Pode considerar-se que as glosas constituíram apenas um
ponto de partida. Ao lado destas, os Glosadores, consoante a sua
preferência e o seu fôlego, dedicaram-se aos diferentes tipos de
obras que acabamos de referir.

214
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

II — Os Glosadores perante o texto do "Corpus Iuris Civilis"

Um aspecto a pôr em destaque, a propósito do método de


trabalho dos Glosadores, é o do respeito quase sagrado que tinham
pelo Corpus Iuris Civilis. Estudaram-no com uma finalidade essen-
cialmente prática: a de esclarecer as respectivas normas de forma a
poderem aplicá-las às situações concretas. Todavia, nesse esforço
interpretativo, nunca se desprenderam suficientemente da letra dos
preceitos romanos, chegando a construções jurídicas inovadoras.
Os Glosadores encararam o Corpus Iuris Civilis como uma
espécie de texto revelado e, portanto, intangível. Deslumbrava-os a
pj^rJeTção técnica dos preceitos da colectânea justinianeia, que con-
sideravam a última palavra em matéria legislativa. O papel do
jurista, nesta perspectiva, deveria reduzir-se ao esclarecimento de
tais preceitos com vista à solução, das hipóteses concretas da vida.
Não se procurava elaborar doutrina que superasse e muito menos
contrariasse as estatuições aí contidas.
E tradicional caracterizarem-se os Glosadores como simples
exegetas dos textos legais. Tiveram, de facto, uma atitujde_tipica-
mente dogmática e legalista em face do Corpus Iuris Civilis. Atribui-
-se-lhes, também, uma profunda ignorância nos domínios filológico
e histórico. Desconheceram as circunstâncias em que as normas To
direito romano haviam surgido; e isso levou-os, não raro, a inter-
pretações inexactas ou à manutenção de princípios obsoletos
p^rante_as realidades do tempo.
Compreende-se, em parte, que assim tenha sucedido, se
recordarmos a sua preocupação de estudar os textos justinianeus
genuínos e as dificuldades de penetração do sentido desses textos. A
exegese constituía a metodologia natural, mas a própria glosa,
como vimos, sofreu uma evolução. De resto, os juristas desta escola
utilizaram o silogismo e outros processos lógicos para da letra che-
gar ao espírito da lei. Aí se reconhece já alguma influência
escolástica (*).

(•*) Ver, por todos, Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., págs. 51 e seg.

215
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

A obra dos Glosadores foi significativa ao procurarem trans-


formar o conjunto justinianeu de normas, consabidamente inorgâ-
niccTe diversificado, num todo unitário e sistemático. MeroTda sua
actívidrádé de exegese, de conciliação de princípios e da elaboração
de regras, os Glosadores chegaram a uma estrutura doutrinal de
conjunto. Criaram "talvez a primeira dogmática jurídica autónoma
da história universãT^1). ServTram-se, para tanto, aos vários ins-
trumentos de trabalho que indicámos (2).

d) Apogeu e declínio da Escola dos Glosadores.


A "Magna Glosa". O ciclo pós-acursiano

A Escola dos Glosadores teve o período áureo no século XII.


Durante as primeiras décadas da centúria imediata tornãram^se
manifestos os sinais de decadência da sua metodologia. As finalida-
des que se propusera encontravam-se esgotadas.
Já não se estudava directamente o texto da lei justinianeia,
mas a glosa respectiva. Faziam-se glosas de glosas. Isto é, cada
mestre acrescentava a sua própria~gTÕsa as anteriores, identifican-
do-a, em regra, com uma sigla.
Pelo segundo quartel do século XIII, Acúrsio, que viria a fale-
cer antes de 1263, ordenou esse enorme material caótico. Procedeu
a uma selecção das glosas anteriores relativas a todas as partes do
Corpus luris Civilis, conciliando ou apresentando criticarnente as
opiniões discordantes mais credenciadas. Deste modo, surge a cha-
mada Glosa Ordinária, Magna Glosa ou apenas Glosa, que encerra _o
legado científico acumulado por gerações sucessivas dejvaristas.
Ao contrário do que muitas vezes se sustenta, Acúrsio, nascido
em Florença, deve ser considerado um dos maiores expoentes da

(') Wieackf.r, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., pág. 53. Ver, ainda, Calasso,
Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I, págs. 531 e segs.
(2) Ver, supra, págs. 213 e seg.

216
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Escola dos Glosadores. Justifica-se a difusão enorme que a sua obra


alcançou. Daí em diante, as cópias do Corpus luris Civilis apresen-
tam-se acompanhadas da glosa acursiana, contornando as folhas ou
páginas. Continuaram a reproduzi-la as edições impressas da colec-
tânea justinianeia.
A importância que a Glosa de Acúrsio alcançou reflecte-se no
facto de ser aplicada nos tribunais, dos países do Ocidente europeu
ao lado das disposições do Corpus luris Civilis. Entre nós, constituiu
fonte subsidiária de direito, em termos que adiante analisaremos,
através de disposição expressa das Ordenações (1).

Com a Magna Glosa encerrou-se, por assim dizer, um ciclo da


ciência do direito. A segunda metade do século xm é como que um
período de transição para a nova metodologia que se inicia, verda-
deiramente, no século xiv. Os juristas desse ciclo intermédio rece-
bem, não raro, a designação de pós-acursianos ou pós-glosadores.
A sua actividade caracteriza-se por se encontrar especialmente
receptiva às exigências práticas. Um dos aspectos salientes foi o
aparecimento do tratado ("tractatus") ou exposição sistemática

(') Ver, infra, págs. 262, 307 e segs., e 361 e seg. Consultar M. J. Almeida
Costa, La présence d'Accurse dam 1'histoire du droit portugais, in "Atti dei Convegno
intemazionale di studi Accursiani (Bologna, 21-26 Ottobre 1963)", vol. III,
Milano, 1968, págs. 1053 e segs. (também in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
XLI, págs. 1053 e segs. (também in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLI, págs.
47 e segs.). Sobre a obra de Acúrsio e o seu significado em Itália e na Europa,
ver os diversos estudos incluídos in "Atti dei Convegno intemazionale di studi
Accursiani", cit., vol. I, II e III, Milano, 1968.
Sinal do prestigio de Acúrsio no meio português, já pelos fins do século
XIV, resulta, porventura, de um certo Andreas Iohannis, cónego da Sé de Coim-
bra (1317), se enaltecer com o apelido do autor da Magna Glosa (ver M. J.
Almeida Costa, Um jurista em Coimbra, parente de Acúrsio, in "Boi. da Fac. de
Dir.", cit., vol. XXXVIII, págs. 251 e segs., e Frank Stoetermeer, Un
professeur
de l'Université de Salamanque au XIII.' siècle, Guillaume d'Accurse, in "An. de Hist. dei
Der. Esp.", cit., tomo LV, págs. 754 e segs.).

217
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

como nova forma de literatura jurídica. Alguns ramos do direito


progridem no sentido da autonomia científica, maxime o processo e
as normas notariais.

34. Difusão do direito romano justinianeu


e da obra dos Glosadores

a) Na Europa em geral. Causas dessa difusão

Fez-se referência à Escola dos Glosadores e ao papel que


desempenhou no quadro do renascimento do direito romano. Se
este fenómeno tivesse sido apenas italiano, não caberia versá-lo,
com particular acuidade, em relação à história do direito portu-
guês. Acontece, porém, que se tratou de um movimento generali-
zado dos países ocidentais, como antes observámos (!), e que muito
se reflectiu entre nós. Logo o interesse que oferece a análise, não
apenas desse renascimento em si, nas ainda da sua expansão, que se
tornaria decisiva para o progresso do nosso direito.
Atendendo às circunstâncias do tempo, parece fácil descrever
o modo como se efectuou a difusão romanística. Primeiramente,
consideraremos o problema a respeito de toda a Europa. Há que
assinalar duas causas determinantes: a permanência em Bolonha de
escolares estrangeiros e a fundação de Universidades nos vários
Estados europeus.

»
I — Estudantes estrangeiros em Bolonha

Sabe-se que à Escola de Bolonha, bem como às que se lhe


seguiram, acorreram estudantes de múltiplas proveniências. Inclu-
sive, de paragens longínquas. A fama de Irnério e dos seus conti-

(') Ver, supra, págs. 205 e segs.

218
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

nuadores expandiu-se rapidamente. Bolonha tornou-se, em poucas


décadas, o centro para onde convergia um número avultado de
estudantes, que viriam a agrupar-se emanações ("nationes"). Cada
uma reunia os escolares do mesmo país. Breve se constituíram treze
nações de escolares "ultramontanos", quer dizer, de países situados
para além dos Alpes, que se congregavam numa Universidade ( ).
I Não raro, esses estudantes eram pessoas já com alguma for-
mação jurídica que procuravam junto dos mestres famosos uma
especialização que lhes assegurava, quando de volta às terras de ori-
gem, posições destacadas no campo do ensino ou da vida pública.
De qualquer modo, trariam consigo a nova ordem jurídica, de que
se tornavam mensageiros. A introdução do direito romano renas-
cido verificou-se, nos vários países europeus, mais do que como
resultado de imposições dos poderes públicos, sobretudo através da
actuação concreta dos juristas de formação universitária.

II — Fundação de Universidades

Um outro factor concorreu para a difusão romanística. Com


efeito, se a princípio era necessário ir a Itália fazer essa aprendiza-
gem jurídica, pouco a pouco, ela tornou-se possível nos diversos
países europeus. Assiste-se, durante os séculos XII e XIII, à criação
progressiva de Universidades, onde se cultivavam os ramos do
sãBer que então constituíam o ensino superior. Entre estes, figu-
rava, ao lado do direito canónico, o direito romano das colectâneas
justinianeias, professado segundo os métodos das escolas italianas.

(') Ao lado da Universidade dos estudantes estrangeiros ("ultramonta-


nos"), existiu, ém Bolonha, a Universidade dos estudantes italianos ("cismonta-
nos"), que se subdividia em quatro "nações" regionais, depois reduzidas a três. A
essas duas Universidades de juristas, acrescentou-se, mais tarde, a Universidade
dos estudantes de artes liberais ("artistae"), com muito menor frequência e que,
por tal facto, englobava, conjuntamente, italianos e estrangeiros. Ver Calasso,
Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I, págs. 513 e segs.

219
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Deve salientar-se que a designação de Universidade ("univer-


sitas") não tinha na época o significado que assumiu posteriormente
de conjunto de escolas superiores ("universitas facultatum"), mas o
de corporação de mestres e escolares ("universitas magistrorum et
scholarium'^1). Reflecte-se aqui o sentido de solidariedade profis-
sional em que se baseou a formação das grandes corporações de
artes e ofícios. No caso, é a instituição que reúne, com autonomia
jurídica, os profissionais do estudo (2).
Não analisaremos as razões que explicam o aparecimento des-
tas escolas de projecção universal. Ao aludido espírito corporativo,
acrescentaram-se outros aspectos, como o progresso geral do saber,

(') Sobre o tema, ver G. Braga da Cruz, Origem e evolução da Universidade, in


"Obras Esparsas", cit., vol. IV — "Estudos Doutrinários e Sociais", 2.a parte,
Coimbra, 1985, págs. 189 e segs. Esta valiosa exposição foi publicada pela pri-
meira vez in "Estudos — Revista de Cultura e Formação Católica", ano XXXII,
Coimbra, 1954, n.° 323, págs. 3 e segs., e 71 e segs. Pode consultar-se, também, a
versão castelhana Historia y espíritu de la Universidad, in revista "Nuestro Tiempo",
ano II, Madrid, 1955, n.° 9, págs. 9 e segs. Ver, ainda, entre nós, J. Veríssimo
Serrão, História das Universidades, Porto, 1983. índicam-se, finalmente, H. Rash-
dall, The Universities of Europe in the Middle Age, 2.a ed. (por F. M. Powicke/A.
B. Emden), 3 vols., Oxford, 1936, António Garcia y Garcia, Los estúdios
jurídicos
en la Universidad medieval", in "Estúdios sobre la Canonística Portuguesa Medie-
val", Madrid, 1976, págs. 17 e segs. com indicações bibliográficas respeitantes aos
vários países — nota 2 da pág. 17), e Manlio Bellomo Società e istituzioni in Itália,
cit., págs. 379 e segs., e Saggio suWuniversità nelVetà dei diritto comune, 3.a reimpressão,
Catania, 1988(l.aed., 1979).
( ) Consubstanciava esse espírito de corpo o facto de os universitários
terem tribunais próprios, para as causas cíveis e crimes. Tal privilégio de isenção
do foro comum podia abranger, não só os professores e os estudantes, assim como
os seus familiares, mas também os funcionários e outros colaboradores da Uni-
versidade. Ver António de Vasconcelos, Origens do foro académico na antiga
Uni-
versidade portuguesa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. III, págs. 379 e segs. O
referido estudo foi posteriormente desenvolvido e encontra-se republicado, com
o título Génese e evolução histórica do foro académico da Universidade portuguesa. Extinção
do mesmo (1290-1834), in António de Vasconcelos, "Escritos vários relativos
à
Universidade dionisiana", vol. I, Coimbra, 1987, págs. 297 e segs. (reed. pre-
parada por Manuel Augusto Rodrigues).

220
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

as novas concepções sobre a ciência e a hierarquia das suas verten-


tes, o fenómeno da formação de grandes centros urbanos. Convém
realçar a importância que assumiu o rápido desenvolvimento de
certos domínios, entre os quais se contam o direito romano e o
direito canónico.
Todavia, as Universidades tiveram origem diversificada.
Justifica-se uma classificação tripartida.
As primeiras Universidades surgiram espontaneamente, a par-
tir da evolução e corporatização de pequenas escolas pré-existentes,
monásticas, diocesanas ou municipais. Assim sucedia sempre que
um mestre local se notabilizava pelo seu ensino e criava discípulos
numa certa área científica. Foi o que se verificou com Irnério e
Graciano, que celebrizaram Bolonha nos domínios do direito
romano e do direito canónico, respectivamente, enquanto Paris se
distinguia devido aos estudos teológicos e Montpellier se tornava um
importante centro de ensino da medicina. Tais Universidades nas-
ceram como que consuetudinariamente ("ex consuetudine").
Algumas vezes a instituição universitária resultou do desmem-
bramento ou separação de uma outra ("ex secessione"). Este pro-
cesso encontrava-se facilitado pela grande mobilidade que possuíam
as Universidades medievais, em consequência dos reduzidos meios
de que dispunham. Via de regra, não tinham edifícios próprios,
decorrendo as aulas nos claustros das sés ou dos mosteiros, ou em
casas arrendadas, e todo o material didáctico se limitava a uns pou-
cos livros. Tornava-se fácil, portanto, a deslocação da Universi-
dade para outro local, quando se agudizassem os frequentes confli-
tos entre estudantes e burgueses. Ora, passada a crise,tn^- - -
uma parte dos mestres e dos escolares, pelo menos, recusava-se a
regressar à sede originária. Por exemplo, a Universidade de Cam-
bridge (1209) nasceu de uma secessão da Universidade de Oxford,
assim como a de Pádua (1222) de um desmembramento da de
Bolonha.
Resta apontar uma terceira linha, posterior na ordem crono-
lógica. Trata-se das Universidades criadas por iniciativa de um

221
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

soberano ("ex privilegio"), normalmente sem terem atrás de si o


prestígio de uma tradição firmada. Em virtude disso, só através da
confirmação pontifícia tais Universidades eram elevadas ao plano
das outras e os respectivos graus académicos adquiriam valor uni-
versal; digamos, conferiam o direito de ensinar em qualquer parte
("ius ubique docendi"). As primeiras Universidades deste tipo
foram as de Palência (1212), Nápoles (1224) e Toulouse (1229). Daí
em diante, tornou-se o processo invariavelmente adoptado na cria-
ção de novos centros de ensino universitário.
Eis o segundo elemento de transmissão do direito romano renas-
cido à Europa em geral. Pois o ensino da ciência jurídica repre-
sentava um dos sectores mais importantes das Universidades.

b) Na Península Ibérica e especialmente em Portugal

A Península Ibérica não constitui excepção ao que acabamos


de referir. Participou, de modo muito concreto, nesse movimento
europeu de recepção do direito romano renascido. Apreciaremos,
antes de mais, quando se verificou. Em seguida, analísam-se diver-
sos factores ou manifestações da difusão romanística na vida jurí-
dica hispânica e portuguesa.

I — Em que época se inicia

Existem indicadores da penetração do direito romano renas-


cido, já nos finais do século XII, em regiões hispânicas que tinham
maior"cõntacto conTó festo dá Europa. Seria o caso da Catalunha.
NTão obstante, se"raSiHê1FãTmos o conjunto dos Estados de aquém-
-Pirenéus, deverá concluir-se que só ao longo do século XIII o movi-
mento romanístico tendeu a difundir-se em todos eles(!).

(') Ver Eduardo de Hinojosa, La admisión dei Derecho romano en


Catalúm,
in "Obras"., cit., tomo II, págs. 389 e segs., José Maria Font Rius, La
recepciótt

222
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÔNICA

Relativamente ao nosso país, encontram-se, a este propósito,


algumas afirmações infundadas. O que salientámos, quanto à Penín-
sula em geral, afigura-se exacto a respeito do território português.
Se entendermos, é certo, que se verifica o renascimento do
direito romano justinianeu pelo simples facto de haver pessoas que,
melhor ou pior, conhecessem esses textos dos Glosadores, impor-
tará recuar a data da sua introdução, pois tornava-se quase impossí-
vel, dadas as relações com a Itália e a França, uma completa igno-
rância, em Portugal, até ao século XIII, do novo surto jurídico.
Aliás, a história dos nossos primeiros reis mostra que eles tiveram
colaboradores a quem, de certeza, não eram estranhas as colectâ-
neas justinianeias, acompanhadas dos estudos correspondentes. Ser-
vem de exemplos o Mestre Alberto, chanceler de Afonso Henri-
ques,, ojvlestre Julião, ainda do tempo deste monarca e que conti-
nuou com Sancho I e Afonso II, os quais também tiveram como
conselheiro jurídico o milanês Leonardo, e o Mestre Vicente, chan-
celer de Sancho II. Por outro lado, restam múltiplos vestígios de
códices que, desde o século XII, atestam a presença de livros de
direito da romanística e da canonística medievais (*). Mas nada
disto traduziu uma recepção efectiva.

dei Derecho romano en la Península Ibérica durante la Edad Media, in "Recueil de


Mémoires et Travaux publié par la Société d'Histoire du Droit et des Institu-
tions des Anciens Pays de Droit Écrit", fase. VI, Montpellier, 1967, págs. 85 e
segs., e García-Gallo, Manual, cit., tomo I, págs. 89 e segs., e 458 e segs.
, (l) Ver P.e Avelino de Jesus da Costa, Fragmentos Preciosos de
Códices
Medievais, Braga, 1949, especialmente pág. 15 (sep. de "Bracara Augusta", cit.,
vol. I, págs. 420 e segs., e vol. II, págs. 44 e segs.), M. J. Almeida Costa, Para
a
história da cultura jurídica medieva em Portugal, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., tomo
XXXV; págs. 253 e segs., Domingos Pinho BrandAo, Teologia, Filosofia e
Direito
na diocese do Porto nos séculos XIV e XV, Porto, 1960, Isaías da Rosa Pereira,
Livros
de Direito na Idade Média, in "Lusitânia Sacra", tomo VII, Lisboa, 1966, págs. 7 e
segs., e tomo VIII (1970), págs. 81 e segs., e Achegas para a história da cultura jurídica
em Portugal, in "Boi da Fac. de Dir.", cit., voi. LVIII, tomo II, págs. 511 e segs., e
A. Moreira de SA, Primórdios da Cultura Portuguesa-II e O Porto e a cultura nacional
nos séculos XII e XIII, in "Arquivos de História da Cultura Portuguesa", vol. II,

223
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

II — Quando se verifica em escala relevante

As considerações precedentes não conduzem, na verdade, ao


reconhecimento, nessa época, de uma autêntica difusão, entre nós,
de direito justinianeu e da obra dos Glosadores. Para que possa
falar-se de efectiva recepção do direito romano renascido, torna-se
necessária a prova de que este tinha entrado na prática dos tribu-
nais e do tabelionato, que excercia influência concreta na vida jurí-
dica do País. Ora, isso não sucedeu antes dos começos do século
xill. E ao longo deste século, maxime a partir dos seus meados, que
a referida recepção se desenvolve em linha progressiva.
A corroborá-lo está o modo como a mesma se operou. Recor-
de-se que consistiu, essencialmente, num fenómeno de difusão da
nova ciência jurídica que se cultivava nas Universidades ('). Daí
que os seus veículos decisivos fossem os juristas de formação uni-
versitária, através de uma actuação prática nas esferas judiciais e
notariais. Caminhou-se, pouco a pouco, para a superação do ante-
rior empirismo jurídico (2).
Também influenciaram a recepção romanística outros factores
que adiante se analisam. Não deve esquecer-se, todavia, que as
determinações do rei e das Cortes, ou os textos legislativos, pos-
suíam sempre uma eficácia relativa, em consequência da imprepa-
ração dos juízes, tabeliães e advogados, amiúde incapazes de inter-
pretar e aplicar os preceitos legais, ou até de saber lê-los. Ainda
durante o século XIII e, inclusive, no decurso do imediato, a justiça
das comarcas continuou entregue, fundamentalmente, a juízes de
eleição popular. Só com passos muito lentos se procedeu à sua subs-

Lisboa, 1968, n.° 1 e n.° 2, respectivamente, e A. Garcia y García,


Canonistas
portugueses medievalès, in "Est. sobre la Can. Port. Med.", cit., págs. 95 e segs.,
especialmente págs. 99 e segs.
(') Ver, supra, pág. 219.
( ) Ver, supra, págs. 195 e seg.

224
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

tituição por "juízes de fora", que exerciam a justiça em nome do


monarca e, não raro, eram já letrados (!).
A recepção do direito romano renascido foi, portanto, um
movimento progressivo e moroso. Sem dúvida, mais rápido e eficaz
nos meios próximos da Corte e dos centros de cultura eclesiástica
do que nos pequenos núcleos populacionais desses distanciados.
Decorre do exposto que a metodologia própria para a
investigação do modo e verdadeiro alcance, entre nós, da recepção
romanística deve voltar-se principalmente para a nova classe dos
juristas, inclusive para os auxiliares de justiça, tendo em conta a
respectiva formação, origem eclesiástica ou laica, os livros que
possuíam, a sua localização e a importância social de que
desfrutavam. Só um árduo levantamento desses dados permitirá
atingir conclusões seguras ( ).

35. Factores de penetração do direito romano renascido na


-*-r,.
tf? esfera jurídica hispânica e portuguesa

As manifestações da expansão romanística foram variadas e de


enorme importância para os destinos do direito peninsular. Não
existem especificidades salientes relativas ao nosso país. Pode dizer-
-se que os Estados peninsulares sofreram, quanto à recepção do
direito romano renascido, a influência de factores essencialmente
comuns. Indicaremos os mais valiosos.
Cabe insistir, desde logo, na concreta expressão peninsular dos
dois elementos, atrás indicados, que estiveram presentes em toda a
difusão romanística europeia. Porém, acrescentam-se outros.

(') Consultar, por ex., as observações de Braga da Cruz, O direito subsi-


diário, cit., nota 20 da pág. 193.
(2) E nesta ordem de ideias que A. Pérez Martín avança o projecto de
um "Corpus Iuristarum Hispanorum" (cfr. "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit.
tomo LI, págs. 859 e segs.).

225
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

■ a) Estudantes peninsulares em escolas jurídicas italianas e francesas.


Jurisconsultos estrangeiros na Península
Já ao longo da segunda metade do século XII se detectam na
Península Ibérica jurisconsultos de formação estrangeira (1). Con-
tudo, só desde os começos do século XIII existem testemunhos de
uma presença significativa de estudantes peninsulares, com predo-
mínio de eclesiásticos, em centros italianos e franceses de ensino do
direito (2). As preferências favoreciam, de longe, a Universidade de
Bolonha (3).
Esses legistas e canonistas, procedentes das várias regiões da Penín-
sula, aparecem, via de regra, apenas qualificados como Hispanos,
pelo que nem sempre se mostra nítida a sua exacta naturalidade
cispirenaica (4). Entretanto, devido à grande afluência de península-

(') Ver, supra, págs. 222 e seg.


( ) Consultar as indicações bibliográficas de Braga da Cruz, O
direito
subsidiário, cit., pág. 184, nota 1. Quanto à presença de estudantes portugueses de
leis e de cânones, a partir do séc. xiv, noutras Universidades estrangeiras, ver J.
Veríssimo SerrAo, Portugueses no Estudo de Toulouse, Coimbra, 1954, págs. 24
e
segs., Portugueses no Estudo de Salamanca, vol. I, Lisboa, 1962, págs. 35 e segs., e Les
portugais à l'Université de Montpelher (xn.e-xm.esiècles), Paris, 1971, págs. 35 e segs., e Giovanni
Minucci/Leo Kosuta, Lo Studio di Siena nei secoli xiv-xvi. Documenti e notizie
biblio-
grafiche, Milano 1989 (vol. 1 da colecção "Orbis Academicus", dirigida por Dome-
nico Maffei/Paolo Nardi). Ver, também, a bibliografia referida por M.
J.
Almeida Costa, La présence d'Accurse, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.
XLI,
págs. 51 e seg., notas 9 e 10.
(3) A respeito da influência geral da Universidade de Bolonha na cultura
espanhola, ver, especialmente, Juan Beneyto, La Universidad de Bolonia y la cul-
tura espánola, in "Studi e Memorie per la Storia dell'Università di Bologna",
nuova serie, vol. I, Bologna, 1956, págs. 589 e segs.
(4) É o caso do canonista Vicente Hispano, cuja nacionalidade portuguesa
se discute (ver Ana B. de Lima Machado, Vicente Hispano - Aspectos biográficos
e
doutrinais, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 141, págs. 5 e segs.; consultar,
ainda, António Domingues de Sousa Costa, Mestre Silvestre e Mestre
Vicente,
juristas da Contenda entre D. Afonso II e suas Irmãs, in "Itinerarium", cit., ano IX,
n.° 4, págs. 249 e segs.). Não se levantam dúvidas, por exemplo, a respeito de
Pedro Hispano (ver Isaías da Rosa Pereira, O canonista Petrus Hispanus
Portugalen-
sis, in "Arquivos de História da Cultura Portuguesa", cit., vol. II, n.° 4). Con-

226
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

res, a nação dos "Hispani" acabaria por se subdividir, dentro do


corpo universitário bolonhês, designadamente nas de Portugal, Cas-
tela, Aragão, Catalunha e Navarra.
Alguns dos juristas peninsulares atingiram grande notoriedade,
ocupando cátedras de direito romano e de direito canónico.
Exemplifica-se com o fecundo canonista João de Deus, porventura,
o nosso mais destacado jurisconsulto medievo ('). De qualquer
modo, estes juristas de formação bolonhesa regressavam normal-
mente ao País, logo após a conclusão dos seus estudos. Tais letrados,
como então se lhes chamava, ascendiam a postos cimeiros, na
carreira eclesiástica, política ou do ensino, e tornavam-se, sem
dúvida, arautos importantes da difusão do direito novo (2).

sultar, também, A. García y García, Canonistas portugueses medievales, cit., in


"Est. sobre la Can. Port. Med.", págs. 104 e segs., onde se mencionam vários
canonistas portugueses.
( ) Conforme salienta Paulo Merèa ao ocupar-se de outro
jurisconsulto
da época (cfr. Domingos Domingues, canonista português do séc. XIII, in "Boi. da Fac.
de Dir.", cit., vol. XLIII, págs. 223 e segs.). Sobre João de Deus, consultar
António Domingues de Sousa Costa, A doutrina penitencial do canonista João
de
Deus, Braga 1956, Um mestre português em Bolonha no século XIII, João de Deus. Vida
e obras, Braga, 1957, e Animadversiones criticae in vitam et opera canonistae Joannis de
Deo, Romae, 1958, e A. García y García, Canonistas portugueses medievales, cit., in
"Est. sobre la Can. Port. Med.", págs. 113 e segs.
( ) Recordemos outro exemplo, embora mais tardio: João das Regras.
Sobre este jurista, cônsultem-se Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, João das
Regras
e outros juristas portugueses da Universidade de Bolonha (1378-1421), Lisboa, 1960, O
chanceler João das Regras, Prior da Igreja da Oliveira, em Guimarães. A propósito de um
estudo recente, Lisboa, 1974 (seps. da "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.",
cit., respectivamente, vols. XII e XXV), O Discurso do Doutor João das Regras nas
Cortes de Coimbra de 1385. Dúvidas e Observações, Braga, 1984, Apostilha a "O Dis-
curso do Doutor.João das Regras nas Cortes de Coimbra de 1385. Dúvidas e Observações",
Braga, 1987 (seps. de "Scientia Ivridica", respectivamente, tomos XXXIII e
XXXVI), e Sobre o apelido do Doutor João das Regras, Lisboa, 1985 (sep. do "Boi. do
Min. da Just.", cit., n.° 349), e António BrAsio, O clérigo João Afonso das Regras D.
Prior da Colegiada de Guimarães, Guimarães, 1981 (sep. de "Actas do Congresso
Histórico de Guimarães e da sua Colegiada", vol. II).

227
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Resultado análogo decorria do movimento paralelo da vinda


de jurisconsultos estrangeiros para a Península. Foi também muito
significativo. Esses jurisconsultos desempenharam funções importan-
tes junto dos monarcas, maxime como chanceleres e conselheiros, ou
exerceram a docência universitária.

b) Difusão do "Corpus luris Civilis" e da Glosa

Era natural que os juristas trouxessem do estrangeiro, além da


especialização, textos relativos à disciplina que cultivavam. Ini-
ciativa de grande alcance. Assim, à existência esporádica de códices
jurídicos no século xi^1), segue-se a sua difusão do século xm em
diante.
Multiplicam-se os textos do Corpus luris Civilis com a respec-
tiva Glosa. A divulgação e a citação destes, num ritmo crescente,
assumiram relevo histórico inquestionável para o incremento do
direito comum. Os testemunhos abundam nos inventários das
bibliotecas das catedrais e dos mosteiros respeitantes aos vários
Estados peninsulares. Do mesmo modo, tornam-se frequentes as
referências em deixas testamentárias de clérigos e, mais tarde,
inclusive, de juristas seculares ( ).

c) Ensino do direito romano nas Universidades

O surto universitário não tardou a comunicar-se à Península,


servindo de paradigma a estrutura bolonhesa. Em princípios do

( ) Ver, supra, pág. 223 e nota 1. Aos estudos aí mencionados, acrescenta-


-se Bibliotecas Medievais Espawlas, in "Miscelânea Mons. José Rius Serra", vol. I,
San Cugat dei Vallés, 1965, págs. 139 e segs., onde, como Nuno J. Espinosa
Gomes da Silva observa, se incluem um inventário, de 1364, dos livros do bispo
de Lisboa Lourenço Rodrigues e um rol dos preços de livros vendidos nessa
cidade em 1368 e 1369 (Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág. 163, nota 1).
(2) VerJ. M. FontRius,L<j recepción dei Derecho romano, cit., in "Recueil de
Mémoires et Travaux publié par la Société d'Histoire du Droit et des Institutions
des Anciens Pays de Droit Écrit", fase. VI, págs. 91 e seg.

228
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

século XIII, talvez com origens nos fins da centúria precedente, é


criada a Universidade de Palência, que, todavia, desapareceu a
breve trecho. Ao dobrar-se a primeira metade do século xm já a
Universidade de Salamanca se encontra perfeitamente consolidada.
Outras se lhe seguiram nos Estados hispânicos. Preponderava o ensino
do direito romano e do direito canónico (').
Quanto ao nosso país, sabe-se que foi no tempo de D. Dinis
que surgiu o Estudo Geral. Discute-se a data exacta da sua criação,
que se situa, sem dúvida, entre 1288 e 1290 (2). O ponto de vista
tradicional, que coloca a fundação da Universidade portuguesa no
dia 1 de Março de 1290 (3), tem sido, ultimamente, posto em causa

(*) Sobre as Universidades peninsulares, ver, entre outros, A. Garcia y


GarcIa, Los estúdios jurídicos en la Universidad medieval, cit., in "Est. sobre la Can.
Port. Med.", págs. 17 e segs., Armando de Jesus Marques, Portugal e a
Universi-
dade de Salamanca. Participação dos escolares lusos no governo do Estudo (1503-1512),
Salamanca, 1980, Mariano Peset, Interrelaciones entre las universidades espawlas y
portuguesa en los primeros siglos de su historia, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
LVIII, tomo I, págs. 875 e segs., e Universidades Espawlas y Universidades Eurepeas,
in "Ius Commune", cit., vol. XII, págs. 71 e segs., e Andrés Barcala
Munoz,
Las Universidades espawlas durante la Edad Media, in "Anuário de Estúdios Medie-
vales", vol. 15, Barcelona, 1985, págs. 83 e segs. Quanto às Universidades em
geral, ver, supra, págs. 219 e segs.
(2) Mais concretamente, apresentam-se como termo a quo e termo ad quem
o dia 12 de Novembro de 1288 e o dia 9 de Agosto de 1290. A primeira dessas
datas é a da carta em que vários dignitários de ordens religiosas e de igrejas
seculares comunicam ao Papa Nicolau IV o acordo feito com D. Dinis quanto à
aplicação das rendas de certas igrejas à fundação de um Estudo Geral na cidade
de Lisboa e solicitam a aprovação e a confirmação pontifícias; enquanto a
segunda data referida é a da bula "De statu Regni Portugalie", dirigida "à Uni-
versidade dos mestres e escolares de Lisboa", onde o mesmo Papa aprova a sua
fundação e lhe concede diversos privilégios — o que pressupõe a sua anterior
criação. Estes documentos podem consultar-se, acompanhados de tradução por-
tuguesa, in Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1537), org. por A. Moreira
de Sá, vol. I (1288-1377), Lisboa, 1966, respectivamente, págs. 6 e segs. (n.os 2 e
3), e págs. 12 e segs. (n.os 6 e 7).
(3) Data de um documento, publicado por António G. Ribeiro de
Vas-
concelos, em que D. Dinis, referindo-se ao Estudo Geral que resolvera fundar,

229
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
\
corri argumentos ponderosos. Não cabe apreciar aqui os dados do
problema (*). Talvez essa criação recue a um dos dois anos anterio-
res> De qualquer modo, a bula de confirmação do Papa Nicolau IV,
de 9 de Agosto de 1290 (2), faz referência expressa à obtenção dos
graus de licenciado em direito canónico e direito civil (3), podendo
esses diplomados ensinar em toda a Cristandade, sem a exigência
de novo exame ("ius ubique docendi")( ).
A sede da Universidade foi transferida, ainda no tempo de D.
Dinis, de Lisboa para Coimbra. E viria a deslocar-se entre as duas
cidades até ao século xvi(5). Mas o que interessa salientar é que,
desde o começo, os cursos jurídicos ocuparam uma posição desta-
cada no nosso Estudo Geral (6).

promete protecção e segurança a todos os que aí estudam ou que de futuro


queiram estudar (Ver Um documento precioso, in "Revista da Universidade de
Coimbra", vol. I, Coimbra, 1912, págs. 363 e segs.; republ., com tradução, in
Chart. Univ. Port., cit., vol. I, págs. 10 e segs. — n.os 4 e 5).
(') Consultar a síntese de Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota
18
da pág. 190, e os autores para que remete. Ver, por ex., Marcello
Caetano,
Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 283 e segs.
(2) Ver, supra, nota 2 da pág. anterior.
(3) Além dos graus de licenciado em Artes (correspondendo ao "trivium"
e ao "quatrivium") e em Medicina. Lê-se nesse texto: "Quodque Scolares in
artibus et iure Canónico ac Civili ac Medicina (...) possint (...) in studio licentiari
predicto" (ver a oh. cit. na nota 2, in fine, da pág. anterior). O ensino da Teologia
ficava reservado aos conventos de certas ordens religiosas (Dominicanos e
Franciscanos).
(4) Ver, supra, pág. 222.
(5) O próprio D. Dinis, como se observou, transferiu a Universidade para
Coimbra, em 1308. Com D. Afonso IV, no ano de 1338, regressou a Lisboa, mas
o mesmo monarca, em 1354, fê-la viajar, de novo, até Coimbra. D. Fernando,
em 1377, estabeleceu-a, outra vez, na capital. A fixação definitiva da Universi-
dade em Coimbra deveu-se a D. João III, quando corria o ano de 1537.
(6) Ver M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones e Direito (Faculdades de),
in
"Dic. de Hist. de Port.", cit., vol. II, págs. 677 e segs. Quanto ao ensino universi-
tário em geral, consultar o estudo já cit. de Mário BrandAo/M. Lopes
de
Almeida, A Universidade de Coimbra. Esboço da sua História, Coimbra, 1937.

230
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA

Esse ensino autóctone não estancou a atracção das Univer-


sidades estrangeiras famosas. Constitui, porém, mais um factor de
difusão do direito comum.

d) Legislação e prática jurídica de inspiração romanística

A influência do direito comum também se revelou nas leis e


noutras fontes jurídicas nacionais. Analisaremos, oportunamente,
como se desenvolveu, entre nós, a legislação geral ('). Todavia,
salienta-se, desde já, que foram notórios os reflexos romanísticos na
disciplina consagrada por esses novos preceitos.
O mesmo se observa quanto à prática jurídica. Designada-
mente, no domínio tabeliónico, houve sintomas do direito romano
renascido.

e) Obras doutrinais e legislativas de conteúdo romano

Refira-se, por último, a elaboração, nessa época, de algumas


obras jurídicas, escritas originariamente em castelhano. Tais obras,
de índole doutrinal e legislativa, mostram forte influência do
direito comum, quando não constituem mesmo resumos ou sínteses
dos seus princípios. Enquadram-se, pois, no movimento de difusão
romanística peninsular. A sua tradução para português indicia a
grande voga que alcançaram no nosso país, inclusive como fontes
subsidiárias (2).
Pelo que respeita às obras doutrinais, salienta-se a importância
das Flores de Derecho ou Flores de las leys e dos Nueve tiempos de los
pleitQSj ambas da autoria de Jácome (ou Jacobo) Ruiz, também
conhecido por Mestre Jácome das Leis (3). Trata-se de compêndios

( ) Ver, infra, págs. 254 e segs.


(2) Ver, págs. 261 e seg.
(3) Ver Paulo Merèa, A versão portuguesa das "Flores de las leys" de Jácome
Ruiz, in "Rev. da Univ. de Coimb.", cit., vol. V, págs. 444 e segs. (estudo

231
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

relativos ao processo civil de inspiração romano-canónica, que


tendia a substituir o sistema foraleiro e consuetudinário vigente, de
raiz germânica. Aliás, a literatura processual do direito comum terá
sido a que primeiro se repercutiu na Península e decisiva para a
recepção prática desse sistema (').
As obras legislativas decorreram da política seguida em tal
domínio por Afonso X, o Sábio (2). Procurou este soberano, não só
reivindicar para o monarca a criação jurídica, mas também a
uniformização e a renovação do direito dos seus Reinos. Destacam-
-se o Fuero Real e as Siete Partidas. Apenas lhes dedicaremos consi-
derações muito breves (3).

introdutório; republ., com alterações e acrescentamentos, nos seus "Est. de


Hist. do Dir.", cit., págs. 45 e segs.), e ano VI, págs. 341 e segs. (texto e tradu-
ção). A versão portuguesa das referidas obras encontra-se num códice conhecido
por Foros da Guarda, cuja data parece situar-se entre 1273 e 1282, portanto nos
fins do reinado de D. Afonso III ou começos do reinado de D. Dinis. Mas é
possível que tenha havido uma tradução anterior — de que esta representa uma
cópia grosseira—, embora não muito antiga (cfr. Paulo Merêa "Est. de Hist.
do Dir.", cit., págs. 61 e seg.).
(') Ver J. M. Font Rius, La recepción dei Derecho romano, cit., in "Recueil de
Mémoires et Travaux publié par la Société d'Histoire du Droit e das Institutions
des Anciens Pays de Droit Écrit", fase. VI, págs. 91 e seg.
(2) O reinado de Afonso X (1252/1284) aproxima-se cronologicamente do
de Afonso III de Portugal (1248/1279).
(3) Subsistem fundas controvérsias, inclusive sobre se houve uma verda-
deira política legislativa de Afonso X. Às dúvidas acerca da cronologia das obras
jurídicas desse monarca, acrescenta-se a da relacionação do chamado Fuero dei
Libro ou Libro dei Fuero, mais tarde conhecido por Especulo, e as Siete Partidas. A
opinião talvez predominante considera que o Especulo constituiu a base do texto
jurídico que, a partir de uma terceira redacção, já depois da morte de Afonso X,
passou a ser conhecido por Siete Partidas. Sustentam outros autores, porém, que
não chegou a terminar-se a redacção do Especulo, justificando-se, pelas aspirações
imperiais de Afonso X, que em seu lugar se elaborassem as Siete Partidas ou Livro
de las Leys. Além das obras indicadas, deve ainda mencionar-se, num plano
conexo, o Setenario, livro doutrinal dirigido à formação política e cívica, a uma
correcta consciência jurídica, especialmente dos reis. Entre a ampla bibliografia,
ver Afonso García-Gallo, El "Libro de las leys" de Alfonso el Sábio. Del Especulo
a

232
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANONICA

O Fuero Real destinava-se às cidades que ainda não tivessem


"fuero", quer dizer, uma compilação das normas j""'jjfjiLir?l?IlJfIJ-
pais, ou às que, embora possuindo-o, quisessem substituí-lo por este
mais perfeito e actualizado. É um "fuero" extenso (^ organizado
com base em preceitos do Código Visigótico ("Fuero Juzgo") e
costumes territoriais castelhanos, domínio onde oferece particular
interesse uma importante colectânea anterior de direito local
("Fuero de Soria")(2). Ocupa-se do direito privado e do direito
penal. Nele existem consideráveis reflexos romanísticos e canonísti-
cos, que se produziram, sobretudo, através da recepção de soluções
jurídicas concretas ( )(4).

las Partidas, Nuevas observaciones sobre la obra legislativa de Alfonso X e La obra legislativa
de Alfonso X. Hechos e hipótesis, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., respectiva-
mente, tomo XXI, págs. 345 e segs., tomo XLVI, págs. 609 e segs., e tomo LIV,
págs. 97 e segs., Aquilino Iglesias Ferreiros, Alfonso X el Sábio y su obra
legislativa:
algunas reflexiones e Fuero Real y Especulo, ibid., respectivamente, tomo L, págs. 531 e
segs., e tomo LII, págs. 111 e segs., Jerry R. Craddock, La cronologia de las obras
legislativas de Alfonso X el Sábio, ibid., tomo LI, págs. 365 e segs., e Robert A.
MacDonald, Problemas políticos y Derecho Alfonsino considerados desde três puntos de
vista, ibid., tomo LIV, págs. 25 e segs.
(l) Ver, infra, pág. 259 e nota 2.
(2) Ver Gonzalo Martínez Díez, El Fuero Real y el Fuero de Soria, in
"An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XXXIX, págs. 545 e segs.
(3) Ver Gonzalo Martínez Díez, Los comienzos de la recepción dei
Derecho
romano en Espana y el Fuero Real, in "Diritto comune e diritti locali nella storia
dell'Europa. Atti dei Convegno di Varenna (12-15 gmgno 1V/9J", Milano, 1980,
especialmente pág. 260, e António Pêrez Martín, El Fuero Real y Murcia, in
"An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, especialmente págs. 69 e segs.
(4) A versão portuguesa do Fuero Real, que recua aos finais do século xm,
encontra-se também nos Foros da Guarda. Foi publicada por Alfredo
Pimenta,
Fuero Real de Afonso X, o Sábio. Versão portuguesa do séc. xm, Lisboa, 1946, acompa-
nhada de introdução e notas que, não raro, carecem de rigor histórico-jurídico
(ver as recensões de Paulo Merèa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXI,
págs. 701 e segs., e Rafael Gibert, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo
XVII, págs. 1118 e segs.). Posteriormente, o texto foi dado à estampa, com
leitura mais cuidada, por José de Azevedo Ferreira, Alfonso X—Foro Real, vol.
I
(Edição e Estudo Linguístico) e vol. II (Glossário), Lisboa, 1987.

233
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

As Siete Partidas constituem uma exposição jurídica de carácter


enciclopédico, essencialmente inspirada no sistema do direito
comum romano-canónico, mas em que se encontram também
sintetizados princípios filosóficos, teológicos, religiosos e morais, de
proveniências diversas, a propósito da fundamentação de vários
preceitos. Tiveram sucessivas reelaborações e o nome resulta da
sistematização em sete partes.
Discute-se sobre o alcance desta obra como fonte de direito.
Para certos autores, as Partidas não possuíram, durante largo tempo,
vigência oficial, limitando-se a respectiva aplicação aos tribunais do
rei. Outra corrente sustenta que Afonso X chegou a promulgá-las,
embora uma reacção popular e da classe nobre, em defesa dos seus
privilégios e costumes, levasse ao restabelecimento do direito
"velho", quer dizer, dos preceitos jurídicos tradicionais. De toda a
maneira, essa colectânea desempenhou um papel relevante na
formação dos juristas e receberia, pelos meados do século XIV, a
consagração legal de fonte de direito subsidiário (').
Não se duvida da enorme projecção das Siete Partidas entre nós.
Poderá afirmar-se que, dos mencionados textos jurídicos castelha-
nos, foram o mais difundido, como atestam provas históricas
inequívocas (2).

(') Além da bibliografia indicada, supra, pág. 232, nota 3, ver, por ex.,
García-Gallo, Manual, cit., tomo I, págs. 90 e seg., e 304 e segs., e
Enrique
Gacto FernAndez/Juan António Alejandre García/José María
Garcia
Marín, El Derecho Histórico de los Pueblos de Espam, cit., págs. 288 e segs. Quanto
à consulta da própria obra, sugere-se Las Siete Partidas. Glosadas por el licenciado G.
López (Ed. facsímil dei texto autêntico publicado en 1555), Madrid, reimpressão
de 1982 (3 vols.).
(2) Cfr., infra, págs. 261 e seg. Sobre os inúmeros fragmentos que abundam
nos arquivos portugueses, quer do texto castelhano, quer da versão em vernáculo,
consultar, por todos, Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota 35 da pág.
201. Ver, posteriormente, José de Azevedo Ferreira, Alphonse X—Primeyra
Par-
tida. Édition et Étude, Braga, 1980, que se ocupa da sua difusão em Portugal (págs.
CXX e segs.) e fornece amplas indicações bibliográficas (págs. CXLVII e segs.).

234
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

36. Escola dos Comentadores

Durante o século XIv desenvolveu-se uma nova metodologia


jurídica. Corresponde à Escola dos Comentadores(l), assim cha-
mada porque os seus representantes utilizavam o comentário como
instrumento de trabalho característico, à semelhança do que
ocorreu com os Glosadores a respeito da glosa.
É essa a denominação para que continuamos a propender,
embora também outras se justifiquem: as de Escola Escolástica e
Escola Bartolista, tendo em atenção, respectivamente, a sua matriz
científica, com precedentes nas esferas teológico-filosóficas, e o
jurista mais representativo, Bártolo de Sassoferrato; ou, ainda, a de
Escola dos Práticos ou dos Consultores ("Konsilíatoren"), que
evidencia a acção significativa destes juristas no plano do direito
aplicado, através de "consilia"(2). Presta-se a confusões o nome de
Escola dos Pós-Glosadores, enquanto tal qualificativo, do mesmo
modo, aparece, não raro, atribuído aos Glosadores que escreveram
depois da Magna Glosa (3). Conclui-se, em suma, que nenhuma das
designações referidas se mostra indiscutida.

(l) Quanto a esta escola, ver Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I,
págs. 563 e segs., Koschaker, Europa y el Derecho Romano, cit., págs. 143 e segs.,
Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., págs. 78 e segs., Th. Viehweg, Tópica
e
Jurisprudência (tradução portuguesa da 5.a ed. alemã, de 1973, por Tércio Sampaio
Ferraz Jr.), Brasília, 1979, págs. 59 e segs. (na versão italiana Tópica e giurispru-
denza, de G. Crifò, Milano, 1962, págs. 67 e segs. — com base na l.a ed. alemã,
de 1953), Vicenzo Piano Mortari, II problema deWinterpretatio iuris nei commentatori,
in "Annali di Storia dei Diritto — Rassegna Internazionale", vol. II, Milano,
1958, págs. 29 e segs., Norbert Horn, Die juristische Literatur der Kommentatorenzeit,
in "Ius Commune", cit., vol. II, págs. 84 e segs., Cavanna, Storia dei diritto
moderno in Europa, cit., vol., I, págs. 137 e segs., e 635 e segs. (bibliografia), e
Manlio Bellomo, Società e istituzioni in Itália, cit., págs. 453 e segs.
(2) Cfr. Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod, cit., pág. 79.
(3) Ver, supra, pág. 217.

235
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

a) Origem e evolução da escola. Principais representantes

Dois aspectos básicos explicamjue tenha surgido uma mudança


de orientação do pensamento jurídico. Desde logoTlTdecaaência da
Escola dos Glosadores. O seu método, na verdade, não foi sufi -
ciente para transformar o sistema romano num direito actualizado,
capaz de corresponder às exigências evolutivas da_época:
Aponta-se, além disso, o prestígio e a generalização do método
dialéctico ou escolástico. Aplicado com êxito na especulação teoló-
gica e filosófica, não admira que se comunicasse ao estudo do
direito.
Esta metodologia apresenta especificidades manifestas em rela-
ção à anterior. Caracteriza-se, antes de mais, por uma aberta
utilização da dialéctica aristotélica no estudo do direito. As
primeiras manifestações recuam à formosa escola francesa de
Orléans, pelos fins do século xin e começos do século xiv, com
Jacques de Révigny e Pierre Belleperche, mas encontrou o seu
pleno desenvolvimento em Itália.
Pode encarar-se a passagem dos Glosadores aos Comentadores
sem solução de continuidade. Aqueles já_se prevaleceram da téc-
nica ,escolástica. Só que a sua utilização acentuou-se com os
Comentadores. Daí resultaram diferenças substanciais de tipo
didáctico e relativas ao enfoque das fontes justinianeias. Os novos
esquemas de exegese dos textos legais são agora acompanhados de
um esforço de sistematização das normas e dos institutos jurídicos
muito mais perfeito do que o dos Glosadores. Encara-se a matéria
jurídica, predominantemente, de uma perspectiva lógico-sistemática
e não, sobretudo, exegética. Para tanto, articulam-se parâmetros
filológicos, analíticos e sintéticos (!).

(') Cfr. Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., pág. 64, e Cavanna, Stor.
dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, págs. 142 e seg.

236
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

A atitude dos Comentadores foi de grande pragmatismo.

Voltaram-se para uma dogmática dirigida à solução dos problemas


concretos. Também os Glosadores tiveram presentes as exigências
normativas do seu tempo. No entanto, ao contrário destes, os
Comentadores desprenderam-se, progressivamente, da colectânea
justinianeia. Quer dizer, em vez de estudarem os próprios textos
romanos, aplicaram-se, de preferência, às glosas e, depois, aos
comentários sucessivos que sobre elas iam sendo elaborados^ Ao
lado de tais elementos, socorreram-se de outras fontes, designada-
mente dos costximesloçais,, dps direitos estatutários ^e~. do direito
canónico. Chegaram, assim, à criação de novos institutos e de
novos ramos do direito.
A transição entre as duas escolas deu-se através dos pós-
-acursianos(1). O período mais criativo dos Comentadores decorre
dos começos do século XIV aos meados do século XV. Embora tenha
Zjio^em França, foi na Itália que a nova metodologia
encontrou
3 desenvolvimento. A este país pertenceram os
Comentadores
mais famosos, como, no século xiv, Cino, Bártolo e Baldo, no
século XV, Paulo de Castro e Jasão (1435/1519). Este último já
testemunha do período de decadência da Escola.
À frente de todos situou-se Bártolo (1314/1357), quer pela sua
extensa produtividade, quer pela influência que exerceu. Assim
como Irnério no século xn e Acúrsio nojjéculo_2^H> Bártolo é o
jurisconsulto que simboliza o século XIV. De tal maneira que se
criou o aforismo de que ninguém é bom jurista se não for
bartolista" ("nemo bónus iurista nisi sit bartolista").
Os comentários de Bártolo adquiriram prestígio generalizado.
Inclusive, tornaram-se fonte subsidiária no ordenamento jurídico de
vários países europeus. Em Portugal, por exemplo, as Ordenações
determinaram a sua aplicação suDletivaao lado da Glosa de

(') Ver, supra, pág. 217.


(2) Ver, infra, págs. 262, 307 e segs., e 361 e seg. Consultar M. J. Almeida
237
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

b) Significado da obra dos Comentadores


Como se expôs, os aspectos básicos da metodologia dos
Comentadores foram a utilização dos esquemas mentais dialécticos
ou escolásticos, o afastamento crescente da estrita letra dos textos
justinianeus, interpretados ou superados de maneira desenvolta, a
utilização de um sistema heterogéneo de fontes de direito e o acen-
tuado pragmatismo das soluções. Tudo produziu um avanço da
ciência jurídica e a sua maior conformidade às exigências práticas
da época.
Daí resultaram, consoante também se observou, os alicerces
de instituições e disciplinas que não tinham raiz em categorias do
direito romano ou que este apenas encarava casuisticamente. Isto se
verificou em âmbitos jurídicos relevantes, maxime do direito comer-
cial e marítimo, do direito internacional privado, do direito civil,
do direito penal e do direito processual.
Através dos seus comentários, pareceres e monografias, os
juristas desta escola criaram uma literatura jurídica cujo prestígio se
difundiu pela Europa adiante. Deu-se, numa palavra, mais um
passo nítido no caminho que levaria à moderna ciência do direito.
Ao longo da segunda metade do século XV. inicia-se o declínio
dos Comentadores,. O método escolástico, utilizado por juristas
talentosos, tinha sido criativo e permitira descobrir o verdadeiro
espírito ("ratio") dos preceitos legais. No entanto, logo que passou
a um emprego rotineiro, conduziu à estagnação, à mera repetição
de argumentos e de autores.

Costa, Romanisme et bartolisme dam le droit portugais, in "Bartolo da Sassoferrato


— Studi e documenti per il VI centenário", vol. I, Milano, 1962, págs. 313 e segs.
(versão portuguesa, com retoques, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXVI,
págs. 16 e segs.), Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Bártolo na História do
Direito
Português, in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. XII, págs. 177 e
segs., e Martim de Albuquerque, Bártolo e Bartolismo na História do Direito
Portu-
guês, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 304, págs. 13 e segs. Sobre Bártolo e a
sua obra, ver os valiosos estudos reunidos in "Bartolo da Sassoferrato — Studi e
documenti per il VI centenário", cit., vols. I e II, Milano, 1962.

238
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Esgotaram-se, desde certa altura, as possibilidades potenciais


da Escola. As suas primeiras gerações de juristas como que estanca-
ram as virtudes da mudança metodológica realizada para a actuali-
zação e sistematização do direito vigente. Seguiu-se o uso abusivo
do princípio da autoridade e o excesso de casuísmo. Os juristas
desta fase de decadência perderam as preocupações de criação ori-
ginal. Limitaram-se, via de regra, a enumerar e citar, a propósito
de cada problema, não só todos os argumentos favoráveis e desfa-
voráveis a determinada solução, mas também a lista dos autores
num e noutro sentido.
A "opinião comum" ("communis opinio") ou mesmo a "opi-
nião mais comum" ("magis communis opinio"), assim obtida, era
considerada a exacta. Observe-se que as Ordenações Manuelinas
atribuíram o alcance de fonte subsidiária a "comum opinião dos
doutores", que sobrepõem à Glosa de Acúrsio e aos Comentários
de Bártolof1).

37. O direito canónico e a sua importância

Abordou-se o problema do renascimento do direito romano e


da correspondente recepção em Portugal. Cabe, de seguida, aludir
à renovação simultânea verificada no âmbito do direito canónico e
à influência que exerceu entre nós. Foram dois fenómenos com
manifesta interligação.
O direito canónico, como se apreciará, teve um significado
muito valioso no quadro histórico do, sistema jurídico português,
que se prolonga até aos tempos modernos. O mesmo ocorreu, aliás,
quanto à generalidade dos países de formação cristã (2). Na época, o

(') Ord. Man., liv. II, tít. 5, § 1. Ver, infra, págs. 310 e segs.
(2) A importância do direito canónico para a formação da consciência
jurídica europeia é sinteticamente destacada por H. Thieme, Unidad y pluralidad
en la historia dei Derecho europeo, cit., in "Revista de Derecho Privado", tomo
XLIX, pág. 695.

239
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

direito canónico disciplinava múltiplos aspectos das relações sociais


que se encontram hoje confiados à legislação estadual. Além de
que, em virtude do relevo que a Igreja sempre possuiu, o conheci-
mento das suas instituições e organização, que é dado sobretudo
pelo respectivo sistema jurídico, apresenta grande interesse para a
história social e política (J).

38. Conceito de direito canónico

Tornam-se necessárias algumas considerações prévias. Haverá


que precisar, antes de mais, o conceito e as fontes de direito canó-
nico. A isso vamos.
Entende-se por direito canónico o conjuntode normas jurídi-
cas que disciplinam as matérias da competência da_Igreja Católica.
Entre outras designações que tem recebido, destaca-se a de direito
eclesiástico. Mas esta expressão é equívoca, porque igualmente utili-
zada para compreender as normas jurídicas estaduais relativas a
confissões religiosas. Observe-se, ainda, que os preceitos litúrgicos,
embora rigorosamente façam parte do direito canónico, não cos-
tumem ser nele integrados, mercê da sua índole especial (2).
Desde cedo, com origem no Oriente, se usou a palavra câno-
nes, em sentido amplo, para abranger todas as regras de direito
^anómcõ~p)7Tjuma acepção restrita, porém, p<gã^jafovrá jprlni
apenas as normas emanadas dos concílios: os cânones conciliares.

( ) Ver, supra, págs. 126 e seg., o que se observou a propósito do quadro


jurídico do Estado Visigótico.
(2) Código de Direito Canónico, cân. 2. Tais normas formam o chamado
direito litúrgico.
(3) Deu-se-lhes esta designação (do grego "cânon" = regra, norma) com
o objectivo de distinguir os preceitos jurídicos canónicos dos civis ("nomoi",
"leges"). Apresentam normalmente uma forma sucinta e concisa, semelhante à
dos artigos dos diplomas legislativos modernos.

240
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Em paralelo, designam-se decretos ou cartas decretais as epístolas ponti-


fícias, quer dizer, as normas jurídico-canónicas da directa iniciativa
dos Papas {^}.
Mas analisemos especificamente as fontes do direito canónico.
Atendendo à origem ou modo de formação das normas, estabelece-
-se uma distinção básica: as fontes de direito divino e as fontes de direito
humano.
As primeiras são constituídas pela Sagrada Escritura (Antigo e
Novo Testamento) e pela Tradição. Neste caso, a Igreja apenas
propõe ou interpreta declarativamente. A Tradição abrange as
obras dos Santos Padres, que foram os teólogos dos tempos iniciais
dãTlgreja Católica.
Arrêscentou-se às referidas fontes o costume, já pertencente
aos modos de formação do direito humano. Nele se detectam
influências de preceitos romanos.
Desde o século IV, em ritmo progressivo, dá-se um considerá-
vel aumento das normas jurídico-canónicas derivada de fontes de
direito humano. A saber: os decretos ou decretais dos pontífices
romanos (quanto à forma, designados bulas, breves, etc); as leis ou
cânones dos concílios ecuménicos; os diplomas emanados de autori-
dades eclesiásticas infra-ordenadas (bispos, superiores de ordens
religiosas, concílios particulares, etc); concórdias ou concordatas,
quer dizer, acordos entre a Santa Sé e os vários Estados; a doutrina
e a jurisprudência, integradas, respectivamente, pela obra científica
dos canonistas e pelas decisões da jurisdição eclesiástica; e, inclu-
sive, as normas jurídicas civis "canonizadas", isto é, que a Igreja
reconhecia nos seus tribunais.

(') Ver Gérard Fransen, Les décrétales et les collections de décrétales, Louvain,
1972.

241
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

39. O direito canónico anteriormente ao século xii

Em geral, qualifica-se como período do direito canónico


antigo (ius vetus)(l) o que decorre desde o seu aparecimento até
cerca de meados do século XII. A uma primeira fase, caracterizada
pela quase exclusividade das chamadas fontes de direito divino, seguiu-
-se o progresso do costume e das outras fontes de direito
humano (2). Estas tornaram-se o modo normal de criação de precei-
tos jurídico-canónicos, convocados a disciplinar situações cada vez
mais vastas e complexas.
Não admira que, a breve trecho, se sentisse a necessidade de
colectâneas que reunissem e sistematizassem essas normas. As pri-
meiras tiveram origem oriental. Viriam, contudo, a difundir-se no
Ocidente, com a inclusão de preceitos pontifícios e de disposições
conciliares respeitantes a esta parte da Europa.
Conhece-se um número apreciável de tais colectâneas. Apenas
se destacam algumas que têm maior relevância para a história do
nosso direito: os Capitula Martini, cuja organização, em 563, se
deveu a S. Martinho de Dume(3), e a Collectio Hispana, também
chamada Collectio Isidoriana, porque erradamente atribuída a S. Isi-
doro de Sevilha (4).
Esta última, mandada elaborar pelo Concílio de Toledo, no
ano de 633, recebeu, mais tarde, aprovação oficial do Papa Alexan-

(') Divide-se, correntemente, a história do direito canónico em quatro


períodos: o período do "ius vetus" (do início até ao Decreto de Graciano —1140), o
período do "ius novum" (de 1140 ao Concílio de Trento —1564), o período do "ius
novissimum" (de 1564 ao primeiro Codex luris Canonici—1918) e o período posterior a
Í9Í8. Entretanto, com o actual Codex luris Canonici, cuja vigência se iniciou em
fins de 1983, abriu-se uma nova fase na evolução do direito canónico (ver, infra,
págs. 244 e segs.).
(2) Ver Jean Gaudemet, Les sources du droit de 1'Eglise en Occident: du If au
Vlf siècle, Paris, 1985.
(3) Ver, supra, pág. 117, nota 1.
(4) Ver, supra, págs. 140, nota 2, e 143.

242
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

dre III (1159/1181) para a Igreja hispânica. Continha normas dos


concílios peninsulares, entre os quais se contam os de Braga, que
assim passaram ao Decreto de Graciano, adiante mencionado (!).
Também algumas vezes as colectâneas jurídicas seculares con-
tinham preceitos sobre matérias eclesiásticas. Foi o que sucedeu
com as compilações de Justiniano, as codificações visigóticas e as
capitulares dos monarcas francos.
O desenvolvimento do direito canónico postulava uma cres-
cente necessidade do seu estudo. A elaboração das respectivas nor-
mas e das colectâneas que as iam reunindo e coordenando reflecte
os progressos sucessivos da doutrina canonística. Esta era cultivada,
como a especulação teológica, nos centros eclesiásticos. Mas não
poderá dizer-se que, antes dos fins do século XI ou, mesmo, dos
meados do século XII, existisse uma ciência do direito canónico sis-
temática e aprofundada, inclusive, com suficiente demarcação da
teologia e do direito romano.

( ) Ver, infra, pág. 245. Sobre as colectâneas canónicas desta época, ver
Gérard Fransen, Les collections canoniques, Louvain, 1973. Entre nós, pode
cônsultar-se a exposição desenvolvida de Braga da Cruz, Hist. do Dir. Port., cit.,
págs. 349 e segs. Saliente-se, ainda, a Collectio Hadriana, oficializada para a Igreja
franca no tempo de Carlos Magno. Essa colectânea resultou de uma actualização,
devida ao Papa Adriano I, da Collectio Dionisiana, organizada por Dionísio, o
Exíguo, em Itália, nos fins do século V ou começos do século VI (ver, também,
as colectâneas indicadas, supra, pág. 209, nota 1).
Recorde-se, a propósito, que Dionísio, o Exíguo, foi quem introduziu o uso
de datar pelo nascimento de Jesus Cristo, em vez da era de César. No nosso país,
a data passou a determinar-se a partir do nascimento de Cristo (nos documentos
em latim "Anno Domini"), com base numa lei de D. João I, de 22 de Agosto de
1460, que reduziu esse ano ao de 1422, portanto, descontando 38 anos (Ord.
Afons., liv. IV, tít. 66; cfr., também, o tít. 1, § 58). Todavia, já antes do referido
preceito imperativo, não se mostrava inédita a prática do sistema.

243
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

40. Movimento renovador do direito canónico

Verifica-se, do século XII em diante, uma grande renovação


na esfera do direito canónico. Representa um facto histórico para-
lelo ao incremento dado ao estudo do direito romano, que encontra
idênticas ou aproximadas causas justificativas (!). Até a prepara-
ção e os graus académicos obtidos nos dois domínios jurídicos — "in
utroque iure" ou, abreviadamente, "in utroque", segundo expres-
são consagrada — estavam interligados, pois constituíam, ao tempo,
atributo do jurisconsulto completo.
Não se afigura exacto, porém, considerar que existiu um
renascimento canonístico. Esse qualificativo, já objecto de reticên-
cias quanto ao direito romano ( ), mostra-se, aqui, de todo injustifi-
cado. Como resulta das considerações precedentes, nunca houve
qualquer quebra de continuidade na evolução jurídico-canónica. O
direito da Igreja sempre conheceu uma linha de progresso.
Nesta época, ocorre tão-só um impulso de transformação
normativa e dogmática que, ao lado do sucedido com o direito
romano justinianeu, teve os seus pressupostos no século XI ( ). Dois
vectores caracterizam, de facto, a renovação canonística: não ape-
nas se organizaram colectâneas mais perfeitas de normas, em substi-
tuição das anteriores, mas também se procedeu à reelaboração cien-
tífica do direito canónico baseada nesses corpos legais. Analisam-se
ambos os aspectos.

40.1. Colectâneas de direito canónico elaboradas desde o século Xll.


O "Corpus Iuris Canonici"

Ao aparecimento de novas colectâneas de direito canónico


não foi estranha a tendência para a uniformização e centralização
deste sistema jurídico. Pelos fins do século XI, na verdade, inicia-se

(!) Ver, supra, págs. 207 e segs.


(2) Ver, supra, págs. 206 e segs.
(3) Ver, supra, págs. 207 e segs.

244
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

um esforço pontifício de unificação normativa da Igreja, contrário


a particularismos nacionais ou regionais e que atribuía essencial-
mente à Santa Sé a criação dos preceitos jurídico-canónicos.
Nessa linha se enquadra o Decreto de Graciano. Elaborado à
volta de 1140, significa um marco importante na evolução do
direito canónico. Deveu-se a João Graciano, monge e professor em
Bolonha, que procurou fazer uma síntese e compilação dos princí-
pios e normas vigentes. A obra aparece designada, nos manuscritos
mais antigos, por Concórdia discorâantium canonum, visto que o seu
autor tinha como objectivo coordenar, harmonizar e esclarecer
preceitos de diversas proveniências, agrupando-os de forma siste-
mática e não cronológica ou geográfica. Ressalta a posição autó-
noma do direito canónico perante a teologia. Embora se tratasse de
uma colectânea privada, difundiu-se como lei geral da Igreja,
mercê da amplitude e da perfeição técnica, sob o nome de
Decreto (1).
Seguiram-se as Decretais de Gregório IX} também designadas
apenas Decretais (2). São uma colectânea de normas pontifícias poste-
riores à obra de Graciano, que S. Raimundo de Penafort organizou
a solicitação de Gregório IX. O mesmo Papa promulgá-la-ia no
ano de 1234. Divide-se essa compilação em cinco livros (3), tendo
revogado as disposições canónicas subsequentes aoJDècrèlo nela não
incluídas.

(l) Em português antigo, utilizava-se a palavra Degredo. A respeito do


Decreto de Graciano e do seu autor, veja-se Stephan Kuttner, Gratian and
the
Schools ojLaw, ÍÍ40-Í234, London, 1983.
( ) Encontram-se frequentemente citadas pela sigla X, abreviatura da
palavra latina "extra", que resultou de os autores medievais as denominarem
Decretales extra decretum Graciani vagantes.
(3) O liv. I ("judex") compreende as normas relativas à jurisdição hierár-
quica eclesiástica, o liv. II ("judicium") trata do processo canónico sobre matéria
civil, o liv. III ("clerus") ocupa-se do estado, dos direitos e deveres do clero, o liv.
IV ("connubia") é respeitante a esponsais e casamento, e o liv. V ("crimen")
disciplina o processo canónico em matéria criminal e as penas canónicas.

245
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

O Decreto e as Decretais completavam-se, numa relação idêntica


à assinalada, no âmbito romanístico, entre o Digesto e o Código.
Aquele condensava o direito antigo da Igreja e estas o seu direito
novo.
Entretanto, continuaram a publicar-se numerosas epístolas
pontifícias. Coube a Bonifácio VIII a iniciativa de uma colectânea
que abrangesse o conjunto dessas normas canónicas aparecidas após
as Decretais. Assim surgiu, com data de 1298, o Livro Se^jni Sexto
de Bonifácio VIII. A designação deriva da sua complementaridade
relativamente às Decretais, mas o novo diploma constituía um corpo
autónomo que utilizava, aliás, a sistematização gregoriana, em
cinco livros.
Ainda recebeu aprovação oficial uma outra colectânea conhe-
cida pelo nome de Çfetmtánas. O Papa Clemente V, decorrido o
Concílio de Viena (França), em 1311/1312, determinou a compila-
ção dos cânones dele resultantes, acrescentados de decretais pró-
prias. Todavia, a morte desse pontífice fez com que a obra só fosse
aprovada por João XXII, em 1317, depois de revista.
Fecham a série duas compilações de índole privada. Efectiva-
mente, cerca de 1500, deram-se à estampa, pela primeira vez, as
quatro colectâneas já indicadas. Ora, o editor acrescentou-lhes, de
sua conta e risco, um apêndice com decretais posteriores a 1317,
agrupando-as em secções distintas: numa, as de João XXII e, nou-
tra, as dos Papas subsequentes. Daí os qualificativos de Extravagantes
de João XXII e de Extravagantes Comuns. A palavra "extravagantes"
indica que são textos que se encontram fora das colecções
autênticas.
As referidas colectâneas de direito canónico, no seu conjunto,
vieram a integrar o Corpus Iuris Canonici, posto que três delas, como
se observou, não houvessem nascido oficializadas. Essa designação,
simétrica à de Corpus Iuris Civilis, que corresponde ao complexo das
obras jurídicas romano-justinianeias ( ), tornou-se corrente desde

(') Ver, supra, pág. 205, nota 1.

246
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

1580, quando Gregório XIII aprovou a versão revista de tais compi-


lações anteriores. Trata-se das fontes básicas do direito canónico
até ao primeiro Codex Iuris Canonici, que Bento XV promulgou em
1917 f1).

40.2. Renovação da ciência do direito canónico.


Decretistas e decretalistas

As colectâneas de direito canónico organizadas do século XII


ao século xiv demonstram uma extraordinária actividade legislativa
da Igreja, muito superior à dos monarcas dos Estados coevos.
Confrontam-se, em decorrência, dois ordenamentos de direito
comum, quer dizer, básicos e de vocação universal: um deles
assente nesses textos e o outro baseado nos preceitos romanísticos.
E sabido que as relações entre o Império e a Igreja assinalaram o
problema político nuclear da época, com reflexos manifestos sobre
a relevância dos srtemas normativos civil e canónico. À teoria
curialista do predomínio pontifício, contrapõe-se a imperialista da
separação de poderes. A conciliação ou aliança das duas jurisdições,
a temporal e a espiritual, exprimia-se na fórmula "utrumque ius",
que procurava significar a unidade de objectivos morais ("salus
animae")(2).
Essa querela desenvolvida por civilistas e canonistas não se
limitou ao plano especulativo ou teórico. Envolveu, ainda, aspectos

(') Mediante a constituição Providentissima Mater Ecclesia, de 27 de Maio de


1917, para entrar em vigor no dia 18 de Março de 1918. O actual Codex Iuris
Canonici foi promulgado por João Paulo II através da bula Sacrae Disciplinae Leges,
de 25 de Janeiro de 1983, e iniciou a sua vigência a 27 de Novembro do mesmo
ano. Sobre este último diploma, ver as sínteses de F. d'Ostilio, La storia dei nuovo
Códice di diritto canónico, Città dei Vaticano, 1983, e António Leite, O novo Código
de Direito Canónico, in "Brotéria", cit., vol. 118, n.° 1, págs. 3 e segs.
(2) Ver, entre outros, Cavanna, Stor. dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, em
especial págs. 54 e seg.

247
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

práticos. Mas, para além de tal controvérsia, colocou-se aos cano-


nistas a tarefa, que se conhece, de actualização normativa do
direito da Igreja e da subsequente interpretação e aplicação desses
preceitos. Ocorreu, em síntese, uma empenhada renovação da ciên-
cia do direito canónico.
Salientámos, antes, que o movimento se encontra em ligação
íntima com o estudo do direito romano. Orientou-se, essencial-
mente, pelos mesmos caminhos científicos. A construção do direito
canónico teve lugar mediante o emprego sucessivo da metodologia
dos Glosadores e dos Comentadores (*). Por outras palavras: os
processos de exegese, em especial as glosas e os comentários, que os
legistas utilizavam em face dos textos romanos foram transpostos
para a interpretação das colectâneas de direito canónico, maxime do
Decreto e dos Decretais. Consoante os canonistas se dedicavam à pri-
meira ou à segunda dessas fontes, era-lhes dada, respectivamente, a
designação de decretistasjo^ decretalistas.

41. Penetração do direito canónico na Península Ibérica

41.1. Considerações gerais

A renovação legislativa e doutrinal do direito canónico não


tardaria a difundir-se pela Europa. Desde cedo, teve reflexos
aquém-Pirenéus (2).
Recorde-se que os peninsulares que se deslocaram aos centros
italianos e franceses de ensino do direito eram na sua maioria ecle-

(') Ver, supra, respectivamente, págs. 210 e segs., e págs. 235 e segs.
(2) Consultar, por ex., António Garcia y Garcia, La penetración dei
Dere-
cho clásico medieval en Espana, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XXXVI,
págs. 575 e segs. (artigo republ., após algumas alterações, no livro do autor "Est.
sobre la Can. Port. Med.", cit., págs. 67 e segs., sob o título La penetración dei
Derecho clásico medieval en la Península Ibérica).

248
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

siásticos, a quem as respectivas instituições proporcionavam grandes


facilidades para início ou prosseguimento de tais estudos no estran-
geiro. Embora se dedicassem ao direito romano, cuja dogmática se
lhes tornava necessária, orientavam-se, sobretudo, para o direito
canónico.
E longa a lista dos decretistas e dos decretalistas com o cog-
nome de hispanos ( ). Alguns canonistas peninsulares ocuparam
posições de destaque, inclusive nas cátedras bolonhesas e de outras
Universidades. Já se aludiu ao caso paradigmático de João de
Deus(2). A um espanhol, Raimundo de Penafort, confiou Gregó-
rio IX a elaboração das Decretais (3).
Também se operou uma divulgação considerável dos textos de
direito canónico, através de numerosas cópias, realizadas ou não na
Península, e até de traduções. Inúmeros documentos medievais se
referem a esses códices (4).
Deve considerar-se, ainda, o ensino do direito canónico nas
Universidades peninsulares. Não terá sido comparável, em profi-
ciência e prestígio, ao de Bolonha, que se tomou como modelo (5).
Porém, a adopção de idênticos métodos, géneros de literatura jurí-
dica e sistemas pedagógicos nunca deixaria de produzir alguns
resultados positivos. O Estudo Geral dionisiano abrangeu, logo de
início, o magistério do direito canónico e do direito romano (6),

(!) Ver, supra, pág. 226, nota 4, os exemplos de Pedro Hispano e Vicente
Hispano.
(2) Ver, supra, pág. 227, onde, na nota 1, também se recorda um estudo
sobre o canonista português Domingos Domingues.
( ) Ver, supra, pág. 245.
(4) Cfr. a bibliografia indicada, supra, págs. 223, nota 1, e 228, nota 1.
(5) Ver A. Garcia y García, L<j penetración dei Derecho clásico medieval
cn
Espana, cit., in "An. de Hist. dei Der. Esp.", tomo XXXVI, especialmente
págs. 586 e segs. (quanto à republ. do referido estudo, ver a indicação feita, supra,
nota 2 da pág. anterior).
(6) É o que resulta da já mencionada Bula de 9 de Agosto de 1290, do
Papa Nicolau IV (ver, supra, págs. 228 e segs.).

249
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

bem como se determinou a existência de um doutor "in decre-


tis" e de um mestre "in decretalibus'^1).

Tinha interesse prático e não apenas especulativo o conheci-


mento do direito canónico. Esse sistema jurídico aplicava-se, quer
nos tribunais eclesiásticos, quer nos tribunais civis ou seculares.
Existia, com efeito, uma organização judiciária da Igreja, ao lado
da organizaçãojudiciária do Estado ( )

a) Aplicação nos tribunais eclesiásticos

Apresentava-se o direito canónico, antes de tudo, como o


ordenamento jurídico próprio dos tribunais eclesiásticos. Ora, a
competência destes fixava-se em razão da matéria ("ratione mate-
riae") e em razão da pessoa ("ratione personae"). Vejamos os dois
fundamentos.
Havia, na verdade, certas matérias que pertenciam à jurisdi-
ção canónica. Exemplifica-se com as respeitantes a matrimónio,
(l) Na carta de privilégios outorgada à Universidade em 15 de Fevereiro
de 1309, D. Dinis estabeleceu que nela houvesse, não só esses dois professores de
direito canónico, mas também um de direito romano ("in legibus") (ver Chart.
Univ. Port., cit., vol. I, págs. 43 e segs. — n.° 25, designadamente pág. 44).
Quanto aos professores de direito canónico, parece que apenas um veio a ser
nomeado (consultar M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones e Direito (Faculdades de),
cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 677 e segs., especialmente pág.678).
(2) Sobre a aplicação, entre nós, dos preceitos aprovados pelo Concílio de
Trento, que decorreu de 1545 a 1563, e abordando-se o problema das questões
que cabiam na competência dos tribunais eclesiásticos e também dos tribunais
civis (os casos "mixti fori"), consultar Marcello Caetano, Recepção e execução dos
decretos do Concilio de Trento em Portugal, in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de
Lisb.", cit., vol. XIX, págs. 7 e segs.

250
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

bens da Igreja, testamentos com legados e demais benefícios


eclesiásticos.
Por outro lado, determinadas pessoas só podiam ser julgadas
nos tribunais da Igreja. Assim sucedia com os clérigos, ainda que a
contraparte não possuísse a mesma qualidade, e todos aqueles a
quem se concedesse tal privilégio. A evolução, porém, foi no sen-
tido de limitar a outorga do foro eclesisásticoí1).

b) Aplicação nos tribunais civis

O direito canónico aplicava-se também nos tribunais civis.


Discute-se quanto a saber se alguma vez vigorou, entre nós, como
fonte imediata e mesmo prevalecente sobre o direito nacional. A
opinião generalizada manifesta-se em sentido afirmativo, com base
numa decisão de D. Afonso II tomada na Cúria de Coimbra de
1211 (2).
De qualquer maneira, ainda que tenha sido, num primeiro
momento, direito preferencial, o sistema juridico-canónico passaria,
a breve trecho, ao plano de fonte subsidiária, portanto, que só
intervinha na ausência de direito pátrio (3). E, em tal quadro, a sua

( ) Desde cedo o tema se encontra disciplinado (cfr. o Livro das Leis e


Posturas, Lisboa, 1971, págs. 57 e segs., e 380 — ed. promovida pela Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa; sobre esta colectânea de legislação anterior às
Ordenações Afonsinas, ver, infra, pág. 264).
(2) O trecho que interessa é o seguinte: "(...) Outrosy estabeleçeo que as
sas leys sseiam guardadas e os dereytos da santa egreia de Roma conuem a ssaber
que sse forem feitas ou estabeleçudas contra eles ou contra a santa egreia nom
ualham nen tenham." (Port. Mon. Hist. —Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 163 e
seg.). Nesse sentido, ver, por todos, NunoJ.Espinosa Gomes da Silva, Sobre a
lei
da Cúria de 12ÍÍ respeitante às relações entre as leis do Reino e o direito canónico, in
"Revista Jurídica", cit., n.° 1 (1979), págs. 13 e segs., e Hist. do Dir. Port., cit., vol.
I, pág. 124, e Martim de Albuquerque/Rui de Albuquerque, Hist. do Dir.
Port.,
cit., vol. I, págs. 114 e seg. De aviso contrário é Braga da Cruz, O direito
subsidiário, cit., págs. 188, nota 16, e 218, nota 50 da pág. anterior. Sobre a Cúria
de Coimbra de 1211, cfr., supra, pág. 192.
(3) Assim se explica que nas Ordenações Afonsinas (liv. II, tít. 9), ao
regular-se o problema das fontes subsidiárias, se tenha apenas sentido necessidade

251
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

prioridade sobre o ordenamento romano dependia de os preceitos


deste conduzirem a pecado ( ).

42. O direito comum

Já se conhece a expressão direito comum, repetidas vezes uti-


lizada. Importa, agora, que, de forma conclusiva, precisemos o seu
significado.
Designa-se direito comum ("ius commune") o sistema
normativo
de fundo romano que se consolidou com os Comentadores e consti-
tuiu, embora não uniformemente, a base da experiência jurídica
europeia até finais do século xvill. Alude-se, ainda, a direito
comum romano-canónico, ou, em paralelo, a direitos comuns
("iura communia"), o que salienta a relevância deste segundo ele-
mento ("ius canonicum")(2). Assim, a expressão, tanto se encontra

de afirmar o predomínio do direito nacional sobre o direito romano e não já


sobre o direito canónico — "o que significa, como é óbvio, que não havia, a
este
respeito, um problema em aberto, como a respeito do direito romano" (Braga
da
Cruz, O direito subsidiário, cit., pág. 218, nota 50 da pág. anterior; ver, também,
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág. 195).
(') Ver, infra, págs. 261 e segs., e 307 e segs.
( ) Sobre a controvérsia respeitante ao conceito, aos caracteres intrínsecos
e aos elementos constitutivos do direito comum, ver F. Calasso, // conceito di
"diritto comune", II problema storico dei diritto comune e // diritto comune come fatto spiri-
tuale, in "Introduzione ai diritto comune", Milano, 1951 (reimpressão em 1970),
respectivamente, págs. 33 e segs., págs.79 e segs., e págs. 139 e segs., li problema
storico dei diritto comune e i suoi reflessi metodologia nella storiografia giuridica europea, in
"Storicità dei diritto", Milano, 1966, págs. 205 e segs., e Médio Evo dei Diritto, cit.,
vol. I, especialmente págs. 372 e segs., A. Cavanna, Stor.del dir. mod. in Eur., cit.,
vol. I, designadamente págs. 95 e segs., e Giovanni Santini, Ius commune —
ius
generale. I tre sistemi normativi generali: diritto naturale, delle genti e rotnano, in "Rivista di
Storia dei Diritto Italiano", cit., vol. LVI, págs. 31 e segs. Salienta-se, ainda, o
estudo de Luigi Prosdocimi, // diritto canónico di fronte ai diritto secolare nelVEuropa dei
secoli XVI-XVIII, in "La formazione storica dei diritto moderno in Europa", cit.,
vol. I, págs. 431 e segs.

252

PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO- cendo


CANÓNICA o
germân
ico e
o
usada, restritivamente, para abranger apenas o sistema
feudal
romanístico,
.
como, num sentido amplo, que compreende também outros Razões
seg- histór
mentos integradores, muito em especial o canónico, mas icas
não esque- explic
am esses dois ^-v
sentidos ( ).
Ao direito comum contrapunham-se os direitos
próprios ("iura
própria"), quer dizer, os ordenamentos jurídicos
particulares. Em
face desse direito geral, assumem relevância, devido às
circunstân-
cias políticas e económicas, os direitos locais ou dos
vários Estados,
formados por normas legislativas e consuetudinárias.
Os Comentadores ocuparam-se, não só das relações
entre o
direito romano e o direito canónico, mas também das que
interce-
diam entre o "ius commune" e o "ius proprium". Este
segundo
problema conduziu a esquemas diversificados no tempo e de
país
para país.
Parece de sustentar, de um modo geral, que, durante
os sécu-
los XII e Xlli, o direito comum, pelo menos num plano
teórico, se
sobrepôs às fontes com ele concorrentes. Seguiu-se, nas
duas centú-
rias imediatas, um período de relativo equilíbrio, pois
os direitos
próprios foram-se afirmando como fontes primaciais dos
respecti-
vos ordenamentos e o direito comum tendeu a passar ao
simples
posto de fonte jurídica subsidiária. O termo desse ciclo,
em come-
ços do século XVI, dá-se com a independência plena do
"ius pro-
prium", que se torna a exclusiva fonte normativa
imediata, assu-
mindo o "ius commune" o papel de fonte subsidiária apenas
mercê
da autoridade ou legitimidade conferida pelo soberano,
que perso-
nificava o Estado (2).

(') Ver, por ex., A. Cavanna, Stor. dei iir. mod. in Eur., cit.,
vol. I, págs. 96
e seg.
(2) Destacam a evolução referida F. Calasso, II problema
storico dei diritto
comune, cit., in "Introduzione ai diritto comune", págs. 125 e
seg., e V. Piano
Mortari, Dialettica e giurisprudenza. Studio sui trattati di diakttica legale
dei sec. XVI, in
"Annali di Storia dei Diritto", cit., vol. I, pág. 369. Também se
reporta a essa

253
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Entre nós, alguns preceitos legais e várias obras de jurisconsul-


tos mencionam o direito comum no sentido que acabamos de anali-
sar. Contudo, também se encontram referências correntes a direito
comum com o significado de direito português ("ius nostri regni"),
ou seja, o direito que devia aplicar-se de preferência a qualquer
outro. Deste modo se procurava exprimir a ideia de que o sistema
romanístico só vigorava, no nosso país, a título subsidiário, pela sua
autoridade intrínseca e não extrínseca (1).

43. Fontes do direito português desde os meados do século xm


até às Ordenações Afonsinas

É altura de aludir às fontes do direito português desta época,


quer dizer, dos meados do século xm aos meados do século xv.
Visam-se, portanto, as fontes anteriores às Ordenações Afonsinas,
que marcam a indicada autonomização progressiva em face das
ordens jurídicas dos outros Estados peninsulares. Acresce que se
manifestam, fora de dúvida, reflexos da introdução do direito
romano justinianeu e do novo direito canónico decretista e
decretalista.

I —A legislação geral transformada em expressão da vontade do monarca.


Publicação e entrada em vigor da lei

, Uma análise do quadro das fontes de direito a_ partir de


Afonso III patenteia a supremacia das leis gerais. O que não signi-
fica que estas fossem, desde logo, o principal repositório do direito

periodização e aos autores indicados António Manuel Hespanha, História


das
Instituições, cit., pág. 480, nota 1029.
(') Ver Paulo MerEa, Direito romano, direito comum e boa razão, in "Boi. da
Fac. de Dir.", cit., vol. XVI, págs. 539 e segs., e Martim de
Albuquerque,
Portugal e a "lurisdictio Imperii", cit., in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.",
vol. XVII, págs. 334 e segs.

254
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA

vigente. Era ainda o costume que configurava o grande lastro jurí-


dico da época. Mas a lei, que também recebia as designações~cle
decreto ou degredo, ordenação, carta e postura, passou a ter o predomínio
entre os modos de criação de preceitos novos.
Este fenómeno é concomitante com as crescentes influências
romani sticas e canonísticas(!). Os dois aspectos denunciam um
nexo de reciprocidade: a recepção, maxime, do direito romano jus-
tinianeu veio favorecer a actividade legislativa do monarca; e, vice-
-versa, o desenvolvimento da legislação geral fomentou a divulga-
ção dos preceitos do direito romano e do direito canónico, que,
muitas vezes, nela deixaram sinais marcantes.
Sem dúvida, o surto legislativo resultou do reforço de autori-
dade régia. A difusão dos princípios romanos, como "quod principi
placuit legis habet vigorem" e "princeps a legibus solutus est"( ),
alicerçava poderes públicos ilimitados do monarca nas esferas
executiva, judiciária e legislativa (3). Inicia-se o caminho da centra-
lização política e da relacionada unificação do sistema jurídico.
Cada vez mais se iria polarizando no rei a criação do direito,
embora, decerto, conhecendo algumas atenuações de ordem prá-
tica, designadamente as que decorriam da colaboração das Cortes
ou das prerrogativas dos municípios. A lei passa a considerar-se,
não só um produto da vontade do soberano, mas ainda uma sua
actividade normal.
Na monarquia leonesa, a promulgação de diplomas gerais era
um facto raro, que exigia a convocação da Cúria para a sua discus-
são e subsequente aprovação. O mesmo se verificou com os nossos
primeiros reis (4).

(*) Cfr., supra, pág. 217.


(2) Cfr., respectivamente, Digesto, 1, 4,1, e 1, 3, 31.
(3) Consultar V. Piano Mortari, Dialettica e giurisprudenza, cit., in
"Annali
di Storia dei Diritto", vol. I, especialmente pág. 368, e os autores aí indicados na
nota 279. Destaca-se a obra de Dieter Wyduckel, Princeps Legibus Solutus.
Eine
Untersuchung zur fruhmodemen Rechts- und Staatslehre, Berlin, 1979.
(4) Cfr., supra, págs. 191 e seg.

255
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Desde Afonso III, a situação modifica-se. A lei deixa de cons-


tituir uma fonte esporádica e transforma-se no modo corrente de
criação do direito. Além disso, é elaborada sem necessidade do
suporte político das Cortes. Em contrapartida, patenteia-se o pro-
gressivo recurso do monarca ao apoio técnico de juristas de forma-
ção romanística e canonística.
Ultrapassam o número de duzentas as leis do tempo de Afon-
so III, onde cabe destacar a atenção dedicada à matéria de processo.
Essa dinâmica legislativa acelerou-se nos reinados subsequentes.

Apreciemos como tais diplomas chegavam ao conhecimento


público e o prazo da sua entrada em vigor. Faltava, a este respeito,
um regime fixo(!).
Visto que não existia a imprensa, as leis eram manuscritas e
reproduzidas através de cópias. Devia começar-se pelo registo dos
diplomas na chancelaria régia, o que não configurava, ainda, uma
verdadeira publicidade como esta se entende modernamente.
Assumia mais o sentido de mecanismo de fiscalização da autentici-
dade das leis e de elemento de prova do direito em vigor.
Tornou-se frequente a utilização dos tabeliães para dar publi-
cidade aos preceitos legais. Existem inúmeros exemplos em que o
monarca, nos próprios diplomas, lhes impunha o encargo de
registá-los nos seus livros e a obrigação da respectiva leitura
pública. Consoante a importância da lei, assim variavam o prazo e
a periodicidade desta proclamação. Via de regra, estabelecia-se um
ano, ao ritmo de uma leitura em cada semana, nalguns casos com
referência ao domingo. Mas, não raro, se determinava uma leitura
"amiúde" ou "muito amiúde", ou mensal, ou, inclusive, uma vez

(') Ver Gama Barros, Hist. da Adm. PúbL, cit., 2.a ed., tomo I, págs. 136
e
segs., que fornece apoio ao que passamos a expor.

256
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

por ano. Exigia-se o registo dos textos legais ainda a outras entida-
des, mormente às que tinham de aplicá-los.
Também o início da vigência da lei não obedecia, como se
observou, a um regime uniforme. Prática corrente terá sido a da
aplicação imediata. Conhecem-se, todavia, diplomas em que se fixa
uma "vacatio legis" mais ou menos extensa ('). De qualquer modo,
a aplicação das normas deveria depender da sua difusão efectiva ao
alcance dos destinatários, que demorava a alargar-se a todo o terri-
tório. Mas, dados os condicionalismos da época, não faltariam
incertezas, arbitrariedades e soluções casuísticas (2).

Ao lado das. providências legislativas de iniciativa do monarca,


II —^Resoluções régias
havia outras por ele tomadas em Cortes, perante solicitações ou
queixas que lhe apresentavam. Eram as resoluções régias. Estas
traduziam-se, de facto, nas respostas do soberano aos\ agravamentos
feitos pelos representantes das três classes sociais (3).
Sempre que as resoluções régias continham normas a observar
para futuro, estava-se em face de autênticas leis do ponto de vista
substancial. Apenas diferiam dos diplomas que o rei elaborava motu
próprio pelo processo de formação. A sua publicidade verificava-se,
normalmente, através dos traslados ou cópias que os procuradores
dos concelhos ou outros interessados pediam.

(]) Por ex., numa Lei de 12 de Setembro de 1379, sobre a prova dos con-
tratos, estabelece-se um prazo de sessenta dias a partir da data da publicação na
Corte (Gama Barros, Hist. da Adm. Públ, cit., 2.a ed., tomo I, pág. 143).
( ) Encontra-se um caso de consagração expressa da não retroactividade
da lei num diploma incluído no Livro das Leis e Posturas, ed. cit., pág. 448.
(3) Ver, supra, pág. 172, nota 4.
( ) Ver. sunr/i riácr 1

257
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

III — Decadência do costume como fonte de direito '

Sabemos que o costume continuou a ser um vasto repositório


do sistema jurídico vigente. Contudo, diminuiu de significado como
fonte de criação de direito novo, plano em que cedeu a primazia à
lei.
Os jurisconsultos, entretanto, passaram a considerar os precei-
tos consuetudinários, não já, apenas, na perspectiva de uma mani-
festação tácita do consenso do povo, mas, também, como expressão
da vontade do monarca. Assim decorria das concepções romanísti-
cas. Quer dizer: se o rei não publica leis contrárias an msi-nme.
revogando-o, é porque tacitamente o aceita f1).

IV — Forais e foros ou costumes

A importância dos forais manteve-se. Ainda se conhecem bas-


tantes de D. Afonso III e de D. Dinis. Em todo o caso, a partir de
D. Afonso IV, praticamente, deixaram de outorgar-se novos forais.
Assume, nesta época, grande relevo uma outra fonte de direito
local: os foros ou costumes. Dediquemos-lhes a nossa atenção.
Dá-se o nome de foros ou costumes (2) a certas compilações
medievais^ concedidas aos munid^iosjou simplesmente organizadas
por iniciativa destes. Alguns autores preferem a designação de esta-
tutos municipais. Trata-se de codificações que estiveram na base da
vida jurídica do concelho, abrangendo normas de direito político e
administrativo, normas de direito privado, como as relativas a con-
tratos, direitos reais, direito da família e sucessões, normas de
direito penal e de processo. São, na verdade, fontes com aplitude e

(') Ver, infra, págs. 301 e seg.


(2) Ver, por todos, M. J. Almeida Costa, Foros ou Costumes, in "Dic. de
Hist. de Port.", cit., vol. II, págs. 283 e seg., republ., sob a epígrafe Estatutos
Municipais, in "Temas de História do Direito", cit., págs. 58 e segs.

258
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

alcance muito mais vastos do que os forais, cujos dispositivos fre-


quentemente transcrevem.
Os elementos utilizados na elaboração destas colectâneas
tinham proveniência diversa: ao lado de efectivos preceitos consue-
tudinários, encontram-se sentenças de juízes arbitrais ou de juízes
concelhios, opiniões de juristas, normas elaboradas pelos próprios
municípios a respeito da polícia, higiene ou economia, e até mesmo
normas jurídicas inovadoras de natureza legislativa, que o compila-
dor introduzia. Não raro se poderá descobrir influência nítida do
direito romano renascido. Com os foros ou costumes, "inicia-se
uma nova era na codificação do direito peninsular, porquanto, não
obstante as deficiências de técnica próprias da época, já se procu-
ram expor neles duma maneira completa e ordenada as normas de
direito consuetudinário, fixando-as com precisão e dispondo-as
num sistema'^1).
Em Leão e Castela, aparecem estes foros extensos
("fueros
extensos") (2) desde os fins do século XII, se bem que o maior
número pertença às duas centúrias imediatas. Quanto ao nosso país,
de acordo com a opinião corrente, os que restam teriam sido elabo-
rados durante a segunda metade do século XIII e o século XIV.
Convirá observar que os foros ou costumes se agrupam
em
famílias e que o estudo dessas áreas jurídicas de fixação do direito
consuetudinário medieval apresenta, sob vários aspectos, grande
interesse histórico. Depois de reduzido a escrito, o direito de uma
íocãliáaTie^Tra^rTéquentemente comunicado a outra, no todo ou em
parte, mas recebendo, via de regra, adaptações maiores ou meno-
res. É o que se verifica, por exemplo, na Extremadura Castelhana,
com os foros de Sepúlveda, Cuenca (os primeiros redigidos,
embora com base no direito consuetudinário de Sepúlveda), Teruel

( ) Paulo Merêa, Resumo das Lições de História do Direito Português, cit, pág.
53
(2) Por contraposição a foros breves ("fueros breves"), que são os forais.
Consultar a bibliografia indicada, supra, pág. 188, nota 1.

259
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

e Uclés; ou, paralelamente, na Estremadura Leonesa, a respeito dos


nossos quatro foros da região de Riba-Coa (Alfaiates, Castelo
Bom, Castelo Rodrigo e Castelo Melhor, anteriores à integração
destes territórios em Portugal) e dos foros de Coria, Cáceres e
Usâgre — todos eles derivados de um modelo comum desconhecido
ou perdido, talvez o direito costumeiro de Cidade Rodrigo ou,
eventualmente, de Ávila ( ).

V — Concórdias e concordatas

Já se esclareceu em que consistiam estas fontes de direito ( ).


Resta salientar que sempre persistiram múltiplos diferendos, entre o
clero e a realeza, após a subida ao trono de D. Afonso III. Daí que
aumentassem os acordos que lhes punham termo, quer celebrados
com as autoridades eclesiásticas do Reino, quer directamente com o
Papado.
Um ponto de atrito era o beneplácito régio, que se reconduzia
à exigência de ratificação das determinações da Igreja, maxime pon-
tifícias, respeitantes ao nosso país. Mas o instituto conservar-se-ia,
apenas com uma abolição temporária de D. João II ( ).

(') Ver, entre outros, Luís F. Lindley Cintra, A Linguagem dos Foros
de
Castelo Rodrigo, Lisboa, 1959, designadamente a "Introdução", págs. XXI e segs.
(reed. desta obra — Lisboa, 1984), e José Artur Duarte Nogueira, A
organização
municipal da Extremadura Leonesa nos sécs. XII e XIII, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit.,
vol. LVIII, tomo II, págs. 373 e segs.
Os foros ou costumes do nosso país encontram-se editados tia Collecção de
Livros Inéditos de Historia Portugueza, tomo IV, Lisboa, 1816, págs. 527 e segs.,. e
tomo V, Lisboa, 1824, págs. 365 e segs., e nos Port. Mon. Hist. —Leges et Cons.,
cit., vol. 1, págs. 739 e segs., e vol. II (Lisboa, 1868), págs. 1 e segs. Além dos já
referidos, lembramos, por ex., os foros ou costumes da Guarda, Santarém, Santa-
rém comunicados a Oriolla, Santarém comunicados a Vila Nova de Alvito, Beja,
Évora, Torres Novas e S. Martinho de Mouros.
(2) Ver, supra, págs. 193 e seg., onde é indicada bibliografia sobre o tema.
(J) Além do estudo clássico de Manuel de Oliveira Chaves e
Castro, O
Beneplácito Régio em Portugal, Coimbra, 1885, consultar Eduardo
Nunes/Martim

260
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

VI — Direito subsidiário

Apesar da variedade de fontes de direito que referimos, exis-


tiam muitos e frequentes casos omissos, isto é, situações para que
não se encontrava disciplina no sistema jurídico nacional ([). Só
mais tarde, com as Ordenações Afonsinas, o legislador estabeleceu
uma regulamentação completa sobre o preenchimento das lacu-
nas ( ). Até então, o problema foi deixado, basicamente, ao critério
dos juristas e dos tribunais.
Quando as fontes jurídicas portuguesas não forneciam solução
para as hipóteses concretas, recorria-se em larga escala ao direito
romano e ao direito canónico, assim como ao direito castelhano. O
que era natural, em face do impacto da difusão romanística e cano-
nística( ). Uma prova da grande importância subsidiária que pos-
suíam tais direitos logo resulta do facto de existirem versões portu-
guesas de obras com esse conteúdo.
Na generalidade, os juízes, sobretudo a nível das comarcas,
apresentavam-se manifestamente impreparados para um acesso
directo às fontes romano-canónicas. Daí que, numa primeira fase,
se hajam utilizado textos de segunda mão, quer dizer, influenciados
por essas fontes ou que ofereciam mesmo sínteses dos seus
preceitos (4).
Assim se explica que circulassem, no nosso país, desde o
século XIII, com o carácter de fontes subsidiárias, certas obras de

de Albuquerque, Parecer do Doutor "Velasco di Portogallo" sobre o beneplácito


régio
(Florença, 1454), Lisboa, 1968 (sep. de "Do Tempo e da História", II), sobretudo,
págs. 111 e segs., com amplas referências bibliográficas.
(') Sobre o problema do direito subsidiário em si, ver, infra, págs. 304 e
segs.
(2) Ver, infra, págs. 307 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 222 e segs., e págs. 248 e segs., respectivamente.
(4) A respeito do que escrevemos sobre o tema, consultar a análise de
Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., págs. 192 e segs.

261
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

proveniência castelhana já antes indicadas: a^Flnrpjfy D^çJui p os


Nueve tiempos de los pleitos,, de Mestre Jácome das Leis, ao lado do
Fuero Real e das Siete Partidas^ as famosas /colectâneas jurídicas resul-
tantes da politica legislativa de Afonso X. Todas elas, como sabe-
mos, foram traduzidas para vernáculo, a fim de se facilitar a sua
consulta; e conjectura-se que, embora mais umas do que outras, se
tenham divulgado consideravelmente ( ).
A aplicação supletiva das referidas obras de origem castelhana
apenaT^derívava da autoridade intrínseca do conteúdo romano-
-canónico que lhes servia de alicerce. Tanto, assim, que a sua utili-
zação abusiva — especialmente a das Partidas —, em detrimento de
preceitos genuínos de direito romano e de direito canónico, foi
objecto, nos meados do século xiv, de protestos levados ao rei e
por este acolhidos (2).
Entendia-se, em síntese, que as fontes subsidiárias se circuns-
creviam ao direito romano e ao direito canónico, onde quer que se
contivessem. Pela mesma época, começaram a traduzir-se os cor-
respondentes textos legislativos e alguns importantes textos de dou-
trina que os esclareciam. As Decretais de Gregório IX já se encontra-
vam vertidas para português em 1359. Outro tanto sucedeu, antes
de 1426, com o Código de Justiniano, acompanhado da Glosa de Acúxsia
e dos Comentários de Bártolo, por ordem de D. João I (3). O monarca
determinou, inclusive, que se fizessem resumos interpretativos dos
vários preceitos, sempre que se tornassem necessários, com o objec-

( ) Ver, supra, págs. 231 e segs.


(2) Provisão de D. Pedro I de 13 de Abril de 1361 e Capítulos das Cortes
de Elvas do mesmo ano (ver, por todos, Braga da Cruz, O direito subsidiário,
cit.,
págs. 202 e segs., notas 37 e 38, e, anteriormente, M. J. Almeida Costa,
Roma-
nismo e Bartolisrno no Direito Português, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVI,
págs. 25 e seg.
(3) Tradução que sucessivos autores atribuíram erradamente a João das
Regras. Ocupa-se do tema Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota 44
da
pág. 207.

262
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

tivo de evitar discrepâncias jurisprudenciais. Destinaram-se dois


exemplares da obra à Câmara de Lisboa para consulta de
interessados. l
Não houve o intuito de promover o direito romano à catego-
ria de fonte imediata, mas tão-só o de assegurar uma sua correcta
aplicação a mero título subsidiário('). Todavia, como em épocas
posteriores, muitas terão sido as preterições indevidas das normas
jurídicas nacionais. E também frequentes, no âmbito subsidiário, as
sobreposições de fontes indirectas às que proporcionavam o conhe-
cimento genuíno dos preceitos romanísticos e canonísticos.

44. Colectâneas privadas de leis gerais anteriores às Ordenações


Afonsinas

O progressivo acréscimo de diplomas avulsos tornava necessá-


ria a sua compilação. E, de facto, vários documentos da época reve-
lam a existência de colectâneas de leis do Reino anteriores às Orde-
nações Afonsinas. Todas essas colectâneas apresentam o traço
comum de não terem sido objecto de uma promulgação legislativa.
Daqui não se conclua, porém, que algumas delas não pudessem
estar ligadas a órgãos públicos, como a chancelaria régia ou os
tribunais.
Apenas duas chegaram até nós: o Livro das Leis e Posturas e as
Ordenações de D. Duarte. Ambas se caracterizam pela sua índole
privada.
Uma e outra das mencionadas colectâneas incluem, ao lado de
verdadeiras leis, costumes gerais e jurisprudência do tribunal da
Corte. Tem-se admitido que constituiriam trabalhos preparatórios
das Ordenações Afonsinas.

(') Corroborando esta opinião de Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit.,


págs. 207 e segs., ver Martim de Albuquerque, Bártolo e Bartolismo na História
do
Direito Português, cit., in "Boi. do Min. da Just.", n.° 304, págs. 23 e segs.

263
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Esta hipótese, aventada por João Pedro Ribeiro (l), tornou-se


comummente aceita. Alexandfle Herculanos sustenta, inclusive, que
representariam momentos sucessivos da actividade de João Mendes,
como o primeiro dos juristas incumbidos da elaboração do projecto
dessa codificação oficial (2). Tais conjecturas, em todo o caso,
levantam grandes dúvidas (3).

a) Livro das Leis e Posturas

Das duas colectâneas que se conhecem, o Livro das Leis e Postu-


ras (4) é a mais antiga. A sua elaboração situa-se nos fins do século
xiv ou princípios do -século XV. Nela encontramos preceitos de D.
Afonso II, D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV, além de uma
lei, posteriormente acrescentada, do Infante D. Pedro, que se tem
identificado com o futuro D. Pedro I.
Não houve nesta obra o propósito de coordenar a legislação,
mas apenas o de coligi-la. Isso se infere da ausência de um plano
sistemático e da repetição de alguns textos, em diversos lugares,
com variantes significativas.

b) Ordenações de D. Duarte
Não constituem as Ordenações de D. Duarte (5), como poderia
supor-se, uma codificação oficial devida a esse monarca. Trata-se,
consoante já salientámos, de uma colectânea privada que deriva o
nome por que é conhecida do simples facto de ter pertencido,
segundo se crê, à biblioteca de D. Duarte, o qual lhe acrescentou

(') Nas já cit. Reflexões Históricas, parte II, Coimbra, 1836, Reflexão n.° 11,
págs. 132 e segs.
(2) Port. Mon. Hist.—Leges et Cons., cit., vol. I, págs. 149 e 151. Ver, infra,
págs. 269 e seg.
(3) Ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, in Livro das Leis e Posturas,
ed.
cit., "Introdução", págs. X e segs.
(4) Consultar o estudo e a edição indicados na nota anterior.
(5) Ver M. J. Almeida Costa, Ordenações, in "Dic. de Hist. de Port.",
cit.,
vol. III, Lisboa, 1968, pág. 206, e in "Temas de História do Direito", cit., págs.
264
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

um índice ("tavoa") da sua autoria e um discurso sobre as virtudes


do bom julgador (l).
A colectânea de que nos ocupamos f consta de um códice da
primeira metade do século XV. Compreende leis que vão de D.
Afonso II a D. Duarte.
Resultam diferenças consideráveis do confronto desta colectâ-
nea com a anterior. Nas chamadas Ordenações de D. Duarte, não só
existe um maior número de leis, mas também rareiam as repeti-
ções. Acresce que os diplomas se encontram dispostos por reinados
e, dentro de cada um deles, agrupando-se os respeitantes à mesma
matéria.

45. Evolução das instituições

Levaria muito longe inventariar as grandes mudanças que se


operaram, ao longo desta época, em sectores fundamentais, tanto
do direito público como do direito privado. Apenas faremos algu-
mas rápidas considerações (2).
Produziu-se, como sabemos, uma crescente penetração das
normas e da ciência dos direitos romano e canónico, com progres-
siva substituição do empirismo que predominava na vida jurídica da
fase precedente (3). O nosso país ia-se integrando no mundo dos
"iura communia".
Revelou-se importante, desde logo, a influência dessas novas
doutrinas em matéria de direito político, maxime pelo que toca ao

61 e segs., e, posteriormente, Ordenações del-Rei Dom Duarte, Lisboa, 1988 (que


reproduz o Cód. 9164 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa), com
uma."Introdução" de Martim de Albuquerque, págs. V e segs., e uma
"Nota
Prévia de Codicologia e Textologia" de Eduardo Borges Nunes, págs.
XXVII
e segs.
(') Nele se reproduz cerca de metade do capítulo LX do Leal Conselheiro.
(2) Remete-se novamente para a exposição de Gama Barros, Hist. da Adm.
PúbL, cit., 2.a ed., passim, e para as sínteses de Paulo Merêa, Resumo das Lições de
História do Direito Português, cit., págs. 118 e segs., e de Marcello Caetano,
Hist.
do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 359 e segs., e 553 e segs., o último dos quais tão-só
versa os direitos criminal e processual.
(3) Ver, supra, págs. 194 e segs.

265
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

desenvolvimento do poder real^). Também se mostram significati-


vas as alterações realizadas nos outros domínios do direito público e
na esfera do direito privado.
Por exemplo, a defesa da ordem jurídica torna-se encargo
exclusivo do Estado, que aparece como titular único do "ius
puniendi", em oposição a todas as manifestações de justiça privada
ou autotutela do direito. Verifica-se a cisão entre o processo civil
e o processo criminal, sobrepondo-se, no primeiro, o sistema inqui-
sitório, ou seja, de actuação oficiosa, ao antigo sistema acusatório.
Assim como se dão transformações relevantes em matéria de prova,
a respeito do ónus desta e da hierarquização do valor probatório
dos diversos meios de prova admitidos.
Quanto ao direito criminal, de acordo com uma
progressiva
publicização, observa-se certa tendência para o predomínio das
penas corporais, em detrimento das penas pecuniárias. Daí que se
acentue o seu fim repressivo (2).
Não menos profunda foi a evolução do direito
privado.
Salientamos as mudanças verificadas nas instituições familiares e
sucessórias. Igualmente, despontam novas doutrinas, quer sobre
obrigações e contratos, quer sobre os modos de aquisição da pro-
priedade, a posse, a enfiteuse, as servidões, a hipoteca, o penhor e
outros institutos.
Num balanço de conjunto, poderá admitir-se que as
influên-
cias romanísticas tenham sido predominantes. Sectores houve,
todavia, onde prevaleceram orientações do direito canónico. Estas
últimas demonstraram muito específico relevo na disciplina da
família, mas fizeram-se ainda sentir, de modo expressivo, noutras
áreas, como as da posse, da usucapião e do direito e processo
criminais.

(') É clássico o estudo de Paulo Merea, O poder real e as cortes,


Coimbra,
1923.
(2) Ver, António Manuel de Almeida Costa, O Registo Criminal,
cit.,
especialmente págs. 59 e seg.

266
t

§ 2.°
ÉPOCA DAS ORDENAÇÕES
t

46. Ordenações Afonsinas, /

a) Elaboração e inicio de vigência

Os elementos essenciais relativos à história das Ordenações


Afonsinas constam do proémio do seu livro l(l). Aí se referem os
pedidos insistentes, formulados em Cortes, no sentido de ser elabo-
rada uma colectânea do direito vigente que evitasse as incertezas
derivadas da grande dispersão e confusão das normas, com graves
prejuízos para a vida jurídica e a administração da justiça.
D. João I atendeu essas representações e encarregou João
Mendes, corregedor da Corte, de preparar a obra pretendida.
Entretanto, ocorria a morte de D. João I e, pouco depois, a de João
Mendes. Por determinação de D. Duarte, a continuação dos traba-
lhos preparatórios foi confiada ao Doutor Rui Fernandes, outro

(') Ver, ainda, a "Prefação" das Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V,


Coimbra, 1792, não assinada, mas que se sabe ser da autoria de Luís Joaquim
Correia da Silva, lente substituto da Faculdade de Leis. Além de outros estudos
sucessivamente indicados, consultar M. J. Almeida Costa, Ordenações, cit., ín
"Dic. de Hist. de Port.", vol. III, págs. 206 e segs. e 210, e in "Temas de História
do Direito", págs. 62 e segs., e 71 e seg., com largas indicações bibliográficas, e a
"Nota de Apresentação", págs. 5 e segs., da reprodução fac-símile (Lisboa, 1984)
da referida edição das Ordenações Afonsinas.

269
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

jurista de méritos firmados, que pertencia ao conselho do rei.


Porém, a obra ainda não estava concluída no fim do breve governo
de D. Duarte.
Falecido este rei, o Infante D. Pedro, regente na menoridade
de D. Afonso V, incitou o compilador a aplicar-se à tarefa. Rui
Fernandes viria a considerá-la concluída em 28 de Julho de 1446, na
"Villa da Arruda'^1). O projecto foi seguidamente submetido a
uma comissão composta pelo mesmo Rui Fernandes e por outros
três juristas, o Doutor Lopo Vasques, corregedor da cidade de Lis-
boa, Luís Martins e Fernão Rodrigues, do desembargo do rei. Após
ter recebido alguns retoques, procedeu-se à sua publicação com o
título de Ordenações, em nome de D. Afonso V.
Desconhece-se a duração exacta dos trabalhos de revisão.
Parece de admitir, todavia, que a aprovação das Ordenações se
tenha verificado pelos fins de 1446 ou, mais provavelmente, em
1447, portanto, ainda antes de D. Pedro abandonar a regência, nos
começos do ano imediato. Como quer que seja, cabe-lhe a posição
de grande impulsionador da obra. Já na famosa "Carta de Bruges",
dirigida por D. Pedro dessa cidade flamenga — onde permaneceu
desde os últimos dias de Dezembro de 1425 até meados de Março
de 1426 — a seu irmão D. Duarte, antes da subida ao trono, se
salienta a urgência da compilação das leis do Reino ( ).
Afigura-se, sintetizando, que os anos de 1446 e de 1447 foram,
presumivelmente, o da entrega do projecto concluído e o da publi-
cação das Ordenações. Mais difícil se mostra a determinação da
data da sua entrada em vigor. Deve salientar-se, a este propósito,"
que não havia na época uma regra prática definida sobre o modo
de dar publicidade aos diplomas legais e o início da correspondente
vigência (3). Além disso, ainda não se utilizava a imprensa, pelo que

(l) Cfr. o liv. V, tát. 119, § 31. A "Villa da Arruda" referida no texto é a
actual Arruda dos Vinhos.
(2) Pode consultar-se, por ex., in Chart. Univ. Port., cit., vol. III (1409-
-1430), Lisboa, 1969, págs. 311 e segs. (n.° 856), designadamente pág. 317.
(3) Ver, supra, págs. 256 e seg.

270
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

levaria considerável tempo a tirarem-se as cópias manuscritas,


laboriosas e dispendiosas ('), necessárias à difusão do texto das
Ordenações em todo o País, fora da chancelaria régia e dos tribu-
nais superiores. Acresce que se verificavam, <*omo é sabido, grandes
desníveis de preparação técnica entre os magistrados e demais
intervenientes na vida jurídica dos centros urbanos e das localidades
deles afastadas. Talvez caiba, também, levar-se em linha de conta a
hostilidade manifestada, após Alfarrobeira (1449), a tudo o que se
ligava ao Infante D. Pedro.
Essa efectiva generalização — e a medida em que se realizou
constitui outro problema — deve, consequentemente, ter-se ope-
rado, apenas, depois de dobrados os meados de quatrocentos (2).
Facilitava tal difusão o facto de as Ordenações não apresentarem
inovações profundas enquanto utilizaram, numa larga escala, fontes
anteriores. Realizaram, por assim dizer, uma consolidação do
direito precedente, posto que, em muitos aspectos, se observem
alterações expressivas.
De qualquer modo, é inexacta a opinião esporádica que
levanta a dúvida da própria vigência das Ordenações Afonsinas. A
ampla expansão que alcançaram encontra-se indiciada pelos exem-
plares, embora truncados ou parciais, que se conhecem.

( ) Quanto a estes aspectos, salientando que os manuscritos de obras jurí-


dicas eram dos mais caros, ver as indicações de Isaías da Rosa Pereira, Livros
de
Direito na Idade Média, cit., in "Lusitânia Sacra", tomo VII, págs. 13 e seg., e
Martim de Albuquerque, Bártolo e Bartolismo na História do Direito Português,
cit.,
in "Boi. do Min. da Just.", n.° 304, págs. 32 e seg.
(2) Sobre o tema, consultar Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port., cit.,
vol. I, págs. 531 e segs. O objectivo de promover o conhecimento e a vigência
efectiva das Ordenações Afonsinas em todo o País encontra-se na base da conjec-
tura de que D. João II incumbiu o licenciado Lourenço da Fonseca de promover
a sua condensação num único tomo, porventura consistindo num repertório ou
índice alfabético (ver, por todos, Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Sobre
o
abreviamento dos cinco livros das Ordenações, ao tempo de D. João II, in "Boi. do Min.
da Just.", cit., n.° 309, págs. 31 e segs.).

271
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

b) Fontes utilizadas. Técnica legislativa

Com as Ordenações Afonsinas procurou-se, essencialmente,


sistematizar e actualizar o direito vigente. Assim, utilizaram-se na
sua elaboração as várias espécies de fontes anteriores ( ): leis gerais,
resoluções régias, subsequentes a petições ou dúvidas apresentadas
em Cortes ou mesmo fora destas (2), concórdias, concordatas e
bulas (3), inquirições, costumes gerais e locais, estilos da Corte e dos
tribunais superiores, ou seja, jurisprudência, praxes ou costumes aí
formados (4); bem como normas extraídas das Siete Partidas e precei-
tos de direito romano e de direito canónico, designados, respecti-
vamente, por "leis imperiais" ou "direito imperial" e "santos câno-
nes" ou "decretai", encontrando-se também alusões ao "direito
comum" (5).

Quanto à técnica legislativa, empregou-se, via de regra, o


chamado estilo compilatório. Quer dizer, transcrevem-se, na íntegra,
as fontes anteriores, declarando-se depois os termos em que esses
preceitos eram confirmados, alterados ou afastados (6).

( ) A respeito dessas diversas categorias de fontes, ver, supra, págs. 191 e


segs., e 254 e segs.
(2) Por ex., liv. I, tít. 69, e liv. II, tít. 29, § 15.
(3) Por ex., liv. II, tít. 94.
(4) Por ex., liv. III, tít. 110, e liv. V, tít. 18, § 3, e tít. 44.
(5) Ver a exemplificação de todas as fontes mencionadas feita por Mar-
cello Caetano, Liç. de Hist. do Dir. Port., cit., págs. 259 e seg., e Hist. do Dir.
Port., cit., vol. I, págs. 540 e segs. São escassos os vestígios do direito muçulmano
(liv. II, títs. 28 e 99).
( ) Eis dois exemplos: "ElRey Dom Affonso o Terceiro de Louvada
Memoria em seu tempo fez Ley, per que ordenou e estabeleceo, que se o Autor
for entregue per revelia d'alguuns beès de raiz (...) 1. A qual Ley vista per Nós,
ademdo em ella: Dizemos, que se depois esse Autor, que assy for emtregue
d'alguus beès per revelia, e receber delles (...) 2. E com esta declaraçam e addi-
çam Mandamos que se guarde e cumpra a dita Ley d'ElRey Dom Affonso, assy
como em ella he contheudo, e per Nós adido e declarado." (liv. III, tít. 47);

272
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Contudo, nem sempre se adoptou esse sistema. Designada-


mente, em quase todo o livro I, utilizou-se o estilo deçretório ou legisla-
tivo, que consiste na formulação directa das normas sem referência
às suas eventuais fontes precedentes.
Essa diferença de çstilo tem sido explicada com a atribuição
da autoria do livro I a João Mendes e a dos restantes a Rui Fernan-
des, ou pelo facto de aquele texto conter matéria original, não
contemplada em fontes nacionais anteriores. Trata-se de simples
conjecturas, apresentando-se a segunda, porventura, só por si, sufi-
cientemente justificativa (*).

c) Sistematização e conteúdo^

Talvez por influência dos Decretais de Gregório IX (2), as Orde-


nações Afonsinas encontram-se divididas em cinco livros. Cada um
dos livros compreende certo número de títulos, com rubricas indi-
cativas do seu objecto, e estes, frequentemente, acham-se subdivi-
didos em parágrafos (3). Todos os livros são precedidos de um proémio,
que no primeiro se apresenta mais extenso, em consequência de
nele se narrar, como já se observou, a história da compilação.
O livro I, que abrange 72 títulos, ocupa-se dos regimentos dos
diversos cargos públicos, tanto régios como municipais, compreen-
dendo o governo, a justiça, a fazenda e o exército. No livro II,

"ElRey Dom Eduarte meu Senhor, e Padre da muito louvada, e esclarecida


memoria em seu tempo fez Ley em esta forma, que se segue (...) 4. E vista per
nós a dita Ley, mandanos que se guarde, e cumpra, como em ella he conteúdo."
(liv. IV, tít. 20). Aliás, o formulário não se apresenta absolutamente invariável,
sofrendo, por vezes, como nos casos transcritos, pequenas alterações.
(') Ver Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág. 541,
e
NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág. 193.
(2) Ver, supra, pág. 245.
(3) A divisão em parágrafos foi apenas introduzida ou beneficiada com a
edição impressa do século xvm (cfr. a respectiva "Prefação", cit., págs. XXVIII
e seg.).

273
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

composto por 123 títulos muito heterogéneos, disciplinam-se os


bens e privilégios da Igreja, os direitos reais, isto é, os direitos do
rei, e a sua cobrança, a jurisdição dos donatários e as prerrogativas
da nobreza, o estatuto dos Judeus e dos Mouros. O livro III, com
128 títulos, trata do processo civil, incluindo o executivo, e nele se
regulam extensamente os recursos. Segue-se o livro IV, que, ao
longo de 112 títulos, se ocupa do direito civil substantivo, designa-
damente de temas de direito das obrigações, direito das coisas,
direito da família e direito das sucessões, embora sem grande
ordem sistemática e com a inclusão de alguns temas estranhos ao
seu conteúdo básico. Por último, o^ivro V contém 121 títulos sobre
direito e processo criminal.

d) Importância da obra

As Ordenações Afonsinas assumem uma posição destacada na


história do direito português. Constituem a síntese do trajecto que,
desde a fundação da nacionalidade, ou, mais aceleradamente, a par-
tir de Afonso III, afirmou e consolidou a autonomia do sistema
jurídico nacional no conjunto peninsular. Além disso, representam
o suporte da evolução subsequente do direito português. Como se
apreciará, as Ordenações ulteriores, a bem dizer, pouco mais fize-
ram do que, em momentos sucessivos, actualizar a colectânea
afonsina.
Embora não apresente uma estrutura orgânica comparável à
dos códigos modernos e se encontre longe de oferecer uma disci-
plina jurídica tendencialmente completa, trata-se de uma obra
muito meritória quando vista na sua época. Nada desmerece em
confronto com as compilações semelhantes de outros países.
A publicação das Ordenações Afonsinas liga-se ao
fenómeno
geral da luta pela centralização. Traduz essa colectânea jurídica
uma espécie de equilíbrio das várias tendências ao tempo não perfeita-
mente definidas, ou seja, uma área intermédia em que ainda
podiam encontrar-se. De um outro ângulo, acentua-se a indepen-

274
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

dência do direito próprio do Reino em face do direito comum, sub-


alternizado no posto de fonte subsidiária por mera legitimação da
vontade do monarca (!).
Oferecem as Ordenações Afonsinas à investigação histórica
um auxiliar precioso. Sem esse texto, tornar-se-ia difícil conhecer
certas instituições, pelo menos de uma maneira tão completa e em
aspectos que escapam, frequentemente, nos documentos avulsos da
prática.

e) Edição

A codificação afonsina não chegou a ser dada à estampa durante


a respectiva vigência. Só nos fins do século xvm, a Universidade
de Coimbra promoveu a sua edição impressa. Vivia-se um ciclo de
exaltação dos estudos históricos e tinha surgido o ensino univer-
sitário da história do direito pátrio (2).
Foi encarregado desse trabalho Luís Joaquim Correia da Silva,
lente substituto da Faculdade de Leis, que antecedeu a publicação
de um prefácio valioso (3). Nele se informa acerca do método seguido
para a fixação do texto publicado.
Não se encontrou um único exemplar que reproduzisse os
cinco livros. Nem entre os manuscritos conhecidos se achava o
original autêntico. Além disso, as várias cópias apresentavam omis-
sões e erros consideráveis. Houve, todavia, a possibilidade de recons-
tituir com grande segurança o texto integral das Ordenações Afon-
sinas. Assim surgiu a edição crítica de 1792 (4).

(') Ver, supra, págs. 253 e 254 e segs.


(2) Cfr., supra, págs. 44 e segs., e, infra, págs. 362 e segs.
(3) Cfr., supra, pág. 269, nota 1.
(4) As já cit. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V, que se integram na
"Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal", Parte I —
"Da Legislação Antiga". O exclusivo da impressão das Ordenações tinha perten-
cido ao Mosteiro de S. Vicente de Fora, dos Cónegos Regrantes de Santo Agos-
tinho. Filipe I concedera-lhe esse privilégio, durante vinte anos, pelo Alvará de

275
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Nunca se pôs verdadeiramente em causa a probidade dessa


reconstituição ('). De qualquer modo, ao pensar-se numa republi-
cação, que sairia em 1984 (2), levantou-se a alternativa de uma nova
edição crítica ou da pura reprodução fac-similada do texto de 1792.
Pareceu que a opção deveria depender, naturalmente, dos resulta-
dos de uma indispensável pesquisa sistemática nos diversos fundos
arquivísticos do País, acompanhada de escrupuloso exame e cotejo,
à luz dos actuais critérios diplomáticos e paleográficos, de todos os
manuscritos disponíveis, em confronto com a reconstituição do
século XVHI. Ora, ainda que se afigurasse que a solução cientifica-
mente mais perfeita consistiria em efectuar uma nova edição crí-
tica, muito morosa, sem dúvida, na sua preparação, pensou-se que
as deficiências encontradas, porventura relevantes do ponto de vista
filológico, não se apresentavam de molde a desincentivar uma aces-
sível reprodução fac-similada (3).

47. Ordenações Manuelinas

a) Elaboração
Relativamente pouco tempo durou a vigência das Ordenações
Afonsinas, sobretudo considerando as dificuldades que sempre^
rodeiam a preparação de uma obra deste género. Concluídas e

16 de Novembro de 1602; prazo que obteve a prorrogação de mais dez anos, ao


tempo de Filipe III, através do Alvará de 17 de Setembro de 1633, que
D. João IV confirmou em Alvará de 26 de Janeiro de 1643. Tal exclusividade do
Mosteiro de S. Vicente de Fora, entretanto extinto, terminou com o Alvará de
16 de Dezembro de 1773, que a atribuiu, por tempo indeterminado, à Universidade
de Coimbra. Numa Resolução Régia de 2 de Setembro de 1786 reafirmou-se o
privilégio universitário.
(') Saliçntam-se, apenas, algumas reflexões de Marcello Caetano,
Hist.
do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 530 e seg.
(2) Por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian.
(3) Ver, nessa reedição de 1984, M. J. Almeida Costa, "Nota de Apresen-
tação", cit., págs. 5 e segs., e, sobretudo, Eduardo Borges Nunes, "Nota
Tex-
tológica", págs. 13 e segs.

276
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

aprovadas pelos meados do século XV, logo em 1505 se tratava da


sua reforma. Com efeito, nesse ano, D. Manuel encarregou três
destacados juristas da época, Rui Boto, que desempenhava as fun-
ções de chanceler-mor, p licenciado Rui da Grã e João Cotrim,
corregedor dos feitos cíveis da Corte, de procederem à actualização
das Ordenações do Reino, alterando, suprimindo e acrescentando o
que entendessem necessário (').
Tem-se conjecturado sobre os motivos que levariam o monarca
a determinar tal reforma. Encontra-se uma primeira condicionante
na introdução da imprensa, pelos finais do século XV, talvez só a
partir de 1487, em diversas vilas e cidades, como Faro, Chaves,
Braga, Leiria, Lisboa e Porto (2). Uma vez que se impunha levar à
tipografia a colectânea jurídica básica do País, para facilidade^da
sua difusão (3), convinha que a mesma constituísse objecto de um
trabalho prévio de revisão e actualização.
Ainda se menciona outro aspecto. O de que não seria indife-
rente a D. Manuel, que assistiu a pontos altos da gesta dos desco-

(') A descrição da reforma manuelina, posto que nem todos os aspectos aí


referidos possam ter-se como pacíficos, encontra-se desenvolvida por Francisco
Xavier de Oliveira Mattos na "Prefação" da edição das Ordenaçoens do
Senhor
Rey D. Manuel, Coimbra, 1797 (integrada na cit. "Col. da Leg. Ant. e Mod. do
Rein. de Port.", Parte I — "Da Leg. Ant."). Consultar, basicamente, M. J.
Almeida Costa, Ordenações, cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. III, págs. 208 e
seg. e 210, e in "Temas de História do Direito", págs. 66 e segs., e 71 e seg.,
com bibliografia, e "Nota de Apresentação", págs. 5 e segs., da reprodução
fac-símile (Lisboa, 1984) dessa edição das Ordenações Manuelinas. Ocupa-se da
legislação portuguesa desde a compilação manuelina Johannes-Michael
Scholz,
Legislação e Jurisprudência em Portugal nos Sécs. XVI a XVIII. Fontes e Literatura, in
"Scientia Ivridica", cit., tomo XXV, págs. 512 e segs. Ver, do mesmo autor,
Literaturgeschichtliche und vergleichende Ammerkungen zur portugiesischen Rechtsprechung in
Ancien Regime, in "Rev. Port. de Hist.", cit., tomo XIV, vol. III, págsa. 95 e segs.
(2) Ver Artur Anselmo, Les origines de Vimprimerie au Portugal, Paris, 1983,
págs. 87 e segs., e 241 e segs.
(3) Sobre a divulgação lenta das Ordenações Afonsinas, ver, supra, págs.
270 e seg.

277
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

brimentos, ligar o seu nome a uma reforma legislativa de vulto. A


suposição alicerça-se em vários testemunhos, inclusive na impor-
tância atribuída pelo rei ao direito e à realização da justiça (').
Certo é que a iniciativa se concretizou. Discute-se a data em
que a obra ficou completa. Na verdade, conhecem-se exemplares
impressos do livro I e do livro II das Ordenações, respectivamente,
de 1512 e 1513, mas apenas chegou até nós uma edição integral dos
cinco livros feita^m_1514. Daí que certos autores sustentem que
apenas nesse ano existiu uma edição completa, enquanto outros
admitem que se tenha já realizado, antes de 1514, uma impressão
dos cinco livros das'Ordenações. A querela não parece ainda de
todo esclarecida. Propende-se, no entanto, para a última hipótese.
Dentro desta orientação, levanta-se a dúvida sobre se houve um
único ou textos diferentes cometidos a dois impressores (Valentim
Fernandes e João Pedro Bonhomini). Afigura-se, porventura, mais
verosímil que se tenha impresso um mesmo texto. A controvérsia
não cabe na economia da presente exposição (2).
De qualquer modo, considerou-se o projecto legislativo insa-
tisfatório, talvez por demasiado preso à colectânea afonsina, e os
trabalhos prosseguiram. Só em 1521, jino da morte dojcej, se verifi-
cou a edição definitiva fcs Ordenações Manuelinas.
Também não constitui problema inteiramente pacífico o dos
seus autores. Indicam-se, com segurança, os nomes de Rui Boto,

(4) No âmbito do direito local, D. Manuel promoveu a reforma dos forais


(ver, infra, págs. 313 e segs.). A respeito da acção administrativa e legislativa
desse monarca, ver Marcello Caetano, no "Prefácio" da edição fac-
similada
do Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares destes Reinos, Lisboa, 1955, págs.
11 e segs. Aí se admite que esta publicação, de 1504, tenha sido o primeiro
ensaio, entre nós, da difusão das leis gerais através da imprensa (pág. 21).
(l) Ver uma análise pormenorizada de Braga da Cruz, O direito
subsidiá-
rio, cit., nota 59 da pág. 223, e, posteriormente, de Nuno J. Espinosa Gomes
da
Silva, Algumas notas sobre a edição das Ordenações Manuelinas de Í512-Í5Í4, in "Scien-
tia Ivridica", cit., tomo XXVI, págs. 575 e segs.

278
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Rui da Grã e Cristóvão Esteves, a que se acrescentam, não sem


dúvidas, os de João de Faria, João Cotrim e Pedro Jorge (l).
É este último texto, mais elaborado, que representa a versão
definitiva das Ordenações Manuelinas. A fim de evitar confusões
possíveis, em Carta Régia de 15 de Março de 1521, impôs-se que,
dentro de três meses, os possuidores de exemplares da impressão
anterior os destruíssem, sob pena de multa e degredo. A isso se
deve hoje a grande raridade da obra. Nd mesmo prazo de três
meses, deveriam os concelhos adquirir as novas Ordenações.

b) Sistematização e conteúdo. Técnica legislativa

Mantém-se a estrutura básica de cinco livros, integrados por


títulos e parágrafos (2). Conserva-se, paralelamente, a distribuição
das matérias, embora as Ordenações Manuelinas ofereçam conside-
ráveis diferenças de conteúdo, quando comparadas com as Ordena-
ções Afonsinas. Assinalam-se, exemplificativamente: por um lado, a
supressão dos preceitos aplicáveis a Judeus e Mouros, que, entre-
tanto, tinham sido expulsos do País(3), assim como das normas
autonomizadas nas Ordenações da Fazenda; por outro lado, a inclu-
são da disciplina da interpretação vinculativa da lei, através dos
assentos da Casa da Suplicação (4). Também foram relevantes as
alterações em matéria de direito subsidiário (5).

({) Cfr. Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., págs. 225 e segs., e
Nuno
J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 208 e seg.
( ) Cfr., supra, págs 273 e seg. À excepção do livro I, os restantes livros
das Ordenações Manuelinas possuem um número menor de títulos do que os das
Ordenações Afonsinas. A saber: liv. I — 78 títulos (Ord. Afon. — 72); liv. II — 50
títulos (Ord. Afon. —123); liv III —90 títulos (Ord. Afon. —128); liv. IV —82
títulos (Ord. Afon. —112); liv. V —93 títulos (Ord. Afon. —121).
(3) A Lei de 5 de Dezembro de 1496 obrigou-os a converterem-se ao
Catolicismo ou a abandonarem o País até ao fim de Outubro do ano seguinte.
Ver as Ord. Man., liv. II, tít. 41.
(4) Liv. V, tít. 58 (ver, infra, págs. 296 e segs.).
(5) Liv. II, tít. 5 (ver, infra, págs. 310 e segs.).

279
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Apura-se, em resumo, que não houve uma


transformação
radical ou profunda do direito português. Contudo, além de meros
ajustamentos de actualização, observam-se certas alterações sinto-
máticas de novas perspectivas, ainda que o futuro, porventura,
viesse a desmenti-las.

Do ponto de vista formal, a obra marca um progresso


de
técnica legislativa, que se traduz, sobretudo, no facto de os precei-
tos se apresentarem sistematicamente redigidos em estilo decretó-
rio, ou seja, como se de normas novas sempre se tratasse. A esta
vantagem corresponde a contrapartida de um interesse menor para
a reconstituição do direito precedente.

c) Edição

Enquanto estiveram em vigor, as Ordenações


Manuelinas
foram objecto de várias edições, que levantam algumas difíceis que-
relas bibliográficas ('). A primeira, acabada de imprimir a 11 de
Março de 1521, saiu da tipografia de Jacob Cromberger.
Após a sua substituição pelas Ordenações Filipinas, em
1603,
as Ordenações Manuelinas ainda conheceram a edição universitária
de 1797 (2), destinada a facilitar a investigação histórica. Nela se
inclui, a seguir ao valioso prefácio já referido, uma tabela de cor-
respondência, em quatro colunas, entre os preceitos dessas Ordena-
ções, das Ordenações Manuelinas de 1514, das Ordenações Filipinas
e de leis extravagantes, com indicação do lugar de consulta. É a
edição que a publicação fac-símile de 1984 reproduz (3).

(') Ver, por todos, Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit.,nota


60da
pág. 236.
Q Ver, supra, pág. 277, nota 1.
(3) Também por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian (cfr., supra,
pág. 277, nota 1).

280
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

48. Colecção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião

a) Elaboração, conteúdo e sistematização

Uma dinâmica legislativa acelerada, característica da época,


teve como efeito que, a breve trecho, as Ordenações Manuelinas se
vissem rodeadas por inúmeros diplomas avulsos. Estes não só revo-
gavam, alteravam ou esclareciam muitos idos seus preceitos, mas
também dispunham sobre matérias inovadoras. Acrescia a multipli-
cidade de interpretações vinculativas dos assentos da Casa da Supli-
cação (!). Tornava-se imperiosa a elaboração, pelo menos, de uma
colectânea que constituísse um complemento sistematizado das
Ordenações, permitindo a certeza e a segurança do direito.
Coube a iniciativa ao Cardeal D. Henrique, regente na meno-
ridade de D. Sebastião, que encarregou o licenciado Duarte Nunes
do Lião (2) de organizar um repositório do direito extravagante, ou
seja, que vigorava fora das Ordenações Manuelinas (3). Esse juris-
consulto, à data procurador da Casa da Suplicação, dispunha de
experiência que assegurava o êxito do empreendimento legislativo
pretendido. Na verdade, tinha elaborado, segundo determinação de

(') Ver, infra, págs. 296 e segs.


(2) O nome do referido jurisconsulto aparece, também, com as grafias
seguintes: Duarte Nunes (ou Nunez) do (ou de) Leão (ou Liam). Foi um juriscon-
sulto que deixou obra de vulto, inclusive noutras áreas, como a linguística e a
historiográfica. Sobre o biobibliografia deste autor, ver, por todos, José Pedro
Machado, no estudo preliminar da obra de Duarte Nunes de Leão, Origem da
Língua Portuguesa, 4.a ed., Lisboa, 1945, págs. 3 e segs., e in "Dic. de Hist. de
Port.", cit., vol. II, págs. 667 e seg., e Maria Leonor CarvalhAo
Buescu,
Historiografia da Língua Portuguesa, Lisboa, 1984, págs. 143 e segs. Tem interesse
consultar Pedro de Azevedo, Um memorial de Duarte Nunes de Leão, in
"Boletim
da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa", vol. VIII (1913-1914),
Coimbra, 1915, págs. 267 e segs.
(3) Sobre quanto se escreve, consultar M. J. Almeida Costa, "Nota de
Apresentação" de Leis Extravagantes e Repertório das Ordenações de Duarte Nunes do
Lião, Lisboa, 1987, págs. 5 e segs.

281
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Lourenço da Silva, regedor desse tribunal, para nele ser utilizada,


uma colectânea particular de preceitos extravagantes (*).
Observe-se que tal colectânea manuscrita apresenta diferenças
consideráveis relativamente à que se imprimiu e oficializou. É
diversa a sistematização das matérias. Além disso, adoptou-se o cri-
tério da reprodução integral dos textos coligidos (2).
Ora, na compilação que obteve força vinculativa, em vez de
uma transcrição das leis e dos assentos* anteriores, procedeu-se, com
o objectivo de torná-la menos volumosa e, portanto, de consulta
mais cómoda, ao resumo ou excerto da essência dos diversos pre-
ceitos. A essa síntese reconheceu o Alvará de 14 de Fevereiro de
1569 "fé e crédito", atribuindo-lhe "a mesma autoridade" das dis-
posições originais, "como se de verbo a verbo fossem escritas".
Antes, porém, cometeu-se a Lourenço da Silva, o^regedor da Casa
da Suplicação já mencionado, e a outros letrados do Conselho e
Desembargo do Rei uma revisão desse "relatório da substância"
das normas extravagantes, sempre acompanhado da respectiva
proveniência.

(') Trata-se do "Liuro das leis extrauagantes copilado per mandado do


senhor Regedor/Lourenço da Sylva, pelo Licenciado Duarte Nunez do Lião,
Pro/curador da casa da supplicação"/MDLXVI (A.N.T.T. — Casa Forte, códice
26). Manuscrito que pertenceu ao Tribunal da Relação de Lisboa, para onde
transitara da Casa da Suplicação. Desse original se tirou uma cópia, por determi-
nação do Cardeal D. Henrique, destinada à Torre do Tombo (A.N.T.T.—
— Núcleo Antigo, códice 19). No final da cópia (foi. 322), existe uma certificação
de autenticidade do próprio punho de Duarte Nunez do Lião, que o mesmo
assina com a data de 23 de Novembro de 1566. A importância da publicação
deste texto manuscrito é salientada por José AnastAsio de Figueiredo,
Synopsis
Chronologica, cit., tomo II, págs. 113 e seg., JoAo Pedro Ribeiro, Reflexões
Históri-
cas, cit. parte II, pág. 124, e Martim de Albuquerque, O Regimento
Quatrocentista
da Casa da Suplicação, Paris, 1982, págs. 76 e seg.
(2) A respeito da colectânea manuscrita e do conteúdo das suas quatro
partes, ver Martim de Albuquerque, Para a história da legislação e jurisprudência
em
Portugal. Os livros de registo de leis e assentos dos antigos tribunais superiores, in "Boi. da
Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II, págs. 635 e segs.

282
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNi«JA

Claro que os preceitos resumidos valiam, doravante, com o


sentido que se continha na sua versão sintética. O legislador bem
podia alterar o conteúdo dos textos condensados, mas autolimitou-
-se. E a preocupação de fidedignidade dos extractos, insistente-
mente evidenciada no alvará de aprovação, indicava o caminho
para solucionar as dúvidas interpretativas que surgissem: seria o da
consulta dos originais.
I
A colectânea compõe-se de seis partes, que disciplinam suces-
sivamente: os ofícios e os oficiais régios; as jurisdições e os privilé-
gios; as causas, incluindo-se trechos de uma lei importante de D.
João III sobre os trâmites dos processos nos tribunais ("ordem do
juízo"); os delitos; a fazenda real; matérias diversas. Cada uma das
partes compreende vários títulos, cujos preceitos se designam leis,
ainda que extraídos de fontes de natureza diferente. As leis mais
extensas encontram-se subdivididas em parágrafos.

b) Edição

A edição "princeps", de 1569, constitui a única realizada


durante a vigência da Colecção das Leis Extravagantes de Duarte
Nunes do Lião. Apenas conheceria uma segunda edição setecen-
tista, por iniciativa da Universidade de Coimbra, com escopo
histórico ().
Foi esta edição universitária objecto de reprodução fac-
-similada, em 1987 (2). No mesmo volume se inclui um pequeno
trabalho que Duarte Nunes do Lião publicou no próprio ano de
1569, onde constam, tanto as normas das Ordenações Manuelinas

( ) Leis Extravagantes Collegidas e Relatadas pelo Licenciado Duarte Nvnez do


Lião, per mandado do mvito alto e mvito poderoso Rei Dom Sebastião, nosso Senhor, Coim-
bra, 1796, in "Col. da Leg. Ant. e Mod. do Rein. de Port.", Parte I — "Da Leg.
Ant.", cit., (cfr., supra, pág. 275, nota 3).
(2) Devida à Fundação Calouste Gulbenkian (cfr., supra, pág. 281, nota 3).

283
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

revogadas ou interpretadas pela Colecção das Leis Extravagantes,


como os casos em que os julgadores estavam obrigados a "tirar
devassas ou tomar informações". Trata-se de notas úteis de uso
pessoal (1).

49. Ordenações Filipinas


l
a) Elaboração

A Colecção das Leis Extravagantes não passou de uma simples


obra intercalar. Impunha-se uma reforma profunda das Ordenações
Manuelinas, cada vez mais urgente. Até porque estes não realiza-
ram a transformação jurídica que o seu tempo reclamava (2).
Portanto, a elaboração de novas Ordenações constituiu um
facto natural de Filipe I(3), em cujo reinado, aliás, se tomaram
outras providências relevantes na esfera do direito. Recordemos a
substituição da Casa do Cível, que funcionava em Lisboa, pela
Relação do Porto (4), a que o mesmo monarca concedeu regimento,
e a entrada em vigor de uma lei de reformação da justiça.
Tem-se mencionado um possível aproveitamento político da
urgência de coordenação e modernização do corpo legislativo. O
ensejo permitiria a Filipe I demonstrar pleno respeito pelas institui-
ções portuguesas e empenho em actualizá-las dentro da tradição
jurídica do País.

( ) Na edição universitária da Colecção das Leis Extravagantes, esta obra


encontra-se em apêndice (págs. 853 e segs.). É ainda incluído outro trabalho
jurídico de Duarte Nunes, que consiste num Repertório das Ordenações dado à
estampa em 1560.
(2) Cfr., supra, pág. 280.
(-1) Sobre as Ordenações Filipinas, ver M. J. Almeida Costa, Ordenações,
cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. III, págs. 209 e seg., e in "Temas de
História do Direito", cit., págs. 69 e segs., contendo indicações bibliográficas, e
"Nota de Apresentação" das Ordenações Filipinas, Lisboa, 1985, págs. 5 e segs.
(4) Ver, infra, págs. 298 e seg.

284
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Os trabalhos preparatórios da compilação filipina foram ini-


ciados, segundo pode conjecturar-se, entre 1583 e 1585. Também
existem dúvidas sobre os juristas intervenientes: apontam-se, como
certos, Jorge de Cabedo, Afonso Vaz Tenreiro e Duarte Nunes do
Lião; talvez, no entanto, outros tenham colaborado ( ).
As novas Ordenações ficaram concluídas em 1595 e receberam
aprovação por Lei de 5 de Junho desse mesmo ano, mas que não
chegou a produzir efeito. Só no reinado $e Filipe II, através da Lei
de 11 de Janeiro de 1603, iniciaram a sua vigência — a mais dura-
doura que um monumento legislativo conseguiu em Portugal (2).

b) Sistematização e conteúdo. Legislação revogada

As Ordenações Filipinas continuam o sistema^tradicional de


cinco livros, subdivididos em títulos e parágrafos (3). Do mesmo
modo, não se verificaram diferenças fundamentais quanto ao con-
teúdo dos vários livros.
É patente que se procurou realizar uma pura revisão actuali-
zadora das Ordenações Manuelinas. A existência de normas de ins-

(') Ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Sobre os compiladores das


Ordena-
ções Filipinas, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 264, págs. 5 e segs.
(2) Entre nós, foram integralmente revogadas pelo Código Civil de 1 de
Julho de 1867, enquanto, no Brasil, isso sucederia apenas com o Código Civil
aprovado em 1 de Janeiro de 1916. O direito civil substantivo (liv. IV) constituiu,
portanto, o último baluarte das Ordernações.
(3) Cfr., supra, págs. 273 e seg., e 279 e seg. Os vários livros das Ordena-
ções Filipinas compõem-se do número de títulos seguinte: liv. I —100 títulos; liv.
II —63 títulos; liv. III —98 títulos; liv. IV —107 títulos; liv. V —143 títulos.
Quanto ao número de títulos das Ordenações anteriores, ver, supra, pág. 279,
nota 2.
Pode consultar-se uma tabela de equivalências entre os preceitos das Ord.
Fil. e os precedentes das Ord. Man. ou de diplomas extravagantes, in Joaquim
José Ferreira Gordo, Fontes Próximas da Compilação Filippina, Lisboa, 1792.
Tam-
bém se encontra uma tábua de concordância das três sucessivas Ordenações do
Reino in Mello Freire, Historiae iuris civilis lusitani liber singularis, cit., l.a ed., Lis-
boa, 1788, págs. 205 e segs.

285
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

piração castelhana, como algumas derivadas das Leis de Toro, não


retira o típico carácter português das Ordenações Filipinas. Apenas
se procedeu, via de regra, à reunião, num único corpo legislativo,
dos dispositivos manuelinos e dos muitos preceitos subsequentes que
se mantinham em vigor.
Introduziram-se, contudo, certas alterações. Merece destaque
um aspecto respeitante ao direito subsidiário. Nenhuma modifica-
ção intrínseca se produziu nos critérios de preenchimento das lacu-
nas da lei consagradas pelas Ordenações Manuelinas. Todavia, a
matéria que, tanto nessas como nas Ordenações Afonsinas, se
encontrava regulada no livro II, passa agora para o livro III, rela-
tivo ao processo. Tal mudança revela uma perspectivação bem
diversa do problema do preenchimento das lacunas (*).
Ao lado de algumas modificações sistemáticas, detectam-se
outras de conteúdo, muito relevantes. Por exemplo, é nas Ordena-
ções Filipinas que, pela primeira vez, se inclui um conjunto de pre-
ceitos sobre o direito da nacionalidade. De acordo com as normas
aí estabelecidas, os naturais do Reino não se determinam mediante a
aplicação de um só dos critérios a que tradicionalmente se
recorre — o princípio do sangue ("ius sanguinis") e o princípio do
território ("ius soli")—, mas através da conjugação de ambos, por-
ventura, com predomínio do segundo (2).

O diploma de aprovação das Ordenações Filipinas declarou


revogadas todas as normas legais não incluídas na compilação, ape-
nas com ressalva das transcritas em livro conservado na Casa da

(') Ver, infra, pág. 310.


(2) Liv. II, tít. 55. Parece que estes dispositivos tiveram origem nas Orde-
namos Redes de Filipe II de Espanha (liv. I, tít. 3, lei 19). Ver Rui Manuel Gens
de Moura Ramos, A evolução do direito da nacionalidade em Portugd (das Ordenações
Filipinas à Lei n.° 2098), in "Boi. da Fac. de Dir.'\ cit., vol. LVIII, tomo II, págs.
695 e segs., especialmente págs. 699 e segs., e Do Direito Português da Naciondidade,
Coimbra, 1984, págs. 7 e segs.

286
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Suplicação, das Ordenações da Fazenda e dos Artigos das Sisas(l).


Porém, muitos outros preceitos continuaram a receber aplicação
prática.

c) Confirmação por D. João IV

Sobreviveram as Ordenações Filipinas à Revolução de 1640.


Nesse próprio ano, D. João IV sancionou genericamente toda a
legislação promulgada durante o governo castelhano.
Em Lei de 29 de Janeiro de 1643, procedeu-se à expressa con-
firmação e revalidação das Ordenações. Nesse mesmo diploma, o
monarca manifestou o desígnio de determinar a sua reforma, como
era vontade das Cortes. O que, porém, não se concretizaria.

d) Os "filipismos"

Observou-se que os compiladores filipinos tiveram, sobretudo,


a preocupação de rever e coordenar o direito vigente, reduzindo-se
ao mínimo as inovações. Não seria estranha a esta atitude a já
referida disposição política do próprio monarca (*).
Intentou-se uma simples actualização das Ordenações Manue-
linas. Só que o trabalho não foi realizado mediante uma reformula-
ção adequada dos vários preceitos, mas apenas aditando o novo ao
antigo. Daí subsistirem normas revogadas ou caídas em desuso,
verificarem-se frequentes faltas de clareza e, até, contradições
resultantes da inclusão de disposições opostas a outras que não se
eliminaram.
A ausência de originalidade e os restantes deíúts^saenósmâ-
dos receberam, pelos fins do século XVIII, a designação de "filipis-

(x)C(r., supra, pág. 285.

287
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mos'^1). E o termo ficou. Essas imperfeições encontram difícil


explicação fora da ideia de um respeito propositado pelo texto
manuelino. Não se estaria em época marcante da nossa cultura
jurídica. Contudo, bastará recordar os juristas que, seguramente,
participaram nos trabalhos preparatórios para reconhecermos a sua
capacidade de realização de obra isenta, ao menos, de alguns dos
graves inconvenientes assinalados.

e) Edição

As Ordenações Filipinas tiveram múltiplas edições. O que não


admira, mercê da longa vigência, já assinalada, que conheceram em
Portugal e no Brasil (2).
A primeira edição das Ordenações Filipinas saiu da oficina de
Pedro Craesbeeck(3), em Lisboa, com a data de 1603. Houve ainda
outras, antes de o privilégio da impressão das Ordenações passar à
Universidade de Coimbra, nos finais de 1773 (4). A última destas, a
chamada "Edição Vicentina", por antonomásia, é do tempo de D.
João V e distiegue-a uma apresentação mais aparatosa, embora,
pelo formato, a sua consulta se torne incómoda (5). Seguiram-se
diversas impressões conimbricenses, de 1789 a 1865.

(') Deve-se a José Virissimo Alvares da Silva, Introducção ao Novo


Código,
ou Dissertação Critica sobre a principal causa da obscuridade do nosso Código Authentico,
Coimbra, 1780, pág. 6. Encontra-se nesta obra uma crítica aguda à compilação
filipina.
(2) Cfr., supra, pág. 285, nota 2.
(3) No rosto dessa edição figura a grafia Crasbeeck.
(4) Pertencia, anteriormente, como se recordou, ao Mosteiro de S.
Vicente de Fora, dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho (cfr., supra, pág.
275, nota 3).
(5) Tal edição, de 1747, está relacionada com uma tentativa de novas
Ordenações, no reinado de D. João V, que não chegou a concretizar-se e a que
estiveram especialmente ligados Fr. Gaspar da Incarnação Moscoso e Alexandre
de Gusmão (ver Alexandre de GusmAo, Colecção de vários escritos inéditos, políticos
e
litterarios de Alexandre de Gusmão que dá á hz publica J. M. T. de G, Porto, 1841,
págs. 59 e segs.; J. M. T. de C. é abreviatura de José Manuel Teixeira de

288
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Destaca-se a edição dada à estampa no Brasil, em 1870, por


iniciativa de Cândido Mendes de Almeida (!). Este eminente jurista
informa ter consultado todas as edições anteriores, fixando o texto
de acordo com a primeira edição, de 1603, e a nona, de 1824. No
conjunto, trata-se da décima quarta tiragem das Ordenações Filipi-
nas, mas foi a primeira impressa no Brasil, numa data em que se
encontravam, entre nós, completamente revogadas.
Esta edição, que assegura a fidedignidade do texto, oferece a
vantagem de os vários preceitos serem acompanhados de anotações,
com notas filológicas, históricas e exegéticas, indicação das fontes,
referências aos diplomas, portugueses e brasileiros, que até então os
modificaram ou revogaram, ao lado de/remissões doutrinais e de
jurisprudência. Em aditamento, transcreve-se a legislação respei-
tante aos temas disciplinados nos diversos títulos. E, sem dúvida, a
edição mais útil à investigação, posto que, dobrados consideráveis
anos sobre a sua elaboração, muitas das opiniões histórico-j uri dicas
de Cândido Mendes se encontrem superadas, designadamente a
exposição preambular que desenvolve a respeito da evolução do
direito português, marcada pelo cunho metodológico da época (2).

Carvalho). Da iniciativa, apenas ficou a referida edição das Ordenações Filipinas,


dirigida por Jerónimo da Silva. Nela se acrescentaram, aos vários títulos, os
correspondentes preceitos extravagantes, publicados de 1603 a 1747, que os
revogaram, alteraram ou interpretaram. Mas realizou-se trabalho imperfeito (ver
Francisco Coelho de Souza e S. Paio, Prelecções de Direito Pátrio Publico e
Particular,
partes l.a e 2.a, Coimbra, 1793, pág. 15, § XIII e nota t, e pág. 17, § XV e
nota z).
(!) Importa não confundir a referida edição com uma outra, da autoria de
Fernando Mendes de Almeida, Ordenações Filipinas — Ordenações e lés do Reino
de
Portugal Recopiladas por mandado d'el Rei D. Filipe, o Primeiro, São Paulo, vols. I
(1957), II (1960) e III (1966). Esta obra, como se verifica, posterior à promulgação
do Código Civil brasileiro, foi elaborada numa pura perspectiva histórico-
-jurídica, contendo também notas e remissões valiosas. Todavia, só abrange os
três primeiros livros da compilação filipina.
(2) A edição, que era raríssima em Portugal, encontra-se reimpressa em
fac-símile, mais uma vez, por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian (as já
referidas Ordenações Filipinas, Lisboa, 1985, onde pode consultar-se, a respeito da

289
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

50. Legislação extravagante. Publicação e inicio da vigência da lei

a) Considerações introdutórias

Aos diplomas que as Ordenações Filipinas não revogaram ou


que, abusivamente, continuaram a aplicar-se, outros se foram
acrescentando (!). A colectânea filipina ver-se-ia, sem demora, alte-
rada ou complementada por um núcleo importante e extenso de
diplomas legais avulsos. É a chamada legislação extravagante. Aliás,
uma nomenclatura já conhecida ( ).
Deve salientar-se,.antes de tudo, que se utiliza aqui o conceito
de lei num sentido muito mais amplo do que aquele que lhe corres-
ponde no direito moderno (3). Ainda se ignorava o princípio da
separação de poderes, de que decorria a diferenciação das esferas
legislativa, administrativa e judicial (4). Ao tempo, qualificava-se
como lei, de um modo geral, toda e qualquer manifestação da von-
tade soberana destinada a introduzir alterações na ordem jurídica
estabelecida. Nem sequer se consideravam necessários os requisitos

obra e do autor, M. J. Almeida Costa, "Nota de Apresentação", págs. 9


e
segs.). Acompanha esta edição um Auxiliar Jurídico (Rio de Janeiro, 1869), do
mesmo Cândido Mendes de Almeida, que consiste num apêndice,
com
legislação, jurisprudência e doutrina, portuguesas e brasileiras.
(*) Cfr., supra, págs. 286 e seg.
(2) Cfr., supra, pág. 246, no âmbito do direito canónico, e págs. 281 e segs.,
a propósito da legislação portuguesa.
(3) Sobre as questões referentes ao conceito de lei e à função legislativa,
ao longo da evolução do direito português, incluindo análises estatísticas
reveladoras, consultar António Manuel Hespanha, "Nota do Tradutor",
in
John Gilissen , Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, 1988, págs. 318 e segs.
(trad.
de A. M. Hesi anha/L. M. Macaísta Malheiros do original Introduction
historique
379 e segs.
au droit, Bruxelles, 1979).
(4) Qu«nto à génese do princípio da separação de poderes, ver, infra, págs.
290
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

da generalidade e da permanência. Posto que se reconhecesse, em


princípio, que a lei propriamente dita devia ser de aplicação geral e
abstracta, não repugnava dar-se a mesma designação a diplomas
sem tais características.

b) Espécies de diplomas

Continuava a centralizar-se no monarca a criação do


direito (*). Todavia, a sua vontade legislativa manifestava-se de
formas diversas. Daí que, paralelamente, se distinguissem vários
tipos de diplomas (2).
Os mais importantes eram as cartas de lei ( ) e os alvarás. Ambos
deviam passar pela chancelaria régia (4), embora existissem diferen-
ças formais e de duração. Quanto ao formulário, as cartas de lei
começavam pelo nome próprio do monarca ( ), ao passo que os
alvarás continham a simples expressão "Eu ElRei"( ); além disso,
criou-se a prática de, na assinatura, aparecer, respectivamente,

( ) Cfr., supra, págs. 254 e segs.


(2) A respeito destas espécies legislativas, consultar Vicente José
Ferreira
Cardozo da Costa, Compilação Systematica das Leis Extravagantes de Portugal,
Lisboa, 1806, "Discurso Preliminar", págs. IX e segs., e Paulo Merêa, Resumo
das Lições de História do Diréto Português, cit., págs. 141 e segs.
( ) Também designadas cartas patentes ou apenas cartas ou leis (em sentido
restrito).
(4) Ord. Man., liv. II, tít. 20, pr.; Ord. Hl., liv. II, tít. 39.
(5) Por ex.: "Dom Manoel per graça de Deus Rey de Portugal e dos
Algarves d'aquem e d'alem Mar em Africa Senhor da Guine e da conquista
navegaçam comercio, etc. A quantos esta Nossa carta virem (...) (Carta de Lei
de 18 de Abril de 1506; A.N.T.T. — Col. Esp., p. I., cx. 37, n.° 9).
(6) A substituição da tórmula "Nós ElRei" pela de "Eu ElRei" é
determinada num assento da Casa da Suplicação de 1524, que D. João III
subscreveu. Esta alteração indicia a sobreposição absolutista do poder real à
vontade dos povos, expressa em Cortes, conjugada com a do soberano (ver
Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico, cit., vol. I, págs. 111 e seg.).

291
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

"ElRei" ou apenas "Rei"^). Pelo que tocava à duração, deviam


promulgar-se em carta de lei as disposições destinadas a vigorar
mais do que um ano e através de alvará as que tivessem vigência
inferior (2). Contudo, desde cedo, tanto as diferenças formais como
as relativas à duração sofreram frequentes excepções ou desrespei-
tos (3), passando a confundir-se os dois tipos de diplomas. Aparece-
ram, assim, os chamados alvarás de lei, alvarás com força de lei ou em
forma de lei (4).
Num plano menos relevante situavam-se os decretos. Não prin-
cipiavam pelo nome do monarca e, visto que, normalmente, se
dirigiam a um ministro ou tribunal,\terminavam, via de regra, com
uma expressão endereçada ao destinatário (5). O âmbito próprio
dos decretos cingia-se à introdução de determinações respeitantes a
casos particulares. Entretanto, com o decurso do tempo, também
acabariam por conter, algumas vezes, preceitos gerais inovadores.
Outros diplomas abrangidos na designação genérica de leis
eram as cartas régias, perfeitamente distintas das cartas de lei. Com

(') Vicente José Ferreira Cardozoda Costa, Compilação Systematica,


cit.,
"Discurso Preliminar", págs. IX e seg., escreve: "Nota-se bem a diversidade da
Assinatura, ainda que não sei que esta differença seja estabelecida por alguma das
nossas leis: nas Cartas costuma ser o titulo do Soberano precedido do artigo o
Rei, a Rainha, o Principe, ou ElRei, e quasi sempre assina com guarda, quando
nos Alvarás se assina sem o artigo Rei, Rainha, Principe".
(2) Ord. Man., liv. II, tít. 20, § 5; Ord. Fil., liv. II, tít. 40.
(3) Também se desrespeita a imposição de que os novos diplomas não
podiam revogar qualquer preceito das Ordenações sem lhe fazerem referência
expressa, com declaração do seu conteúdo. Esta exigência de revogação expressa
encontrava-se prevista nas Ord. Man., liv. II, tít. 49, §§ 1 e 2, e nas Ord. Fil., liv.
II, tít. 44.
(4) As cartas de lei e os alvarás, atendendo à matéria de que tratavam,
podiam receber designações especiais. Por ex.: regimentos, quando relativos à
organização dos tribunais ou aos direitos e obrigações dos funcionários públicos;
estatutos, caso disciplinassem alguma corporação; forais, se respeitantes à organiza-
ção municipal ou aos tributos locais.
(5) Designadamente: "F... o tenha assim entendido e faça executar".

292
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA

efeito, as cartas régias constituíam verdadeiras cartas, quer dizer,


epístolas dirigidas a pessoas determinadas, que começavam pela
indicação do destinatário, mas cujo formulário variava consoante a
sua categoria social ( ). O soberano, como nos alvarás, assinava-as
tão-só com a palavra "Rei".
Denominavam-se resoluções os diplomas em que o monarca
respondia às consultas que os tribunais lhe apresentavam, normal-
mente acompanhadas dos pareceres dos juízes respectivos. Embora
as resoluções visassem casos concretos, a tendência era para a sua
aplicação analógica, tornando-se leis gerais.
Recebiam o nome de provisões os diplomas que os tribunais
expediam em nome e por determinação do monarca. Cabiam, pois,
no conceito amplo da lei. Não raro, surgiam na sequência de um
decreto ou resolução régia e destinavam-se a difundir o seu con-
teúdo. As provisões, em regra, apenas levavam a assinatura dos
secretários de Estado de que dimanavam. As que eram subscritas
pelo soberano, à maneira dos alvarás, confundiam-se com estes,
quanto ao valor legislativo. Dava-se-lhes, então, o nome de provisões
reais ou provisões em forma de lei.
Mencionam-sefpor último, as portarias e os avisos. Tratava-se
de ordens expedidas pelos secretários de Estado ( ) em nome do
monarca. Distinguiam-se, entre si, pelo facto de as portarias serem
diplomas de aplicação geral (3), ao passo que os avisos se destina-
vam a um tribunal, a um magistrado, a uma corporação ou até a

(l) Eis o mais frequente: "F... Eu ElRei vos envio muito saudar".
(2) Sobre os secretários de Estado, a quem só na segunda metade do século
XVIII seria dada a designação de "ministros e secretários de Estado", ver Paulo
Merêa, Da minha gaveta — Os secretários de Estado do antigo regimen, in "Boi. da Fac.
de Dir.", cit., vol. XL, págs. 173 e segs. Quanto a esses cargos em Espanha, com
possível influência entre nós, durante o período filipino, ver José António
Escu-
dero, Los Secretários de Estado y dei Despacho (1474-1724), 4 vols., Madrid, 1969.
(3) As portarias continham a fórmula introdutória seguinte: "Manda ElRei
Nosso Senhor (...)". Acrescia que, ao contrário dos avisos, levavam o selo das
Armas Reais.

293
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

um simples particular (!). Também através destes diplomas,


exorbitando-se da sua finalidade própria, chegaram a promulgar-se
autênticos preceitos legislativos.

c) Publicação e início da vigência da lei

Ainda não se encontra, nas Ordenações Afonsinas, uma norma


expressa sobre o sistema de publicação das leis (2), nem mesmo ao
disciplinar-se o cargo de chanceler-mor ( ). Era essa, todavia, uma
das suas atribuições. Na verdade, não só ocupava a posição de
medianeiro entre o soberano e os súbditos (4), mas também lhe per-
tencia o expediente das cartas do rei, que, num sentido amplo,
englobavam os diplomas legais (5).
As Ordenações Manuelinas abordaram directamente a maté-
ria ( ). Atribuiram ao chanceler-mor, tanto a publicação das leis na
chancelarias da Corte, como o envio dos traslados respectivos aos
corregedores das comarcas. Tal incumbência foi confirmada pelo
novo regimento do chanceler-mor que D. João III outorgou em
1534, espeçiíicando-se que essa publicação na Corte se fizesse no
próprio dia da emissão das leis (7). As Ordenações Filipinas
limitaram-se a repetir o preceito (8).

(') Quanto à força normativa dos avisos, ver José Homem Corrêa
Telles, Commentario Critico á Lá da Boa Razão, em data de í8 de Agosto de 1769,
Lisboa, 1824, com. 3 ao preâmbulo.
(2) A respeito do período antecedente, ver, supra, págs. 256 e seg.
(3) Liv. I, tít. 2.
(4) Ord. Afon., liv. I, tít. 2, pr.
(5) Ver António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil
Portuguez,
Coimbra, 1848, parte I, pág. 59.
(6) Liv. I, tít. 2, § 9.
(7) Regimento de 10 de Outubro de 1534 (ver José AnastAsio
de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, págs. 350 e segs.), incluído
na
Colecção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião, parte I, tít. 1 (cfr.,
especialmente, lei 1, § 9).
(8) Liv. I, tít. 2, § 10.

294
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Manteve-se, durante largo tempo, a prática de as câmaras


promoverem a transcrição, em livros para o efeito destinados, os
diplomas gerais e os de interesse local. Do mesmo modo, os tribu-
nais superiores possuíam livros próprios de registo das leis( ). A in-
trodução da imprensa, que levou à difusão de muitos dispositivos
legais através desse meio, não retirou interesse às referidas colectâ-
neas privadas, pois as tiragens seriam sempre reduzidas e só em
época tardia se tornaram obrigatórios os traslados impressos ( ) e
existiu uma folha oficial em que se publicavam os novos
diplomas i(3)l.

Pelos finais de 1518 (4) provideriçiou-se acerca do início da


vigência das leis: estas teriam eficácia, em todo o País, decorridos
três meses sobre a sua publicação na chancelaria e independente-
mente de serem publicadas nas comarcas. O preceito transitou para
as Ordenações Manuelinas (5), mas reduzindo-se o prazo de* vaca-
tio" a oito dias quanto à Corte. Entendia-se que a vigência dos
restantes diplomas, quer dizer, dos não submetidos à chancelaria,
começava na data da publicação. As Ordenações Filipinas conserva-
ram os prazos indieados(6).

(') Ver Martim de Albuquerque, Para a história da legislação e


jurisprudência
em Portugal. Os livros de registo de leis e assentos dos antigos tribunais superiores, cit., in
"Boi. da Fac. de Dir.", vol. LVIII, tomo II, págs. 623 e segs., especialmente págs.
629 e segs.
(2) Ver, infra, pág. 393.
(3) Ver, infra, pág. 393.
(4) Alvará de 10 de Dezembro de 1518 (ver José AnastAsio
de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, pág. 231). Sobre o regime
anterior,
cfr., supra, págs. 256 e seg. Quanto ao início da vigência dos diplomas legais, pode
adoptar-se o método sincrónico ou o método sucessivo, consoante a lei começa a
vigorar numa única data para todo o território do Estado, ou, progressivamente,
em vários momentos, nas suas diversas regiões ou localidades.
(5) Liv. I, tít. 2, § 9.
(6) Liv. I, tít. 2, § 10.

295
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Recorde-se que passavam obrigatoriamente pela chancelaria


as cartas de lei e os alvarás (!). Porém, com o tempo, não raro tais
diplomas foram considerados válidos mesmo sem que se cumprisse
essa exigência.
O conhecimento efectivo das leis variava, como é óbvio, em
função das distâncias que separavam as comarcas da Corte. As
maiores dificuldades verificavam-se a respeito do Ultramar. Daí
que se estabelecesse, em 1749, que as leis apenas se tornassem obri-
gatórias para os territórios ultramarinos depois de publicadas nas
cabeças das comarcas (2).

51. Interpretação da lei através dos assentos

O problema da interpretação da lei com sentido universal-


mente vinculativo para futuro foi disciplinado por um diploma da
segunda década do século XVI (3). Os seus dispositivos incluíram-se,
depois, nas Ordenações Manuelinas (4) e passaram às Ordenações
Filipinas (5).

(l) Ver, supra, pág. 291.


(2) Lei de 25 de Janeiro de 1749. Ver António Ribeiro de Liz
Teixeira,
Curso de Direito Civil Portuguez, cit., parte I, pág. 59.
(3) Alvará de 10 de Dezembro de 1518 (ver José AnastAsio
de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, pág. 231). A interpretação
autêntica da lei constituía uma faculdade do monarca. Conhecem-se numerosos
diplomas interpretativos de preceitos anteriores. Também era frequente o rei
presidir às reuniões dos tribunais superiores e logo aí decidir as dúvidas
interpretativas que se levantavam. Na origem do referido alvará de D. Manuel I,
que confere tais funções à Casa da Suplicação, encontra-se o facto de se ter
perdido o uso de o soberano presidir a essas sessões dos tribunais superiores, em
virtude da complexidade crescente da administração (cfr. Braga da Cruz, O
direito subsidiário, cit., nota 109 da pág. 283, onde se analisam as várias modalidades
de assentos).
(4) Liv. V, tít. 58, § 1.
(5) Liv. I, tít. 5, § 5. Ver, também, o § 8 do Regimento da Casa da

296
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Determinou-se que, surgindo dúvidas aos desembargadores da


Casa da Suplicação sobre o entendimento de algum preceito, tais
dúvidas deveriam ser levadas ao regedor do mesmo tribunal. Este
convocaria os desembargadores que entendesse e, com eles, fixava
a interpretação que se considerasse mais adequada. O regedor da
Casa da Suplicação poderia, aliás, submeter a dúvida a resolução do
monarca, se subsistissem dificuldades interpretativas.
As soluções definidas ficavam registadas no Livro dos Assentos e
tinham força imperativa para futuros casos idênticos. Surgem, deste
modo, os assentos da Casa da Suplicação como jurisprudência obri-
gatória (*). Trata-se do antecedente histórico dos assentos dos tri-
bunais que estão na cúpula da organização judiciária, maxime do
Supremo Tribunal de Justiça (2).
A Casa da Suplicação era o tribunal superior do'Reino, que
acompanhava a Corte, mas que acabaria por se fixar em Lisboa (3).

Suplicação de 7 de Junho de 1605 (in José Justino de Andrade e Silva,


Collecção
Chronologica da Legislação Portugueza (1603-1612), Lisboa, 1854, págs. 130 e seg.).
(') Sobre um confronto possível com as façanhas, ver, supra, pág. 191, nota 1.
Em Decreto de 4 de Fevereiro de 1684, admitiu-se, todavia, a alteração dos
assentos no caso de "injustiça notória" (ver José Justino de Andrade e
Silva,
Collecção Chronologica, cit., (1683-1700), pág. 7).
(2) Ver A. Castanheira Neves, O instituto dos "assentos" e a função
jurídica
dos supremos tribunais, Coimbra, 1983 (sep. da "Revista de Legislação e de
Jurisprudência"). Quanto ao quadro 'moderno dos assentos, ver uma síntese, infra,
na segunda parte da nota 7 da pág. 357.
(3) Sobre os antigos tribunais superiores, que resultaram de desintegrações
sucessivas do tribunal da Corte (Tribunal da Corte ou Casa da Justiça da Corte,
depois Casa da Suplicação, e diferenciação da Casa do Cível, também, por vezes,
designada Casa do Cível e Crime), ver Marcello Caetano, Hist. do Dir.
Port.,
cit., vol. I, págs. 482 e segs. Dos autores precedentes, destacam-se Afonso
Costa, Lições de Organisação Judiciaria, Coimbra, 1897, págs. 96 e segs., e Alberto
dos Reis, Organização Judicial. Lições feitas ao curso do 4.° ano jurídico de 1908 a 1909,
Coimbra, 1909, págs. 169 e segs., embora com algumas imprecisões. A respeito
da Casa da Suplicação, ver Martim de Albuquerque, O Regimento
Quatrocentista
da Casa da Suplicação (ed. de 1982), cit., onde, a um estudo introdutório, se seguem

297
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Na mesma cidade funcionava a Casa do Cível, que constituía uma


segunda instância, competente para conhecer dos recursos das cau-
sas cíveis de todo o País, ressalvadas as sentenças proferidas no local
onde se encontrasse a Corte e cinco léguas em redor, cuja apelação
iria ao tribunal da Corte, assim como para conhecer dos recursos
das causas criminais provenientes de Lisboa e seu termo (!).
Ora, com o objectivo de descentralizar os tribunais de recurso
e indo ao encontro de solicitações anteriores, Filipe I, em 1582,
deslocou a Casa do Cível para o Porto, transformando-a na Rela-
ção do Porto (2). A nova Casa da Relação do Porto funcionava
como tribunal de segunda a última instância, quanto às comarcas
do Norte, em matéria crime; e o mesmo se verificava em matéria
cível, excepto se o valor da causa ultrapassasse determinado mon-
tante (alçada), hipótese em que existiria possibilidade de recurso
para a Casa da Suplicação (3).

a reprodução anastática do texto latino, com leitura paleográfica de Eduardo


Borges Nunes, e a tradução portuguesa de Miguel Pinto de Meneses. Nesse
estudo introdutório, são analisados alguns aspectos problemáticos do texto,
designadamente o da sua natureza jurídica de verdadeira lei, de simples
regulamento interno ou até de escrito particular. Quanto ao Regimento da Casa
da Suplicação de 7 de Junho de 1605, pode ser consultado, como se indicou, in
José Justino de Andrade e Silva, Colecção Chronologica (1603-1612), cit., págs.
129
e segs. Ver Paulo Merêa, Bosquejo histórico do recurso de revista, in "Boi. do Min.
da Just.", cit., n.° 7, págs. 43 e segs., e M. J. Almeida Costa, Suplicação
(Recurso
de), in "Verbo — Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura", vol. 17, Lisboa, 1975,
pág. 881.
(') Ord. Afon., liv. I, tít. 7, liv. III, tít. 90, e liv. V, tít. 98 (ver
Marcello
Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 484 e segs.).
(2) Lei de 27 de Julho de 1582. Discute -se sobre se Filipe I transferiu a
Casa do Cível de Lisboa para o Porto ou se pôs termo à Casa do Cível de Lisboa
e criou, em seu lugar, a Relação do Porto (ver, por todos, Martim de
Albuquerque, Para a história da legislação e jurisprudência em Portugal, cit., in "Boi.
da
Fac. de Dir.", vol. LVIII, tomo II, págs. 627 e seg.).
(3) A alçada correspondia a cem mil réis ou a oitenta mil réis, consoante
se tratasse, respectivamente, de bens móveis ou de bens de raiz. Esses valores
foram triplicados por Lei de 26 de Julho de 1696 e de novo aumentados por

298
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Matinha-se, assim, alguma subalternidade da Relação do Porto


perante a Casa da Suplicação. De qualquer modo, esse tribunal
ficou com grande autonomia em face das comarcas do Norte, pelo
que os desembargadores da Relação do Porto se arrogaram o
direito de proferir também assentos normativos, embora nenhum
texto legal lhes outorgasse semelhante faculdade. Daí resultaram
naturais confusões e contradições interpretativas (1).
Entretanto, as Relações criadas no Ultramar — a de Goa
(1544), a da Bahia (1609) e a do Rio de Janeiro (1751) — seguiram o
exemplo (2). Todas elas passaram a tirar assentos interpretativos.
Apenas no século XVHI se pôs cobro a este abuso. A chamada Lei da
Boa Razão, de 18 de Agosto de 1769, determinou que só os assentos
da Casa da Suplicação teriam eficácia interpretativa (3).

Alvará de 13 de Maio de 1813. As comarcas de que havia recurso para a Relação


do Porto eram as das províncias de Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes e da
província da Beira, com excepção da comarca de Castelo Branco, por ficar mais
perto da Casa da Suplicação, e dos "aggravos dos feitos eiveis, que sairem dante
o Conservador da Universidade de Coimbra" (ver Braga da Cruz, O direito
subsidiário, cit., nota 110 da pág. 287).
Y1) Quanto às colectâneas de assentos, ver as indicações de J.-M. Scholz,
Legislação e Jurisprudência em Portugal nos Sécs. XVI a XVIII, cit., in "Scientia
Ivridica", tomo XXV, págs. 512 e segs., e Martim de Albuquerque, Para
a
história da legislação e jurisprudência em Portugal, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.
LVIII, tomo II, págs. 623 e segs. Encontra-se uma valiosa colecção de estilos,
assentos e outros arestos, in Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico,
cit.,
vol. I, págs. 47 e segs., e vol. II, págs. 799 e segs. Também se inclui nessa obra
uma lista de preceitos das Ordenações e de leis extravagantes declarados por
assentos das Casas da Suplicação e do Cível (vol. II, págs. 789 e segs.).
(2) Os regimentos dos antigos tribunais superiores em Portugal e no Brasil
são publicados por Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico, cit., vol.
I,
págs. 1 e segs. Indicam-se na mesma obra os regedores sucessivos da Casa da
Suplicação (vol. II, págs. 775 e segs.).
(3) Lei da Boa Razão, § 8(ver, infra, págs. 357 e segs.).Observe-se que a Rela-
ção do Rio de Janeiro se transformou em Casa da Suplicação para o Brasil,
através de Alvará de 10 de Maio de 1808, adquirindo competência para proferir
assentos interpretativos, no âmbito da sua jurisdição. A Casa da Suplicação do Brasil

299
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

52. Estilos da Corte. O costume

a) Estilos da Corte

As Ordenações indicam, como fontes do direito nacional, ao


lado da lei, os estilos da Corte e o costume (*). Ora, os civilistas e
os canonistas discutiram a diferença entre costume ("consuetudo") e
estilo ("stylus") (2). Nunca se chegou a uma doutrina unânime. Exis-
tia o traço comum de ambos representarem fontes de natureza não
legislativa, pois alicerçavam-se no uso. Subsistiam, contudo, discre-
pâncias quanto ao critério distintivo.
Para certos autores, o costume resultava da conduta da colec-
tividade, ao passo que o estilo seria introduzido pela prática de
entidades públicas, em especial de órgãos judiciais. Segundo outra
corrente, que se baseava na matéria disciplinada, os estilos
circunscreviam-se aos aspectos de processo (praxe de julgar), deles

cederia o lugar ao Supremo Tribunal de Justiça, resultante da Constituição do


Império de 25 de Março de 1824, organizado através da Lei de 18 de Setembro
de 1828 e instalado em 9 de Janeiro de 1829. Este passou a denominar-se Supremo
Tribunal Federal com o Decreto n.° 848, de 11 de Outubro de 1890. Sobre o
regime jurídico dos assentos no Brasil durante o Império, ver Alfredo
Buzaid,
Da uniformização da jurisprudência, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo
II, págs. 127 e segs., designadamente págs. 136 e seg.
(') Ord. Afon., liv. II, tít. 9, Ord. Man., liv. II, tít. 5, e Ord. Fil., liv. III,
tít. 64.
(2) Ver, por todos, Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota 49
da
pág. 216, e, em especial, Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, O Direito
Subsidiário
num Comentário às Ordenações Manuelinas atribuído a Luís Correia, in "Estudos de
Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano", Lisboa, 1973, págs.
253 e segs., designadamente págs. 263 e segs., e Hist. do Dir. Port., cit., vol. I,
págs. 229 e segs., onde se analisam, com amplas referências, as opiniões dos
nossos autores antigos. Quanto a bibliografia estrangeira, remete-se para L.
Prosdocimi, Tra civilisti e canonisti dei sec. XIII ai XIV. A propósito delia genesi
dei
conceito di "stylus", in "Bartolo da Sassoferrato — Studi e documenti per il VI
centenário", cit., vol. II, págs. 413 e segs.

300
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

se autonomizando os costumes, em sentido próprio, de direito subs-


tantivo, que pudessem surgir no âmbito do tribunal (conteúdo da
decisão).
Entre nós, o conceito de estilo adquiriu o sentido generalizado
de jurisprudência uniforme e constante dos tribunais superiores (!).
Quanto aos requisitos a que devia obedecer, também não se encon-
trava consenso. De acordo com a opinião dominante, exigia-se que:
1) não se apresentasse contrário à lei; 2) tivesse prescrito, quer
dizer, possuísse uma antiguidade de dez anos ou mais; 3) fosse
introduzido, pelo menos, através de dois actos conformes de tribu-
nal superior. Alguns autores sustentavam a necessidade de três actos
judiciais. Enquanto outros defendiam que só no caso de estilo con-
trário à lei se impunha prova de prescrição, valendo, consequente-
mente, via de regra, sem este pressuposto.
Um diploma dos começos do século xvn (2) veio ocupar-se da
imperatividade dos estilos antigos da Casa da Suplicação. Também
nele se preceituou que as respectivas dúvidas e alterações fossem
objecto de assentos (3).

b) O costume <~~

Recordemos que o costume constituiu a fonte predominante


do sistema jurídico dos começos da nacionalidade, mas que princi-


(') A Casa da Suplicação, a Casa do Cível e as Relações. Em rigor,
todavia, estilos da Corte eram apenas os da Casa da Suplicação (cfr., supra, págs.
296 e segs.). A identificação, algumas vezes feita, dos conceitos de estilo e de
costume é observada por Correia Telles, que exemplifica com as Ord. Ri., liv.. I,
tít. 1, § 37 (ver Commentario Critico á Lei da Boa Razão, cit., com. 197 ao § 14).
(2) Carta Régia de 7 de Junho de 1605 (§ 8). Ver José Justino de
Andrade
e Silva, Collecção Cronológica (1603-1612), cit., págs. 130 e seg., e Corrêa
Telles,
Comentário Critico á Lei da Boa Razão, cit., coms. 21 e segs. ao § 5, onde se
abordam outros aspectos controvertidos. Ver, posteriormente, Braga da Cruz,
O direito subsidiário, cit., nota 109 (III) da pág. 283.
(3) Sobre o disposto, mais tarde, pela Lei dacBoa Razão, ver, infra, pág. 357.

301
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

piou a ceder essa posição à lei, desde meados do século XIII^). O


direito novo passa a criar-se, em regra, por via legislativa ( ).
Contudo, as Ordenações referem-se expressamente ao
cos-
tume. É determinada a sua observância, a par da lei e dos estilos da
Corte. Quer dizer, o costume mantinha a eficácia de fonte de
direito, tanto se fosse conforme à lei ("secundum legem") ou para
além desta ("praeter legem"), como se a contrariasse ("contra
legem").
Interessa observar as transformações verificadas nos sucessivos
textos. As Ordenações Afonsinas limitam-se a consagrar a vigência
do costume do Reino antigamente usado (3). Mas já as Ordenações
Manuelinas estabelecem alguma especificação: por um lado,
salienta-se a validade dos costumes locais no mesmo plano dos cos-
tumes gerais, talvez com o objectivo de evitar dúvidas que surgis-
sem a propósito da formulação antecedente; por outro lado,
restringe-se a observância do costume, geral ou local, como fonte
imediata, aos casos em que a doutrina romanística e canonística
admitisse a sua vigência. ( ).
O legislador, quanto ao segundo aspecto, fez apelo, em suma,
à fundamentação e aos requisitos de validade que a ciência jurídica
da época estabelecia a respeito do costume. Era um tema muito
discutido pelos autores do direito comum, além e aquém-fronteiras.
Conforme se aludiu noutra altura (5), o fundamento da obriga-
toriedade do costume, dotado da mesma força da lei, em geral

(') Cfr., infra, págs. 190 e seg. e 258.


( ) Cfr., supra, págs. 254 e segs.
(3) Liv. II, tít. 9, pr. ("ou custume dos nossos Regnos antigamente
usado").
(4) Liv. II, tít. 5, pr. ("ou Custume em os ditos Reynos, ou em cada hua
parte delles longuamente vsado, e tal que per Dereito se deua guardar"). A
formulação manuelina transferiu-se para as Ord. Ri., liv. III, tít. 64, pr. Chama a
atenção para estes aspectos Braga da Cruz, O diréto subsidiário, cit., nota 65
da
pág. 242.
(5) Cfr., supra, pág. 258.

302
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

reconhecida, resultava da harmonização da sua génese — o con-


senso colectivo exteriorizado numa certa conduta reiterada — com
o princípio de que a vontade do monarca representava a fonte
básica ou única da criação do direito positivo. Nessa perspectiva,
chegou-se à ideia de uma aquiescência tácita do rei, visto que era
impossível invocar-se uma sua vontade expressa, que pressupunha a
prova do conhecimento efectivo da norma consuetudinária ( ).
Nada pacíficos se apresentavam os requisitos da força vincula-
tiva do costume. O legislador só mais tarde viria a fixá-los ( ). A
orientação dominante, de proveniência canonística, aceitava a vali-
dade do costume contrário à lei, mas ressalvados os preceitos de
ordem pública (3).
Duas questões se destacavam no âmbito dos requisitos do cos-
tume: a da antiguidade e a do número de actos necessários à
demonstração da sua existência. Quanto à primeira, exigia-se, em
regra, um período de duração igual ou superior a dez anos, excepto
se o costume era contrário à lei, para que os canonistas apontavam
o prazo mínimo de quarenta anos. A respeito da pluralidade das
manifestações do costume durante esse período, as opiniões varia-
vam entre um e dez actos, mostrando-se mais seguida a que se
contentava com dois actcrs, maxime de natureza judicial. Não fal-

(') Ver, por todos. Br^ga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota 65 da
pág. 242, e Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, O Direito Subsidiário num
Comentário
às Ordenações Manuelinas atribuído a Luís Correia, cit., in "Estudos de Direito Público
em Honra do Professor Marcello Caetano", págs. 253 e segs, designadamente
págs. 267 e segs., e Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 232 e segs., com indicação
das opiniões de jurisconsultos antigos. Dos autores estrangeiros, salienta-se
Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit.. vol. I, págs. 197 e segs.
(2) Ver, infra, pág. 359.
(3) Sobre a revogação da lei por costume de tempo imemorial e de prática
sempre uniforme, ver o exe nplo do Decreto de 19 de Abril de 1757 (in António
Delgado da Silva, Collecçío da Legislação Portugueza desde a ultima compilação
das
Ordenações (1750-1762), Lisboa, 1830, pág. 505.

303
\ HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tava, todavia, quem deixasse esses requisitos do tempo e do número


de actos ao critério do juiz (l).

53. Direito subsidiário

Quando se considerou a importância das Ordenações Afonsi-


nas (2), houve oportunidade de salientar que estas se apresentavam
incompletas em muitos pontos. Refira-se, como simples exemplo, o
âmbito obrigacional ou dos direitos de crédito.
A mesma observação procede a respeito das Ordenações
Manuelinas e das Ordenações Filipinas, que se lhes seguiram. Daí
que se levantasse, com frequência, o problema da integração das
lacunas da lei, ou seja, do direito a aplicar subsidiariamente.
Antes de analisarmos o que as Ordenações determinaram
sobre a matéria, convirá desenvolver algumas considerações relati-
vas a esse problema encarado em si mesmo. Apreciemos no que
consiste.

a) O problema do direito subsidiário

Entende-se por direito subsidiário um sistema de normas jurí-


dicas chamado a colmatar as lacunas de outro sistema. Tratar-se-á,
respectivamente, de direito subsidiário geral ou especial, quando,
por essa via, se preencham as lacunas de uma ordem jurídica na sua
totalidade, ou tão-só de um ramo do direito ou simples instituição.

( ) Consultar os autores indicados, supra, nota 1 da pág. anterior. Uma


corrente sustentava, além da prescrição, a exigência de que o costume fosse, não
só introduzido pela maioria dos membros da colectividade, mas ainda racional,
quer dizer, dirigido ao bem comum (ver Paulo Merêa, Resumo das Lições de
História do Direito Português, cit., págs. 146 e seg.).
(2) Cfr., supra, págs. 274 e seg.

304
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

O problema do direito subsidiário encontra-se ligado de um


modo particular ao das lacunas e mesmo ao das fontes do direito.
Pode dizer-se que se vincula a uma compreensão específica e a um
certo estádio histórico e metodológico da evolução de tais questões.
Com efeito, o seu relevo próprio no contexto dessa problemá-
tica geral encontra-se, sobretudo, dependente de dois pressupostos
que historicamente se verificam: por um lado, a ausência, tanto de
um sentido de verdadeira autonomia dos diversos ordenamentos
jurídicos — antes de mais, no sentido de um autonomia ou exclusi-
vidade nacional—, como da pretensão, em regra consequência
dessa autonomia, de uma auto-suficiente totalidade unitária de
regulamentação jurídica do domínio ou campo de direito a que o
ordenamento se destina; por outro lado, a possibilidade, em coerên-
cia com o pressuposto antecedente, de remeter o julgador para
quaisquer ordenamentos jurídicos disponíveis — o que tinha como
resultado, quer a ocultação do exacto problema das lacunas, uma
vez que era fácil pensar que se poderia sempre recorrer a um
direito formalmente constituído, quer a resolução daquele pro-
blema, através do direito subsidiário, no quadro da definição das
fontes do direito, de cuja questão representaria só um caso particular.
Os referidos pressupostos foram efectivos num largo período
da realidade histórica do pensamento jurídico europeu, em especial
após o chamado renascimento do direito romano e a formação do
direito comum que nele sobretudo se baseava (*). E com a seguinte
consequência prática, aparentemente paradoxal, mas muito impor-
tante: a imperfeição ou insuficiência dos sistemas jurídicos nacionais
ou dos ordenamentos jurídicos positivos em geral era reconhecida
simultaneamente com a ideia de que o juiz, mediante recurso a um
direito subsidiário, a um qualquer direito pressuposto ou a uma
outra fonte formal de direito, sempre disporia de um direito dado a

(') Ver, supra, págs. 203 e segs., e 252 e segs.

305
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

que pudesse ater-se, não se lhe exigindo, portanto, em princípio, o


seu contributo para a constituição do direito por via integrativa.
Esta fase ultrapassou-se a partir do movimento da legislação
nacional, autónoma e unitária, com a sua intenção de uma pleni-
tude normativa — como o exigiam os postulados político-jurídicos
e científico-matemáticos do pensamento do século XIX. Pois justa-
mente aquele movimento, acompanhado da intenção indicada, e
estes postulados impuseram à dogmática jurídica o ter de enfrentar-
se, directa e explicitamente, com o problema das lacunas. Não
apenas os meios, os critérios e os métodos do seu preenchimento,
mas o problema das lacunas em si mesmo passou a preocupar o
pensamento jurídico. Querendo considerar tão-só os resultados
dessa vasta discussão problemática ('), concorda-se hoje num ponto —
que, praticamente, o problema só pode ser resolvido através da
intervenção constitutivamente integrante do julgador, e isso quer o
legislador prescreva ou não critérios metodológicos gerais que
aquele deva respeitar. Ou seja: sempre o julgador terá uma relativa
liberdade integradora, já que haverá que dar resposta jurídica aos
casos de verdadeira lacuna mediante uma decisão normativamente
a constituir parajilém dos dados formais do direito.
Pelo que o autêntico problema das lacunas só surge actual-
mente nos limites do direito constituído. Quer dizer, esgotadas que
sejam as possibilidades directas ou indirectas (remissivas) de aplica-
ção imediata de um prévio direito constituído, de uma fonte formal
de direito. O mesmo equivale a afirmar que o problema, enquanto
problema específico, se apresenta hoje em função dos limites e da
autonomia completa dos ordenamentos jurídicos. Aquém desses
limites, ou inexistindo essa integral autonomia, o que pode surgir é

(') Discussão a incidir sobre o conceito de lacuna e o seu sentido


normativo, sobre se haveria lugar para uma alusão a lacunas do direito ou apenas
a lacunas da lei, sobre as distinções entre lacunas próprias e impróprias, entre
lacunas formais e teleológicas, sobre a exigência de lacunas insusceptíveis de
integração, etc.

306
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

a remissão normativa intra-sistemática de um sector ou parte dife-


renciada do sistema jurídico global para outro sector ou parte do
mesmo sistema, que com o primeiro tem particulares relações no
seio do sistema global em que ambos participam, com vista a suprir
assim as formais carências prescritivas, sejam voluntárias ou invo-
luntárias, do parcial e dependente ordenamento remetente. Rela-
ções particulares essas, a autorizarem uma tal remissão, em que se
vêm a traduzir, sobretudo, as relações de especialização ou as rela-
ções de estatuto geral para estatuto especial entre vários sectores do
direito, no quadro da coerência e unidade postulada por toda a
ordem jurídica. E nisto se cifra o actual relevo do direito
subsidiário.
Daqui se infere que a questão do direito subsidiário cresce de
interesse à medida que se recua no tempo, conhecendo as épocas
em que a escassez e a imperfeição das fontes nacionais impunham
um amplo recurso a ordenamentos jurídicos estrangeiros. Este facto
desempenhou um enorme papel como elemento de aproximação
jurídica e cultural dos povos. Tais asserções e o relevo que o pro-
blema pode assumir no campo do direito comparado bem se reve-
lam na história do direito português.

b) Fontes de direito subsidiário segundo as Ordenações Afonsinas

Somente com as Ordenações Afonsinas se estabeleceu, entre


nós, um quadro sistemático das fontes de direito. A matéria consta
do livro II, título 9. Aí se mencionam, em primeiro lugar, as fontes
do direito nacional. Colocam-se no mesmo plano as leis do Reino, os
estilos da Corte(l) e os costumes antigamente usados( ).
Eram estas as fontes imediatas. O legislador afonsino salienta
expressamente a sua imperatividade e prevalência ( ). Apenas

(') Sobre os estilos da Corte, ver, supra, págs. 300 e seg.


( ) A respeito do costume, ver, supra, págs. 301 e segs.
(3) Liv. II, tít. 9, pr.

307
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

quando não se pudesse decidir o caso "sub iudice" com base nelas
se tornava lícito o recurso ao direito subsidiário^). Também as
respectivas fontes se encontram taxativamente previstas e hierar-
quizadas. Passamos a analisá-las (2).

I — Direito romano e direito canónico

Na_falta de direito nacional — como se observou, representado


por lei, estilo da Corte ou costume —, caberia utilizar, antes_de_
mais, o direito romano e o direito canónico, que se designavam
^leis imperiais" e "santos cânones" (3). Em questões jurídicas de
natureza temporal, a prioridade pertencia ao direito romano,
excepto se da sua aplicação resultasse pecado. Portanto, o direito
canónico prevalecia sobre o direito romano nas matérias de ordem
espiritual e nas temporais em que a observância deste último con-
duzisse o pecado ("ratio peccati"), quer dizer, se mostrasse contrá-
ria à moral cristã ( ).
Não se tratava, aliás, de critério privativo das nossas Ordena-
ções. A supremacia do direito canónico sobre o direito romano,
quando a sua aplicação levasse a pecado, representava doutrina cor-
rente. Exemplificam as Ordenações Afonsinas com a usucapião, aí
chamada prescrição aquisitiva, admitida pelo direito romano, ao
fim de trinta anos, em benefício do possuidor de má fé, mas que o
direito canónico rejeitava (5).

( ) Quanto ao que se passava anteriormente no capítulo do direito


subsidiário, ver, supra, págs. 261 e segs.
( ) Consultar o estudo desenvolvido e fundamental de G. Braga da
Cruz, O direito subsidiário na história do direito português, cit. Ver, posteriormente,
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, O sistema de fontes nas Ordenações Afonsinas,
in
"Scientia Ivridica", cit., tomo XXIX, págs. 429 e segs.
(3) Liv. II, tít. 9, pr. Ver, supra, pág. 250 e nota 3.
(4) Liv. II, tít. 9, § 1.
(5) A doutrina e o próprio exemplo decorrem de Bártolo. Ver M. J.
Almeida Costa, Romanismo e Bartolismo, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.

308
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

II — Glosa de Acúrsio e opinião de Bártolo

Se o caso omisso não fosse decidido directamente pelos textos


de direito romano ou de direito canónico, nos termos referidos,
devia atender-se à Glosa de Acúrsio e, em seguida, à opinião de
Bártolo ainda que outros doutores se pronunciassem de modo
diverso (*). O legislador justifica a prevalência de Bártolo, alegando
a prática adoptada desde D. João I, a maior racionalidade reconhe-
cida a este jurista, assim como o desejo de evitar incertezas e con-
fusões jurisprudenciais.

III — Resolução do monarca

Sempre que, através dos sucessivos elementos indicados, não


se conseguisse disciplina para o caso omisso, impunha-se a consulta
do rei, cuja estatuição valeria, de futuro, para todos os feitos seme-
lhantes (2). Determinava-se o mesmo procedimento quando a hipó-

XXXVI, pág. 32, e La présence d'Accurse, cit., ibid., vol. XLI, pág. 56, NunoJ.
Espinosa Gomes da Silva, Bártolo na Hist. do Dir. Port., cit., in "Rev. da Fac.
de
Dir. da Univ. de Lisb.", vol. XII, págs. 186 e seg., e O sistema de fontes, cit., in
"Scientia Ivridica", tomo XXIX, págs. 444 e seg. Sobre o referido ensino de
Bártolo e a sua difusão, ver, por ex., G. Ermini, Corso di diritto comune, vol. I,
Milano, 1946, pág. 145, Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I, págs. 488 e
segs., e Cavanna, Stor. dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, págs. 83 e segs.
(!) Liv. II, tít. 9, § 2. No sentido de uma nova interpretação relativa à
primazia da Glosa de Acúrsio e da opinião de Bártolo sobre o direito canónico,
desde que se tratasse de matérias temporais que não envolvessem pecado, ver
José Artur Duarte Nogueira, Algumas reflexões sobre o direito subsidiário nas
Orde-
nações Afonsinas, in "Revista de Direito e de Estudos Sociais"., ano-XXIV, Coim-
bra, 1980, págs. 281 e segs. Contudo, os argumentos a favor dessa sugestiva
hipótese não parecem decisivos (ver NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, O
sistema
de fontes, cit., in "Scientia Ivridica", tomo XXIX, pág. 445, nota 45, e Hist. do
Dir. Port., cit., vol. I, pág. 196, nota 3, e Martim de Albuquerque, Bártolo
e
Bartolismo, cit., in "Boi. do Min. da Just.", n.° 304, págs. 38 e segs.
(2) Liv. II, tít. 9, § 2, parte final.

309
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tese considerada, não envolvendo matéria de pecado, nem sendo


disciplinada pelos textos de direito romano, tivesse soluções diver-
sas no direito canónico e nas glosas e doutores das leis(1).

c) Alterações introduzidas pelas Ordenações Manuelinas


e pelas Ordenações Filipinas

Os preceitos afonsinos sobre direito subsidiário passaram fun-


damentalmente às Ordenações Manuelinas (liv. II, tít. 5)(2) e destas
às Ordenações Filipinas (liv. III, tít. 64). Contudo, sofreram ampla
remodelação. Das'Ordenações Manuelinas para as Ordenações Fili-
pinas, verificaram-se meros retoques formais, além de se incluir a
matéria no livro dedicado ao direito processual, consoante já se
observou (3).
Este último aspecto do enquadramento não parece fortuito.
Na verdade, a referida transposição significa que o problema do
direito subsidiário deixou de ser disciplinado a propósito das rela-
ções entre a Igreja e o Estado (liv. II), deslocando-se para o âmbito
do processo (liv. IH). Ora, pode detectar-se aí, como salienta Braga
da Cruz(4), a ruptura da "última amarra" que ligava a questão do
direito subsidiário à ideia anterior de um conflito de jurisdições
entre o poder temporal e o poder eclesiástico, simbolizados, respec-
tivamente, pelo direito romano e pelo direito canónico. Tornou-se,
em suma, de acordo com a atitude da época, um puro e simples
problema técnico-jurídico.

O Liv. II, tít. 9, §3.


(2) Quanto às diferenças, a tal respeito, entre a versão definitiva das
Ordenações Manuelinas, de 1521, de que nos ocupamos, e a primeira versão, de
1512/1514 (cfr., supra, págs. 276 e segs.), ver Braga da Cruz, O direito subsidiário,
cit., págs. 236 e segs.
( ) Cfr., supra, pág. 286.
(4) O direito subsidiário, cit., págs. 251 e segs.

310
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS D£ INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

Todavia, as mudanças substanciais aparecem logo nas Orde-


nações Manuelinas. Importa salientar, por outro lado, que se encon-
tra justificada, diversamente do que sucedia nas Ordenações Afon-
sinas, a vigência^subsidiária do direito romano. Aplica-se devido à
sua autoridade intrínseca e não mercê de qualquer subordinação
política do Reino português ao Império (').
Cifram-se em duas as diferenças essenciais de conteúdo que
separam, no âmbito do direito subsidiário, as Ordenações Manueli-
nas e as Ordenações Filipinas do precedente texto afonsino. A
saber:

I — Quanto à aplicação dos textos de direito romano e de


direito canónico, deixa-se de referir a distinção entre problemas
jurídicos temporais e espirituais. Apenas se consagra o critério do
pecado ( ), que fornecia o único limite à prevalência subsidiária do
direito romano sobre o direito canónico, qualquer que fosse a natu-
reza do caso omisso.
II — A respeito da Glosa de Acúrsio e da opinião de Bártolo,
cuja ordem de precedência se conserva, estabelece-se o requisito de
a "comum opinião dos doutores" não contrariar essas fontes. Rela-
tivamente a Bártolo, ITrestrição seria definida tão-só pelos autores
que tivessem escrito depois dele(3).
O facto de a letra da lei colocar a "communis opinio" como
filtro da Glosa de Acúrcio e da opinião de Bártolo levou à inter-

(') Ord. Man., liv. II, tít. 5, pr., ("as quaes Leys Imperiaes Mandamos
soomente guardar pola boa razam em que sam fundadas"). Cfr., também, as
Ord. Fil., liv. III, tít. 64, pr. Alude-se a boa razão "como equivalente de razão
natural ou justa razão", segundo adverte Paulo Merêa, Direito romano, direito
comum e boa razão, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XVI, pág. 540 (ver, ainda,
Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., nota 69 da pág. 245, págs. 257 e segs., e
293). Toma-se essa expressão com um alcance diverso do que assumiria, mais
tarde, no contexto da Lei da Boa Razão (ver, infra, págs. 356 e segs.).
(2) Ord. Man., liv. II, tít. 5, pr., e Ord. Fil., liv. III, tít. 64, pr.
(3) Ord. Man., liv. II, tít. 5, § 1, e Ord. Fil., liv. III, tít. 64, § 1.

311
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

pretação, posto que não pacífica, de que aquela constituía, em si


mesma, uma fonte subsidiária (*). Por outras palavras: na falta de
direito nacional, de direito romano e de direito canónico, caberia
recorrer à opinião comum, antes da Glosa de Acúrsio e da opinião
de Bártolo.

d) Utilização das fontes subsidiárias

Expôs-se o sistema hierarquizado das fontes de direito, ime-


diatas e subsidiárias, definido pelas sucessivas Ordenações. O legis-
lador procurou sempre estabelecê-lo com clareza e em termos
imperativos.
No entanto, persistiu margem para algumas dúvidas, como
antes se indicou. Mas, sobretudo, assumiam relevo as confusões e os
atropelos frequentes à letra e ao espírito do sistema (2). Não raro, o
direito pátrio era preterido pelo direito romano, considerado a
"ratio scripta", ou, quando menos, prevalecia a regra hermenêutica
de que as normas jurídicas do País deveriam receber interpretação
extensiva ou restritiva, consoante se apresentassem conforme ou
opostas a esse direito. Abusava-se da opinião comum, especial-
mente cristalizada nas decisões dos tribunais superiores. Chegou-se,
inclusive, à aplicação do direito castelhano, que se encontrava fora
do quadro das fontes subsidiárias.
Tal foi o pano de fundo da vida jurídica portuguesa durante
mais de três séculos, em que certas reacções, mormente humanistas,
não conseguiram obstar ao predomínio, mais ou menos rotineiro,

(') Sobre este problema e o das discussões referentes ao critério de fixação


da "opinio communis" (puramente quantitativo ou qualitativo, ou misto, quer
dizer, de uma maioria de autores qualificados por terem versado o assunto ex
professo), consultar Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., págs. 264 e segs., e
NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 211 e
segs.
(2) Cfr. Braga da Cruz, O direito subsidiário, cit., págs. 253 e segs.

312
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

do romanismo escolástico ('). Apenas no contexto das reformas


pombalinas, pelos fins de setecentos, o quadro das fontes de direito
sofreria alterações multifacetadas de vulto (2).

54. Reforma dos forais

Não terminaremos a análise das fontes de direito deste


período sem uma referência à reforma dos forais (3). Estes tinham
constituído uma importante fonte de direito local (4), mas, entre-
tanto, com o decurso do tempo, foram-se desactualizando. Uma
parte do seu conteúdo encontrava-se revogada pela legislação geral,
designadamente os preceitos respeitantes à administração, ao direito
e ao processo civil e ao direito penal. Mesmo quanto às normas
ainda vigentes, relativas aos encargos e isenções tributárias, era
manifesto o seu carácter obsoleto: por um lado, referiam-se a
pesos, medidas e moedas em desuso; por outro lado, as providências
estabelecidas com vista à actualização das prestações, mercê da
sucessiva desvalorização monetária, não raro originavam incertezas
e arbitrariedades. Muitos deles, além disso, apresentavam-se num
grande estado de deterioração ou não ofereciam garantias de
inteira autenticidade.
Em resumo, o progressivo robustecimento do poder do rei e a
uniformização jurídica, alcançada através da legislação geral, iam
determinando o declínio das instituições concelhias, bem nítido ao
longo do século XV. Daí que os forais perdessem o seu alcance
anterior e se transformassem em meros registos dos tributos dos
municípios. Simplesmente, numerosas cartas estavam cheias de
deturpações ou apenas obscurecidas pelo rodar dos anos.

(!) Ver, infra, págs. 320 e segs.


(2) Ver, infra, págs. 354 e segs.
(3) Consultar, com amplas indicações bibliográficas, M. J. Almeida
Costa, Forais, cit., in 'Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 280 e seg., e in
"Temas de História do Direito", págs. 54 e seg., e 57.
(4) Cfr., supra, págs. 187 e segs., 193, e 258 e segs.

313
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Nas Cortes de 1472/1473, iniciadas em Coimbra e concluídas


em Évora, os procuradores dos concelhos alegaram as deficiências
dos forais, solicitando a D. Afonso V a-sua reforma, para se pôr
cobro às opressões de que os povos eram vítimas. Idêntico pedido se
formulou nas Cortes de Évora e Viana do Alentejo, que decorre-
ram em 1481/1482, logo nos começos do reinado de D. João II.
Como resposta, este último monarca deu conta da decisão que
já tomara em tal sentido. E, de facto, por Carta Régia de 15 de
Dezembro de 1481, determinou-se o envio à Corte de todos os
forais, a fim de se proceder à respectiva reforma, sob pena de
perderem a validade.
Dado que a obra não se encontrava efectuada quando
D.
Manuel I subiu ao trono, voltaram os munícipes a solicitar essa
revisão, agora nas Cortes de Montemor-o-Novo, de 1495. Para que
a tarefa fosse levada a cabo, impôs o rei, em 1497, a remessa à
Corte dos forais ainda não entregues, ao mesmo tempo que
nomeou uma comissão de revisão composta por Rui Boto,
chanceler-mor, João Façanha e Fernão de Pina. Admite-se, tam-
bém, a colaboração de Rui da Grã.
De qualquer modo, a reforma ficou concluída em 1520.
Sur-
gem, assim, os forais novos ou manuelinos, por contraposição aos forais
velhos, que eram os anteriores (*). Quanto ao conteúdo, recorde-se
que os novos forais se limitaram a regular os encargos e tributos
devidos pelos concelhos ao rei e aos donatários das terras. Havia-se
encerrado a sua carreira como estatutos político-concelhios.

55. Humanismo jurídico

Antes de considerarmos o pensamento jurídico português


da
época, maxime a feição mental dos nossos jurisconsultos e o pano-
rama do ensino universitário do direito, impõe-se fazer referência

( ) Os forais, aliás, em número reduzido, concedidos depois da reforma de


D. Manuel I são chamados novíssimos.

314
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

ao contributo que o Humanismo e a Renascença trouxeram para a


evolução dos estudos romanísticos e canonísticos. Tanto entre nós
como no estrangeiro, a cultura jurídica continuava centrada nesses
dois sistemas jurídicos. Mantém-se a subalternidade do estudo do
direito pátrio, quer no âmbito universitário, quer fora dele.
E sabido que o Humanismo e a Renascença constituem dois
fenómenos marcantes da evolução do espírito europeu ( ). À restau-
ração erudita dos textos da antiguidade clássica, seguiram-se trans-
formações gerais nos campos das artes, das ciências, da cultura e da
filosofia. Estiveram subjacentes motivos políticos, religiosos, sociais
e económicos. Despontam ou acentuam-se, então, algumas das
ideias e estruturas que os tempos ulteriores haveriam de prosseguir
e consolidar. Não se insistirá nesses aspectos geralmente conhe-
cidos.
No âmbito do humanismo renascentista inclui-se, também,
uma natural revisão crítica da ciência do direito. Essa nova menta-
lidade enforma a orientação da chamada Escola dos Juristas Cultos,
Escola dos Jurisconsultos Humanistas, Escola Histórico-Crítica e,
ainda, Escola Cujaciana. O último nome deriva de Cujácio (Jacques
Cujas), considerado o mais alto expoente do humanismo jurídico ( ).

(') Quanto aos reflexos renascentistas gerais no nosso país, ver as contri-
buições importantes de Américo da Costa Ramalho, Estudos sobre a Época
do
Renascimento, Coimbra, 1969, Estudos sobre o Século XVI, 2.a ed., Lisboa, 1983, e
Para a História do Humanismo em Portugal, Coimbra, 1988, onde se encontra larga
bibliografia.
(?) Sobre o humanismo jurídico, pode ver-se o livro básico de
Domenico
Maffei, Gli inizi delVumanesimo giuridico, Milano, 1956 (3.a reimpressão, Milano,
1970). Entre nós, consultar NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Humanismo e
Direito
em Portugal no Século XVI, Lisboa, 1964. É valiosa a obra de Isaltina das
Dores
Figueiredo Martins, Bibliografia do Humanismo em Portugal no Século XVI,
Coimbra,
1986.
A respeito da cultura renascentista e dos seus reflexos no âmbito do
direito, bem como quanto ao humanismo jurídico, à produção científica dos seus
adeptos, à metodologia respectiva e à contraposição entre esta corrente e o bar-
tolismo, ver a bibliografia muito extensa indicada por Cavanna, Stor. dei dir.
mod. in Eur., cit., vol. I, págs. 640 e segs.

315
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

a) Causas do seu aparecimento. Características

A eclosão desta nova directiva do pensamento


jurídico
prende-se a dois factos essenciais. Um deles foi o progresso do
humanismo renascentista para que acabamos de chamar a atenção.
O outro consistiu na decadência, verificada durante a segunda
metade do século XV, da obra dos Comentadores (!).
Em contraste com os ideais propugnados pelos Humanistas,
assiste-se, com efeito, ao uso rotineiro do método escolástico. A
partir de certa altura, os Bartolistas limitam-se, via de regra, a
amontoar nos seus escritos uma série interminável de questões, dis-
tinções e subdistinções, ao lado de uma quase exclusiva citação das
opiniões dos autores precedentes.
Aliás, a normal impreparação e o menosprezo dos Comenta-
dores quanto aos aspectos históricos provocaram viva censura dos
espíritos cultos da época. A própria deselegância do seu estilo não
se tornava menos chocante. Desconheciam, em suma, as "bonae
litterae" que estavam na ordem do dia.
Eis o quadro em que surgiu o humanismo jurídico
quinhen-
tista. Começou a encarar-se o direito romano como uma das várias
manifestações da cultura clássica. Foram os juristas desta escola os
iniciadores do estudo crítico das fontes romanas, os primeiros que
procuraram detectar as interpolações nos textos justinianeus(2).
Não deve, porém, entender-se o humanismo jurídico como
um simples movimento cultural dominado pela filologia e a investi-
gação erudita das fontes que continham as normas do direito
romano ("studia humanitatis"). Convirá encará-lo num horizonte
mais rasgado, abrangendo o conjunto das correntes espirituais e

O Cfr., supra, págs. 238 e seg.


( ) Destacou-se na identificação de interpolações António Fabre
(1557/1624).

316
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

intelectuais, mormente os impulsos racionalistas e individualistas,


que definem esse período.
O humanismo jurídico desenvolveu-se, de facto, sob diversas
tendências: desde as filológico-críticas/ orientadas para o estudo e
reconstrução dos textos clássicos, até à que reivindicava a liberdade
e autonomia do jurista na exegese da lei, portanto perante a opi-
nião comum ou interpretação mais aceita. Em qualquer caso, o
postulado básico reportava-se ao livre exame das fontes romanas. E
esta atitude representou, sem dúvida, uma viragem profunda em
face do pensamento dos Comentadores.

b) Precursores e apogeu da escola

Pode dizer-se que foi com o italiano Alciato (1492/1550)


— geralmente considerado o fundador da Escola ( )—, o francês
Budé (1467/1540) e o alemão Zasio (1461/1535) que o humanismo
jurídico, pelos inícios do século XVI, começou a afirmar-se em ter-
mos de movimento europeu. A esse "grande triunvirato "(2), cabe
acrescentar o nome, também cimeiro, de António de Gouveia
(+1510/1566), natural de Beja e que cedo fez estudos em Paris.
Nunca mais regressaria. Passou o resto da vida como mestre presti-
giado de Universidades francesas e italianas (3).

(') Cfr. Calasso, Médio Evo dei Diritto, cit., vol. I, pág. 600, e
Cavanna,
Stor. dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, pág. 178.
(2) Na expressão de Maffei, Gli inizi, cit., pág. 126, igualmente assinalada
por Cavanna, Storia, cit., vol. I, pág. 178.
(3) Dos estudos, sobre este humanista, da autoria de J. Veríssimo
Serrão,
destacam-se António de Gouveia e a prioridade do método cujaciano do direito, in "Boi.
da Fac. de Dir.", cit., vol. XXVIII, págs. 181 e segs., e António de Gouveia e o seu
tempo (1510-1566), ibid., vols. XLII, págs. 25 e segs., e XLIII, págs. 1 e segs. Ver,
ainda, a "Introdução" de A. Moreira de SA na publicação bilingue dos textos
filosóficos de António de Gouveia, Comentário sobre as conclusões e Em defesa
de
Aristóteles contra as calúnias de Pedro Ramo (trad. de Miguel Pinto de
Meneses),

317
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Sabe-se que o ponto de partida da Escola dos Comentadores


se encontra em França, mas que esta conheceu a sua verdadeira
expressão na Itália (]). A Escola Humanista teve trajecto oposto:
surgiu uma primeira corrente filológico-crítica italiana (Vegio,
Valia, Poliziano), depois continuada e desenvolvida em França. Foi
neste país, com destaque para a Universidade de Bourges, onde
Alciato inaugurou o ensino do direito romano segundo a nova
metodologia (1527/1532), que o humanismo jurídico conseguiu
incremento decisivo. Seguir-se-ia a irradiação europeia, mais ou
menos bem sucedida, destacando-se a tendência que se caracteriza
pela autonomia interpretativa do jurista em face das normas legais.
Considera-se a época de Cujácio (1522/1590) como a do apogeu
da Escola Humanista. Nascido em Toulouse, tornou-se o jurista
representativo do século. Marca a sua obra extensa uma rigorosa
exegese histórica e filológica do direito romano, de que resultou a
consequente relativização deste.

c) Contraposição do humanismo ao bartolismo

Nem mesmo na França o humanismo jurídico conseguiu um


triunfo absoluto sobre o bartolismo. Países houve, como a Itália e a
Alemanha, em que esta última orientação continuou a predominar
claramente ( ). Um pouco por toda a Europa se levantaram vozes

Lisboa, 1966, págs. VII e segs., e uma síntese de Luís de Matos, Gouveia (António
de), in "Dic. de Hist. de Port.", cit., vol. II, págs. 363 e segs.
No que toca à amizade entre Cujácio e Gouveia (a quem o primeiro se
referia como "summus amicus meus"), ver J. Veríssimo SerrAo, António de
Gou-
veia e o seu tempo, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XLII, págs. 29, nota 1, e
160 e segs., designadamente pág. 182, nota 1.
(') Cfr., supra, págs. 236 e segs.
(2) Quanto à literatura jurídica do mos italicus, incluindo referências a juris-
tas portugueses, pode ver-se ErnstHolthófer, Literaturtypen des mos italicus in
der
europaischen Rechtsliteratur derfriihen Neuzeit (16.-18. Jahrhundert), in "Ius Commune",
cit., vol. II, págs. 130 e segs.

318
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANONIíA

defendendo os métodos tradicionais, com destaque para Alberico


Gentili, que foi professor em Oxford(*). Iria assistir-se, do século
XVI ao século XVIII, a um debate entre o método jurídico francês
("mos gallicus") e o método jurídico italiano ("mos italicus").
Tem-se destacado que os Humanistas se envolveram dema-
siado na especulação pura e que, por isso, construíram, sobretudo,
um "direito teórico", de tendência erudita, enquanto os processos
dos Comentadores levaram a um "direito prático", quer dizer, à
utilização do sistema romano com o espírito jurídico de encontrar
soluções para os casos concretos. Esta síntese do contraste das duas
escolas é, pelo menos, tendencialmente exacta. O programa do
"mos gallicus" apresentava-se, de qualquer modo, não só mais difí-
cil de executar, mercê da preparação científica que exigia, mas
também menos atractivo para a rotina forense.
Observa Koschaker o símile do latim ( ). O emprego apurado
desta língua, apanágio de pequenos círculos de pessoas cultas,
embora conseguisse provocar o descrédito do latim medieval cor-
rente, nunca logrou substituí-lo. Algo de paralelo se deu com o
humanismo jurídico.
Não é de excluir, aliás, que se tenha podido chegar a fórmulas
autóctones mais ou menos coincidentes com a do "mos gallicus",
posto que sem influência directa desta estrita corrente, antes como
resultado do movimento humanista geral. Sempre contaria, porém,
o sentido pragmático dos juristas de formação bartolista.
Cumpre o humanismo jurídico, em termos gerais, um ciclo
efémero. Não venceu os critérios enraizados. Contudo, lançaram-
-se inegáveis sementes que o setecentismo iluminista faria frutificar.

(') Ver o estudo consagrado de G. Astuti, "Mos italicus" e "Mos gallicus"


nei dialoghi "De iuris civilis interpretibus" di Alberigo Gentili, Bologna, 19.37.
(2) Cfr. Europa y el Derecho Romano, cit., págs. 174 e seg.

319
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

56. Literatura jurídica

a) Considerações gerais

Segue-se uma referência aos jurisconsultos que definiram o


pensamento jurídico português da época. IV[as interessará conhecer,
previamente, os reflexos que entre nós alcançaram as orientações
do "mos gallicus" e do "mos italicus", que dominavam, por então,
os horizontes do direito europeu.
O problema, de resto, deve ser visto sob dois ângulos: o da
adesão de um determinado número de juristas nacionais à Escola
Histórico-Crítica e o da sua influência na vida jurídica do País.
Trata-se de aspectos muito diversos.
Houve, indubitavelmente, juristas portugueses que aceitaram
com maior ou menor evidência os rumos do humanismo jurídico.
Todavia, conclui-se que tiveram, em regra, uma acção irrelevante
no quadro nacional, tanto numa perspectiva da construção cientí-
fica, como da realidade prática.
A orientação humanista ligada à corrente filológico-crítica
não transpôs as nossas fronteiras. Os portugueses educados no
humanismo jurídico de raiz italiana, sobretudo inspirado por
Alciato, ou não regressaram ao País (os casos de Henrique Caiado e
Luís Alvares Nogueira), ou, os que regressaram, nenhuma obra de
direito escreveram entre nós (como sucedeu com Luís Teixeira (') e
Martinho de Figueiredo).
O mesmo se passou com os juristas filiados na corrente fran-
cesa continuadora da italiana. António de Gouveia tornou-se um
autêntico estrangeiro; e quanto aos restantes portugueses que estu-
daram em França, alguns voltaram à pátria, mas tiveram também
uma reduzida importância (foi esse o destino de Diogo Mendes de

(') Ver NunoJ. Espinosa Gomes da Silva, Sobre os dois Doutores de


nome
Luís Teixeira, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 334, págs. 67 e segs., e
Giovanni
Minnucci/Leo Kosuta, Lo Studio di Siena nei secoli XIV-XVI, cit., págs. 283
e
segs.

320
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

Vasconcelos e Miguel de Cabedo) e até não faltou quem acabasse


desiludido com o humanismo (o exemplo de Soares da Ribeira).
No que diz respeito à orientação humanista que reinvidicava
fundamentalmente a liberdade e a autonomia interpretativa dos
textos, reconhece-se que não conseguiu uma sorte muito diversa: os
seus reflexos em Portugal foram esporádicos, apesar de se revesti-
rem de sensata e realista moderação (*). Parece lícito, em resumo,
acentuar o predomínio de juristas que combinaram, numa equili-
brada e apreciável medida, as vantagens práticas do método dos
Comentadores com as exigências eruditas e, sobretudo, com os pos-
tulados hermenêuticos devidos à modernidade humanista. Revela-
ram os jurisconsultos nacionais uma enorme mestria e senso jurídico
de cientistas práticos, ao conciliarem a visão dogmática e a visão
histórica. Entre outros, devem referir-se os nomes de Manuel da
Costa, Aires Pinhel e Heitor Rodrigues; acrescente-se, no âmbito
dos canonistas, Bartolomeu Filipe. Todos eles, de resto, apenas
estudaram e ensinaram aquém-Pirenéus.
Postas estas considerações introdutórias, vejamos os principais
jurisconsultos portugueses do século XVI aos meados do sé-
culo XVIII. Costumam sistematizar-se em três categorias básicas: a
dos civilistas, ou seja, dos que se dedicavam aq, estudo do direito
romano, a dos canonistas e a dos cultores do direito pátrio, estes últimos
predominando com o avanço do tempo. Observe-se, todavia, que a
distinção se mostra, por vezes, imperfeita ou, de certo modo, artifi-
cial, pois não faltam juristas que se notabilizaram em mais do que
um desses sectores (2).

(')A respeito do tema, pode consultar-se a larga exposição de NunoJ.


Espinosa Gomes da Silva, Humanismo e Dirdto em Portugal no Século XVI,
cit.,
especialmente págs. 81 e segs., e 353 e segs.
(2) Sobre os juristas desta época, ver Diogo Barbosa Machado,
Biblioteca
Lusitana, cit., António Barnabé de Elescano, Demétrio Moderno ou o
Bibliografo
Jurídico Portuguez, Lisboa, 1781, embora os seus dados nem sempre sejam dignos de
inteiro crédito, Mello Freire, Historiae iuris civilis lusitani. liber singularis, cit., §§
CXIII e segs., CAndido Mendes de Almeida, na sua ed. das Ordenações
Filipi-

321
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

b) Civilistas

Acabámos de mencionar alguns destacados jurisconsultos que


se aplicaram ao estudo do direito romano e cuja obra se caracteri-
zou por uma equilibrada posição entre as duas correntes dominan-
tes além-fronteiras(1). Apontaram-se os nomes de Manuel da
Costa, cognominado "doctor subtilis", Aires Pinhel e Heitor
Rodrigues, que foram professores em Coimbra e Salamanca.
Nessa linha de semi-heterodoxia se situam, de facto, os juris-
tas portugueses da época, embora se possam observar certas prefe-
rências para uma ou outra orientação. Assim, nos fins do século xvi
e princípios do século xvn, Pedro Barbosa, que ficou conhecido
como "doctor insignis", Francisco de Caldas Pereira e Castro,
Eduardo Caldeira e João Altamirano. Os dois primeiros afiguram-
-se mais aderentes à metodologia prática dos Comentadores,
enquanto os dois últimos propendiam para os métodos humanistas.
No campo específico do direito comercial e marítimo, sobres-
sai Pedro de Santarém, autor pioneiro de um tratado sistemático
sobre seguros. Adquiriu fama europeia. A primeira edição dessa
obra é de Veneza, com a data de 1552, mas o trabalho encontrava-
-se concluído em 1488. Constitui um enigma o motivo por que
demorou a sua publicação, tanto mais que não deve ter circulado
manuscrito ( ).

nas, cit., liv. I, págs. XLVII e segs., e no Auxiliar Jurídico, cit., vol. II, págs. 603 e
segs., e, mais recentemente, J.-H. Scholz, Legislação e Jurisprudência em Portugal nos
Sécs. XVI a XVIII, cit., in "Scientia Ivridica", tomo XXV, págs. 512 e segs.
(') Essa orientação foi também a de eminentes juristas espanhóis, como
Diego de Covarrubias. Do mesmo modo, em torno da Universidade de Basileia,
Amerbach realizou uma síntese feliz entre o "mos italicus" e o "mos gallicus",
que teve importância duradoura no direito suíço (ver Guido Kisch, Humanismus
undJurisprudenz. Der Kampf zwischen "mos italicus" und "mos gallicus" an der Universi-
tit Basel, Basel, 1955).
(2) O título da edição "princeps" é De assecurationibus et sponsionibus mercato-
rum, embora o texto manuscrito se designe De securitatibus et sponsionibus mercato-

322
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA

c) Canonistas

Também existiram, entre nós, nesta época, canonistas


de
grande mérito. Recorde-se que o ensino do direito canónico tinha
uma expressão universitária paralela à do direito romano.
Como figura destacada surge, no século XVI, Martin de
Azpil-
cueta(1), conhecido por Doutor Navarro, em consequência de ser
natural dessa região espanhola. Azpilcueta encontra-se ligado à cul-
tura jurídica portuguesa, visto que muito consolidou o seu prestígio
durante a permanência em Coimbra, após se ter aí instalado a
Universidade. Era,.ao tempo, o professor com remuneração mais
elevada.
De entre os canonistas de nacionalidade portuguesa, salien-
tam-se Bartolomeu Filipe, talvez o de maior renome, Fernando
Paes, Pedro Afonso de Vasconcelos e Gonçalo Mendes de Vascon-
celos Cabedo. Todos estes deixaram obra impressa valiosa. No
século XVII, surgem, além de outros, Agostinho Barbosa e Manuel
Temudo da Fonseca.

d) Cultores do direito pátrio

Os jurisconsultos portugueses do ciclo em apreço também se


dedicaram largamente, como era natural, ao direito pátrio. O seu

rum. Ver, por todos, DomenicoMaffei, IIgiuresconsulto portoghese Pedro de Santarém


autore dei primo trattato sulle assicurazioni (1488), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
LVIII, tomo I, págs. 703 e segs. Facilita a consulta da obra a sua reedição, em
Lisboa, no ano de 1961, com versões portuguesa, inglesa e francesa, precedidas de
um prefácio de Ruy E. Ulrich e de um breve estudo de Moses B. Amzalak.
Ver, ainda, Santos M. Coronas González, El concepto de seguro en la
doctrina
mercantilista de los siglos XVI y XVII, in "Boletín semestral de Derecho privado
especial, histórico y comparado dei Archivo de la Biblioteca Ferran Valls i
Taberner" n.° 1/2 — "Orlandis 70: Estúdios de Derecho Privado y Penal
Romano, Feudal y Burguês", Barcelona, 1988, págs. 243 e segs.
(') É interessante a consulta de MartIn de Azpilcueta, Comentário
Resolu-
torio de Câmbios (introducción y texto crítico por Alberto Ullastres/José
M.
Pêrez-Prendes/Luciano PereNa), Madrid, 1965 (vol. IV do "Corpus
Hispano-
rum de Pace").

323
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

estudo começou a predominar desde o século XVII, numa clara


antecipação ao ensino universitário, que só o acolheria com as
reformas pombalinas.
Podem classificar-se essas obras em três categorias diversas,
aliás, inspiradas na ciência do direito comum: a dos comentários às
Ordenações e a leis extravagantes; a das que se ocupavam da expo-
sição e resolução de casos concretos, reais ou figurados; e a das que
versavam a prática forense e mesmo notarial. Em consonância, os
autores designam-se, respectivamente, comentadores, casuistas e praxis-
tas. O último qualificativo, entretanto, "aparece utilizado, algumas
vezes, num sentido amplo, como sinónimo de reinícolas, ou seja,
abrangendo todos os nossos antigos jurisconsultos, sem atender à
natureza da sua produção científica.
O tríptico referido concentra os principais géneros da litera-
tura jurídica dedicada ao direito nacional. Todavia, não é exaus-
tivo. Também se produziram, entre nós, estudos monográficos res-
peitantes a temas de direito português, sob a forma de tratados
sistemáticos ( ). Caberá aludir, correspondentemente, a tratadistas.
Não devem, por último, esquecer-se os repertórios. Consistiam em
obras que, a respeito dos vários temas, dispostos por ordem alfabé-
tica, indicavam as normas, os arestos e as referências doutrinais
pertinentes.
Quanto aos comentadores, que se dedicaram à interpretação das
Ordenações e de outras leis pátrias, importa assinalar posto desta-
cado a Manuel Barbosa, advogado da Relação do Porto. Foi o
primeiro anotador das Ordenações que levou essa tarefa a cabo ( ).
O canonista Agostinho Barbosa, seu filho, prosseguiu a obra. Pelos

(') Sobre a origem do tratado ("tractatus"), no âmbito do direito comum,


ver, supra, págs. 217 e seg.
(2) As suas Remissiones Doctorum ad contractus, ultimas voluntates et delida spec-
tantes in libris IV et V Constitutionum Regiarum Lusitaniae (Lisboa, 1618) e Remissiones
Doctorum Officiis publicis, jurisdictione et ordine judiciário in earumdem lib. I, II et III, etc.
(Lisboa, 1620).

324
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

fins do século xvil, surge o extenso e muito utilizado comentário às


Ordenações da autoria de Manuel Álvares Pegas, em catorze
volumes (*). Este trabalho, que ficou incompleto, teve como conti-
nuadores Manuel Gonçalves da Silva (2) e Amaro Luís de Lima ( ).
A casuística constituiu um dos ramos mais cultivados da litera-
tura jurídica. As obras do género recebiam, em regra, os títulos de
"decisões", "consultas" e "alegações", nelas se coligindo casos con-
cretos, extraídos de arestos dos tribunais superiores, de consultas a
advogados famosos ou apenas imaginados pelos seus autores, com
indicação conclusiva das soluções consideradas preferíveis. Lembram-
-se, dos casuístas de maior renome, António da Gama( ), Álvaro
Vaz, geralmente conhecido por Valasco (5), Jorge de Cabedo, um
dos compiladores das Ordenações Filipinas (6), Gabriel Pereira de
Castro(7), Belchior Febo(8) e Miguel de Reinoso( ).
Também importante foi o grupo dos praxistas, que se ocupa-
vam da prática — a chamada "praxe" — forense e notarial(10).

(') Comentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae (Lisboa, 1669/1703 e 1759).


(2) Commentaria ad Ordinationes (Lisboa, 1731/1740).
(3) Commentaria ad Ordinationem regni Portugaliae (Lisboa, 1761).
(4) Decisiones Supremi Senatus Regni Lusitaniae, etc, (Lisboa, 1578).
(5) Consultationum et Decisionum, ac rerum judicatarum (Lisboa, 1588).
(6) Praticarum observationum sive decisionum Supremi Senatus Regni Lusitaniae
(Lisboa, 1602). Cfr., supra, pág. 285.
( ) Decisiones supremi eminentissimique Senatus Portugaliae (Lisboa 1603).
(8) Decisiones Senatus Regni Lusitaniae (Lisboa 1616 e 1625).
» (9) Observationes praticae in quibus multa, quae in controversiam in forensibus Judiais
adducantur, felici stylo pertractantur (Lisboa, 1625).
(l )Embora tenha índole específica, recorda-se o interessante livro de
Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus Advocatus (Lisboa, 1743), relativo a essa
pro-
fissão forense. Existe uma tradução portuguesa com o título O Perfeito Advogado
(Lisboa, 1969), da autoria de Miguel Pinto de Meneses (sep. do "Boi. do
Min.
da Just.", cit., n.os 180, 181 e 183/186). A obra consta de duas partes: na primeira,
a única que está traduzida, desenvolvem-se considerações de vária natureza sobre
a profissão forense, terminando com um sumário dos preceitos legais que ao
tempo a disciplinavam (capítulo LIV); na segunda parte, encontram-se diversas
decisões e consultas consideradas úteis para a formação do advogado.

325
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Salientam-se Gregório Martins Caminha ('), Manuel Mendes de


Castro, cuja obra foi talvez a melhor e a mais difundida do
género (2), e Manuel Lopes Ferreira ( ).
Por sua vez, registam-se os juristas que aplicaram o método
monográfico-sistemático ao estudo de institutos do direito nacional.
Eram os tratadistas. Ocorre, de novo, o nome de Valasco, que escre-
veu tratados relativos à enfiteuse e às partilhas (4). Exemplifica-se,
ainda, com Francisco Pinheiro (5), Gabriel Pereira de Castro, que se
ocupou das relações entre a Igreja e o Estado (6), e Domingos
Antunes Portugal, cujo livro valioso sobre as doações régias
reflecte as doutrinas do direito público da época (7).
Resta mencionar, finalmente, os autores de repertórios. Tais obras
seriam, de certo modo, consideradas menores. Tiveram, contudo,
uma enorme importância prática, não só em virtude do sistema
deficiente das próprias Ordenações e da numerosa legislação avulsa
que as envolvia, mas também por facilitarem o conhecimento da

( ) Tractado da forma dos libellos. E da forma das allegações judiciaes. E da forma de


proceder no juizo secular e ecclesiastico. E da forma dos contractos: com sua glosa e cotas de
direito (Coimbra, 1549). Obra continuada por JoAo Martins da Costa.
(2) Pratica Lusitana omnibus utroque Foro versantibus, utilíssima et necessária (Lis-
boa, 1619).
(3) Pratica criminal expendida na forma da praxe observada neste nosso Reino, etc.
(Lisboa, 1730).
(4) Quaestionum Iuris Emphyteutici (Lisboa, 1591) e Praxis Partitionum et Colla-
tionum inter haeredes (Coimbra, 1605).
(5) De Censu et Emphyteusi (Coimbra, 1655).
(6) Tractatus de manu regia (Lisboa, 1622/1625).
(7) Tractatus de Donationibus Regiis Iurium et Bonorum Regiae Coronae (Lisboa,
1673). A respeito de Domingos Antunes Portugal e da sua intervenção no capí-
tulo do direito internacional público, designadamete propósito do problema da
liberdade do mar, veja-se Vicente L. Simó Santonja, Escuela Portuguesa dei
Dere-
cho Internacional. Siglo XVII: Domingos Antunes Portugal, Valência, 1973, págs. 87 e
segs.

326
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA

jurisprudência e da doutrina, que assumiam um relevo especial no


quadro da época (J). Indicam-se, entre muitos outros, os repertórios
de Duarte Nunes do Lião (2) e de Manuel Mendes de Castro (3).

57. O ensino do direito

Apreciou-se, em traços largos, a produção científica dos juris-


consultos nacionais, desde q século XVI até aos meados do século
XVIII. O panorama da cultura jurídica portuguesa da época com-
porta, ainda, uma análise do ensino do direito na Universidade.
Também se fará apenas uma breve resenha ( ).

a) Antes de D. João III

Verdadeiramente, o ensino jurídico, no nosso país, recua à


fundação do Estudo Geral dionisiano. Já se observou que a bula de
confirmação pontifícia, de 9 de Agosto de 1290, logo alude à obten-
ção de graus académicos em direito canónico e direito romano (5).
Estes incluem-se, portanto, entre os domínios do ensino universitá-
rio português com mais longa tradição.

(*) Como sublinha, por ex., AntónioManuelHespanha, História das


Insti-
tuições, cit., págs. 522 e seg.
( ) Repertório dos cinquo livros das Ordenações com addições das leis extravagantes
(Lisboa, 1560), reproduzido em fac-símile juntamente com a Colecção das Leis
Extravagantes (Lisboa, 1987) (cfr., supra, págs. 281, nota 3, e 284, nota 1).
( ) Repertório das Ordenações do Reino de Portugal novamente recopiladas, com as
remissões dos Doutores todos do Reino, que as declararão, e concórdia das Leis de Partida de
Castella (Coimbra, 1699).
(4) Ver M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones, Direito (Faculdades de), cit.,
in
"Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 677 e segs., onde se encontram indicações
bibliográficas. Sobre o ensino universitário em geral, remete-se, de novo, para o
livro de MArio BrandAo/M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra.
Esboço
da sua História, Coimbra, 1937.
(5) Cfr., supra, págs. 228 e segs.

327
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Todavia, a respeito do período que decorre até D. João III,


não existem conhecimentos pormenorizados. D. Dinis determinou
que houvesse dois lentes de Cânones (um doutor "in Decretis" e
um mestre "in Decretalibus") e um professor de Leis. Mas parece
que só funcionou uma cátedra em cada um dos referidos ramos
jurídicos. Isto porque, depois, apenas voltou a mencionar-se um
único mestre de Cânones. Aliás, a Universidade encontrava-se, a
princípio, composta de simples "cadeiras" e não de autênticas
"Faculdades" no sentido moderno.
A importância relativa que, ao tempo, o ensino das Leis e dos
Cânones possuía no âmbito universitário poderá entrever-se através
das remunerações atribuídas aos respectivos professores, muito mais
elevadas do que as dos restantes. Um tal predomínio do ensino
jurídico, decerto por ser também o mais frequentado, revela-se,
ainda, quando se encara o problema do lado dos estudantes, a pro-
pósito da eleição dos reitores. Entre nós, até aos fins do século xv,
manteve-se o sistema do duplo reitorado, como se verificava em
todas as escolas de tipo bolonhês: os reitores eram dois estudantes
eleitos anualmente pelos seus condiscípulos. Ora, um deles teria de
sair dos escolares de Leis e o outro dos de Cânones.
Tanto D. João II como D. Manuel I procuraram melhorar
o
nível dos nossos estudos superiores, chamando às cátedras da Uni-
versidade alguns professores estrangeiros de nomeada e proporcio-
nando subsídios pecuniários aos estudantes que pretendessem
deslocar-se aos centros culturais de além-fronteiras. D. Manuel, nos
começos de quinhentos, concedeu estatutos à Universidade, que
representam fundamentalmente uma simples codificação dos pre-
ceitos em vigor nos fins do século XV. Esses estatutos testemunham
a existência de três cátedras remuneradas de Cânones e outras tan-
tas de Leis. Mas o mesmo monarca viria a criar uma nova cátedra
de Cânones (a de "Sexto").
O exíguo corpo docente da Universidade, ao longo deste pri-
meiro ciclo da sua existência, apenas causará estranheza a quem,
impressionado pelas realidades modernas, perca de vista os reduzi-
dos limites do ensino medieval, não só quanto ao âmbito das maté-

328
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

rias professadas, mas também a respeito do número de escolares.


Contudo, devem ter existido, ao lado daqueles professores ordiná-
rios, outros professores que ensinariam gratuitamente, à procura de
fama e na expectativa de mais tarde concorrerem com êxito às
cátedras vagas. Acresce, ainda, a colaboração de numerosos escola-
res que, para alcançarem graus académicos, tinham de "ler" publi-
camente durante determinados anos. Desempenharam, sem dúvida,
um papel importante os "repetidores", auxiliares dos mestres, com
funções análogas às dos actuais assistentes.
Em texto de 1431 aparecem já expressos os graus universitá-
rios de bacharel, de licenciado e de doutor (*). O primeiro era con-
ferido aos que, depois de concluída a instrução preparatória da
Gramática e da Lógica, cursavam as aulas de uma das Faculdades
durante três anos, cada um de oito meses lectivos, e seguidamente
defendiam umas "conclusões" em acto público. Os bacharéis que
desejassem a licenciatura — o grau académico mais difícil de
obter — estavam obrigados a uma frequência complementar de
quatro anos, antes de se submeterem aos respectivos exames. A
colação do grau de doutor, um acto essencialmente solene onde as
provas assumiam importância reduzida, revestia-se de grande
aparato.
Os textos e os métodos adoptados no ensino foram, sem
dúvida, os mesmos que, sob inspiração italiana, por toda a parte,
serviram de base aos estudos romanísticos e canonísticos medievais.
Não admirará, porém, que a escola nacional estivesse ainda longe
de poder rivalizar com o prestígio do ensino jurídico de certas Uni-
versidades estrangeiras, maxitne transalpinas, que continuaram,
durante os séculos XIV e XV, a atrair numerosos estudantes
portugueses.

(') No referido regulamento de 1431 apenas se tratou do regime de


exames e dos graus. Ver, sobre o seu conteúdo, Mário BrandAo/M. Lopes
de
Almeida, A Universidade de Coimbra, cit., parte I, págs. 132 e segs.

329
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

b) Instalação da Universidade em Coimbra

A sede da Universidade, como não se ignora, oscilou entre


Lisboa e Coimbra, desde a sua criação até D. João III ( ). Foi este
rei que a fixou definitivamente em Coimbra, no ano de 1537. A
razão decisiva terá sido a de promover uma reforma profunda do
ensino universitário, na sequência dos esforços empreendidos pelos
dois monarcas que o precederam e a que já se aludiu.
Impunha-se, de facto, organizar um ensino digno dos tempos
renascentistas. Entrara-se abertamente no caminho da europeiza-
ção. E a atitude ge^ral de D. João III não diferiu a respeito das Facul-
dades de Leis e de Cânones. Muitos professores viram-se exonera-
dos (2), passando para Coimbra apenas os que mereciam crédito
científico. Gonçalo Vaz Pinto, a quem os seus contemporâneos dis-
pensavam grande consideração, foi o único lente de Leis distinguido
com esse privilégio.
Em contrapartida, depositaram-se fortes esperanças na acção
dos mestres trazidos do estrangeiro. Recordemos o famoso cano-
nista Martin de Azpilcueta(3), arrancado à Universidade de Sala-
manca a peso de ouro e graças à intervenção de Carlos V, e os
civilistas Fábio Arcas de Narni e Ascânio Escoto(4). Este último
fora recomendado pelo célebre humanista milanês Andrea
Alciato(5), que, embora sem êxito, também se tentou atrair ao
nosso país.

(') Cfr., supra, pág. 230, nota 5.


( ) Determinou-se, no entanto, que esses professores recebessem tenças
proporcionais aos ordenados (cfr. Mário Brandão/M. Lopes de
Almeida, A
Universidade de Coimbra, cit., parte I, nota 4 da pág. 176).
(3) Cfr., supra, pág. 323.
( ) Quanto ao valor relativo destes juristas italianos e ao juízo sobre eles
emitido por Martinho de Azpilcueta, cuja modéstia não era um dos seus atribu-
tos, ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Humanismo e Direito, cit., págs. 236
e
segs.
(5) Cfr., supra, págs. 317 e seg.

330
canon
ista
Barto
lomeu
Filip
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO e
ROMANO-CANÓN1CA (2),
espír
ito
bem
Por outro lado, corifiaram-se algumas
incli
cátedras a portugueses
nado
que tinham estudado no estrangeiro e que aí se para
notabilizaram. os
Assim sucedeu com Manuel da Costa, Aires Pinhel e novos
Heitor Rodri- rumos
gues ( ), diplomados em Salamanca, onde, aliás, que,
viriam mais tarde a ao
regressar, desfalcando muitíssimo o ensino tempo
conimbricense. Ainda ,
neste grupo, não deve esquecer-se o orien
tavam o primeiro diploma completo de regu-
a lamentos sobre os vários aspectos da vida interna
ciênc da Universidade.
ia D. João III (1544) introduziu-lhes algumas
juríd alterações, às quais suce-
ica.
deram outras reformas dos reinados de D. Sebastião
(1559, 1565 e
1567) (3) e de Filipe I (1592 e 1598), posto que
todas estas modifica-
ções quase nunca tenham atingido a estrutura do
ensino e a corres-
c)
Organi pondente actividade científica. Finalmente, os
zação Estatutos Filipinos de
dos 1598, conhecidos como Sétimos Estudos, depois de
estudo revistos e con-
s firmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados
jurídi por D. João IV
cos (1653) (4), mantiveram-se em vigor até à reforma
segund pombalina. Rece-
o os bem o nome de "Estatutos Velhos", em
"Estat contraposição aos chamados
utos
"Estatutos Novos" de 1772.
Velhos
"

J
(') Cfr., supra, págs. 321 e seg.
Até (2) Cfr., supra, págs. 321 e 323.
bastan (3) A respeito dos Estatutos de 1559, ver Serafim Leite,
te Estatutos da Univer-
tarde, sidade de Coimbra (1559). Com introdução e notas históricas e
a críticas, Coimbra, 1963.
legisl (4) Ver Estatutos da Universidade de Coimbra (1653),
ação Coimbra, 1987 (ed. fac-
univer -similada, com uma nota introdutória de Aníbal Pinto de
sitári Castro, págs. VII e
a não segs.). Existe na Biblioteca Geral da Universidade de
esteve Coimbra um manuscrito
siste- da anterior versão filipina dos Estatutos da Universidade (Man.
matiz 1002).
ada
numa
única
carta
orgân
ica.
Parec
e
que
os
Estat
utos
Manue
linos
repre
senta
ram
4—
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

É nesses Estatutos Velhos que nos basearemos para tomar


conhecimento mais pormenorizado da maneira como se fazia o
ensino do direito na Universidade. Existiam, em suma, duas Facul-
dades jurídicas: a de Cânones e a de Leis, onde se explicavam, res-
pectivamente, o Corpus Iuris Canonici e o Corpus Iuris Civilis(l).
A Faculdade de Cânones compreendia sete cadeiras: cinco
cátedras ou cadeiras maiores e duas catedrilhas ou cadeiras meno-
res ( ). Entre as primeiras, contavam-se duas cadeiras de Decretais
(a de prima e a de véspera), uma de Decreto (a de terça) e uma de
Sexto (a de noa)(3). Sem designação canónica, surgiam, ainda, uma
cátedra de Clementinas, que se lia depois do Decreto, e duas cate-
drilhas de Decretais, uma delas professada de manhã, à hora a que

(x) Sobre o calendário, as lições, os programas e os métodos da Universi-


dade de Bolonha, ver Manlio Bellomo, Saggio sull'università, cit., págs. 200 e segs.
(2) Estatutos, liv. III, tít. 5, §§ 7/13 (na ed. fac-similada, cit., págs. 142 e
seg.).
( ) Essas designações das cadeiras derivaram das horas canónicas do ofício
divino em que se ministravam. As aulas, ressalvada qualquer alteração devida às
cerimónias quaresmais ou a outro acto litúrgico, decorriam com regularidade.
No entanto, via de regra, as lições tomavam as horas canónicas apenas como
pontos de referência, sem uma sobreposição exacta. Assim: a de prima era ao
romper da manhã, seguindo-se-lhe a de terça ("tertia"); da parte da tarde,
retomavam-se as lições com a de noa ("nona") e encerravam-se com a de véspera
ou, ainda, com uma aula pós-vespertina, pelo cair do dia. Os próprios Estatutos
(liv. III, tít. 11, § 1—na ed. fac-similada, cit., págs. 164 e seg.) determinavam
que as lições de prima, desde a abertura do ano lectivo até à véspera do Domingo
de Ramos, começassem às "sete horas e mea", e, da Páscoa em diante, às "seis
horas e mea", bem como que a docência da tarde, iniciada com a cadeira de noa,
começasse, até ao dia 11 de Março, às "duas horas depois do meo dia", e, a
partir dessa data, às "trez horas". Tais indicações, ligadas à referida sequência
das cadeiras e à duração das aulas (ver, infra, pág. 334), permitem deduzir o horá-
rio de todas elas. Observe-se, a título de curiosidade, que a lição de prima de
Medicina se iniciava, tanto no Inverno como no Verão, uma hora após a da
correspondente cadeira das restantes Faculdades, "per rezão da practica do Hos-
pital, que ha de auer neste tempo" (Estatutos, liv. III, tít. 11, § 1—na ed. fac-
-similada, cit., pág. 165).

332
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

se liam as Clementinas, e a outra depois da lição de véspera. Res-


salta, deste elenco, a relevância atribuída às Decretais quanto ao
ensino dos Cânones (!).
Na Faculdade de Leis, por sua vez, as oito cadeiras nela inte-
gradas (2) correspondiam às diferentes partes em que os Glosadores
dividiram as compilações justinianeias(3). A cátedra de prima era
destinada ao Digesto Esforçado, a de véspera ao Digesto Novo, a de
terça ao Digesto Velho e a de noa aos Três Livros do Código. Havia,
além disso, duas catedrilhas de Código, uma que se lia depois do
Digesto Velho e outra após a lição de Véspera, e mais duas de
Instituições ("Instituía"), uma à hora de terça e outra antes da aula
de véspera.
O esquema do ensino, de raiz escolástica, era fundamental-
mente o mesmo nas duas Faculdades: o professor lia ( ) os passos do
Corpus Iuris Canonici ou do Corpus Iuris Civilis e, em seguida,
comentava-os, expondo as opiniões e os argumentos considerados fal-
sos e os considerados verdadeiros, refutando, depois, aquelas razões
contrárias, sempre estabelecendo confronto com outros textos e
concluindo, finalmente, pela interpretação tida como mais razoá-
vel. Vivia-se sob o império absoluto dos autores consagrados, que
definiam a opinião comum.
A este respeito, verificou-se, no período imediato à instalação
da Universidade em Coimbra, uma certa abertura às ideias do
humanismo jurídico, que eram adversas ao predomínio da autori-
dade. As instruções régias relativas ao modo como deveria
ministrar-se o ensino apontavam claramente para uma maior liber-

(') Sobre as colecções canónicas que compunham o Corpus Iuris Canonici,


ver, supra, págs. 244 e segs.
(2) Estatutos, liv. III, tít. 5, §§ 14/19 (na ed. fac-similada, cit., pág. 143).
(3) Cfr., supra, págs. 212 e seg.
(4) Daí o nome tradicional de "lente" (isto é, o que lê) dado ao professor
universitário. Entendendo-se, todavia, a "leitura" dos textos romanísticos ou
canonísticos no sentido amplo que abrange a sua explicação.

333
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dade interpretativa do jurista, pois combatiam as tradicionais longas


citações de argumentos e de autores. Simultaneamente, procurava-
-se impedir uma análise excessiva e dispersiva dos textos, que pre-
judicaria a extensão das matérias versadas durante o tempo lectivo.
Porém, o surto foi muito fugaz. Não sobreviveu ao desapare-
cimento de uns tantos mestres mais progressivos e à nova decadên-
cia dos nossos estudos universitários, pouco depois de dobrada a
primeira metade do século xvi: então, os métodos bartolistas reto-
mam a sua mal interrompida carreira.
Utilizava-se nas aulas, obrigatoriamente, a língua latina (*). O
ano lectivo decorria entre o princípio de Outubro e o termo de
Julho (2). As aulas eram diárias, com o tempo de uma hora, excepto
as lições de prima, que tinham a duração de hora e meia(3).
Ao fim de seis anos, os estudantes recebiam o grau de bacha-
rel (bacharéis correntes) (4), mas a formatura apenas se obtinha
depois de oito anos de curso (bacharéis formados) (5). Sem o acto
de formatura, como determinavam os Estatutos, "nenhum Letrado
pode uzar de suas letras"( ).

(l) Estatutos, liv. III, tít. 11, § 10 (na ed. fac-similada, cit., pág. 166), onde
se determina: "Todos os Lentes lerão em Latim suas lições, sob pena de cem reis
por cada vez".
(2) Estatutos, liv. III, tít. 11, pr. (na ed. fac-similada, cit., pág. 164). Aí se
preceitua: "Os Lentes de todas as faculdades, começarão a ler o segundo dia de
Outubro, porque no primeiro se ha de fazer o Principio: & sendo Domingo, se
fará no seguinte: & continuarão suas lições até o fim do mez de Julho: & somente
guardarão as festas da Igreja, ou constituições do Bispado, & as mais que no
titulo dos Bedéis são declaradas".
(3) Estatutos, liv. III, tít. 11, § 1 (na ed. fac-similada, cit., pág. 164).
(4) Estatutos, liv. III, tít. 44, pr. (na ed. fac-similada, cit., pág. 213).
(5) Estatutos, liv. III, tít. 44, § 9 (na ed. fac-similada, cit., págs. 215 e seg.).
(6) Estatutos, liv. III, tít. 44, § 8 (na ed. fac-similada, cit., pág. 215).

334
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕN1CA

58. A segunda Escolástica. Seus contributos jurídicos e políticos

Considera-se, por último, a influência da neo-Escolástica ou,


como parece preferível qualificar essa corrente, da segunda Escolás-
tica, no âmbito do direito e do Estado. É, ainda, um tema que se
relaciona com o pensamento jurídico da época.
A especulação filosófica sobre o direito e o Estado apenas se
tornou disciplina autónoma, entre nós, pelos fins do século xvm ( ).
Tradicionalmente, tinha lugar em conjunto com a filosofia geral, a
teologia e, inclusive, o direito canónico. Tanto no nosso país como
em Espanha, eram os teólogos e os canonistas que, via de regra, se
dedicavam a tais problemas. Só raro ultrapassaram esses limites.
O ciclo que decorre do Renascimento ao Iluminismo
apresenta-se como uma típica fase de transição em matéria de filo-
sofia do direito e do Estado. Nele se verifica o progresso das ideias
hu
manistas, das quais as últimas ilações viriam a ser tiradas pelo
pensamento setecentista. Assim sucedeu com o jusracionalismo da
chamada Escola do Direito Natural, que predominou, essencial-
mente, na Holanda, Inglaterra e Alemanha(2).
Mas, por outro lado, aquém-Pirenéus, a segunda Escolástica
teve uma influência marcante na cultura dos séculos xvi e xvil.
Correspondeu à necessidade de repensar a compreensão cristã do
homem e da convivência humana — portanto, envolvendo o direito
e o Estado — em face da conjuntura do tempo, que patenteava
candentes aspectos políticos, sociais e económicos, ao lado das
ideias humanistas e da reforma religiosa. Ora, a especulação
teológico-jurídica da segunda Escolástica conseguiu uma abertura

(') Ver L. Cabral de Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do


Direito em Portugal (Í772-Í9ÍÍ), Coimbra, 1938, págs. 1 e seg. (sep. do "Boi. da
Fac. de Dir.", cit., vols. XIV e XV).
(2) Podem consultar-se as considerações gerais de L. Cabral de Mon-
cada, Filosofia do Direito e do Estado, cit., vol. I, págs. 25 e segs. Sobre a referida
escola jusracionalista, ver, infra, págs. 345 e segs.

335
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

ampla aos novos problemas e soluções, dentro de uma coerência


firme aos postulados tomistas essenciais.
Durante o período considerado, os estudos de filosofia jurídica
e política atingiram, de facto, um incremento notável na Península.
Os teólogos espanhóis construíram uma obra de grande significado.
Daí a corrente que se denomina Escola Espanhola do Direito Natu-
ral. Também participaram nesse movimento vários pensadores por-
tugueses de vulto e, de qualquer modo, autores e ideias circularam
pelos dois países. Não parece excessivo, portanto, falar-se numa
Escola Peninsular de Direito Natural (]), que teria repercussões na
Europa transpirenaica.
Esta corrente caracterizou-se, antes de tudo, pela sua posição
jusnaruralista ( ). Reafirmaram-se o direito e o Estado metafísica e
ontologicamente alicerçados numa concepção teocêntrica. E, a par-
tir da existência de tal ordem jurídica superior, os teólogos-juristas
aferem o direito positivo.
Trouxeram contributos muito relevantes para a edificação ou
o desenvolvimento de diversos sectores, desde a teoria do Estado e
a ciência jus-internacionalista até à atenção dispensada ao direito
penal (3) e à elaboração de categorias dogmáticas modernas do

(*) Não se afigura que algumas especificidades justifiquem uma autonomia


do pensamento português do século XVII em relação ao dos autores do país
vizinho. Sugere essa hipótese Vicente Simó Santonja, Escuela Portuguesa dei
Dere-
cho Internacional, cit., pág. 115.
(2) Ver Hans Thieme, El significado de los grandes juristas y teólogos espaíhles dei
siglo XVI para el desenvolvimiento dei Derecho natural, in "Revista de Derecho Pri-
vado", cit., tomo XXXVIII, págs. 597 e segs.
(3) Por exemplo, a respeito da doutrina sobre o homicídio, a lesão corporal, a
pena de morte, o direito de punir. É sabido que as questões penais atraíram, de
modo particular, os teólogos moralistas, partindo do homem e da sua conduta,
antes que, como a ciência mais tardia, do delito e do delinquente, privilegiando
aquilo que na terminologia moderna se designa de "desvalor da acção" em
detrimento do "desvalor do resultado" (cfr. Rafael Gibert, Ciência Jurídica Espa-
nola, Granada, 1983, pág. 12).

336
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANONICA

direito privado ('). No plano da ética económica, discutiram pro-


blemas com os da usura, da troca, do preço justo ( ).
Merece destaque o impulso dado para a criação do direito
internacional público moderno. Os descobrimentos suscitaram uma
multiplicidade de questões actuais, mormente a da liberdade dos
mares, a da legitimidade da ocupação dos territórios descobertos ou
conquistados e a da condição, jurídica dos respectivos habitantes.
Problemas esses que não encontravam resposta satisfatória nas con-
cepções anteriores ( ) e que levaram à criação das bases teóricas do
direito das gentes.
Os nomes mais representativos do pensamento jusnaturalista e
jus-internacionalista na Península foram espanhóis ( ). Recordem-se,
entre outros: Francisco de Vitoria (f- 1486/1546), doutorado em
Paris e professor de Salamanca, que, pela sua obra vasta e precur-
sora sobre aspectos relevantes a respeito da guerra e da paz, se

(') Ver as contribuições fundamentais que resultaram do encontro de


estudo realizado em Firenze, de 16 a 19 de Outubro de 1972, recolhidas em actas
por Paolo Grossi sob o título "La Seconda Scolastica nella formazione dei
diritto privato moderno", Milano, 1973. A contrastar com a generalidade das
análises aí incluídas é o juízo de Jesus Lalinde Abadia, Anotaciones historicistas
ai
Jusprivatismo de la Segunda Escolástica, págs. 303 e segs.
(2) Consultar Wilhelm Weber, Wirtschaftsethik am Vorabend des
Liberalismus,
Munster, 1959, e Geld und Zins in der spanischen Spàtscholastik, Miinster, 1962. Ver,
também, Alicia Fiestas Loza , La doctrina de Domingo de Soto sobre el censo
consigna-
tivo, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, págs. 639 e segs.
(3) Sobre o modo como tais questões eram até então encaradas, ver a
síntese de Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 520 e
segs.
Podem cônsultar-se estudos importantes de Giulio Vismara, Scritti di Storia
Giuri-
dica, cit., vol. 7 — Comunità e diritto intemazionale, Milano, 1989.
(4) Em torno da ideia de que a segunda Escolástica desenvolveu uma dou-
trina própria a respeito da paz, assente num postulado cristão da convivência
humana, promoveu-se a publicação de obras relevantes de autores desta escola,
formando o já cit. "Corpus Hispanorum de Pace". São edições em latim e caste-
lhano, sempre que o texto original se encontre redigido na primeira dessas lín-
guas. Constitui o vol. I da colecção a obra de Fray Luís de Lêon, De legibus o
Tratado de las Leyes (1571), Madrid, 1963.

337
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

considera o fundador do direito internacional moderno f1);


Domingo de Soto (1496/1560), particularmente vocacionado para as
questões penais encaradas do ângulo da teologia moral (2); Luis de
Molina (1535/1600), que foi professor em Évora e escreveu um
tratado que representa uma síntese do direito e da moral ( ); e
Francisco Suárez (1548/1617), também ligado ao nosso meio pelo
doutoramento em teologia na Universidade de Évora e o posterior
ensino conimbricense, que se considera "o mais alto expoente do
pensamento filosófico, filosófico-político e jurídico, do lado cató-
lico, no final do século xvi" (4).

(!) Francisco de Vitoria, inclusive, apreciou com grande independência os


títulos da dominação espanhola nas índias. Consultar C. Barcia Trelles, Fran-
cisco de Vitoria, fundador dei Derecho internacional moderno, Valladolid, 1928. Entre os
discípulos de Vitoria, contou-se Martin de Azpilcueta (1493/1586), que transitou,
como sabemos, da Universidade de Salamanca para a de Coimbra (cfr., supra,
págs. 323 e 330). Podem ver-se no "Corp. Hisp. de Pace", cit., as obras de
Francisco de Vitoria, Relectio de Indis, Madrid, 1967 (vol. V), e Relectio de lure
Belli
o Paz Dinâmica, Madrid, 1981 (vol. VI).
(2) Ver, supra, págs. 336, nota 3, e 337, nota 2.
(J) De iustitia et iure, tomi sex (1593/1600), reed., Madrid, 1941/1942 (trad.,
estudo preliminar e notas de M. Fraga Iribarne), e La teoria dei justo precio,
Madrid, 1981 (ed. preparada por F. Gómez Camacho).
(4) L. Cabral de Moncada, Fil. do Dir. e do Est., cit., vol. I, pág. 128.
Foi
durante a sua estada em Coimbra que Suárez publicou, em 1612, o famoso Tracta-
tus de legibus ac Deo Legislatore, incluído no "Corp. Hisp. de Pace", cit., Madrid,
1971/1981 (vols. XI/XVII, XXI e XXII). Na mesma colecção, ver de
Francisco
SuArez, Defensio Fidei III—Principatus politicus o la soberania popular, Madrid, 1965
(vol. II), e De iuramento fidelitatis, Madrid, 1978 (vol. XIX) e 1979 (vol. XVIII). A
respeito de Suárez, além dos estudos e notas preliminares constantes das reedi-
ções indicadas, consultar, entre nós, Paulo Merêa, Suárez, jurista. O problema da
origem do poder civil, in "Rev. da Univ. de Coimb.", cit., vol. VI, págs. 70 e segs.,
Suárez, Grócio, Hobbes, Coimbra, 1941, e Escolástica e Jusnaturalismo: O problema da
origem do poder civil em Suárez e Pufendorf, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XIX,
págs. 289 e segs., e L. Cabral de Moncada, O vivo e o morto em Suárez jurista,
in
"Est. Fil. e Hist.", cit., vol. II, págs. 52 e segs. Ver, por último, Mário Reis
Marques, A crise do direito. A crise da lei. Um regresso a Suárez?, in "O Instituto",
vols. CXL/CXLI, Coimbra, 1980/1981, págs. 165 e segs.

338
período do direito português de inspiração romano-
canónica

Como observámos, esta escola encontrou os seus maiores


expoentes em Espanha. Mas teve, sem dúvida, pensadores valiosos
no nosso país. Quanto às doutrinas políticas, importa salientar D.
Jerónimo Osório. A obra deste bispo de Silves, embora não consti-
tua um verdadeiro tratado de direito público ou uma construção
política ao nível das que redigiram os grandes teólogos espanhóis do
tempo, revela a formação humanista sólida do autor e desenvolve-
-se em torno da ideia de justiça, decorrente da ordem racional ( ).
Acrescenta-se João Salgado de Araújo, cujos escritos demonstram
larga erudição, posto que reduzida força criativa no estudo da ques-
tão da legitimidade da soberania (2). Ainda será de referir António
de Parada (3).
Pelo que respeita ao direito internacional público, lembramos
que a grande polémica da época se centrava na querela sobre o
exclusivo da navegação e do comércio dos mares e dos territórios
descobertos. À doutrina da liberdade de navegação ("maré libe-
ram"), que encontrou o seu grande defensor em Hugo Grócio(4),
opunha-se^a do monopólio dos países que abriram essas novas rotas

(') Ver F. Elías de Tejada, Las doctrinas políticas de Jerónimo Osório, in


"An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XVI, págs. 341 e segs., e a aguda recensão de
Paulo Merêa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXIII, págs. 151 e segs.
( ) Cfr. Paulo Merêa, A ideia da origem popular do poder nos escritores portugue-
ses anteriores à Restauração, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., págs. 229 e segs., espe-
cialmente págs. 243 e segs.
(3) Ver o seu livro Arte de Reynar, Bucellas, 1643.
( ) O livro de Hugo Grócio, Maré liberum, sive de iure quod Batavis
competit
ad Indicana commercia, saiu pela primeira vez anónimo, em 1609. (Existe uma tra-
dução castelhana desta obra, acompanhada de um estudo preliminar de Garcia
Arías, Madrid, 1956). Observe-se que o princípio da liberdade dos mares tinha já
sido defendido, em Espanha, por Francisco de Vitoria e Fernando Vazques de
Menchaca (ver C: Barcia Trelles, Francisco de Vitoria, fundador dei Derecho
interna-
cional moderno, cit., pág. 93). Sobre Menchaca, consultar A. Miaja de la
Muela,
Internacionalistas espaholes dei siglo XVI: Fernando Vazquez de Menchaca, Valladolid,
1932.

339
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

("maré clausum"). Não era, obviamente, uma pura controvérsia


científica, desligada de interesses políticos e económicos.
Vários juristas portugueses sustentaram a posição monopo-
lista (*). Assim sucedeu, por exemplo, com António da Gama, Jorge
Cabedo de Vasconcelos, Bento Gil, Frei Serafim de Freitas e
Domingos Antunes Portugal (").
Serafim de Freitas, quando exercia a docência de direito
canónico na Universidade de Valladolid, escreveu uma resposta a
Grócio(3). É patente a diferença de esquemas mentais com que estes
autores desenvolvem o seu discurso. A argumentação de Grócio
apresenta-se inovadora e move-se, sobretudo, numa perspectiva
filosófica. Serafim de Freitas, pelo contrário, patenteia grande agi-
lidade intelectual na utilização dos seus conhecimentos sólidos de
direito romano e dos comentadores mais notáveis, em defesa da
situação estabelecida (4). Só que esta tinha o destino traçado.
Não pode esquecer-se, ainda, entre os jus-internacionalistas,
Afonso Álvares Guerreiro. Deve-se-lhe um livro sobre a guerra
justa e injusta (5), em que aborda problemas que depois seriam tam-
bém estudados por Grócio no tratado que verdadeiramente o
notabilizou >(6).

( ) Ver Paulo Merèa, Os jurisconsultos portugueses e a doutrina do "maré clau-


sum", in "Novos Estudos de História do Direito", Barcelos, 1937, págs. 19 e segs.
(2) Consultar o estudo indicado, supra, pág. 326, nota 7.
(3) De iusto império Lusitanorum Asiático, Valladolid, 1625. Existe tradução
desta obra com o título Do Justo Império Asiático dos Portugueses, Lisboa 1960/1961
(da autoria de M. Pinto de Meneses, com uma introdução de Marcello
Cae-
tano). Ver, também, Marcello Caetano, Um grande jurista português: Serafim
de
Freitas, Lisboa, 1925.
( ) Ver Paulo Merêa, Um aspecto da questão Hugo Grócio — Serafim de Freitas
(Condição jurídica do mar no direito romano), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. II,
págs. 465 e segs. Na linha de Serafim de Freitas, encontra-se a obra não menos
famosa do jurisconsulto inglês Selden, Maré clausum, concluída em 1618, mas só
impressa no ano de 1635 (cfr. Paulo Merêa, ibid., pág. 466, nota 2, e "Nov. Est.
de Hist. do Dir.", cit., nota 60 da pág. 38).
( ) De Bello iusto et iniusto Tractatus, Neapoli, 1543.
(6) De iure belli ac pacis libri três (Leipzig, 1623), em que Grócio retoma o
problema da liberdade dos mares e do comércio.
340
:
s CAPITULO III
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DIREITO

PORTUGUÊS MODERNO
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§1.°

ÉPOCA DO JUSNATURALISMO
RACIONALISTA
59. Correntes do pensamento jurídico europeu

Outro período se inaugura na evolução do direito português


com o ciclo pombalino. Antes, porém, de apreciarmos as reformas
de índole jurídica levadas a efeito nessa época jusracionalista, con-
virá fornecer um rápido quadro das orientações filosóficas e jurídi-
cas que marcavam os horizontes europeus. E que nelas se inspira-
ram, numa boa medida, tais reformas ( ).

a) Escola Racionalista do Direito Natural

Salientou-se que, durante os séculos xvi e xvii, a Europa


conheceu duas linhas de pensamento, que se afirmaram, não só nas
áreas da filosofia jurídica e política, mas também a respeito do
direito internacional público. Uma delas desenvolveu-se predomi-
nantemente no mundo cispirenaico, através da segunda Escolástica,
e corresponde à chamada Escola Espanhola do Direito Natural; a
outra teve o seu assento privilegiado na Holanda, Inglaterra e Ale-
manha, costumando designar-se como Escola do Direito Natural ou
Escola Racionalista do Direito Natural (2).
Não cabe entrar aqui em desenvolvimentos quanto a saber até
que ponto se trata de duas correntes interligadas ou dissociadas. As

(') Quanto à exposição subsequente, ver M. J. Almeida Costa,


Debate
jurídico e solução pombalina, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II,
págs. 1 e segs.
(2) Ver, supra, págs. 335 e segs.

345
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

opiniões divergem. Autores modernos, como Erik Wolf, Hans


Welzel, Franz Wieacker e Hans Thieme, vêm sustentando que o
jusracionalismo laico do século xvm se filia no direito natural de
raiz religiosa da Escolástica medieval, ainda que as suas diferenças
se apresentem manifestas. A corrente mediadora terá sido a
segunda Escolástica. Daí se deriva a importância atribuída a esta
escola para a formação do direito dos tempos ulteriores (!).
Hugo Grócio (1583/1645) é geralmente considerado
fundador
do jusnaturalismo moderno (2). Já se referiram duas das suas publi-
cações mais valiosas: Maré liberum (1609), respeitante ao direito
internacional público e de combate às posições portuguesas e espa-
nholas em matéria de monopólio da navegação e do comércio rela-
cionados com os territórios descobertos; e De iure belli ac pacis (1623),
onde surge a construção do direito internacional público alicerçada
num direito vinculativo para todos os homens e, quanto à respec-
tiva origem, reputado racionalmente necessário. A última constitui
a obra decisiva deste autor (3).

(') Cfr., por todos, H. Thieme, Qu'est ce-que nous, les juristes, devons à la
Seconde Scolastique espagnole?, in "La Seconda Scolastica nella formazione dei
diritto privato moderno", cit., págs. 7 e segs., e F. Wieacker, Hist. do Dir. Priv.
Mod., cit., págs. 303 e seg., e 320 e seg. Consultar, ainda, H. Thieme, Das Natur-
recht und die europàísche Privatrechtsgeschichte, 2.a ed., Basel, 1954, e El significado de los
grandes juristas y teólogos espaholes dei siglo XVI para el desenvolvimiento dei Derecho
natural, cit., in "Revista de Derecho Privado", tomo XXXVIII, págs. 597 e segs.,
Otto Wilhelm Krause, Naturrechtler das sechzehnten Jahrhunderts: ihre Bedeutungfur
die
Entwicklung eines naturlichen Privatrechts, Frankfurt a-M/Bern, 1982, e Alfred
Dufour, Les ruses de la Raison d'Etat ou Histoire et Droit naturel dans Voeuvre et la pensée
des Fondateurs du Droit naturel moderne, in "Festschrift fur Hans Thieme zu seinem
80. Geburtstag" (Herausgegeben von Karl Kroeschell), Sigmaringen, 1986,
págs. 265 e segs.
(j No sentido de que "o jusnaturalismo moderno, incluindo nele o ilumi-
nista, não é um movimento uniforme, tanto no que toca aos seus fundamentos
imediatos como ao tipo de racionalidade normativa que enuncia", ver as refle-
xões de A. Castanheira Neves, O instituto dos "assentos", cit., págs. 528 e
segs.
(3) Ver, supra, págs. 339, nota 4, e 340, nota 6.

346
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

Estava dado o primeiro passo. Grócio, ainda manifestamente


influenciado pela segunda Escolástica, representou como que a
ponte de passagem das correspondentes concepções teológicas e
filosóficas para o subsequente jusnaturalismo racionalista (*). Tinha
por si o futuro iluminista que se aproximava.
O novo sistema de direito natural seria verdadeiramente cons-
truído pelos autores que desenvolveram os postulados ínsitos na
obra de Grócio, ou, quando menos, dela decorrentes. Destacam-se,
a este propósito, Hobbes (1588/1679) e Locke (1632/1704), na Ingla-
terra, Pufendorf (1632/1691), Thomasius (1655/1728) e Wolff
(1679/1754), na Alemanha. Pufendorf desempenhou um papel de
relevo, "não só como o primeiro grande sistematizador do direito
natural, mas ainda como o representante mais característico da
época de transição do jusnaturalismo grociano para o iluminismo
setecentista" (2).
Com os aludidos autores, embora oferecendo contributos dife-
renciados, a compreensão do direito natural desvincula-se de pres-
supostos metafísico-religiosos. Chega-se ao direito natural raciona-
lista, isto é, produto ou exigência, em última análise, da razão
humana. Considera-se que, tal como as leis universais do mundo
físico, também as normas que disciplinam as relações entre os
homens e comuns a todos eles são imanentes à sua própria natureza
e livremente encontradas pela razão, sem necessidade de recurso a
postulados teológicos.
O direito natural racionalista teve uma larga influência
directa sobre a ciência jurídica positiva. Deve salientar-se que se

(') Sobre Grócio, ver os estudos publicados in The World of Hugo Grotius
(Í583-Í645) (Proceedings of the International Colloquium organized by the Gro-
tius Committee of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences —
Rotterdam 6-9 April 1983), Amsterdam/Maarssen, 1984.
(2) Paulo Merea, Escolástica e Jusnaturalismo, cit., in "Boi. da Fac. de
Dir.", vol. XIX, pág. 289.

347
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

organizaram minuciosas exposições sistemáticas do direito natural,


conseguidas por dedução exaustiva de axiomas básicos.
Também sob este aspecto, e não apenas quanto à
fundamenta-
ção do direito natural, os jusracionalistas se distinguiram dos auto-
res da escolástica renovada. Os últimos preocuparam-se, sobretudo,
com a enunciação de simples princípios gerais.

b) Uso Moderno

Relacionada com o jusracionalismo, surgiu na Alemanha, de


onde passou a outros países, uma nova metodologia do estudo e
aplicação do direito romano, geralmente conhecida por "usus
modernus pandectarum". A designação, aliás, deriva do título de
uma obra famosa de que foi autor, já em época avançada da escola,
Samuel Stryk, um dos seus principais representantes. Caracteriza-se
esta orientação pela confluência de vectores práticos, racionalistas e
de nacionalismo jurídico.
Encara-se o direito romano, na verdade, com objectivos
emi-
nentemente voltados para a realidade. Os juristas dessa nova cor-
rente procuraram distinguir, no sistema do Corpus luris Civilis, o que
se conservava direito vivo do que se tornara direito obsoleto. Por
outras palavras: importava separar as normas susceptíveis de "uso
moderno", ou seja, adaptadas às exigências do tempo, das que cor-
respondiam a circunstâncias peculiares da vida romana. Só as pri-
meiras deveriam considerar-se aplicáveis.
Aferia-se a actualidade dos preceitos romanísticos através do
filtro do direito natural racionalista. Tinha-se também em conta o
próprio direito pátrio, que integrava o ordenamento vigente ao
lado dessas normas susceptíveis de "prática actualizada".
A atenção conferida ao direito nacional e à respectiva história,
incluindo ó seu ensino universitário, representou uma das maiores
consequências ou advertências do "uso moderno". Esta metodolo-
gia desenvolveu-se na Alemanha, mais ou menos, entre os meados
de quinhentos e de setecentos. Teve a adesão de todos os grandes

348
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

juristas alemães dos séculos xvn e xvill. Lembram-se Carpzov


(1595/1666), Struve (1619/1692), Stryk (1640/1710), Bohmer
(1674/1749) e Heineccius (1681/1741) (')•
Assinalou-se a ligação íntima da corrente do "usus modernus"
à Escola Racionalista do Direito Natural, mas não devem eviden-
temente confundir-se. A última constituiu uma escola filosófica e
de jurisprudência teorética; ao passo que a primeira, embora desta
derivada, foi uma orientação teórico-prática em que interferiu,
ainda, o direito germânico. Representou o "usus modernus", na
história jurídica alemã, uma época de passagem da Escola Barto-
lista para a Escola Histórica (2).

c) Jurisprudência Elegante

O século XVI correspondeu à época áurea do humanismo jurí-


dico francês (3). Porém, no século imediato, o ponto de gravitação
da escola deslocar-se-ia para a Holanda. Entre as causas que expli-
cam o fenómeno, aponta-se a fixação, nesse país, de huguenotes
eruditos, como resultado das lutas religiosas ocorridas em França.
Despontou, assim, com sede holandesa, a Escola dos Juriscon-
sultos Elegantes ("jurisconsulti elegantiores"), apesar da difusão
crescente do "usus modernus". O nome deriva da preocupação de
rigor das formulações jurídicas e dos cuidados da expressão escrita
dos seus adeptos.
Juristas notáveis, como Voet, Noodt e Westenberg, já na pri-
meira metade do século XVIII, continuaram a estudar o direito

(') Sobre estes autores, consultar Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit.,
págs. 238 e segs. Ver, também, Alfred Sóllner, Zu den Literaturtypen des
deutschen
"Usus modernus", in "Ius commune", cit., vol. II, págs. 167 e segs.
(2) Corresponderá, aproximadamente, ao nosso período de 1747 a 1820,
como sugere Cabral de Moncada, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. I, nota
1
da pág. 91.
(3) Cfr., supra, págs. 317 e segs.

349
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

romano dentro do método histórico-crítico. Esta jurisprudência


elegante dos Países Baixos não deixou, contudo, pelo menos na
posição de alguns dos seus autores, de assumir uma orientação prá-
tica, que combinava as finalidades do "usus modernus" com as
puras tendências do humanismo jurídico (!).

d) Iluminismo

Uma linha de pensamento que muito influenciou as reformas


efectuadas no ciclo pombalino foi o Iluminismo. Utilizam-se, parale-
lamente, as expressões de Época da Ilustração, Iluminista ou das
Luzes, em equivalência à designação francesa de "Philosophie
des Lumières" e à alemã de "Aufklarung". Estes qualificativos
prendem-se à ideia de os seus cultores serem "iluminados", como
tendo recebido as "luzes da razão".
Quanto à generalidade da Europa, trata-se de um período que
abrange todo o século xvm. Do ponto de vista político, o Ilumi-
nismo desenvolveu-se sob a égide das monarquias absolutas que
configuraram o "Despotismo Esclarecido" ou "Despotismo Ilus-
trado", com Luís XIV e Luís XV de França, Frederico II da Prús-
sia, José II e Leopoldo II da Áustria. Entre nós, todavia, corres-
ponde, apenas, à segunda metade de setecentos, ou, dizendo de
outro modo, limita-se praticamente aos reinados de D. José e de D.
Maria I.
Não falta quem observe que a história da filosofia grega ofe-
rece como que uma prefiguração ou imagem antecipada do ulterior
desenvolvimento das ideias, tanto a respeito dos sistemas propostos,
como no ritmo em que estes se sucedem. E sublinha-se, por outro
lado, que, dentro dessa evolução do pensamento filosófico, as gran-

ia Consultar, por ex., Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., págs. 178 e
segs., e Cavanna, Stor. dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, págs. 434 e segs.

350
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

des construções cosmológicas e metafísicas se alternam invariavel-


mente com as de sentido antropológico e experimentalista (').
O Iluminismo foi um período voltado para este segundo tipo
de compreensão do mundo e da vida. No centro situa-se o homem
"ainda de todo não despido da ideia de transcendência, e contudo
julgando-se já plenamente senhor dos seus destinos" (2). Assiste-se a
uma hipertrofia da razão e do racionalismo. Assim aconteceu, quer
acerca das áreas científico-naturais, quer relativamente à filoso-
fia especulativa e à cultura, quer nos domínios ético, social, econó-
mico, político e jurídico. Verifica-se o desenvolvimento de um sis-
tema naturalístico das ciências do espírito. Tudo, em suma, se
alicerça na natureza e tem a sua validade aferida pela razão do
indivíduo humano, ou seja, por uma razão subjectiva e crítica.
A respeito dos problemas da filosofia jurídica e política, o
Iluminismo definiu novas posições teoréticas. Uma vincada concep-
ção individualista-liberal fundamenta a sua compreensão do direito
e do Estado. Na base colocam-se os direitos "originários" e "natu-
rais" do indivíduo. Afinal de contas, tiram-se as últimas consequên-
cias do espírito individualista que se desenvolvera desde o Renasci-
mento e que as mais recentes concepções jusnaturalistas tinham
acentuado. A esta explicação ideológica acrescentam-se, sem
dúvida, condições políticas que concorreram no mesmo sentido: as
lutas religiosas dos séculos XVI e XVII, que despertaram um senti-

(') Sobre estes aspectos e, de um modo geral, a respeito do Iluminismo,


com particular enfoque das perspectivas da história e da filosofia do direito, ver,
entre nós, L. Cabral de Moncada, F/7, do Dir. e do Est., cit., vol. I, págs. 36
e
seg., 46 e segs., e 195 e segs., assim como O "século XVIII" na legislação de Pombal,
cit., Um "iluminista" português do século XVIII: Luís António Vemey, cit., e Itália e
Portogallo nel'Setecento, in "Est. de Hist. do Dir.", respectivamente, vol. I, págs. 83
e segs., e vol. III, págs. 1 e segs., e págs. 153 e segs., e, ainda, Mística e Racionalismo
em Portugal no século XVIII e O Iluminismo italo-austúaco, in "Est. Fil. e Hist.", cit.,
vol. II, respectivamente, págs. 278 e segs., e págs. 465 e segs.
(2) Como sintetiza Moncada, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. III, pág. 3.

351
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

mento de liberdade de consciência, a Revolução Inglesa de 1688,


que conduziu a um governo liberal e parlamentar, assim como os
aspectos económicos que prenunciaram a revolução industrial e o
capitalismo moderno.
Às anteriores considerações gerais, obviamente muito sucintas,
deve acrescentar-se que o Iluminismo não foi um movimento de
sinal homogéneo. Tendo surgido na Holanda e na Inglaterra, não
viria a desenvolver a mesma forma ou todos os seus traços caracte-
rísticos em outros países a que se alargou. Produziram-se com-
preensíveis limitações e ajustamentos, mercê do ambiente e das cir-
cunstâncias que encontrava ou das suas fontes inspiradoras.
Em França, as ideias iluministas geraram o movimento cultu-
ral conhecido por Enciclopedismo (Montesquieu, Voltaire, Rous-
seau, Diderot). Acresceu todo o quadro a que se seguiria a Revolu-
ção de 1789.
Na Alemanha, relacionam-se com o Iluminismo a importante
corrente literária do Classicismo (Lessing, Herder, Goethe, Schil-
ler) e a fundação de novas Universidades. Do ponto de vista da
filosofia jurídica e política, é manifesta a influência do jusraciona-
lismo (Pufendorf, Thomasius, Wolff).
Sinais peculiares apresentou o Iluminismo nos países marca-
damente católicos, como a Espanha e Portugal, mas tendo como
centro de irradiação a Itália. Também aqui se registaram as
influências do racionalismo e da filosofia moderna, assistindo-se à
renovação da actividade científica, a inovações pedagógicas, a certa
difusão do espírito laico, à reforma das instituições sociais e políti-
cas. De qualquer modo, o reformismo e o pedagogismo não tive-
ram um carácter revolucionário, anti-histórico e irreligioso, idên-
tico ao apresentado em França.
Foi este "Iluminismo italiano" que Verney transmitiu à men-
talidade portuguesa. Conhece-se a sua ligação íntima a Muratori(1).

(') Ver as exposições de Cabral de Moncada referidas, supra, na nota


1
da pág. anterior.

352
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

e) Humanitarismo

A respeito do âmbito específico do direito penal e do trata-


mento penitenciário, há que mencionar as correntes humanitaristas
derivadas do Iluminismo, que tiveram em Montesquieu e Voltaire,
na França, e em Beccaria(l) e Filangieri(2), na Itália, os seus
expoentes mais destacados. Dentro de uma linha racionalista,
desdobram-se essas orientações em dois aspectos básicos.
Antes de mais, quanto ao conteúdo do próprio direito penal,
que deveria desvincular-se de todos os pressupostos religiosos,
reduzindo-se — aliás, de harmonia com a compreensão do direito e
do Estado a partir de um contrato social — à função exterior de
tutela dos valores ou interesses gerais necessários à vida colectiva.
Em última análise, afirmava-se a ideia de necessidade ou utilidade
comum como critério delimitador do direito penal, por oposição a
uma axiologia eminentemente ético-religiosa. Contudo, Beccaria
proclama que também a lei moral, enquanto paradigma da lei posi-
tiva, constitui "marco e limite de qualquer incriminação" (3).
Nunca se produziu uma completa identificação das vertentes fran-
cesa e italiana.
Na sequência desse primeiro aspecto, traduziu-se a acção dos
referidos autores numa inovação pelo que concerne aos fins das
penas. As sanções criminais passam a ter como fundamento predo-
minante, não já um imperativo ético, mas sim uma pura ideia de
prevenção e defesa da sociedade. Ou seja: a pena justificava-se não

( ) Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria. Sobre este autor, consulte-se,


entre nós, G. Braga da Cruz, O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte
em Portugal (Resenha histórica), Lisboa, 1967, págs. 29 e segs. (sep. do "Boi. do Min.
da Just.", cit., n.°" 170 a 172; republ. in "Obras Esparsas", cit., vol. II — "Estu-
dos de História do Direito. Direito moderno", 2.a parte, Coimbra, 1981, págs. 27
e segs.)..
(2) Ver Jesus Lalinde Abadia, El eco de Filangieri en Espana, in "An.
de
Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, págs. 477 e segs.
( ) Cfr. Bragada Cruz, O movimento abolicionista, cit., págs. 34 e seg.

353
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

como castigo pelo facto passado, antes como meio de evitar futuras
violações da lei criminal, quer intimidando a generalidade das pes-
soas (prevenção geral), quer agindo sobre o próprio delinquente,
intimidando-o ou reeducando-o (prevenção especial).
Acrescente-se, porém, que se entendia que a acção preventiva
do direito penal teria de fazer-se dentro dos limites da justiça e do
respeito pela dignidade da pessoa humana. Neste contexto se ins-
crevem, por um lado, a exigência de proporcionalidade entre a
pena e a gravidade do delito, e, por outro lado, a postergação das
antigas penas corporais ou infamantes e a sua substituição pela pena
de prisão. Partia-se, na verdade, do postulado da liberdade humana
como primeiro de todos os bens sociais, devendo, pois, a sanção
criminal traduzir-se numa limitação desse mesmo valor (').
Tais concepções tiveram reflexos entre nós. Mello Freire,
como adiante se apreciará, foi o seu mais directo representante ( ).

60. Reformas pombalinas respeitantes ao direito


e à ciência jurídica

a) Considerações introdutórias

As correntes que acabamos de referir constituíram a base


orientadora das reformas pombalinas, embora nos graus diversos
que o Despotismo Ilustrado filtrava. A polarização dessas doutrinas
adquiriu maior clareza, ou acentuou-se, no meio português, através

(') A respeito de quanto se expôs, ver Robert v. Hippel, Deutsches


Straf-
recht, vol. I, Berlin, 1925, págs. 262 e segs., e, na literatura portuguesa,
Eduardo
Correia, Direito Criminal (com a colaboração de Figueiredo Dias), vol. I
(reim-
pressão), Coimbra, 1971, págs. 83 e segs., e António Manuel de
Almeida
Costa, O Registo Criminal, cit., págs. 30 e segs.
(2) Ver, infra, págs. 367 e segs., e 372 e segs.

354
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

dos "estrangeirados" — a qualificação dada aos letrados e cientistas


nacionais que, pela sua permanência além-fronteiras, conheciam a
mentalidade e os movimentos então em voga e que procuravam
incentivar no nosso país uma tal renovação europeia ('). Destaca-se,
como sabemos, o oratoriano Luís António Verney, que foi, nos
meados do século XVIII, uma personalidade expressiva. Salientou-se
que o sistema de ideias a que deu, entre nós, a formulação mais
polémica se reconduzia aos jusnaturalismo, ao uso moderno, ao
pensamento iluminista e às directivas humanitárias (2).
As advertências e as sugestões de Verney não encontraram
eco imediato. Contudo, pode dizer-se que, passados alguns anos,
elas estiveram presentes nas grandes transformações relativas ao
direito e à ciência jurídica efectuadas sob o governo do Marquês de
Pombal. Estas produziram-se, como também já se observou, em
três sectores: o das modificações legislativas pontuais, o da activi-
dade científico-prática dos juristas e o do ensino do direito.
Operaram-se, de facto, por via legislativa, alterações substan-
ciais de múltiplos institutos: processo necessário sempre que houve
preceitos expressos a revogar ou se quiseram introduzir modifica-
ções rápidas e completas (3). Algumas dessas providências trouxe-
ram um progresso significativo e permaneceriam. Não faltaram
outras, contudo, que eram sinal de um reformismo abstracto, quer
dizer, completamente desligado da nossa tradição histórica e reali-
dade, embora correspondendo aos sistema de ideias da época. As
últimas tiveram uma vigência efémera, que não ultrapassou a vida

(') Cônsultem-se as reflexões importantes de Jorge Borges de


Macedo,
"Estrangeirados", um conceito a rever, in "Bracara Augusta", cit., vol. XXVIII, págs.
179 e segs. (2.a ed., Lisboa, 1979).
( ) Sobre as proposições de Verney e a sua concretização, ver o que se
escreve, supra, págs. 45 e segs.
(3) Tendendo a um levantamento sistemático dos diplomas da época, ver
Rui de Figueiredo Marcos, A legislação pombalina. Alguns aspectos
fundamentais,
Coimbra, 1987.

355
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

política de Pombal. Servem de exemplo os diplomas que disciplina-


ram em moldes inteiramente novos as matérias da sucessão testa-
mentária, legítima e legitimaria (1).
Mais relevantes, sem dúvida, se mostraram as providências
adoptadas nos outros dois referidos planos: o da ciência do direito,
enquanto voltada para a interpretação, integração e aplicação das
normas jurídicas; e o da formação dos juristas. Foram atendidos,
respectivamente, pela chamada Lei da Boa Razão (1769) e pela
reforma da Universidade, consubstanciada nos Estatutos Novos
(1772) (2).

b) A Lei da Boa Razão____

Trata-se da Lei de 18 de Agosto de 1769, inicialmente identifi-


cada, como os restantes diplomas da época, pela simples data. Só no
século XIX receberia o nome de Lei da Boa Razão (3). E assim ficou
conhecida para futuro. O "crisma" justirica-se," dado o apelo que
nos seus preceitos se faz insistentemente à "boa razão" — ou seja, à
"recta ratio" jusnaturalista. Representava ela o dogma supremo da

(') Acerca do tema, consultar L. Cabral de Moncada, O "século


XVIII"
na legislação de Pombal, cit., in "Est. de Hist. do Dir.", vol. I, págs. 82 e segs.,
especialmente págs. 105 e segs.
(2) Sobre a importância da Lei da Boa Razão e dos Estatutos pombalinos
da Universidade, ver Mário Reis Marques, O Liberalismo e a Codificação do Direito
Civil em Portugal. Subsídios para o Estudo da Implantação em Portugal do Direito Moderno,
Coimbra, 1987, págs. 32 e segs.
(3) Recua à cit. obra de José Homem Corrêa Telles, Commentario Critico
á
Lei da Boa Razão, em data de 18 de Agosto de 1769, Lisboa, 1824 (2.a ed., Lisboa,
1845; também se encontra republ. in Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar
Jurí-
dico, cit., vol. II, págs. 443 e segs.). Numa brevíssima nota introdutória, escreve
Correia Telles: "Huma das Leis mais notáveis do feliz Reinado do Senhor D.
José, he a Lei de 18 de Agosto de 1769. Denomino-a Lei da BOA RAZÃO,
porque refugou as Leis Romanas, que em BOA RAZÃO não forem funda-
das (...)".

356

P
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

actividade interpretativa e integrativa, estivesse cristalizada nos


textos romanos, no direito das gentes ou nas obras jurídicas e leis
positivas das nações estrangeiras.
O referido diploma prosseguiu objectivos amplos. Visou, não
apenas impedir irregularidades em matéria de assentos (^ e quanto
à utilização do direito subsidiário (2), mas também fixar normas
precisas sobre a validade do costume (3) e os elementos a que o
intérprete podia recorrer para o preenchimento das lacunas ( ).
Cerca de três anos após, os Estatutos da Universidade esclare-
ceram alguns aspectos da Lei da Boa Razão. Analisemos, em
resumo, as várias soluções que a mesma consagrou.

I — Os diferendos submetidos a apreciação dos tribunais


deviam ser julgados, antes de tudo, pelas\Jeis pátrias e pelos estilos da
Corte. Como se indicou, estes últimos constituíam jurisprudência a
observar em casos idênticos (5). Determinou-se, todavia, que só
valessem quando aprovados através de assentos da Casa da Suplica-
ção (6). O que significa terem os estilos perdido a eficácia autónoma
que antes se lhes reconhecera.
II — Confere-se autoridade exclusiva aos assentos da Casa da
Suplicação (7), que era o tribunal supremo do Reino. Nesse sentido,

( ) Ver, supra, pág. 299.


(2) Ver, supra, págs. 312 e seg.
(3) A respeito dos problemas anteriormente levantados, ver, supra, págs.
301 e segs.
(4) Sobre o quadro das fontes de direito, imediatas e subsidiárias, nas
Ordenações, ver, supra, págs. 307 e segs.
(5) Sobre os estilos, ver, supra, págs. 300 e seg.
(6) Lei da Boa Razão, §§ 5 e 14.
(7) Lei da Boa Razão, § 8. A Casa da Suplicação continuou a proferir
assentos interpretativos até ao advento do Constitucionalismo. Só mais tarde o
Supremo Tribunal de Justiça reassumiria essa competência. A Casa da Suplicação
foi extinta pelo Decreto de 30 de Julho de 1833, que criou em seu lugar a
Relação de Lisboa (ver Alípio Castello Branco/Albino Freire de
Figueiredo,
Repertório ou índice Alphabetico e Remissivo de todas as leis publicadas desde 1815 ate ao

357
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

declara-se que os assentos das Relações apenas alcançariam valor


normativo mediante confirmação daquele tribunal superior. Ficou,

estabelecimento da Regência na Ilha Terceira em 1829, e desde Maio de Í838 ate Julho do
corrente anno, Lisboa, 1840, pág. 462). A instituição das Relações necessárias à
comodidade dos povos e competentes para "julgar as causas em segunda e última
instância" logo se previu no art. 190.° da Constituição de 1822 e, depois, no art.
125.° da Carta Constitucional de 1826. A criação de um Supremo Tribunal de
Justiça, embora anunciada no art. 191.° da Constituição de 1822 (para o Brasil,
no art. 193.°) e nos arts. 130.° e 131.° da Carta Constitucional, apenas ocorreu,
subsequentemente à Reforma Judiciária de Mouzinho da Silveira (Decreto n.° 24,
de 16 de Maio de 1832, art. 4.°), pelo Decreto de 14 de Setembro de 1833, que
extinguiu o velho Desembargo do Paço, cuja competência em matéria do
recurso de revista — peculiar do topo da hierarquia judiciária — transitou para o
novo tribunal. Teve este a sua instalação efectiva a 23 do mesmo mês de Setem-
bro. Pouco depois, o Decreto de 8 de Outubro de 1833, suprindo uma omissão da
Carta Constitucional, viria centralizar no Supremo Tribunal de Justiça a análise
das dúvidas que se levantassem quanto à interpretação das normas jurídicas e o
envio ao governo das propostas para a sua resolução. Ver, entre outros,
Eduardo Dally Alves de Sá, Supremo Tribunal de Justiça. Evolução histórica
d'esta
instituição, Lisboa, 1872, Afonso Costa, Lições de Organisação Judiciaria, cit., págs.
142 e seg., 151 e seg., 178 e segs., e 191 e segs., Alberto dos Reis, Organização
Judicial, cit., págs. 80 e segs., Eduardo Augusto de Sousa Monteiro,
Evolução
histórica das instituições judiciárias antecessoras do Supremo Tribunal de Justiça, in "Come-
morando o Primeiro Centenário do Supremo Tribunal de Justiça", Lisboa, 1933,
págs. 53 e segs., e Joaquim Veríssimo SerrAo, História de Portugal, vol. VIII,
Lis-
boa, 1986, págs. 212 e segs.
A tradição dos assentos da Casa da Suplicação seria retomada, nos moldes
modernos, em matéria cível, pela Reforma do Processo resultante do Decreto n.°
12353, de 22 de Setembro de 1926 (art. 66.°); daí passou ao Código de Processo
Civil de 1939 (arts. 768.° e segs.), que definiu a configuração actual do instituto
(arts. 763.° e segs. do Cód. de Proc. Civ. vigente). Por sua vez, o Código de
Processo Penal de 1929 (arts. 608.° e segs.) viria a estabelecer os assentos nesse
domínio (arts. 437.° e segs. do Cód. de Proc. Penal vigente). Também o Supremo
Tribunal Administrativo, desde o Decreto-Lei n.° 45 497, de 30 de Dezembro de
1963, que aprovou o Código de Processo do Trabalho (arts. 195.° e segs.), adqui-
riu competência para, funcionando em tribunal pleno, proferir assentos relativos
à sua 3.a secção, do contencioso do trabalho e previdência social. Todavia, os
tribunais do trabalho tornaram-se tribunais judiciais de competência especiali-
zada e os respectivos recursos passaram a fazer-se para as secções sociais da

358
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

assim, perfeitamente esclarecida uma situação muito nociva à cer-


teza da aplicação do direito, que resultava da possibilidade de exis-
tirem assentos contraditórios (*).
III — Também se estatui expressamente sobre o costume. Para
que valesse como fonte de direito, deveria subordinar-se aos requi-
sitos seguintes: 1) ser conforme à boa razão; 2) njio^oritrariar a lei;
3) ter mais de cem anos de existência ( ). O direito consuetudinário,
deste modo, só conservou validade "secundum legem" e "praeter
legem", nunca "contra legem". Na ausência dos três requisitos
indicados, consideravam-se os costumes "corruptellas, e abusos",
cuja alegação e observância em juízo se proibiu, "não obstante
todas, e quaesquer disposições, ou opiniões de Doutores, que sejão
em contrario" (3).
IV — Quando houvesse casos omissos — quer dizer, faltando
direito pátrio, representado pelas fontes imediatas indicadas—,
caberia então recurso ao direito subsidiário. Mas o direito romano só

Relação e do Supremo Tribunal de Justiça (arts. 56.°, 65.° a 68.°, e arts. 28.°, ai.
c), e 43.° da Lei n.° 82/77, de 6 de Dezembro). Existiram, ainda, os assentos do
Conselho Ultramarino, enquanto Supremo Tribunal Administrativo do Ultra-
mar, tirados na sua secção contenciosa (arts. 1.° e 22.°, ai. d), da Lei Orgânica do
Conselho Ultramarino, aprovada pelo Decreto-lei n.° 49146, de 25 de Julho de
1969, e art. 94.° do Regimento respectivo, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 49147,
dessa mesma data) e em reunião conjunta daqueles dois Supremos Tribunais
Administrativos (art. 9.°, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei n.° 49 145, de 25 de Julho de
1969). Devem indicar-se, por último, os assentos do Tribunal de Contas, cuja
doutrina é obrigatória no domínio específico da sua jurisdição (art. 6.°, n.° 9, do
Decreto-Lei n.° 22257, de 25 de Fevereiro de 1933; ver, posteriormente, os arts.
6.° e segs. da Lei n.° 8/82, de 26 de Maio, e os arts. 24.°, ai. g), e 63.°, n.° 1, ai. a),
da Lei n.° 86/89, de 8 de Setembro).
(') Ver, supra, págs. 296 e segs. Um único exemplo em que, após a proibi-
ção legal, os desembargadores da Relação do Porto elaboraram um assento, a 23
de Agosto de 1791, é apontado por Corrêa Telles, Commentario Critico, cit., com.
40 ao § 8.
(2) Lei da Boa Razão, § 14.
(3) Ver, supra, págs. 301 e segs.

359
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

era aplicável desde, que se apresentasse conforme à boa razão, que


correspondia, repita-se, à ' recta ratio jusnaturalista.
Com efeito, a expressão boa razão, embora já ocasionalmente
utilizada pelas Ordenações no sentido corrente de "razão natural"
ou "justa razão"(*), assumia agora um sentido novo. As normas de
direito romano apenas se aplicariam quando, caso a caso, se mos-
trassem concordes com a boa razão. E por boa razão entende o
próprio legislador aquela "que consiste nos primitivos Princípios,
que contém verdades essenciais, intrinsecas, e inalteráveis, que a
ethica dos mesmos Romanos havia estabelecido, e que os Direitos
Divino, e Natural formalisarão para servirem de regras Moraes, e
Civis entre o Christianismo: ou aquella boa razão, que se funda nas
outras regras, que de unanime consentimento estabeleceo o Direito
das Gentes para a direcção, e governo de todas as Nações civilisadas

Numa palavra: apresentar-se conforme^ à boa razão equivalia


a corresponder aos princípios do direito natural ou do direito das
gentes. Deste modo, era fonte subsidiária, ao lado do direito
romano seleccionado pelo jusracionalismo, o sistema de direito
internacional resultante da mesma orientação.
O critério mostrava-se um tanto vago. Mas, logo em 1772, os
Estatutos da Universidade fixaram um conjunto de regras destina-
das a aferir — quer no ensino, quer na actividade dos tribunais — a
boa razão dos textos romanos (3). Além dessas regras, aponta-se ao
intérprete o critério prático de averiguar qual o "uso moderno"
que dos preceitos romanos em causa faziam os jurisconsultos das

(') Ver, supra, pág. 311, nota 1.


(2) Lei da Boa Razão, § 9. Sobre a forma como o legislador estabeleceu a
passagem do antigo para o novo entendimento da "boa razão", ver Braga da
Cruz, O direito subsidiário, cit., págs. 288 e segs.
(3) Estatutos, liv. II, tít. 5, cap. 2, §§ 11 e segs. (na reed., cit., págs. 429 e
segs.). Quanto a estas regras e a alguns exemplos da sua aplicação, ver Corrêa
Telles, Commentario Critico, cit., coms. 50 e segs. ao § 9.

360
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

__nações europeias modernas (l). Daí que o direito romano aplicável


subsidiariamente, por força da Lei da Boa Razão, se reconduzisse
ao aceito nas obras doutrinais dos grandes autores da escola do
"usus modernus pandectarum" (2), que, assim, adquiriam, entre
nós, valor normativo indirecto como fontes supletivas.
V — Se a lacuna dissesse respeito a matérias políticas, económicas,.
mercantis ou marítimas ( ), determinava-se o recurso directo às leis das
"Nações Christãs, illuminadas, e polidas" (4). Neste caso, o direito
romano era liminarmente posto de lado, pois entendia-se que, pela
sua antiguidade, se revelava de todo inadequado à disciplina de tais
domínios, onde enormes progressos se consideravam entretanto
alcançados.
VI — A aplicação do direito canónico é. relegada para os tri-
bunais eclesiásticos. Aquele deixou de contar-se entre as fontes sub-
sidiárias. Opina o legislador que seria "erro manifesto" admitir que
no foro temporal "se pôde conhecer dos peccados, que só perten-
cem privativa, e exclusivamente ao foro interior, e á espirituali-
dade da Igreja" (5).
VII — Finalmente, também se proibiu que as glosas de Acúr-
sio e as opiniões de Bártolo fossem alegadas e aplicadas em juízo. A
mesma solução estava implícita a respeito da "communis opinio".
Para justificar esta providência, aduz o legislador as imperfeições

!----1----*
(') Estatutos, liv. II, tít. 5, cap. 3, § 7 (na reed., cit., pág. 434), onde se lê:
"Indagarão o Uso Moderno das mesmas Leis Romanas entre as sobreditas Nações,
que hoje habitam a Europa. E descubrindo, que Elias as observam, e guardam
ainda no tempo presente; terão as mesmas Leis por applicaveis".
(2) Ver, supra, págs. 348 e segs.
(3) Quanto à delimitação destas áreas, ver Corrêa Telles, Commentario
Critico, cit., coms. 127 e segs. ao § 9.
(4) Lei da Boa Razão, § 9, e Estatutos da Universidade, liv. II, tít. 5, cap. 2, §
16 (na reed., cit., págs. 430 e seg.).
(5) Lei da Boa Razão, § 12. Sobre os casos em que o direito canónico, não
obstante este preceito, continuava a aplicar-se nos tribunais civis, consultar Cor-
rêa Telles, Comtnentario Critico, cit., coms. 187 e segs. ao § 12, e Braga da
Cruz,
O direito subsidiário, cit., nota 126 da pág. 2%.

361
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

jurídicas atribuídas, tanto à falta de conhecimentos históricos e lin-


guísticos dos referidos autores, como à a sua ignorância das normas
fundamentais de direito natural e divino (1). Em suma: às críticas
herdadas do humanismo quinhentista, acrescentaram-se as que
decorriam da própria mentalidade iluminista de setecentos.

c) Os novos Estatutos da Universidade

Mais ainda do que a Lei da Boa Razão, é a reforma pomba-


lina dos estudos universitários que, de um modo especial, reflecte a
influência das correntes doutrinárias europeias dos séculos xvn e
xvill. Já houve oportunidade de aludir a essa reforma, a propósito
da formação da ciência da história do direito português (2). Recapi-
tulemos e completemos o que então se disse.
Em 1770, foi nomeada uma comissão, com o nome de Junta de
Providência Literária, incumbida de emitir parecer sobre as causas
da decadência do ensino universitário, entre nós, e sobre o critério
adequado à sua reforma. Essa comissão apresentou, no ano seguinte
(1771), um relatório circunstanciado, com o título de Compêndio
Histórico da Universidade de Coimbra, onde se faz uma crítica implacá-
vel da organização existente, reafirmando-se em grande parte o
requisitório anteriormente contido na obra de Verney.
A Junta de Providência Literária se deve, ainda, a subsequente
elaboração dos novos Estatutos da Universidade, também denomi-
nados Estatutos Pombalinos, aprovados por Carta de Lei de 28 de

(') Lei da Boa Razão, § 13. A respeito dos termos em que devia interpretar-
-se esta disposição, ver Corrêa Telles, Commentario Critico, cit., coms. 195 e
seg.
ao § 13, e também as observações de Braga da Cruz, O direito subsidiário,
cit.,
nota 128 da pág. 297. Aí se indica alguma posterior consagração legislativa (Lei
de 9 de Setembro de 1769) e jurisprudencial (Assento da Casa da Suplicação de 9
de Abril de 1772) dos elementos proscritos do quadro das fontes subsidiárias pelo
referido § 13 da Lei da Boa Razão.
(2) Ver, supra, págs. 46 e seg.

362
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Agosto de 1772. A parte referente à Faculdade de Leis e à Facul-


dade de Cânones—ta única que nos interessa aqui analisar—parece
que foi principalmente da autoria de João Pereira Ramos de Aze-
redo Coutinho (*).
O Compêndio Histórico tinha apontado como graves defeitos dos
nossos estudos jurídicos a preferência absoluta dada ao ensino do
direito romano e do direito canónico, desconhecendo-se pratica-
mente o direito pátrio (2), o abuso que se fazia do método barto-
lista, o respeito cego pela "opinio communis", o completo desprezo
pelo direito natural e pela história do direito. Ora, acolhendo essas
críticas, os Estatutos Novos consagraram uma série de relevantes
disposições. A matéria relativa aos cursos jurídicos, que continuam
bipartidos em Leis e Cânones, encontra-se condensada no seu livro
ii 0
O confronto entre o quadro de disciplinas adoptado e o que
integrava o ensino tradicional revela diferenças flagrantes. Desde
logo, veriíica-se a inclusão de matérias novas: além da cadeira de
direito natural, onde se fundiam, segundo os próprios Estatutos, não
só o direito natural em sentido estrito, mas ainda o "direito público
universal" e o "direito das gentes", estabelece-se o ensino da histó-

(l) Ver a nótula de Pedro Calmon, A reforma da Universidade e os dois


brasileiros que a planejaram, in "O Marquês de Pombal e o seu tempo" (número
especial da "Revista de História das Ideias"), cit., tomo II, págs. 93 e segs.
(2) O interesse pelas fontes jurídicas portuguesas não constituía, de resto,
uma inteira novidade. Desde a segunda metade do século xvi, o nosso direito,
embora só muito excepcionalmente atendido na Faculdade de Leis, vinha sendo,
porém, cada vez mais cultivado, através de comentários às Ordenações e a
diplomas avulsos, de estudos de processo e, de um modo especial, através da
literatura casuística voltada para a vida forense (ver, supra, págs. 323 e segs.).
(3) Quanto a esta reforma, pode ver-se a já referida síntese de M. J.
Almeida Costa, Leis, Cânones, Direito (Faculdades de), in "Dic. de Hist. de Port.",
vol. II, págs. 680 e segs. Para maiores desenvolvimentos, consultar Paulo Merèa,
Lance de olhos sobre o ensino do direito desde Í772 até Í804, in "Boi. da Fac. de Dir.",
cit., vol. XXXIII, págs. 187 e segs.

363
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

ria do direito e das instituições de direito pátrio. Não obstante, o


núcleo central dos cursos de Leis e de Cânones continuou a ser
constituído, respectivamente, pelo Corpus Iuris Civilis, sobretudo
pelo Digesto, e pelo Corpus Iuris Canonici, posto que se encarassem
estes textos de pontos de vista diversos dos anteriores (').
Muito revolucionários se apresentaram, na verdade, o novo
método e a nova orientação do ensino. Determinou-se a adopção
do método que se designava de "sintético-demonstrativo-com-
pendiário"(2), inspirado principalmente no sistema das Universida-
des alemãs. Com as palavras sucessivas que integram essa trilogia
procurou-se marcar uma clara orientação: impunha-se fornecer
aos estudantes um conspecto geral de cada disciplina, através de
definições e da sistematização das matérias, seguindo uma linha de
progressiva complexidade; passar-se-ia de umas proposições ou
conclusões às outras só depois do esclarecimento científico das pre-
cedentes e como sua dedução; tudo isto acompanhado de manuais

(') Pela reforma de 1772, ficaram a existir oito cadeiras na Faculdade de


Leis e sete cadeiras na Faculdade de Cânones, além da cadeira de direito natural,
comum a ambas as Faculdades (Estatutos, liv. II, tít. 2, cap. 5 — na reed., cit.,
págs. 287 e segs.). Havia cinco lições diárias, todas com a duração de uma hora:
três de manhã e duas de tarde. As lições da manhã, de 1 de Outubro à véspera do
Domingo de Ramos, eram das oito às onze horas, e, depois da Páscoa, das sete às
dez horas. Da parte da tarde, em cada um desses períodos, as lições tinham lugar,
respectivamente, das "duas" às "quatro" e das "três" às "sinco" horas (Estatutos,
liv. II, tít. 2, cap. 6 — na reed., cit., pág. 289). Desapareceram as designações
anteriores ligadas às horas canónicas. A formatura em Leis ou Cânones foi redu-
zida para cinco anos e aos estudantes aprovados no 4.° ano conferia-se o grau de
bacharel. Os bacharéis formados que aspirassem aos graus de licenciado e de
doutor tinham ainda um 6.° ano de "repetição", ao cabo do qual se submetiam
aos "actos grandes" (conclusões magnas e exame privado) (Estatutos, liv. II, tít. 2,
cap. 1 —na reed., cit., págs. 276 e segs.). Em contraposição, os "actos pequenos"
eram os exames que se faziam no fim de cada ano. Sobre estes vários aspectos nos
Estatutos Velhos, ver, supra, págs. 332 e segs.
( ) "Methodo Synthetico-Dewonstrativo-Compendiario" (Estatutos, liv. II, tít. 3,
cap. 1, §§ 18 e segs., em especial §§ 22 e 23 — na reed., cit., págs. 303 e segs.).

364
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

adequados, inclusive sujeitos a aprovação oficial. De acordo com o


método analítico, até então seguido, o lente não raro ocupava o ano
inteiro no comentário de uma lei ou de um título do direito
romano ou do direito canónico, levando a exegese às derradeiras
minúcias(l). Atribuía-se-lhe, agora, a missão de organizar a sua
docência de modo a que abrangesse toda a matéria do programa,
com o objectivo de os estudantes alcançarem uma visão de con-
junto e cientificamente ordenada de cada uma das disciplinas.
Aquele antigo método sobreviveu apenas em duas cadeiras do
fim do curso, para aprendizagem da interpretação e execução das
leis. Porém, tal análise dos textos deveria ser antecedida de noções
gerais de hermenêutica jurídica e relativas à aplicação das normas
aos casos ocorrentes.
Traçou-se minuciosamente o programa das várias cadeiras e
impôs-se aos professores a escola de jurisprudência considerada pre-
ferível. Assim, no tocante aos direitos romano e canónico, o tradi-
cional método escolástico ou bartolista foi substituído pelas direc-
trizes histórico-críticas ou cujacianas. Mas, por outro lado, tendo
em vista a aplicação do direito romano a título subsidiário, que a
Lei da Boa Razão determinara pouco tempo antes (2), consagravam-
-se os princípios da corrente do "usus modernus pandectarum", sob
influência da literatura jurídica alemã (3).
Uma aspiração da reforma consistiu em os professores organi-
zarem compêndios "breves, claros e bem ordenados" (4), que subs-
tituíssem as tradicionais postilas — ou seja, os apontamentos manus-
critos que circulavam entre os estudantes, reproduzindo grosseira-
mente as prelecções das aulas. Enquanto se aguardava a sua
elaboração, seguir-se-iam as correspondentes obras estrangeiras,
que não escasseavam, sobretudo, na Alemanha e Itália. Mas a utili-

(*) Ver, supra, págs. 333 e seg.


(2) Ver, supra, págs. 356 e segs.
(3) Ver, supra, págs. 348 e seg.
(4) Estatutos, liv. II, tít. 3, cap. 1, § 20 (na reed., cit., pág. 304).

365
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

zação provisória desses livros acabou por se ir prolongando em face


do inêxito do plano dos compêndios portugueses.
Num balanço global, tem de reconhecer-se que as modifica-
ções pombalinas testemunham um esforço consciente com vista a
introduzir no ensino português certas modernidades que faziam
carreira além-fronteiras. A apreciação de conjunto é manifesta-
mente positiva: o plano dos nossos estudos jurídicos não destoava
dos da Europa culta. Contudo, apesar da substituição do corpo
docente a que se procedeu e dos cuidados que o próprio Marquês
de Pombal e o reitor Francisco de Lemos (') dispensaram aos pri-
meiros passos da execução dos Estatutos, deve concluir-se que os
progressos do ensino jurídico estiveram longe de corresponder aos
desejos dos reformadores.
A breve trecho surgiram críticas ao sistema vigente e novos
projectos. Merecem realce, nesse capítulo, os nomes de António
Ribeiro dos Santos e Ricardo Raimundo Nogueira, respectiva-
mente, lentes de Cânones e de Leis(2). As críticas, todavia, não
abalaram o prestígio dos Estatutos Pombalinos, que se manteriam
sem modificações essenciais até 1836 (3).
Apenas são dignas de nota as providências complementares
promulgadas, logo pelos começos do século xix, a respeito do

(') Oferece interesse a exposição de Francisco de Lemos, Relação Geral


do
Estado da Universidade (1977), Coimbra, 1980. Destinou-se a ser presente a D.
Maria I, tendo-a publicado pela primeira vez Teófilo Braga, em 1894.
(2) Ribeiro dos Santos qualificava a obra educativa de Pombal de "edifício
ruinoso", porquanto, além de outras faltas graves, "o amor das Letras e génio
literário não presidiram à sua reformação" (Mss. da Biblioteca Nacional, vol.
130, fl. 205, apud Teophilo Braga, Historia da Universidade de Coimbra, tomo
III,
(1700 a 1800), Lisboa, 1898, pág. 571, e M. H. da Rocha Pereira, Ecos da
Reforma
Pombalina na Poesia Setecentista, in "Bracara Augusta", cit., vol. XXVIII, págs.
313
e segs., designadamente pág. 324.
(3) Ver Paulo Merêa, O ensino do direito em Portugal de 1805 a 1836, in
"Jurisconsultos Portugueses do Século xix" (Direcção e colaboração de José
Pinto Loureiro), vol. I, Lisboa, 1947, págs. 149 e segs.

366
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

recrutamento do corpo docente (]) e do plano de estudos ( ). A


organização do ensino jurídico continuou a basear-se na reforma
Josefina. Verificou-se, porém, uma importante alteração que con-
trariava a primazia que subsistira quanto ao direito romano e ao
direito canónico.
Efectivamente, devido às modificações de 1805, o direito por-
tuguês passou a abranger duas cadeiras sintéticas e uma analítica.
Além disso, criou-se uma cadeira independente de prática judicial e
ficaram a existir duas cátedras de direito natural, sendo a segunda
delas dedicada ao estudo autónomo do direito público universal e
das gentes. Todas essas disciplinas eram comuns às Faculdades de
Leis e de Cânones, que, portanto, apenas se separavam relativa-
mente ao ensino desenvolvido do direito romano e do direito canó-
nico. Alcançaram-se, aliás, apreciáveis melhorias no próprio ensino
romanistico e canonístico.

61. Literatura jurídica

Fez-se uma síntese do que a época do jusracionalismo trouxe


em matéria de ciência e estudo do direito, assim como se indicaram
as suas correntes inspiradoras. Complementa a exposição uma
breve análise da subsequente literatura jurídica, a qual se relaciona,
não só com o ensino universitário, mas também com a prática
forense (3).
O mais destacado executor das novas orientações foi Pascoal
José de Mello Freire dos Reis, que já referimos ao tratar da criação

(') Alvará de 1 de Dezembro de 1804.


(2) Alvará de 16 de Janeiro de 1805.
(3) Sobre esta época, ver Mário Reis Marques, Elementos para uma
aproxi-
mação do estudo do "usus modemus pandectarum" em Portugal, in "Boi. da Fac. de
Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II, págs. 801 e segs.

367
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

da ciência da história do direito português (]). A sua obra, no


entanto, ultrapassa de longe o âmbito historiográfico-jurídico.
Observou-se o empenho que os poderes públicos puseram na
elaboração de compêndios para o ensino universitário. Todavia,
apesar das sucessivas insistências e de os lentes comissionados se
haverem lançado ao trabalho, apenas os manuais de Mello Freire
vieram a ser oficialmente aprovados. Formam eles um tríptico res-
peitante: à história do direito pátrio; às instituições do direito pátrio,
abrangendo quatro livros, que tratam do direito público, sob múlti-
plos aspectos (liv. I), do direito das pessoas, em que se inclui o
direito da família (liv. II), do direito das coisas, abrangendo o direito
sucessório (liv. III), e das obrigações e acções (liv. IV); e às institui-
ções de direito criminal, que, dada a especificidade da matéria, se
versaram autonomamente ( ),
A Historia significa como que uma introdução às Institutiones. E
estas condensam, nos seus cinco livros, correspondentes a outros
tantos volumes, todo o direito português do tempo, quer público,
quer privado. Quanto ao último, adopta-se o plano clássico, usado
nas instituições romanas, da divisão em pessoas, coisas e acções.
Pela primeira vez o nosso sistema jurídico foi exposto de uma
forma sistemática.

(') Cfr., supra, pág. 47


(2) O mencionado tríptico de Mello Freire abrange, com eleito, a
Historia
luris Civilis Lusitani, Lisboa, 1788, as Institutiones luris Civilis Lusitani, cum Publici tum
Privati, Lisboa, 1789/1793 (liv. 1 — 1789; livs. II e III —1791; liv. IV —1793), e as
Institutiones luris Criminalis Lusitani, Lisboa, 1794. Pertenceu à Real Academia das
Ciências de Lisboa a iniciativa de promover a l.a ed. da hlistoria e das Institutiones
(sessões de 13 de Março e de 10 de Novembro de 1788). Já se indicou que existe
tradução para português dessas obras redigidas em latim (ver, supra, nota 3 da
pág. 47). Os vários compêndios receberam aprovação para as cadeiras corres-
pondentes. As Institutiones através de Aviso Régio de 7 de Maio de 1805 e largo
tempo assim se manteriam. A vinculação de Mello Freire a posições do Despo-
tismo Esclarecido fez com que a sua obra acabasse por ser posta no Índice dos
Livros Proibidos, em 7 de Janeiro de 1836.

368
período da formação do direito português moderno

Tais compêndios representam o núcleo fundamental da obra


de Mello Freire. Da sua restante produção científica, destaca-se a
referente à participação que teve na tentativa de reforma das
Ordenações realizada nos começos do século XIX e que adiante se
versará (').
Mello Freire identificou-se com a corrente do "uso moderno",
revelando-se perfeito conhecedor da bibliografia estrangeira mais
expressiva. Talvez a dispersão das matérias versadas prejudique
algumas vezes a profundidade com que aborda os temas. Não se
discute, todavia, que foi um jurista de excepcional envergadura. Só
por si marca uma época. Atribui-se-lhe a posição de precursor do
nosso direito penal moderno, fazendo-se eco do pensamento ilu-
minista e humanitário (2). Mas também nos outros ramos do direito
teve enorme influência sobre os juristas portugueses que se lhe segui-
ram (3). Os seus escritos constituíram, durante largo tempo, o ali-
cerce do ensino, da literatura jurídica e da vida prática (4).

(') Ver, infra, págs. 372 e segs.


(2) Não falta quem o compare aos grandes reformadores, como Montes-
quieu, Voltaire, Beccaria ou Christian Thomasius (cfr. Hans-Heinrich Je-
scheck, Príncipes et solutions de la politique críminelle dans la reforme allemande et portu-
gaise, in "Estudos 'in memoriam' do Prof. Doutor José Beleza dos Santos", vol. I,
Coimbra, 1966, págs. 436 e segs.). Quanto ao problema básico do direito de
punir, Mello Freire, sob influência manifesta do pensamento da época, deriva-o
da ideia de contrato ou pacto social. Neste contexto, sequaz de Grócio e Wolff,
afasta a vingança do conceito de sanção jurídico-penal e afirma que a pena tem
de ser imposta por uma entidade superior, consistindo, pois, no "mal físico apli-
cado, por causa do mal moral, por aquele que tem o direito de obrigar" (Institu-
tiones Iuris Criminalis, cit., tít. I, §§ XI e XII). Relativamente aos fins das penas,
Mello Freire põe de lado qualquer unilateralidade doutrinal e atribui-lhes um
tríplice objectivo: "a segurança do lesado, a emenda do lesante, e o exemplo dos
outros" (Institutiones iuris Criminalis, cit., tít. I, § XIII).
(') M. de lmeida e Sousa (Lobão), in Notas de Uso prático e Críticas,
etc,
parte I, Lisboa, i847, pág. 3, refere-se-lhe como o "grande, e nunca assaz louvá-
vel Papiniano deste reino". Essa obra de Lobão é precisamente uma vasta anota-
ção às Institutiones de Mello.
(4) Quanto à bibliografia sobre Mello Freire, além da que se indicou,
supra, pág. 47, nota 3. >r Peter HOnerfeld, Die Entwicklung der Kriminalpolitik
in

369
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Pelos fins do século xvm e começos do século xix, devem


ainda mencionar-se outros jurisconsultos de relevo. Ligados à
docência universitária, salientam-se Ricardo Raimundo Nogueira (')
e Francisco Coelho de Sousa e Sampaio ( ), ambos lentes de Leis.
Não se esqueça, também, António Ribeiro dos Santos. O nome
deste lente de Cânones ficou especialmente relacionado com a
famosa polémica que o opôs a Mello Freire, quanto ao projecto de
reforma do direito público ( ), daqui a pouco abordado. A sua cul-
tura histórico-jurídica ombrearia com a de Mello. Só que não dei-
xou uma obra que à dele possa comparar-se.
A literatura jurídica da época esteve longe de se circunscrever
ao claustro da Universidade. Assinalam-se alguns cientistas práticos
que, voltados para a vida forense, elaboraram escritos de vulto.
Um deles foi Manuel de Almeida e Sousa, geralmente conhe-
cido por Lobão, em virtude de nessa pequena localidade das Beiras

Portugal, Bonn, 1971, págs. 37 e segs., Francisco José Velozo, "Prefácio"


à
tradução das Instituições de Direito Criminal, in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 155,
págs. 5 e segs., G. Braga da Cruz, O movimento abolicionista e a abolição da pena de
morte em Portugal, cit., págs. 49 e segs., Eduardo Correia, Estudos sobre a
evolução
das penas no direito português, Coimbra, s. d., págs. 66 e segs. (sep. do "Boi. da Fac.
de Dir.", cit., vol. LIII), e Manuel Augusto Rodrigues, Subsídios para a história
da
Faculdade de Cânones, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II, págs. 569
e segs., especialmente págs. 570 e segs.
( ) A respeito da obra deste autor, ver, supra, pág. 50, nota 2.
(2) Publicou as já cit. Prelecções de Direito Pátrio Público e Particular, Coimbra,
1793/1794, e, pouco depois de jubilado, as Observações às Prelecções de Direito Pátrio,
Lisboa, 1805. Quanto a este autor, veja-se Paulo Merêa, Notas sobre alguns
lentes
de Direito Pátrio no período 1772-1804, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVI,
págs. 325 e seg. As mencionadas Prelecções foram incluídas, parcialmente, na obra
de António Manuel Hespanha, Poder e Instituições na Europa do Antigo
Regime.
Colectânea de Textos, Lisboa, 1984, págs. 395 e segs.
(3) Sobre Ribeiro dos Santos e a sua obra, ver, supra, pág. 50, nota 3, e,
infra, págs. 374 e seg.

370
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

ter aberto banca de advogado, a que acorriam consulentes de pon-


tos distantes. Publicou uma obra extensa (*). Isso explicará que a
mesma se ressinta do defeito de os problemas nem sempre se apre-
sentarem estudados com a meditação adequada. Parecem exagera-
das, todavia, as críticas de muitos dos contemporâneos e dos autores
que se lhe seguiram, pois Almeida e Sousa afirmou-se como um dos
juristas mais argutos do tempo em que viveu. Acresce o mérito da
intervenção enorme que teve na vida prática.
Consideravelmente menos vasta e menos variada quanto aos
temas versados, mas oferecendo maior apuro, é a produção cientí-
fica de Joaquim José Caetano Pereira e Sousa. Ocupou-se, sobre-
tudo, da processualística e do direito penal (2). Também se dedicou
à vida forense, exercendo a advocacia na Casa da Suplicação. Os
seus escritos encontram-se exemplarmente redigidos, o que reflecte
o pendor literário que manifestou desde a adolescência.
Ainda no âmbito dos jurisconsultos que nessa época se notabi-
lizaram fora do ensino universitário, deve indicar-se Vicente José
Ferreira Cardoso da Costa, baiano pelo nascimento. Foi muito
efémera, na verdade, a sua passagem pelo professorado, onde regeu
extraordinariamente, como opositor, durante o ano lectivo de
1788/1789 (3). Enveredou pela magistratura e pela advocacia, onde
teve posições destacadas. A obra mais importante de Cardoso da
Costa, em que revela perfeito conhecimento das codificações

(l) Relativamente à biografia e à obra deste autor, veja-se José Pinto


Loureiro, Manuel de Almeida e Sousa, in "Jurisconsultos Portugueses do Século
xix", cit., vol. I, págs. 240 e segs.
(2) Fizeram carreira as suas obras Primeiras linhas sobre o processo criminal,
Lisboa, 1785, Classes de Crimes, Lisboa, 1803, e Primeiras linhas sobre processo civil,
Lisboa 1810/1814.
(3) Versou nas suas lições o direito enfitêutico, tendo composto com fins
didácticos os Elementa iuris emphyteutici Commodo methodo inventati academiae omata,
Coimbra, 1789. Mais tarde, em defesa das opiniões aí sustentadas, publicou o
opúsculo Analyse das Theses de Direito Emphyteutico, Coimbra, 1814.

371
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

estrangeiras, constitui o trabalho que publicou visando a elabora-


ção, entre nós, de um Código Civil (]). Nele se expressam algumas
valiosas ideias sobre o movimento codificador. Parece haver sido
muito influenciado pelo utilitarismo de Jeremy Bentham
(1748/1832), o célebre filósofo inglês que tanto se ocupou do
tema(2).

62. O chamado "Novo Código". Tentativa


de reforma das Ordenações

Encerramos a época jusracionalista com uma alusão rápida ao


projecto de reforma das Ordenações Filipinas que ficou conhecido
por "Novo Código". Situa-se no reinado de D. Maria I(3).

(l) Tem o título Que he o Código Civil?, Lisboa, 1822. Sobre este autor,
veja-se Luís da Silva Ribeiro, Vicente Cardoso da Costa, in "Jurisconsultos
Portu-
gueses do Século xix", cit., vol. I, págs. 421 e segs.
(2) Bentham ofereceu, em 1821, às nossas Cortes, projectos de Código
Constitucional, de Código Civil e de Código Penal, os quais não foram aceitos.
Todavia, a sua obra teve, entre nós, apreciável difusão. Sobre este autor, vejam-
-se Jacques Verunden, Code et codification datis la pensée de Jeremy Bentham,
in
"Révue d'Histoire du Droit" ("Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis"), tomo
XXXII, La Haye, 1964, págs. 45 e segs., e Mohamed el Shakankiri, La
philoso-
phie juridique de Jeremy Bentham, Paris, 1970.
( ) Quanto à história do "Novo Código", consultar as sínteses pormenori-
zadas de Braga da Cruz, O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte, cit.,
nota 96 da pág. 50, e de MArio Reis Marques, O Liberalismo e a Codificação
do
Direito Civil em Portugal, cit., págs. 96 e segs.
Também se promoveu, um pouco mais tarde, a elaboração de um Código
Penal Militar. Para o efeito, foi designada uma comissão por Decreto de 21 de
Março de 1802. O projecto só ficou concluído em Agosto de 1820, tendo D. João
VI, a 7 desse mesmo mês, determinado a sua observância em Portugal e no
Brasil. Todavia, o Código e o respectivo alvará de confirmação nunca foram
objecto de publicação oficial (ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist.
do
Dir. Port., cit., vol. I, pág. 288).

372
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Era manifesta, cada vez mais, a necessidade de actualização


das Ordenações Filipinas. D. João IV chegou mesmo a vincular-se
nesse sentido (*). Contudo, as várias tentativas nunca foram por
diante. Atinge-se, assim, o tempo de D. Maria I, que, através do
Decreto de 31 de Março de 1778, criou uma "Junta de Ministros"
com "a obrigação de se ajuntarem ao menos huma vez em cada
semana", tendo por objectivo proceder à reforma geral do direito
vigente (2). A essa comissão se agregaram dez colaboradores.
Dever-se-ia averiguar, não só quais as normas contidas
nas
Ordenações e leis extravagantes que conviria suprimir por antiqua-
das, mas também as que se encontravam total ou parcialmente
revogadas, as que vinham levantando dúvidas de interpretação na
prática forense e as que a experiência aconselhava a modificar.
Constituíam os trabalhos preparatórios de um novo corpo legisla-
tivo. Aliás, expressamente se recomendava que nele se seguisse a
sistematização básica das Ordenações. E isto porque se admitia que
um outro método, "ainda que melhor na opinião de alguns", pode-
ria criar dificuldades aos julgadores, familiarizados com a tradição
arreigada.
Procurava-se, em suma, a simples actualização das
Ordena-
ções, posto que uma parte dos membros da Junta defendesse a rea-
lização de obra com rasgos inovadores. Deste modo, pelo menos à
partida, a iniciativa de D. Maria I tinha um sentido muito diverso
das codificações modernas, profundamente reformadoras, que no

C) Ver, supra, pág. 287.


(2) Presidia à referida Junta o Visconde de Vila Nova de Cerveira, então
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino. Eram seus vogais os
Doutores José Ricalde Pereira de Castro (Desembargador do Paço), Manuel
Gomes Ferreira (Desembargador dos agravos da Casa da Suplicação), Bartolo-
meu José Nunes Giraldes de Andrade (Procurador da Fazenda do Ultramar) e
João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho (Procurador da Coroa).

373
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

estrangeiro iam surgindo da confluência do pensamento jusraciona-


lista e iluminista (*).
Algum trabalho feito sobre vários temas de direito privado e
de processo deixará entrever certa actualidade e que se esteve em
vias da elaboração de um autêntico Código, apesar de serem diver-
sas as matérias abrangidas (2). Mas não chegou a referida comissão
a propostas de vulto. Entretanto, no ano de 1783, Mello Freire foi
encarregado da revisão do livro II das Ordenações e, em seguida,
do livro V, relativos, como sabemos, respectivamente, ao direito
público político-administrativo e ao direito criminal (3).
Resultaram do seu esforço os projectos de Código de Direito
Público e de Código Criminal. Para apreciá-los, assim como o mais
que se realizara, nomeou-se, em Decreto de 3 de Fevereiro de 1789,
uma "Junta de Censura e Revisão", onde se integrava António
Ribeiro dos Santos. Já salientámos o grande mérito deste jurista (4).
Começou-se pelo projecto de Código do Direito Público, que
levantaria uma forte polémica entre Ribeiro dos Santos e Mello
Freire. O último mostrava-se partidário das ideias absolutistas, ao
passo que o primeiro militava no campo dos princípios liberais.
Mello Freire reagiu vivamente às críticas ditadas pelo liberalismo,
aliás, bastante moderado e ainda algo confuso, de Ribeiro dos San-
tos (5). Tal polémica, bem classificada como "formidável saba-

(!) Ver, infra, págs. 394 e segs.


(2) Cfr. Mário Reis Marques, O Liberalismo e a Codificação do Direito
Civil
em Portugal, cit., págs. 99 e segs.
(3) Ver, supra, págs. 273 e seg., 279 e seg., e 285 e seg.
(4) Ver, supra, págs. 50 e 370
( ) Ver Paulo Merêa, O poder real e as cortes, Coimbra, 1923, págs. 54 e
segs., e Lições de História do Diráto Português (ed. de 1933), cit., págs. 216 e seg., e o
já cit. estudo de José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no
século
xvni: António Ribeiro dos Santos, Lisboa, 1983.

374
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

tina'^1), fornece um contributo expressivo para o estudo do pen-


samento político português dos fins do século xvm.
O projecto de Código de Direito Público acabaria por não
vingar ( ). A mesma sorte teve o projecto de Código Criminal, que
nem sequer chegou a ser discutido (3). Deve dizer-se que este
representava um significativo progresso, embora Mello Freire ainda
se mostrasse demasiado prisioneiro do quadro punitivo das Ordena-
ções. As suas Institutiones revelam-se mais conformes aos postulados
iluministas e humanitaristas. Essa diferença talvez derive, ao menos
em parte, do realismo a que a tarefa legislativa, sob risco de inefi-
cácia, não pode ser indiferente — no caso concreto, a consciência
da falta de meios materiais necessários para a melhoria do sistema
de execução das reacções penais.
Assim fracassou mais uma tentativa de reforma das antiquadas
Ordenações Filipinas. As circunstâncias não se lhe apresentaram
favoráveis. Sobretudo, vivia-se num período de transição ou com-
promisso: o Despotismo Esclarecido encontrava-se no ocaso e as
ideias da Revolução Francesa ainda mal se avistavam entre nós.

( ) "Por ora é a crise ainda de transição e ela está definida nessa formidá-
vel e esquecida sabatina travada entre dois dos nossos maiores engenhos do século
xvm", segundo escreveu JoAo Maria Tello de Magalhães Collaço, Ensaio
sobre
a inconstitucionalidade das Leis no Direito Português, Coimbra, 1915, pág. 32. Ver,
também, Paulo Merêa, O poder real e as cortes, cit., pág. 55.
(z) Sobre o tema, consultar F.-P. de Almeida Langhans, O Novo Código
de
Direito Público de Portugal, in "Estudos de Direito", Coimbra, 1957, págs. 357 e
segs.
( ) A impressão de ambos os projectos verificou-se depois do falecimento
do seu autor: a l.a edição do projecto de Código Criminal surgiu, em Lisboa, no
ano de 1823, e a l.a edição do projecto de Código de Direito Público, em Coim-
bra, no ano de 1844. Também nesta última data, a Imprensa da Universidade de
Coimbra publicou a 3.a edição do projecto de Código Criminal, assim como as
referidas críticas de Ribeiro dos Santos à reforma do direito público (ver, supra,
pág. 50, nota 3) e a resposta de Mello Freire.

375
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Nem um caminho nem o outro, consequentemente, propiciava


modificações legislativas de fundo. Haveria que esperar pelo ciclo
imediato (*).

(l) Não teve êxito a ideia da promulgação, no nosso país, das codificações
francesas da época, mormente do Code Civil, que chegou a conceber-se, em 1808,
quando da primeira invasão das tropas napoleónicas. Inclusive, promoveu-se a
sua tradução. Existiu certa receptividade de alguns círculos liberais e o próprio
Napoleão Bonaparte manifestou o desejo de que se imprimisse e publicasse esse
Código em Portugal. Junot, numa carta dirigida a Napoleão, declara-se de opi-
nião contrária, alegando as diferenças entre o direito português e o das novas
codificações francesas, mas, ao mesmo tempo, informa que o Código de Processo
Civil estava a ser impresso e que o Código Comercial se encontrava traduzido.
Ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, pág.
287,
Pedro Barbas Homem, Algumas notas sobre a introdução do Código Civil de
Napoleão
em Portugal, em í 808, in "Revista Jurídica", cit., nova série, n.os 2 e 3, Lisboa,
1985, págs. 97 e segs., e Mário Reis Marques, O Liberalismo e a Codificação
do
Direito Civil em Portugal, cit., págs. 110 e segs.

376
§2.°

ÉPOCA DO INDIVIDUALISMO
63. Aspectos gerais do individualismo político
e do liberalismo económico

No domínio do pensamento europeu, a propósito do


trânsito
do século xvill para o século xix, costumam assinalar-se, com per-
tinência, duas fases bem distintas: uma primeira, caracterizada por
atitude de crítica ao Iluminismo e durante a qual se desenvolveram
os movimentos da Contra-Revolução, do Romantismo e do Idea-
lismo alemão; uma segunda fase, cujo ponto de partida se faz coin-
cidir, simbolicamente, com a morte de Hegel, no ano de 1831, em
que se assiste à reentrada dos princípios da Revolução e iluminísti-
cos, favorecidos pelo condicionalismo histórico. Cabe recordar a
evolução económica, o triunfo da burguesia e os progressos das
ciências naturais. Porém, apenas se focam alguns vectores ligados
directamente ao objecto da exposição (*).
Como não se desconhece, na base de toda a construção ideo-
lógica e filosófica do século xix está o princípio de que o homem
nasce dotado de certos direitos naturais e inalienáveis, e que a
exclusiva missão do Estado — de raiz pactícia e sem fins
próprios — é a promoção e salvaguarda desses direitos individuais e
originários (2). Ora, visto que tais direitos se reconduzem às dife-
rentes formas que pode revestir o direito de liberdade (religiosa,

(*) Quanto à exposição seguinte, ver M. J. Almeida Costa,


Enquadramento
histórico do Código Civil português, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
XXXVII,
págs. 138 e segs.
( ) Ver, supra, pág. 351.

379
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS

política, jurídica), logo resulta — em ligação íntima à ideia da


liberdade de todos e como meio indispensável para assegurá-la — a
ideia de igualdade. No capítulo da origem do poder, alcança-se
directamente o outro corolário lógico daquele ponto de partida: o
princípio da soberania popular e nacional.
Dando um passo adiante, encontramo-nos em face das ideias
do governo representativo, da monarquia constitucional e parla-
mentar, da separação de poderes e das constituições escritas. Aqui,
pisa-se o terreno mais propriamente político e técnico-jurídico dos
meios de realização daqueles postulados básicos.
Os referidos princípios — se exceptuarmos a separação de
poderes e, de certo modo, o parlamentarismo — não eram inteira-
mente novos, como formulações teóricas ou mesmo realidades
sociais. De facto, poderemos assinalar-lhes arquétipos nas doutrinas
dos filósofos católicos de S. Tomás aos neo-escolásticos dos séculos
XVI e xvil ( ) ou nas construções dos filósofos e juristas da chamada
Escola do Direito Natural ( ). Nem será demasiado recordar, no
plano do direito positivo, os contratos dos colonos ingleses da Amé-
rica do século XVI e as Constituições norte-americana das duas cen-
túrias imediatas; isto, se não quisermos recuar ao século XIII, à pura
consagração instintiva e realista do Espelho da Saxónia ("Sachsen-
spiegel")( ) ou dos forais do nosso direito peninsular, com a sua

(') Ver, supra, págs. 335 e segs.


(2) Ver, supra, págs. 345 e segs.
(3) Consiste numa compilação de direito popular organizada por Eike von
Repgow, que surgiu na terceira década do século xm e obteve um êxito enorme,
mesmo para além das fronteiras alemãs. Aliás, não faltaram ao seu autor propósi-
tos jusnaturalistas voltados para o mundo inteiro, afirmando a liberdade e a
igualdade de todos os homens. Foi traduzido para latim, holandês e polaco. Nele
se inspiraram outros dos chamados livros de direito ("Rechtsbucher") (ver
Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., especialmente págs. 109 e seg., e
Thieme,
Unidad y pluralidad en la historia dei Derecho europeo, cit., in "Rev. de Der. Priv.",
tomo XLIX, pág. 696; também se refere à obra mencionada L. Cabral de
Mon-
cad'a , Origens do moderno direito português — Época do individualismo filosófico ou crítico,
in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. II, designadamente nota 2 da pág. 69).

380
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

preocupação de garantir, por exemplo, o direito de resistência à


opressão, a propriedade, o carácter inviolável do domicílio, e de
assegurar a igualdade política dos membros dos grémios concelhios,
excluindo os privilegiados (!).
Dir-se-á que o que se apresentava agora efectivamente origi-
nal não eram as ideias em si, mas o "carácter universalista e
humano" que elas assumiam, organizadas num sistema completo,
divergindo nas concepções fdosóficas que tomavam por base, na
orientação e nas consequências a que se deixariam arrastar. Como
era singularíssimo o condicionalismo histórico que permitia a essas
ideias antigas, reelaboradas pelo pensamento francês, alcançar uma
irradiação e uma eficácia sem precedentes ( ).

Considerámos o aspecto do individualismo político. Todavia, a


seu lado, proclamou-se o liberalismo económico, que interessa
igualmente advertir neste breve preâmbulo.
E do conhecimento geral que, desde a segunda metade do
século XVIII, o mercantilismo do Estado de Polícia começou a per-
der terreno, com o seu forte intervencionismo e com a sua com-
preensão dos Estados como unidades que se impunha conservar iso-
ladas ao máximo, através de uma rígida fiscalização do comércio
externo e de elevadas pautas alfandegárias. Tratava-se, aliás, menos
de teoria do que de regras ancoradas no conceito de que a riqueza
das nações, como a dos indivíduos, se obtinha apenas aumentando o
estoque de metais preciosos.
Recordemos que os primeiros a pensar de modo diverso foram
os fisiocratas franceses. Afirma-se a existência de uma ordem eco-
nómica natural onde reina a perfeita harmonia entre o interesse de

(') Sobre os antecedentes e a formação dos vários princípios constitucio-


nais modernos, consultar B. Tierney, Religion, law and the growth of constitutional
thought, 1150-1650, Cambridge, 1982.
( ) Ver Cabral de Moncada, Origens do moderno direito português, cit.,
in
"Est. de Hist. do Dir.", vol. II, especialmente págs. 58 e segs.

381
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

cada indivíduo e o interesse colectivo, desde que se garanta inteira


liberdade de trabalho, de indústria e de comércio. Por consequên-
cia, a intervenção do Estado deve limitar-se ao mínimo indispensá-
vel à salvaguarda deste livre jogo económico. Era já a doutrina do
célebre "laissez faire, laissez passer", que a Escola Clássica inglesa,
logo em seguida, haveria de retomar e desenvolver com rigor
extremo.
Na realidade, se os fisiocratas negavam o dirigismo mercanti-
lista, conservavam-se ainda tributários de uma compreensão estreita
da vida económica, enquanto apenas ligados à agricultura; como,
do ponto de vista político, estavam comprometidos, ao menos sen-
timental e cronologicamente, com a monarquia absoluta. Não
admira, pois, que a verdadeira definição das coordenadas económi-
cas dos novos tempos pertencesse a Adam Smith e aos seus proséli-
tos. Alargava-se, decididamente, a visão do mundo económico: por
um lado, superando a perspectiva acanhada que os fisiocratas tive-
ram do fenómeno da produção; por outro lado, preconizando, sem
rodeios, o livre câmbio internacional(l).
A propósito, merece a pena sublinhar um aspecto. O de que
os grandes pensadores ingleses, David Hume e Adam Smith,
embora voltados para a formulação de princípios e sistemas sobre o
comum a todos os homens, serviram, ao mesmo tempo, os interes-
ses nacionais do seu país (2).
Sabe-se que a última palavra, nesta linha de pensamento, foi
proferida por Stuart Mill, nos meados do século xix, ele próprio

(') Consultar, por ex., Charles Gide/Charles Rist, Histoire des


doctrines
économiques— Des physiocrates àj. Stuart Mill, 7.a ed., Paris, 1947, e Mark Blaug,
Economic Theory in Retrospect, 4.a ed., Cambridge, 1985. É interessante o estudo de
Giorgio Rebuffa, // contributo delia fisiocrazia alia formazione delia nozione di
imprendi-
tore, in "La formazione storica dei diritto moderno in Europa", cit., vol. III,
págs. 1347 e segs.
(2) Franz Schnabêl, in "Historia Universal", dirigida por Walter
Goetz
(versão espanhola de M. GarcIa Morente), tomo VI (El siglo XVIII en
Europa),
Madrid, 1934, págs. 177 e segs., designadamente pág. 210.

382
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

também um novo ponto de partida. Mas paremos aqui — na altura


em que o liberalismo político e o liberalismo económico se dão
decisivamente as mãos — e desçamos do plano das ideias ao plano
dos factos que se lhes seguiram. Limitamo-nos, naturalmente, ao
que se passou aquém-fronteiras, sendo muitíssimo sucintos e des-
crevendo apenas os tópicos fundamentais que interessem ao nosso
objectivo.

64. Transformações no âmbito do direito político

O referido complexo de formulações políticas e económico-


-sociais não tardou demasiado a penetrar na vida portuguesa (*).
Igualmente tomaram a dianteira, entre nós, as ideias económicas,
enquanto elas não pareciam capazes de afectar os alicerces da
monarquia absoluta. Assim, já de 1789 a 1815, a Academia Real das
Ciências de Lisboa trouxe a público as suas Memórias Económicas,
onde é notória a influência dos fisiocratas; e também, na altura,
poderemos assinalar os economistas Acúrsio das Neves, Silva Lisboa
e Rodrigues de Brito (pai), como os mais ilustres divulgadores da
doutrina smithiana, que se tratava de adaptar ao nosso país, essen-
cialmente agrícola e de fraca industrialização (2). Quanto às ideias
políticas, por essa mesma época, o liberalismo temperado de um
Ribeiro dos Santos ( ) representava ainda simples guarda avançada

(') Ver M. J. Almeida Costa, Enquadramento histórico do Código Civil portu-


guês, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVII, especialmente págs. 143 e
segs., com indicações bibliográficas.
(2) Ver Moses Bensabat Amzalak, A economia poktica em Portugal. O
eco-
nomista José Acúrsio das Neves, I — Bibliografia, II — Doutrinas económicas, Lisboa,
1920/1921, A economia politica em Portugal. O Fisiocratismo. As Memórias Económicas da
Academia e os seus colaboradores, Lisboa, 1922, A economia política em Portugal. O Fisio-
cratismo. José Joaquim Rodrigues de Brito, Lisboa, 1923, A economia potttica em Portugal.
As memórias económicas de António Araújo Travassos, Lisboa, 1923, e Do estudo e da
evolução das doutrinas económicas em Portugal, Lisboa, 1928.
(3) Ver, supra, págs. 374 e seg.

383
HISTÓRIA IX) DIREITO PORTUGUÊS

da infiltração dos princípios que as letras e as invasões francesas


viriam a favorecer.
Em todo o caso, o primeiro sistema liberal português
inaugurou-se, apenas, com a Revolução de Agosto de 1820 (J), a
que não foi estranho o levantamento espanhol que, em Janeiro
desse mesmo ano, restabeleceu a Constituição de Cádiz. O parale-
lismo dos dois movimentos peninsulares evidencia-se até na circuns-
tância de em Portugal se ter pretendido aceitar provisoriamente a
Constituição espanhola. Chegou a haver para o Brasil, onde se encon-
trava a Corte, uma decisão do rei nesse sentido, embora revogada
no dia imediato. E os deputados às constituintes de Lisboa foram
eleitos segundo o sistema dessa Constituição de Cádiz, que, de
facto, muito influenciou a sua irmã portuguesa de 1822. Ficam con-
sagrados, desde logo, o princípio da soberania nacional e, como
direitos individuais do cidadão, a liberdade, a segurança e a pro-
priedade. O princípio da igualdade levou à supressão de certos pri-
vilégios judiciais e do privilégio das coutadas. Na esfera económica,
porém, é que o Vintismo esteve longe de produzir uma autêntica
transformação, limitando-se a pouco mais do que a esboçar o sen-
tido das reformas futuras.
A palavra seguinte pertenceu à Contra-Revolução. Em 1823,
como consequência da Vilafrancada — golpe de Estado patrocinado
pela rainha e pelo infante D. Miguel —, abolia-se o regime consti-

(') Tomou o nome de Sinédrio o grupo de individualidades que, chefiadas


por Manuel Fernandes Tomás, desembargador da Relação do Porto, preparou,
desde Janeiro de 1818, a Revolução de 24 de Agosto de 1820, instalando no Porto
o regime liberal. Dele tez parte, entre outros, José Ferreira Borges, ao tempo
advogado da Relação do Porto e secretário da Junta Geral da Companhia de
Agricultura das Vinhas do Alto Douro. O grupo devia reunir-se, estatutaria-
mente, a 22 de cada mês, em jantar na Foz, para os seus membros relatarem os
acontecimentos observados e se trocarem ideias sobre as acções a empreender.
Desconhece-se o motivo da escolha de tal designação, derivada do grego "syne-
drion", que significa assembleia.

384
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

tucional ( ). Quando este foi reposto, ao cabo de três anos, trouxe


já uma nova fisionomia: à Constituição de 1822 substituiu-se a
Carta Constitucional de 1826, outorgada por D. Pedro (2). Entre-
tanto, os dois anos imediatos redundaram num autêntico período
estacionário — nem se avança nem se recua. A Revolução e a
Contra-Revolução, agora personificadas em dois príncipes, a pro-
pósito do problema dinástico, como que tomam posições para a luta
que dolorosamente iria ferir a Nação.
O equilíbrio rompeu-se, primeiro, a favor dos contra-
-revolucionários, que detiveram o poder de 1828 a 1834, é certo,
sem verdadeiramente alcançarem a oportunidade de definir a sua
construção do Estado. Lembremos que durante estes escassos seis
anos a controvérsia relativa à questão dinástica continuou a repre-
sentar o tema absorvente.
Depois, em 1834, a Convenção de Evora-Monte restabelece a
Carta Constitucional e com ela a Revolução continua a marcha
interrompida. E agora, sem dúvida, que, a despeito de certa mode-
ração das fórmulas políticas, se adoptam pela primeira vez medidas
radicais dirigidas a alterar a estrutura tradicional da sociedade por-

(') Na sequência da Vilafrancada, D. João VI, em Decreto de 18 de Junho


de 1823, afastou a Constituição de 1822, nomeando uma Junta para preparar o
projecto de uma nova lei fundamental. Dessa Junta, presidida pelo ministro Pal-
mela, fazia parte Ricardo Raimundo Nogueira, lente jubilado da Faculdade de
Leis e reitor do Colégio dos Nobres (ver, supra, págs. 50, nota 2, e 366), que foi o
principal autor do projecto de Constituição dado como concluído no mês de
Setembro do mesmo ano de 1823. A análise de tal projecto, largo tempo desco-
nhecido e não faltando até quem duvidasse da sua existência, tem ficado, por
isso, um tanto à margem da história do constitucionalismo português. Ver Paulo
Merêa, Projecto de Constituição de 1823, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLIII,
págs. 133 e segs.
(2) Sobre a história do nosso movimento constitucional, ver Marcello
Caetano, As Constituições Portuguesas, Lisboa, 1978, e Jorge Miranda, As
Consti-
tuições Portuguesas, 2.a ed., Lisboa, 1984, e Manual de Direito Constitucional, vol. I, 3.a
ed., Coimbra, 1985, págs. 221 e segs.

385
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tuguesa: uma nova organização administrativa, uma reforma judi-


ciária e, ao lado destas, uma poderosa viragem fiscal no sentido da
liberdade económica.
Pode concluir-se que, nesta altura, ficaram verdadeiramente
lançadas as bases da mudança, não só política, mas também
económico-social do País. Compreende-se, por isso, que as crises
que se seguiram até ao fim do século tenham ocorrido, sobretudo, a
propósito da exacta configuração da monarquia constitucional. De
um lado, a corrente radical, como que continuadora do Vintismo e
que retoma a palavra com a revolução setembrista de 1836, autora
da Constituição de 1838. Do outro lado, a tendência mais mode-
rada, que tem a seu favor a restauração da Carta em 1842. Mas é só
em 1851, pelo afastamento de Costa Cabral, que os "cartistas
puros" ficam de novo senhores do poder, entrando-se no longo
período da chamada Regeneração. O País experimentaria doravante
uma acentuada tranquilidade política.
Corresponde, portanto, à segunda metade do nosso século
xix, no domínio das instituições políticas, o império exclusivo da
Carta Constitucional, embora reformada pelos Actos Adicionais de
52, 85 e 96. Ao passo que, do ponto de vista económico-social,
assistimos a uma intensa penetração e desenvolvimento do capita-
lismo e das técnicas modernas, bem como aos notáveis progressos
materiais a que ficou ligada a obra de fomento de Fontes Pereira de
Melo.

65. Transformações no âmbito do direito privado

Ora, é precisamente nessa época da grande "paz


octavia-
na"( ) da segunda metade de oitocentos que surge, em 1867, o

(') Como a qualifica Cabral de Moncada, Origens do moderno direito


portu-
guês, cit., in "Est. de Hist. do Dir.", vol. II, pág. 148.

386
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

primeiro Código Civil português. E eis-nos passando a outro com-


partimento jurídico (l).
Apreciemos, de facto, o que ocorreu, desde os começos do
século XIX, quanto ao direito privado. Braga da Cruz chamou a
atenção para a circunstância de a vitória das ideias liberais, em
Portugal, não ter ocasionado no domínio privatístico reformas de
vulto comparáveis às inovações introduzidas nas esferas constitu-
cional e administrativa ou noutros ramos do direito público, como a
organização judiciária e o processo ou os direitos fiscal e financeiro.
Naturalmente, não foram de todo indiferentes ao direito privado
certas reformas administrativas ou processuais e também houve
alterações directas no regime de uma ou outra instituição jurídico-
-privada. Mas nada disto representa uma transformação legislativa
substanciosa, a qual não se produziu antes do primeiro Código
Civil. O próprio Código Comercial de 1833, em boa análise, pouco
mais era do que a compilação de preceitos estrangeiros já recebi-
dos, entre nós, a título de direito subsidiário (2).
Todavia, apesar desta passividade do legislador, assiste-se
também, desde os começos do Liberalismo até ao Código Civil de
1867, a uma franca evolução das nossas instituições jurídico-
-privadas, precisamente por obra da doutrina e da jurisprudência.
O tema merece algumas palavras explicativas.
Recorde-se que, tradicionalmente, nunca a vida jurídica por-
tuguesa esteve comprimida em legislação minuciosa. Tivemos, sem
dúvida, a partir do século XIII, um valioso movimento legislativo (3)
e até, logo nos meados do século xv, uma primeira codificação

(!) Ver M. J. Almeida Costa, Enquadramento histórico do Código Civil portu-


guês, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVII, especialmente págs. 146 e
segs.
(2) Consultar Braga da Cruz, Formação histórica do moderno direito privado
português e brasileiro, in "Scientia Ivridica", cit., tomo IV, págs. 234 e segs. (republ.
in "Obras Esparsas", cit., vol. II, l.a parte, págs. 25 e segs.).
(3) Ver, supra, págs. 254 e segs.

387
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

oficial, as Ordenações Afonsinas—obra que para o tempo, aliás,


não receia confronto estrangeiro C). Porém, tanto estas Ordenações
como as que se lhes seguiram, as Manuelinas em 1521 (2) e as Filipi-
nas em 1603 ( ), ficaram longe de constituir um sistema completo:
designadamente, no âmbito do direito privado, havia institutos de
todo omitidos e bastantes outros só aflorados a título acidental.
Nem através do volumoso corpo de diplomas avulsos, que se foi
acrescentando à legislação codificada, se conseguiu, alguma vez, a
satisfação imediata das exigências de tutela que a vida solicitava,
pois também estes diplomas eram muito insuficientes e não raro
defeituosos.
Restava, assim, uma lar guissima margem para a intervenção
do direito subsidiário, que se pautou sempre pelo figurino de além-
-fronteiras. Sabemos quais foram os critérios de preenchimento das
lacunas da lei sancionados pelo legislador, quer na época das Orde-
nações ( ), quer na época pombalina (5).
Entretanto, chega-se ao século XIX e o Liberalismo continuou
a confiar amplamente à actividade doutrinal dos jurisconsultos a
orientação do direito privado, sem mesmo estabelecer novas regras
de interpretação das normas jurídicas e de integração das suas lacu-
nas. Mantiveram-se formalmente em vigor as consagradas na Lei
da Boa Razão.
Por conseguinte, a "recta ratio" e o "usus modernus" eram
ainda as directivas supremas da ciência jurídica ( ). Simplesmente, atribui-
-se-lhes um sentido de todo diverso: a "boa razão" passa a aferir-se
pelo critério do individualismo liberal; e aquela referência inequí-
voca dos Estatutos da Universidade ao "uso moderno" — uma cor-

(') Ver, supra, págs. 269 e segs.


( ) Ver, supra, págs. 276 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 284 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 307 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 356 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 359 e segs.

388
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

rente jurídica e filosófica bem definida — foi agora desviada, cons-


tituindo o ponto de partida para a utilização, a título subsidiário,
dos próprios Códigos estrangeiros da época. Pois, como se expli-
cava, se o legislador permitia "averiguar o uso moderno das nações
nos escriptos dos seus jurisconsultos, por maioria de razão deve ser
procurado nas suas leis" (1).
E então, mercê ainda de um larguíssimo apelo feito ao direito
subsidiário e aos critérios hermenêuticos, que o preceituado nesses
Códigos individualistas penetra lentamente a ordem jurídica portu-
guesa. Junta-se toda uma massa de disposições extraídas dos Códi-
gos francês, prussiano, austríaco, sardo e de vários outros, "que os
nossos jurisconsultos procuravam conciliar, na medida do possível,
com o direito tradicional, quase sempre sem grande critério filosó-
fico, mas com incontestável mestria de ordem técnica — ou eles
não fossem, como realmente eram, juristas de primeira plana" (2).
Eis por que, como se disse, o ciclo genético do moderno
direito privado português se inicia pelos meados do século XVIII.
Até aí, um sistema jurídico assente nas Ordenações e em numerosas
leis complementares, onde ocupam um posto de relevo as obras dos
antigos autores nacionais. Doravante, esse património jurídico de
fundo escolástico seria, em dois tempos, poderosamente revolvido e

(') M. A. Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Portuguez, cit.,


tomo I, pág. 284 (Nota B ao § 43). Consultar Braga da Cruz, Formação
histórica,
cit., in "Scientia Ivridica", tomo IV, págs. 248 e segs., e Laformation du Droit Civil
portugais moderne et le Code Napoleón, in "Annales de la Faculte de Droit de Tou-
louse", tomo XI, fase. 2, Toulouse, 1963, págs. 219 e segs., especialmente págs.
228 e segs. (republ. in "Obras Esparsas", cit., vol. II, 2.a parte, págs. 1 e segs.), e
M. J. Almeida Costa, Enquadramento histórico do Código Civil português, cit., in
"Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVII, págs. 150 e segs.
(2) Braga da Cruz, Formação histórica, cit., in "Scientia Ivridica", tomo
IV, pág. 250, onde, numa síntese expressiva, condensa as três estratificações, que
em seguida mencionamos, de cuja sobreposição resultou o direito privado portu-
guês "nas vésperas da promulgação do Código Civil de 1867".

389
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

modificado: primeiro, pelo jusracionalismo e, em seguida, pela cor-


rente individualista.
Também se entrevê a extraordinária acção criadora devida à
jurisprudência e à doutrina, nos quase cem anos que decorrem
entre a Lei da Boa Razão e o nosso Código Civil oitocentista: de
Mello Freire ao Visconde de Seabra, passando por Almeida e Sousa
(Lobão), Correia Telles e Coelho da Rocha, entre outros. Não foi,
sem dúvida, apenas a pretexto do preenchimento de lacunas que os
nossos jurisconsultos conseguiram introduzir notáveis alterações no
direito pátrio. Pelo contrário, a sua tarefa inovadora e de substitui-
ção de doutrinas antigas começava logo no próprio domínio da
interpretação das normas das Ordenações ou de leis avulsas que se
mantinham vigentes; e nem mesmo hesitaram, inúmeras vezes, em
se sobrepor a esses textos e definir soluções antagónicas às neles
expressamente consagradas, ou dando-os como desusados, ou
defendendo, quando menos, a necessidade da sua reforma.
Analisemos uma dessas interpretações, recolhida ao acaso,
para que melhor se avalie a audácia com que actuaram os juristas
portugueses da época. Repare-se, por exemplo, no que se passou,
em matéria de direito testamentário, a respeito do princípio da
instituição de herdeiro. A nossa prática tinha sustentado a sua
essencialidade. Neste sentido, invocava-se um trecho das Ordena-
ções onde era pressuposta uma instituição tácita a fim de se consi-
derar válido certo testamento sem expressa instituição de herdeiro.
Determinava a lei que, na hipótese de o pai ou a mãe se limitarem
a deixar a sua quota disponível a terceiros, sem expressa instituição
ou deserdação dos filhos, sabendo que os tinham, estes se conside-
ravam tacitamente instituídos nos restantes bens(1). E, de facto,
nada parece aberrante a ilação dos autores: se o legislador recorria
a tal expediente para admitir a validade desse testamento era por-
que, em princípio, considerava a instituição de herdeiro indis-
pensável.

(') Ord. Ri., liv. IV, tít. 82, pr.

390
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Verificou-se, porém, que o jusracionalismo desacreditou o refe-


rido princípio romano. Ora, não foi preciso mais para que a boa
razão levasse os juristas a interpretar em sentido oposto aquela
norma das Ordenações: passou a entender-se que o legislador, con-
siderando válido, num caso concreto, um testamento sem efectiva
instituição de herdeiro, quis, afinal, abolir a velha regra que a
exigia í1).
Poderíamos acrescentar a este expressivo caso uma vasta lista
de outras interpretações arrojadas, que afeiçoaram o direito pátrio
aos novos rumos do pensamento jurídico. E não esqueçamos, ainda,
que os jurisconsultos dispuseram de um largo campo onde a sua
liberdade de movimentos se apresentava muito maior. Isso aconte-
cia quando, no silêncio da lei, coubesse recurso ao direito subsidia-
rio(2).
Por tais caminhos, em conclusão, se foi preparando esponta-
neamente, passo a passo, o terreno adequado a um síntese oficial.
Representou-a o Código Civil de 1 de Julho de 1867.

66. Publicação e inicio da vigência da lei

Com o século xix surgiram alterações importantes a respeito


do sistema de publicação dos diplomas legais (3). Em 1806 (4), o
Príncipe Regente determinou a abolição dos traslados manuscritos,

(^Consultar Mello Freire, Institutiones Iuris Civilis Lusitani, cit., 2.a ed.,
Coimbra, 1828, liv. III, tít. V, § XXIX, págs. 59 e seg., e Coelho da
Rocha,
Instituições, cit., tomo II, § 673, pág. 530. Sobre a discussão do problema e a lista
dos autores que sustentaram a doutrina tradicional, ver Almeida e Sousa
(LobAo), Collecção de Dissertações Jurídico-Praticas em Supplemento ás Notas ao Livro
Terceiro das Instituições do Doutor Pascoal José de Mello Freire, Lisboa, 1825, Dissertação
VIII, págs. 328 e segs.
(2) Além do exemplo indicado, ver muitas outras interpretações e inte-
grações referidas por Braga da Cruz, Formação histórica, cit., in "Scientia Ivri-
dica", tomo IV, págs. 251 e segs.
(3) Quanto aos períodos anteriores, ver, supra, págs. 256 e seg., e 294 e segs.
(4) Aviso e Instrução de 16 de Abril de 1806. Ver, posteriormente, o
Decreto de 12 de Fevereiro de 1819.

391
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

não só devido ao seu custo, mas, sobretudo, procurando-se evitar os


erros disseminados na repetição dessas cópias. De futuro, os trasla-
dos das leis apenas poderiam ser remetidos através de exemplares
impressos, o que significava um progresso notável para a certeza do
conhecimento do direito.
A publicidade tornou-se mais eficaz quando, em 1824 (*), se
outorgou à Régia Oficina Tipográfica de Lisboa o exclusivo da
impressão dos textos legais. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se na
administração-geral dos correios um centro de distribuição e envio
das leis.
Porém, o passo decisivo da reforma do sistema da publicação
dos diplomas legais deu-se em 1833. Extinguindo-se a velha
Chancelaria-Mor do Reino, considerada "uma das Repartições
incompatíveis com a distribuição, e marcha natural dos poderes
Legislativo, Executivo, e Judiciário", determinou-se a publicação
das leis no "Periódico Official do Governo"(2). Este viria a receber
várias designações ( ).
(') Alvará de 9 de Março de 1824, confirmado pelo Alvará de 26 de
Outubro do mesmo ano. Por Decreto de 14 de Julho de 1826 foi expressamente
incluído nesse privilégio a impressão e venda da Carta Constitucional (ver
Manuel Borges Carneiro, Direito Civil de Portugal, Lisboa, 1826, págs. 39 e
seg.).
(2) Decreto de 19 de Agosto de 1833, arts. l.° e 2°.
( ) As designações sucessivas de todos os periódicos oficiosos ou oficiais,
desde o século xvm, e os anos em que começaram a utilizar-se são os seguintes:
Gazeta de Lisboa (1717), Gazeta Oficial do Governo (1834), Diário do Governo (1835),
Diário de Lisboa (1860), Diário do Governo (1869) e Diário da República (1976). O
Diário do Governo foi dividido em três séries, cada uma, naturalmente, com o seu
conteúdo próprio, a partir de 1 de Janeiro de 1914, por força do Decreto n.° 137,
de 17 de Setembro de 1913. Consultar José Maria Braga da Cruz, Notas sobre
a
publicação da lei, sua data e entrada em vigor, in "Scientia Ivridica", cit., tomo VII,
págs. 125 e segs., G. Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência
— Esboço da sua História, cit., vol. I, nota 4 da pág. 3, nota 775 da pág. 317 e nota
777 da pág. 318, e JoAo de Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa,
1984, págs. 112 e segs.

392
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

A criação do novo método de publicar as leis na folha oficial


proporcionava uma difusão mais rápida e segura das normas legais
em todo o País. Todavia, de imediato, mantiveram-se os prazos de
"vacatio legis" contidos nas Ordenações Filipinas (*), os quais
somente sofreram alteração expressiva em 1841 (2).
O lapso de tempo que mediava entre a publicação das leis no
"Diário do Governo", como se designava nessa altura a folha ofi-
cial (3), e a sua entrada em vigor foi, então, consideravelmente redu-
zido. Fixaram-se três prazos. Assim, após a publicação, as leis torna-
vam-se obrigatórias: passados três dias, em Lisboa e seu termo; trans-
corridos quinze dias, nas demais terras do Reino; e, nas ilhas
adjacentes, oito dias depois da chegada da primeira embarcação que
conduzisse a participação oficial do diploma (4). A matéria voltaria
a ser disciplinada por normas posteriores ( ).

(') Ver o art. 2.° do referido Decreto de 19 de Agosto de 1833. Cfr., supra,
págs. 295 e seg.
(2) Lei de 9 de Outubro de 1841.
( ) Cfr., supra, nota 3 da pág. anterior,
( ) Ver o art. 1.° da mencionada Lei de 9 de Outubro de 1841.
(5) Seguiu-se a Lei de 30 de Junho de 1913, incluída na folha oficial do dia
imediato. De acordo com este diploma, as leis teriam a data da sua publicação no
"Diário do Governo" e iniciariam a vigência em todo o continente, salvo decla-
ração contrária, no terceiro dia depois de publicadas, quer dizer, atingido o ter-
ceiro dia ou decorridos os dois primeiros. Quanto às ilhas adjacentes, as leis come-
çavam a vigorar "no décimo dia depois da partida do vapor que levar a
participação oficial". Observe-se a imperfeição de se estabelecer como termo a
quo da contagem do prazo a "partida" do vapor, ignorando-se os perigos que
ameaçavam a navegação marítima e os não raros naufrágios. Relativamente aos
territórios ultramarinos, visto que esse diploma não se lhes referia, entendia-se
que continuava a imperar o regime anterior: ou seja, as leis começavam a sua
vigência, na capital da província, três dias depois de publicadas no respectivo
"Boletim Oficial" e, nos outros pontos da mesma província, quinze dias após essa
publicação. Ocuparam-se do tema, em seguida, o Decreto n.° 22470, de 11 de
Abril de 1933, a Lei n.° 31/76, de 10 de Setembro, e a Lei n.° 6/83, de 29 de Julho.

393
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

67. As codificações

a) Aspectos introdutórios

Com precedentes desde os meados do século xvm, mas sobre-


tudo durante o século XIX, assiste-se a um importante movimento
codificador em diversos países da Europa, que viria a comunicar-se
a outros continentes ('). Traduziu-se na elaboração de amplos cor-
pos legislativos unitários, obedecendo a uma orgânica mais ou
menos científica e que condensavam, autonomamente, as normas
relativas aos ramos básicos do direito, já então individualizados.
O processo mostra-se complexo nas suas determinantes filosó-
ficas, ideológico-políticas, económico-sociais e metodológicas, até
com aspectos contraditórios. Lembremos, de facto, o lastro raciona-
lista do movimento codificador, os objectivos de unificação e cen-
tralização jurídica que envolveu, bem como o significado que teve
para a nova burguesia liberal. Produziu consequências do maior
vulto.
Não faltaram opositores e críticas que apontavam desvanta-
gens à codificação. Assim se verificou do lado da Escola Histórica
de Savigny, que via no direito uma criação espontânea da consciên-
cia colectiva, uma manifestação do espírito do povo ("Volksgeist"),
contra o racionalismo que inspirava as novas leis(2).

(l) Sobre o tema, ver, por ex., Jacques Verlinden, Le concept de code
en
Europe occidentale du xm.e au xix.' siècle. Essai de définition, Bruxelles, 1967, Gio-
vanni Tarello, Storia delia cultura giuridica moderna, vol. I — Assolutismo e
codifica-
zione dei diritto, Bologna, 1976, Helmut Coing, Zur Vorgeschichte der Kodifikation:
die
Diskussion um die Kodification im 17. und 18. Jahrhundert, Guido Astuti, La codifica-
zione dei diritto civile, in "La formazione storica dei diritto moderno in Europa",
cit., vol. II, respectivamente, págs. 797 e segs., e págs. 847 e segs., Mário E.
Viola, Consolidazioni e codificazioni. Contributo alia storia delia codificazione, Torino,
1983. Entre nós, ver JoAo de Castro Mendes, Algumas notas sobre a codificação,
in
"Jornal do Foro", ano 24, Lisboa, 1960, págs. 113 e segs., e MArio Reis
Marques,
O Liberalismo e a Codificação do Direito Civil em Portugal, cit., págs. 47 e segs.
( ) Existe larga bibliografia estrangeira sobre essa polémica clássica, que
se generalizaria, de Thibaut, favorável à codificação, e Savigny. Ver, por ex., Z.

394
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Além disso, embora se detectem denominadores comuns do


movimento, é preciso não esquecer as condicionantes específicas
que este conheceu a respeito dos vários ramos do direito. Há famí-
lias e gerações de Códigos. Por exemplo, no campo civilístico,
importa assinalar as duas orientações, formal e substancialmente
diferenciadas, cujos paradigmas se distanciam cerca de um século: a
do Código Civil francês (Code Civil) de 1804 e a do Código Civil
alemão (Biirgerliches Gesetzbuch — BGB), que entrou em vigor no
ano de 1900 ( ). Do mesmo modo, relativamente ao âmbito penalís-
tico, prescindindo das codificações setencentistas (2), podem tam-

Krystufek , La querelle entre Savigny et Thibaut et son injluence sur la pensée juridique
europêenne, in "Révue Historique de Droit Français et Etranger", cit., 4.a série,
ano 44 (1966), págs. 59 e segs., e Ulrich Eisenhardt, Deutsche
Rechtsgeschichte,
Miinchen, 1984, págs. 300 e segs., e, entre nós, as indicações de A.
Castanheira
Neves, Questão-de-facto — Questão-de-direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade,
Coimbra, 1967, págs. 875 e segs., e MArio Reis Marques, O Liberalismo e
a
Codificação do Direito Civil em Portugal, cit., págs. 112 e segs.
( ) As codificações napoleónicas, maxime o Código Civil, tiveram uma
projecção muito grande ao longo do século xix: por um lado, verificou-se a sua
aplicação nos países sob domínio ou influência francesa (Bélgica, Holanda, Itália
do Norte, Vestefália, Hanover, Polónia, Nápoles, vários cantões suíços, etc.
— quanto a Portugal, ver, supra, pág. 376, nota 1), ou de além-Atlântico que,
directa ou indirectamente, as adoptaram (Luisiana, Haiti, Bolívia, Peru, Chile,
Costa Rica, Uruguai, México, Argentina, Venezuela, etc); por outro lado, nesse
corpo legislativo se inspiraram numerosos Códigos, sobretudo de direito civil,
como os de Itália (1865), Roménia (1865), Baixo Canadá (1866), Portugal (1867),
Egipto (1875), Espanha (1889) e Japão (1890).
Durante o século xx, a seu turno, coube ao Código Civil alemão servir de
matriz a várias codificações. Assim, as da Áustria (1914/1916), do Brasil (1916),
da Tailândia (1925), do Peru (1936), da Grécia (1940), da Itália (1942) e de Portu-
gal (1966). O Código Civil suíço de 1907, considerado "o fruto legislativo mais
amadurecido da ciência jurídica de língua alemã do séc. xix" (Wieacker, Hist.
do Dir. Priv. Mod., cit., pág. 564), influenciou o Código Civil da Turquia (1926).
Ver J. Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, cit., págs. 456 e segs.
(2)0 Codex luris Bavarici Criminalis, de 1751, e as austríacas Constitutio Cri-
minalis Theresiana, de 1768, e Constitutio Criminalis Josephina, de 1787, não esque-

395
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

bém indicar-se duas gerações: a que parte do Code Penal napoleó-


nico de 1810 e do Código Penal bávaro (Strafgesetzbuch) de 1813,
elaborado sob a égide de Feuerbach; e a outra que se seguiu ao
Código Penal prussiano de 1851 (J).
Tudo a indicar-nos que o problema da codificação moderna
não se compadece com uma análise sucinta. Apenas se alinham aqui
uns poucos tópicos que precedam as referências concretas ao que
sucedeu entre nós.
Recorde-se que as anteriores grandes colectâneas de direito —
tanto do tipo do Corpus Iurís Civilis ou das nossas Ordenações, como
da própria Glosa acursiana — correspondiam mais ou menos a
períodos de síntese ou de estagnação da criatividade jurídica. Tradi-
cionalmente, o objectivo básico consistia na mera organização de
repositórios actualizados do direito vigente, sem grandes preocupa-
ções quanto à sua estrutura interna. Tratava-se, sobretudo, de obras
de "consolidação" jurídica ( ).
Ora, os Códigos modernos, tendo ainda alguma coisa disso, ao
menos em certas das suas concretizações práticas, foram ditados
por bem diversa intencionalidade. Propunham-se ser inovadores,
realizando uma verdadeira transformação jurídica, com o escopo de
modernização, progresso e felicidade dos povos. Por outras pala-
vras: em vez de pura síntese do direito do passado, intenta-se obra
prospectiva. E supera-se também a ideia das compilações globali-
zantes, que reuniam vários domínios do direito.
Na raiz do moderno movimento codificador, encontram-se,
antes de tudo, vectores jusracionalistas e iluministas. Havia que

cendo a obra legislativa de Frederico, o Grande, da Prússia, nos fins desse mesmo
século (ver Robert v. Hippel, Deutsches Strafrecht, cit., vol. I, págs. 270 e segs.).
(•') Consultar, por ex., Robert v. Hippel, ob. cit., vol. I, págs. 295 e segs.,
e
314 e segs.
(2) Sobre a designação de "consolidações", ver A. Cavanna, Stor. dei dir.
mod. in Eur., cit., vol. I, pág. 256.

396
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

estabelecer a nova ordem decorrente do direito natural racionalista,


isto é, daquele conjunto de normas que traduziam valores imutáveis
que se tornava possível atingir pela razão.
Mas logo se segue uma diferença. Em determinados países as
codificações surgiram com o patrocínio do Despotismo Esclarecido,
ao passo que noutros foram uma consequência da difusão das ideias
da Revolução Francesa, no quadro das quais o princípio da divisão-
de poderes tinha enorme relevo(l). Este postulado conduzia a que
todo o direito se apresentasse como uma exclusiva criação do poder
legislativo. Entrava-se, em suma, no caminho do positivismo legal:
o direito é uma criação do Estado, enquanto poder legislativo, e
esse direito positivo transforma-se num dado indiscutível.
Em decorrência, a ordem jurídica surge como um todo onde
se projecta o ideário reformista que passa a enformar as relações
sociais. A tradição jurídica anterior ficava, portanto, definitiva-
mente superada. Nenhum problema poderia resolver-se fora do
espírito consubstanciado nos novos Códigos. Por outro lado,
entendia-se que estes constituíam sistemas acabados que continham
a disciplina da totalidade das relações sociais.
A partir daqui, a passagem para o positivismo torna-se óbvia:
o direito identifica-se com a lei e qualquer problema seria resolvido
através do formalismo de uma dedução lógica do sistema para o
caso concreto. Negava-se ao julgador, consequentemente, a mínima
função criadora, que assim se transformava em mero autómato do
silogismo judicial. Também desta maneira se prestava vassalagem à
certeza e à segurança do direito, havidas então como valores
fundamentais.

b) O movimento codificador português

Não oferece dúvida, até pela cronologia, que, entre nós,


foram as ideias da Revolução Francesa que impulsionaram, logo
depois da implantação do Liberalismo, a actividade codificadora.

(') Ver, supra, págs. 379 e segs.

397
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Recordaremos os domínios em que se desenvolveu, seguindo a


ordem da sequência temporal dos primeiros Códigos dos vários
ramos do direito. Presta-se um pouco mais de atenção ao modo
como nasceu o Código Civil de 1867. É que a sua história se afi-
gura particularmente expressiva.

I — Direito comercial

Iniciou-se o nosso movimento de codificação pelo direito


mercantil. Em 1833 (!), surge o Código Comercial que se ficou
devendo a Ferreira Borges (2). Uma enorme dispersão legislativa e
as incertezas jurisprudenciais tornavam, de facto, urgente a reunião,
num corpo orgânico, das disposições avulsas dessa área jurídica.

(') Aprovado por Decreto de 18 de Setembro de 1833, com entrada em


vigor a 14 de Janeiro do ano imediato.
(2) Com a Revolução Francesa superou-se a concepção do direito comer-
cial como o direito de uma classe de profissionais, isto é, dos comerciantes e dos
actos destes relativos ao seu comércio. Daí que, no Código Comercial francês, de
1807, o direito mercantil constitua a disciplina dos actos de comércio, indepen-
dentemente da qualidade das pessoas que os praticam. Esta concepção objectiva
inspirou as codificações de vários países. Todavia, a partir do Código Comercial
alemão (Handelsgesetzbuch — HGB) de 1897, voltou-se a um direito comercial de
índole subjectiva e profissional, que influenciou outras leis posteriores. Uma
directiva sui generis encontra-se mais tarde no Código Civil italiano de 1942, onde
se regulam todas as relações jurídico-privadas, o qual trouxe um aspecto novo à
evolução do direito mercantil: mantém-se a linha alemã do subjectivismo, mas
este desloca-se do comerciante para o empresário, quer dizer, do elemento pes-
soal para a organização (art. 2082 do Códice Civile). Sobre a referida evolução do
direito comercial desde os começos do século xix (direito dos actos de comércio,
direito dos comerciantes e direito das empresas), ver A. Ferrer Correia,
Lições
de Direito Comercial, vol. I (com a colaboração de Manuel Henrique
Mesqui-
ta/António A. Caeiro), Coimbra, 1973, págs. 10 e segs. Para análise
mais
ampla, ver, por ex., Francesco Galgano, Storia dei diritto commerciale, 2.a
ed.,
Bologna, 1980, com lar gas indicações bibliográficas a págs. 185 e segs.

398
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

No que toca à estrutura, o Código Comercial de 1833


icontra-se dividido em duas partes: a primeira trata do comércio
:rrestre e a segunda do comércio marítimo. Nele se incluem, não
5 normas de direito mercantil substantivo, mas também normas
processuais, de organização judiciária e até de direito civil.
Esclarece o próprio Ferreira Borges que, para a elaboração
do
projecto, fez largas incursões de direito comparado, durante o seu
exílio em Londres e Paris. Utilizou especialmente o Código
Comercial francês, o projecto do Código Comercial italiano e o
Código Comercial espanhol. Mas não desconheceu as leis de outros
países.
Esses diplomas estrangeiros exerceram influência quanto
ao
direito comercial substantivo. Pelo contrário, a respeito dos disposi-
tivos processuais e de organização judiciária, o autor do projecto
declara que apenas se socorreu das nossas instituições existentes e
da prática forense que adquirira como advogado.
Pode concluir-se que o Código Comercial de 1833 representou
um considerável avanço do direito mercantil português. Contudo,
esteve-se longe de realizar obra satisfatória.
Assim, um excessivo apego à legislação anterior levou a que
se esquecessem, muitas vezes, as soluções evoluídas para que o
direito comparado já apontava. É o que se verifica, por exemplo,
com as sociedades comerciais, talvez o capítulo mais deficiente do
Código, enquanto não se descortinou a importância que o instituto
depressa assumiria.
Também se aponta ao Código Comercial de Ferreira
Borges
o defeito de certa prolixidade, traduzida em exageradas definições
e qualificações. Acresce, a referida inclusão, embora separada-
mente, ao lado de preceitos de direito mercantil substantivo, de
normas processuais e de organização judiciária, bem como de
direito civil. Estas últimas explicam-se por não haver, ao tempo,
uma codificação moderna dessa área jurídica.
O nosso primeiro Código Comercial não se encontrava,
em
síntese, voltado para o futuro, nem pelo conteúdo normativo, nem
pela técnica legislativa adoptada. De qualquer modo, teve o mérito

399
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

No que toca à estrutura, o Código Comercial de


1833
encontra-se dividido em duas partes: a primeira trata do comércio
terrestre e a segunda do comércio marítimo. Nele se incluem, não
só normas de direito mercantil substantivo, mas também normas
processuais, de organização judiciária e até de direito civil.
Esclarece o próprio Ferreira Borges que, para a elaboração
do
projecto, fez largas incursões de direito comparado, durante o seu
exílio em Londres e Paris. Utilizou especialmente o Código
Comercial francês, o projecto do Código Comercial italiano e o
Código Comercial espanhol. Mas não desconheceu as leis de outros
países.
Esses diplomas estrangeiros exerceram influência quanto
ao
direito comercial substantivo. Pelo contrário, a respeito dos disposi-
tivos processuais e de organização judiciária, o autor do projecto
declara que apenas se socorreu das nossas instituições existentes e
da prática forense que adquirira como advogado.
Pode concluir-se que o Código Comercial de 1833
representou
um considerável avanço do direito mercantil português. Contudo,
esteve-se longe de realizar obra satisfatória.
Assim, um excessivo apego à legislação anterior levou a que
se esquecessem, muitas vezes, as soluções evoluídas para que o
direito comparado já apontava. E o que se verifica, por exemplo,
com as sociedades comerciais, talvez o capítulo mais deficiente do
Código, enquanto não se descortinou a importância que o instituto
depressa assumiria.
Também se aponta ao Código Comercial de Ferreira
Borges
o defeito de certa prolixidade, traduzida em exageradas definições
e qualificações. Acresce, a referida inclusão, embora separada-
mente, ao lado de preceitos de direito mercantil substantivo, de
normas processuais e de organização judiciária, bem como de
direito civil. Estas últimas explicam-se por não haver, ao tempo,
uma codificação moderna dessa área jurídica.
O nosso primeiro Código Comercial não se encontrava, em
síntese, voltado para o futuro, nem pelo conteúdo normativo, nem
pela técnica legislativa adoptada. De qualquer modo, teve o mérito

399
HISTORIA DO DIRKITO POR lUCiUFS

de muito contribuir para a instituição e compreensão do direito


comercial como um específico domínio jurídico-privado.
As deficiências de origem do Código Comercial de 1833
foram-se evidenciando com o desenvolvimento da actividade mer-
cantil. A breve trecho, existia um corpo significativo de legislação
avulsa, como a respeitante a sociedade anónimas ou por acções (') e
a marcas industriais e comerciais (2). Daí que se pensasse 'na sua
reforma.
Já em 1859 se nomeou uma comissão para o efeito. Mas tanto
esta comissão como outras que se lhe seguiram não levaram a obra
a bom termo. Um novo Código Comercial só viria a ser promul-
gado em 1888 (3), mercê do esforço de Veiga Beirão.
Este diploma enquadra-se claramente na linha das codificações
mercantis, como a italiana de 1882, que descendem do Code de
Commerce napoleónico (4). Revela-se nele a tendência objectivista: o
direito comercial deixa de constituir a disciplina privativa de uma
categoria profissional e passa a abranger os actos de comércio em
si. O que não significa que se omitam regras especiais para os
comerciantes, inclusive considerando-se e mesmo presumindo-se
comerciais, ou seja, conexionados com a sua actividade profissional,
todos os negócios por aqueles realizados. Infere-se, pois, que o
nosso legislador, à maneira do que sucedeu em Itália, adoptou um
sistema misto, entre a concepção objectiva e a subjectiva.
O Código Comercial de 1888 encontra-se ainda em vigor, mas
profundamente alterado e completado por numerosa legislação
avulsa, respeitante a sociedades comerciais (5), letras, livranças e

(') Lei de 22 de Junho de 1867.


(2) Decreto de 23 de Outubro de 1883.
(3) Aprovado por Carta de Lei de 28 de Junho de 1888, entrando em vigor
no dia 1 de Janeiro de 1889.
(4) Ver, supra, pág. 398, nota 2.
(5) Como cúpula da evolução legislativa operada nesse domínio, existe,
actualmente, o Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei
n.° 262/86, de 2 de Setembro.

400
DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODER

cheques, organização bancária, propriedade industrial, seguros,


contratos de direito marítimo, etc. Através da Lei de 11 de Abril de
1901, logo foi consagrada a sociedade por quotas. Apenas a Áustria
se antecipou ao nosso país na importação deste tipo societário do
direito alemão.
Observe-se, além disso, que o seu referido sistema híbrido de
objectivismo e subjectivismo se mostra hoje superado pela ciência
comercialista. Vêm de longe as tentativas e os trabalhos preparató-
rios para a inteira modernização do direito comercial português (J).

II — Direito administrativo

Toda a história deste ramo do direito apresenta como proble-


mas fulcrais o critério de divisão do território em circunscrições
administrativas, formação e atribuições dos seus órgãos ou agentes,
a maior ou menor descentralização e o exercício do contencioso
administrativo. Não admira, portanto, que a respectiva codificação
tenha sido muito sensível às mutações políticas.
Após o início do regime liberal, adoptaram-se, naturalmente,
providências relevantes em matéria de direito administrativo.
Sobressaem as que derivaram do Decreto n.° 23, de 16 de Maio de
1832. Substituiu-o, passados cerca de três anos, a Lei de 25 de Abril
de 1835, cujas bases foram desenvolvidas por Decreto de 18
de Julho imediato. Mas só com a revolução setembrista surgiria, em
1836 (2), o nosso primeiro Código Administrativo, referendado por
Manuel da Silva Passos (3).

(') A respeito da evolução do nosso direito comercial e dos diplomas mer-


cantis avulsos, ver Fernando Olavo, Direito Comercial, vol. I, 2.a ed., Lisboa
1970,
págs. 25 e segs., e A. Ferrf.r Correia, Lições de Direito Comercial, cit., vol. I,
págs.
8 e segs., e 49 e segs., e Sobre a projectada reforma da legislação comercial portuguesa, in
"Revista da Ordem dos Advogados", ano 44, Lisboa, 1984, n.° I, págs. 5 e segs.
(2) Decreto de 31 de Dezembro de 1836.
(3) Geralmente conhecido por Passos Manuel.
401
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Entretanto, as vicissitudes da controvérsia política levaram a


introduzir várias alterações à organização estabelecida nesse
diploma. Da sua coordenação resultou o Código Administrativo de
1842, referendado por Costa Cabral. Seguiram-se: o Código Admi-
nistrativo de 1878; o Código Administrativo de 1886, publicado por
José Luciano de Castro, que sofreria modificações profundas atra-
vés de legislação de Dias Ferreira (*); e o Código Administrativo de
1895, referendado por João Franco, mas que, depois de submetido a
revisão parlamentar, se transformou no Código Administrativo de
1896.
Uma vez instaurado o regime republicano, pensou-se em alte-
rar a legislação administrativa vigente, que se caracterizava pelo
seu espírito centralizador. Na verdade, algumas tentativas de codi-
ficação se fizeram. Não se passou, porém, de diplomas avulsos (2).
Apenas em 1936 surgiria um novo Código Administrativo, que se
baseou num projecto de Marcello Caetano ( ).

(') Decretos de 21 de Abril e de 6 de Agosto de 1892.


(2) Decreto com força de Lei de 13 de Outubro de 1910, Lei n.° 88, de 7
de Agosto de 1913, Lei n.° 621, de 23 de Junho de 1916, e Decreto com força de
Lei n.° 12073, de 9 de Agosto de 1926.
(3) Aprovado pelo Decreto-Lei n.° 27424, de 31 de Dezembro de 1936,
precisamente ao completar-se o centenário do primeiro Código Administrativo
(Decreto de 31 de Dezembro de 1836). O Código de 1936, revisto em 1940, foi
sofrendo naturais alterações, mas continua vigente nas matérias que podem
considerar-se mais ligadas à estabilidade da teoria geral do direito administrativo.
Sobre a história da codificação do direito administrativo, ver Marcello Cae-
tano, A codificação administrativa em Portugal (Um século de experiência: 1836-
-1935), in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. II, págs. 324 e segs.,
e Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10.a ed., (revista e actualizada por
Diogo Freitas do Amaral), reimpressão, Coimbra, 1980, págs. 144 e segs.,
e
Afonso Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra,
1976,
págs. 607 e segs.

402
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

III — Direito processual

Verifica-se que os esforços de aperfeiçoamento e codificação


do processo civil não se estenderam com a mesma perseverança às
instituições do processo penal. A história da nossa legislação revela-
-se muito elucidativa. E, todavia, o valor próprio e autónomo do
direito adjectivo, acima de uma pura vocação de instrumentalidade,
avulta especificamente no processo penal: é através dele que devem
conciliar-se e garantir-se, ao mesmo tempo, os fins mais elevados
da ordem jurídica, quer dizer, a segurança e tranquilidade social e
os direitos fundamentais dos cidadãos. Ele reflecte o êxito ou inê-
xito na coordenação da defesa da sociedade com a autonomia pri-
vada. Em cada momento, o processo penal traduz as concepções
políticas do Estado. Mas, como se salientou, o processo civil assu-
miu manifesta dianteira nas preocupações do legislador português
oitocentista.
Efectivamente, para substituir o velho sistema das Ordenações
Filipinas, concentrado nos seus livros III e V, publicaram-se, pouco
antes dos meados do século XIX, as chamadas Reforma Judiciária
(1832), Nova Reforma Judiciária (1837) e Novíssima Reforma Judi-
ciária (1841), que abrangiam o processo civil e o processo penal.
Contudo, os destinos destes ramos do direito adjectivo rapidamente
se dissociaram.
No ano de 1876, despontou o nosso primeiro Código de Pro-
cesso Civil. Seguiram-se-lhe os Códigos de Processo Comercial de
1895 e 1896(1), o Código de Falências de 1899 e, pela fusão dos dois
últimos, o Código de Processo Comercial de 1905.
O traço mais característico do sistema processual definido por
esses diplomas consistia na prevalência do princípio dispositivo, em
contraposição ao princípio inquisitório. Quer dizer: configura-se o

(') Quanto a estes, ver Braga da Cruz, A Revista de Legislação e


de
Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, nota 522 da pág. 206.

403
HISTÓRIA PO DIREITO PORTUGUÊS

processo como um instrumento ao serviço dos particulares, os quais


podem conduzi-lo como lhes aprouver, remetendo-se o juiz a uma
atitude passiva. Não se torna lícito ao tribunal, portanto,
tomar a iniciativa de actos e diligências tendentes ao apuramento
da verdade, à realização da justiça material.
Não tardaria, porém, a iniciar-se uma ulterior modernização
do processo civil e comercial, mercê de várias reformas parciais (')
que culminaram com a reunião da generalidade das normas adjecti-
vas respeitantes ao direito privado num único corpo legislativo: o
Código de Processo Civil de 1939(2). É então modificado o sistema
no sentido da acentuação do aspecto inquisitório, sobretudo em
matéria de prova, por influência do Código de Processo Civil aus-
tríaco de 1895, que teve na sua base Franz Klein, e da doutrina
italiana nele inspirada.
Ora, em matéria de processo penal, continuou ainda a vigo-
rar, durante largo tempo, a Novíssima Reforma Judiciária, posto
que alterada e completada através de inúmeros diplomas avulsos. A
legislação portuguesa tendia a consagrar um processo de tipo acusa-
tório, embora não se chegasse a um sistema acabado e perfeita-
mente coerente.
De facto, a estrutura do processo civil reflectiu-se no processo
penal inspirado pelas ideias liberais. Também neste se afirmaram os
princípios dispositivo, da passividade do juiz e da verdade formal.
Em consonância, proclama-se a inadmissibilidade da prisão preven-
tiva e de meios de coacção relativos ao presumível agente,

0 Salienta-se o Decreto n.° 12353, de 22 de Setembro de 1926, em cujo


preâmbulo, da autoria de José Alberto dos Reis, se descreve a evolução prece-
dente do nosso processo civil e se indicam os princípios novos a consagrar.
(') O respectivo projecto ficou-se a dever a José Alberto dos Reis. O
sistema desse Código mantém-se basicamente em vigor, não obstante as altera-
ções sucessivas que recebeu, sobretudo, em 1961 e 1967. Uma comissão de espe-
cialistas vem procedendo, desde há anos, à elaboração de um projecto de novo
Código de Processo Civil.

404
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

configura-se o processo como um assunto das partes, intentando-se


parificar a defesa e a acusação, promove-se a observância do con-
traditório, consagra-se um sistema de legalidade da prova, quanto à
sua produção e apreciação, e reconhece-se às partes a faculdade de
dispor do objecto do processo.
A legislação penal adjectiva ia-se tornando cada vez mais caó-
tica e de difícil consulta. Registaram-se algumas tentativas de codi-
ficação (l), mas um Código de Processo Penal português somente se
publicaria, em definitivo, no ano de 1929 ( ). Com ele, substituiu-se
aquela estrutura de base acusatória por outra de feição inquisitória.

(') Consultar Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência —


Esboço
da sua História, cit., vol. I, págs. 185 e segs.
(z) A iniciativa pertenceu ao Ministro Manuel Rodrigues que, por
diploma de 10 de Julho de 1926 (in "Diário do Governo", II Série, n.° 162, de 13
de Julho de 1926), incumbiu Francisco Henriques Góis, ajudante do Procurador
da República junto da Relação do Porto, de apresentar, até ao dia 15 imediato,
"um projecto de Código de Processo Criminal, tomando por base o que se
encontra legislado sobre a matéria e estabelecido pela jurisprudência dos tribu-
nais". É claro que, dentro de escassos cinco dias..., só poderia entregar-se um
projecto já então necessária e praticamente concluído. No mesmo diploma se
designa a comissão de revisão — onde figuravam, ao lado de outros, José Beleza
dos Santos e Abel de Andrade —, a que se concedeu o "prazo máximo e impror-
rogável de quinze dias" para o correspondente trabalho. Mais: Henrique Góis e
os membros da comissão revisora desempenhariam as funções para que eram
designados "sem prejuízo dos serviços dos seus respectivos cargos". Tornava-se
naturalmente impossível fazer obra acabada nesse breve tempo. E, de facto, o
Código de Processo Penal só veio a ser publicado pelo Decreto n.° 15396, de 10
de Abril de 1928, devendo iniciar-se a sua vigência em 1 de Julho seguinte.
Todavia, logo o Decreto n.° 15462, de 10 de Maio imediato, da iniciativa de José
da Silva Monteiro, novo Ministro da Justiça e dos Cultos, prorrogou esse prazo,
para que o texto fosse novamente revisto por uma comissão de que faziam parte
Beleza dos Santos, Henriques Góis e Avelino Júlio Pereira de Sousa, juiz da l.a
instância. Como os .trabalhos de revisão se atrasassem, voltou-se a adiar a entrada
em vigor do Código (Decreto n.° 15968, de 18 de Setembro de 1928). Apenas se
publicou definitivamente pelo Decreto n.° 16489, de 15 de Fevereiro de 1929,
com vigência a partir de 1 de Março seguinte, quando Mário de Figueiredo
sobraçava a Pasta da Justiça e dos Cultos. Deve reconhecer-se que Beleza dos
Santos desempenhou um papel preponderante nos trabalhos preparatórios do

405
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

IV — Direito penal

O nosso primeiro Código Penal data de 1852. Foi promulgado


durante a ditadura de Saldanha, por Decreto de 10 de Dezembro
desse ano, que as Cortes, após o restabelecimento da normalidade
constitucional, sancionaram através da Carta de Lei de 1 de Junho
de 1853.
Diversas haviam sido as tentativas anteriores, desde a de
Mello Freire (!), tanto criando-se comissões que nada fizeram,
como instituindo-se prémios pecuniários que não conseguiram
melhor resultado (2). Até que uma comissão nomeada em 1845 leva

Código. Este diploma foi sofrendo, após a sua publicação, importantes alterações,
como as introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 35007, de 13 de Outubro de 1945, e
pelo Decreto-Lei n.° 185/72, de 31 de Maio, oposto ao sistema inquisitório, além
de outras posteriores. O Código de 1929 viu-se substituído por um novo Código
de Processo Penal, aprovado, com base na autorização legislativa concedida atra-
vés da Lei n.° 43/86, de 26 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.° 78/87, de 17 de
Fevereiro, e cuja entrada em vigor foi diferida para 1 de Janeiro de 1988 (Lei n.°
17/87, de 1 de Junho). Sobre quanto se escreve, consultar Jorge de
Figueiredo
Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, págs. 64 e segs., e 84 e segs., e
Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa, 1986,
págs.
27 e segs.
(') Ver, supra, págs. 374 e segs.
(2) Encontrou-se próximo de efectivação um efémero Código Penal de
1837. Relaciona-se com a Carta de Lei de 25 de Abril de 1835, que abriu con-
curso para a apresentação de projectos de Código Criminal (art. 3.°) e também
de Código Civil (art. 1.°), até 10 de Janeiro de 1837, atribuindo, respectivamente,
as gratificações de oito e de dezasseis contos de reis. Seguiu-se uma Portaria de
29 de Novembro de 1836, em que D. Maria II encarregava o Doutor José
Manuel da Veiga de proceder à revisão de um projecto do Código Penal que ele
próprio já tinha oferecido ao Governo, no ano de 1833. A solicitação deste,
nomeou-se, para o efeito, através da Portaria de 19 de Dezembro imediato, uma
comissão que logo concluiu a tarefa em 31 do mesmo mês. O projecto foi apro-
vado e mandado publicar por Decreto de 4 de Janeiro de 1837, mas
condicionando-se a sua vigência até as Cortes Gerais sancionarem outro melhor.
Era o tempo da ditadura de Passos Manuel. Ora, as Cortes não ratificaram o
referido Código Penal, que, assim, se írustrou.

406
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

a tarefa a cabo, sobretudo depois de aliviada da incumbência de


redigir também um projecto de Código Civil (]).
Esse Código Penal de 1852 teve como fontes inspiradoras
alguns Códigos estrangeiros, em particular o francês de 1810, o
brasileiro de 1830 (2) e o espanhol de 1848. Só em pequena medida
nele se encontra eco da tradição portuguesa. Embora representasse
um avanço considerável, quando confrontado com o sistema das
Ordenações, ainda estava longe dos progressos que o tempo recla-
mava. Não faltaram críticas contundentes de Silva Ferrão e Levy
Maria Jordão, que se afirmaram como os seus principais comenta-
dores (3).
Reconhecia-se que a referida codificação penal surgira desa-
justada perante as necessidades do tempo. Novos esforços codifica-
dores se intentaram. Sobressai o projecto que passaria à história
como o "Código Penal de D. Pedro V", resultante de uma comis-
são em que colaboraram destacados criminalistas, tendo funcionado
como secretário e relator Levy Maria Jordão. Houve, inclusive,
contributos de autores estrangeiros. Esse projecto, concluído em

(') Mediante Decreto de 10 de Dezembro de 1845, constituiu-se, pela


terceira vez, uma comissão que se encarregava de redigir um projecto de Código
Civil e um projecto de Código Penal, mas impondo-se que este último tivesse
prioridade (art. 3.°). A comissão era presidida pelo Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, e tinha, como vogais, prestigiosos
juristas do tempo (art. 1.°). Contudo, por Decreto de 8 de Agosto de 1850,
publicado na folha oficial do dia imediato, incumbiu-se António Luís de Seabra
da redacção do projecto de Código Civil.
(2) Sancionado por Decreto de 16 de Dezembro de 1830 e mandado
executar por Carta de Lei de 8 de Janeiro de 1831.
(3) Sobre a elaboração do Código Penal de 1852 e as tentativas anteriores,
ver Braga da Cruz, O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte, cit., nota
155 da pág. 77 e nota 187 da pág. 101, e Eduardo Correia, Direito Criminal, cit.,
vol. I, págs. 104 e segs., e Estudos sobre a evolução das penas, cit., págs. 66 e segs.,
Manuel Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, vol. I (Partegeral),
Lisboa,
1981, págs. 70 e segs., Peter Hunerfeld, Die Entwicklung der Kriminalpolitik in
Portugal, cit., págs. 40 e segs.

407
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

1861 e cuja reformulação foi trazida a público no ano de 1864,


encontrava-se muito influenciado pelo correccionalismo de Roeder
e pela filosofia de Krause(1). Contudo, não obteve consagração legis-
lativa.
O Código Penal de 1852 continuava, assim, a sua carreira.
Recebeu importantes alterações devidas à Reforma Penal e das Pri-
sões de 1 de Julho de 1867, que no seu artigo 1.° aboliu a pena de
morte para os crimes civis (2), e à Nova Reforma Penal de 14 de

(') A respeito do krausismo, ver Levy Maria JordAo, A Philosophia


do
Direito em Portugal, in "O Instituto", cit., vol. I, págs. 64 e 177 e segs., L. Cabral
de Moncaoa, O Idealismo alemão e a Filosofia do Direito em Portugal (1771-1911), in
"Est. Fil. e Hist.", cit., vol. I, págs. 228 e segs., e António Braz Teixeira,
A
reacção espiritualista em Portugal: krausismo e ecletismo, in "Ciências Humanas", ano
IV, n.° 17, Rio de Janeiro, 1981 Abril/Junho, págs. 32 e segs. Quanto à doutrina
correccionalista, ver K. Roeder, Las doctrinas Jundamentales reinantes sobre el delito y
la pena em sus interiores contradicciones (trad. de F. Gíner), Madrid, 1876, págs. 234 e
segs., e J. Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal,
Coimbra,
1968, págs. 187 e segs., e 199 e seg. Como principais obras correccionalistas, entre
nós, ver Levy Maria Jordão, O Fundamento do Direito de Punir (1853), in "Boi.
da
Fac. de Dir.", cit., vol. LI, págs. 289 e segs., e Ayres de Gouvèa, A Reforma das
Cadeias em Portugal, Coimbra, 1860.
(2) Portugal foi o primeiro país a abolir a pena da morte. Quinze anos
antes, em 1852, havia-se já suprimido a pena de morte para crimes políticos, pelo
art. 16.° do Acto Adicional à Carta Constitucional. Sobre o modo como se
processou a abolição da pena de morte para os crimes políticos, consulte-se
Braga da Cruz, O movimento abolicionista, cit., págs. 9 e segs. A abolição da pena
de morte, entre nós, foi precedida do dispositivo legal que impunha o recurso
obrigatório à clemência régia em todos os casos de sentenças capitais proferidas
por tribunais portugueses. A partir de 1846, ano em que ocorreu, na cidade de
Lagos, a última execução da pena máxima, os nossos monarcas comutavam sis-
tematicamente a pena de morte. Aliás, na década que antecedera esta última
execução, a média anual de subidas ao patíbulo contava-se entre três e quatro. A
última execução por crimes políticos teve lugar em 1833 ou 1834. Quanto a estes
vários aspectos, consultar Braga da Cruz, O movimento abolicionista, cit.,
espe-
cialmente págs. 85 e segs. Muito importantes são as comunicações e conclusões
do "Colóquio Internacional Comemorativo do Centenário da Abolição da Pena
de Morte em Portugal", que se realizou, em Coimbra, de 11 a 16 de Setembro

408
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Junho de 1884, inspirada, quanto ao problema dos fins das penas, na


"teoria da reparação" de Welker, que geralmente se considera
como uma construção eclética de base ético-retributiva(1).
Entretanto, designou-se uma comissão destinada a incluir tais
diplomas no sistema do Código de 1852, alterando-o em conformi-
dade. Daí resultou o Código Penal aprovado por Decreto de 16 de
Setembro de 1886, que constituiu, pois, uma simples consolidação
legislativa. Todavia, operou-se uma remodelação vincada do
Código antecedente. Poderá descobrir-se certa tendência emanci-
padora dos modelos estrangeiros e maior adequação às realidades e
características nacionais.
Não consubstanciou o Código Penal de 1886 a obra perfeita
de interpretação e integração normativa que se ambicionava.
Foram mantidos preceitos revogados e omitidos outros que estavam
em vigor. Seguiram-se difíceis controvérsias doutrinais. Durante a
sua longa vigência, ocorreram sucessivas e profundas actualiza-
ções (2). Mas só em 1982 se promulgou um novo Código Penal para
substituí-lo ().

de 1967, as quais se encontram reunidas em três volumes com a epígrafe Pena de


Morte, publicados pela Faculdade de Direito de Coimbra.
( ) Cfr. J. Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal,
cit.,
págs. 152 e segs., especialmente pág. 157, nota 1. Acerca da teoria da reparação
de Welker, consultar Roeder, Las doctrinas fundamentales, cit., págs. 213 e segs.
(2) Ver Eduardo Correia, Direito Criminal, cit., vol. I, págs. 114 e segs.,
e,
também, págs. 70 e segs., e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português,
cit.,
vol. I, págs. 74 e segs. As duas últimas grandes integrações no sistema do Código
Penal de 1886 da legislação avulsa que o alterava profundamente foram realiza-
das pelo Decreto-Lei n.° 39688, de 5 de Junho de 1954, e pelo Decreto-Lei n.°
184/72, de 31 de Maio.
(3) Aprovado pelo Decreto-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, no uso da
autorização legislativa decorrente da Lei n.° 24/82, de 23 de Agosto, com entrada
em vigor a 1 de Janeiro de 1983. O anteprojecto respectivo deveu-se a Eduardo
Henriques da Silva Correia, datando de 1963 (parte geral) e de 1966 (parte
especial).

409
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

V — Direito civil

Termina-se a presente matéria com algumas referências ao


primeiro Código Civil português ('). Assentou no projecto de
António Luís de Seabra (2), desembargador da Relação do Porto (3),
e foi aprovado pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867 (4).
Convém lembrar, aliás, que o desejo de reforma do nosso
direito privado já vinha dos começos do último quartel do século
XVIII, ou seja, da época jusracionalista. Avivara a preocupação, evi-
dentemente, a típica dinâmica codificadora do Estado liberal.
Não pormenorizaremos esses vários esforços, para cujo inê-
xito concorreu a sabida instabilidade política da primeira metade
do século xix (5). Apenas se advertirá que de tais insucessos resul-

(') Ver M. J. Almeida Costa, Enquadramento histórico do Código Civil


Portu-
guês, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXXVII, págs. 138 e segs., e a exposi-
ção desenvolvida de MArio Reis Marques, O Liberalismo e a Codificação do
Direito
Civil em Portugal, cit., págs. 147 e segs. Relativamente ao país vizinho, consultar
Rafael Gibert, La codijicación civil en Espana (1752-1889), in "La formazione storica
dei diritto moderno in Europa", cit., vol. II, págs. 907 e segs.
(2) Ver, supra, pág. 407, nota 1.
(T) Futuro Visconde de Seabra e reitor da Universidade de Coimbra nos
anos de 1866 a 1868. Ver M. J. Almeida Costa, António Luís de Seabra, in "Dic.
de Hist. de Port.", cit., vol. III, págs. 804 e seg., e in "Temas de História do
Direito", cit., págs. 20 e segs.
( ) Sobre os antecedentes desta codificação, projectos, revisão e aprova-
ção, assim como a respeito das polémicas levantadas, em especial quanto ao
casamento civil, suas edições até 1870, repertórios, primeiras reacções ao Código,
projectos de reforma de 1903 e reforma de 1930, ver uma exaustiva indicação in
Exposição Bibliográfica dos Trabalhos Relativos ao Código Civil de 1867 e Preparatórios do
Futuro Código Civil Português, Coimbra, 1959, págs. 5 e segs., e Código Civil Portu-
guês. Exposição Documental, Lisboa, 1966, págs. 33 e segs. (que se ficaram devendo
à orientação de G. Braga da Cruz).
(5) A respeito das tentativas da elaboração do Código Civil, ver, por ex.,
A. J. Teixeira dAbreu, Curso de Direito Civil, Coimbra, 1910, vol. I, págs. 377
e
segs., A. F. Carneiro Pacheco, Código Civil Português Actualizado, Coimbra,
1920,
vol. I, págs. V e segs. ("Introdução"), e MArio Reis Marques, O Liberalismo e
a
Codificação do Direito Civil em Portugal, cit., págs. 155 e segs.

410
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

tou, também, um certo efeito positivo. Na realidade, a forçada


contenção codificadora deu tempo a que muitas importações de
última hora se radicassem, entre nós, sem os transtornos das
mudanças bruscas, não raro se articulando no encontro do patrimó-
nio tradicional com feliz sentido prático; enquanto, simultanea-
mente, proporcionou à ciência jurídica portuguesa de então, a par
do estágio e amadurecimento de soluções, aquele mínimo de apuro
técnico capaz de uma obra séria (*), de uma obra que fosse algo
mais do que pura e simples cópia servil do modelo napoleónico,
paradigma de todos os legisladores individualistas. E, afinal, um
mérito idêntico ao que — embora, sem dúvida, com maior razão —
se assinala à fecundidade do pensamento de Savigny, a propósito da
feitura tardia do BGB (2).
Desde logo, o nosso Código Civil afastou-se da divisão orgâ-
nica das codificações da época, que, no fundo, perfilharam ainda o
plano das Institutiones romanas, segundo a adaptação do Código fran-
cês: nesta linha se enquadra, por exemplo, o Código Civil espanhol.
E que o autor do projecto português tomou outra base. Preferiu
Seabra que todo o sistema do Código gravitasse em torno do sujeito
activo da relação jurídica, na vida do qual distinguiu, sucessiva-
mente, os aspectos fundamentais: primeiro, o nascimento, quer dizer,
a atribuição da capacidade de direitos e obrigações; em seguida, a
efectiva aquisição de direitos pelo exercício dessa personalidade;
depois, a sua fruição; finalmente, os esquemas que a lei estabelece
para a defesa dos direitos ou meios adquiridos.
Daqui, uma paralela divisão do Código em quatro partes
essenciais: a l.a ocupa-se "Da capacidade civil"; a 2.a trata "Da

(') José Pinto Loureiro chama a atenção, em breve síntese, para


alguns
aspectos que ajudam a compreender os progressos jurídicos experimentados ao
longo de oitocentos ("Jurisconsultos Portugueses do Século xix", cit., vol. I,
págs. 90 e segs.).
(2) Cfr. Álvaro D'Ors, Jus Europaeum?, in "L'Europa e il
Diritto
Romano — Studi in memoria di Paolo Koschaker", Milano, 1954, I, pág. 464.

411
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

aquisição dos direitos" e ficou subdividida, dentro do mesmo crité-


rio, em três títulos, indicando-se no começo os chamados "direitos
originários"; à 3.a parte correspondem as normas relativas ao gozo
e exercício dos direitos, mas destacando Seabra, com a simples epí-
grafe "Do direito de propriedade", esta prerrogativa do indivíduo,
à maneira inglesa de Locke; e a 4.a parte, por último, é a que cuida
"Da ofensa dos direitos e da sua reparação".
Não parece necessário mais para se entrever a poderosa feição
individualista desse nosso Código Civil. Nele, a vida jurídica apa-
rece tipicamente construída apenas do ângulo do indivíduo, do sujeito
de direito, desaparecendo o que há de institucional e de objectivo
nas relações sociais e jurídicas. Trata-se, na verdade, da mais com-
pleta hipertrofia do aspecto subjectivo do direito, aliás, caracterís-
tica do clima do Liberalismo (').
A mesma impressão de estreita conformidade à ideologia do
tempo não resulta menos forte quando se analisa o fundo do
Código de 1867. Redigido numa altura em que o liberalismo eco-
nómico e o liberalismo político tinham assentado amplos arraiais na
sociedade portuguesa, ele significa, também do ponto de vista do
seu conteúdo, um autêntico fecho de abóbada, "consignando a
maior parte das inovações propugnadas pelos juristas da época e
ultrapassando até, não poucas vezes, a expectativa deixada pela
obra desses juristas"(2).
Tomou-se por base a directriz, então dominante, "segundo a
qual cada um trata de si, contanto que deixe salva a liberdade dos
outros", debaixo daquele suposto de uma harmonia preestabelecida
entre as máximas vantagens individuais e o maior bem de todos.
Cabe reconhecer, todavia, que este ideal liberalista foi recebido no

(!) O que se escreve a respeito da sistematização do Código Civil inspira-


-se em Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil—Parte Geral, 2.3 ed.,
Coim-
bra, 1954, vol. I, págs. 133 e segs.
(2) Braga da Cruz, Formação histórica, cit., in "Scientia Ivridica",
tomo
IV, pág. 256.

412
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

Código, as mais das vezes, com prudente moderação, toda ela ins-
pirada por um notável senso prático e por um grande apego à
moralidade e à justiça. Aconteceu assim, principalmente, quando
não se equacionavam puros interesses económicos, mas, acima
deles, "interesses de outra índole, sobretudo os de natureza
familiar"^).
Um aspecto que suscitou intenso debate foi o do casamento. A
disciplina do matrimónio pertencia, tradicionalmente, à esfera do
direito canónico (2). Mas, com os trabalhos preparatórios do
Código Civil, pôs~se o problema da consagração do casamento
civil, ao lado do casamento católico — a tese que acabaria por
triunfar, após controvérsia que envolveu o País (3).
A promulgação do primeiro Código Civil português desper-
tou um clima de admiração verdadeiramente sincero. Neste
diploma legislativo descobriram-se perfeições de toda a ordem, ora
na lógica da sua original sistematização, ora na singela elegância e
clareza da linguagem, ora no sábio equilíbrio com que, do ponto de
vista dos comandos estabelecidos, deu seguimento àqueles ideais
que a vida põe ao direito. Numa palavra: colocava-se o nosso
Código ao lado das melhores codificações estrangeiras, adivinhan-
do-se-lhe, ingenuamente, uma vigência de séculos (4).

(!) Segue-se quase à letra, quando não se transcreve, Manuel de


Andrade, O Visconde de Seabra e o Código Civil, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit.,
vol. XXVIII, págs. 277 e segs., designadamente págs. 282 e seg.
(2) Ver, supra, pág. 250.
(3) Consultar, por todos, o estudo de Samuel Rodrigues, A Polémica
Sobre
o Casamento Civil (Í865-Í867), Lisboa, 1987, com extensas indicações bibliográficas
(ver, também, supra, pág. 410, nota 4). Suscitou-se, a propósito, a controvérsia
sobre a existência de um casamento civil na Idade Média (ver a síntese de M. J.
Almeida Costa, Significado de Alexandre Herculano na evolução da historiografia jurídica,
cit., in "A Historiografia Portuguesa de Herculano a 1950 — Actas do Colóquio
da Academia Portuguesa da História", págs. 254 e seg.
(4) Era o prognóstico de José Dias Ferreira ao escrever: "O código
está
destinado a reger durante séculos a nacionalidade Portuguesa" (Elogio histórico do

413
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Tão extraordinário culto compreende-se, sobretudo, aten-


dendo às enormíssimas vantagens que a nova lei apresentou em
relação ao direito anterior, profundamente caótico. Mas é mani-
festo que havia nessa atitude uma grande soma de exagero, vício de
que, aliás, padece a corrente oposta que, depois, quase só achou
digno de encómios o estilo cuidado em que se acham redigidas
muitas disposições do Código.
A verdade está, mais uma vez, a meio caminho. O Código
Civil de 1867 deve ser ajustado ao condicionalismo do seu tempo.
E, postas as coisas neste pé, poderemos afoitamente observar
— com a autoridade de Manuel de Andrade — que, "nem consti-
tuindo um momento de decisiva significação no conspecto geral das
modernas codificações do direito civil (como o Código francês, o
alemão, o suíço, ou o recente Código italiano), representa contudo,
em qualquer plano, uma obra prestimosa, digna de considera-
ção'^1). Parece seguro que satisfez, em medida razoável, às
exigências de justiça, utilidade, praticabilidade, certeza e estabili-
dade que o ambiente histórico em que surgiu lhe ditou.
Forçoso é reconhecer, por outro lado, que o Código de Seabra
trouxe consideráveis defeitos de nascença. Antes de mais, ressente-
-se do facto de ser, praticamente, obra de um só homem (2)

Visconde de Seabra, Lisboa, 1895, pág. 27). Por todos, consultar Manuel
de
Andrade, O Visconde de Seabra e o Código Civil, cit., in "Boi. da Fac. de
Dir.",
vol. XXVIII, págs. 280 e seg., e os autores que aí indica na nota 31, págs. 293 e
seg.
(') O Visconde de Seabra e o Código Civil, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.
XXVIII, pág. 283.
(2) É curioso que no Decreto de 8 de Agosto de 1850 (in "Diário do
Governo" do dia seguinte), já referido (ver, supra, pág. 407, nota 1), em que se
encarregou António Luís de Seabra de redigir o projecto de Código Civil, se
justificava essa nomeação, bem como a da respectiva comissão revisora, com as
seguintes palavras: "Por outra parte assim os homens de Estado, como os juris-
consultos, concordam todos hoje em que a redacção dos Códigos, para ser metho-
dica, precisa e clara, deve ser feita por uma só pessoa, e revista, depois, por

414
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

— posto que de excepcional talento — e, sem dúvida, do atraso da


civilística portuguesa da época, em consequência do próprio atraso
da civilística dos países latinos, que de longe dominava entre nós.
Da doutrina estrangeira, utilizou o autor do projecto, sobretudo, os
comentadores franceses Toullier, Marcadé e Demolombe, assim
como o célebre comentário espanhol de Garcia Goyena. Enquanto,
de entre os civilistas germânicos, talvez as leituras directas de Sea-
bra não tenham ido além da versão francesa do System de Savigny,
porventura, algo inspirador do engenhoso plano do nosso
Código (!).
Aponta-se, ainda, como vício congénito do Código de 1867 o
seu excesso de originalidade: e é sabido que em obras deste género
tal preocupação não raro constitui uma autêntica espada de dois
gumes. Daí resultaram certas disciplinas pouco felizes e, também,
algumas dúvidas e omissões que se teriam evitado desde que o autor
do projecto seguisse os modelos doutrinais e legislativos de que
voluntariamente se afastou. Caso flagrante se verificava no capítulo
da responsabilidade civil ( ), onde se pôs de parte a lição do Código
francês ( ).

CommissÕes compostas de pessoas idóneas para tão importante trabalho" (pode


ler-se em Carneiro Pacheco, ob. cit., vol. I, pág. VI). Todavia, como
escreve
Manuel de Andrade, "o Direito Civil já então constituía matéria
demasiado
ampla e difícil para ser tratada com mão segura por um único jurista" (O Vis-
conde de Seabra e o Código Civil, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXVIII, pág.
281). Veja-se, contudo, o que ainda modernamente sustenta Franz
Wieacker
quanto às vantagens daquela orientação antiga, ilustrando o seu êxito com
exemplos admiráveis, entre outros os do Allgemeines Burgerliches Gesetzbuch aus-
tríaco de F. von Zeiller, do Strafgesetzbuch bávaro de A. Feuerbach e do Zivilge-
setzbuch suíço de F. Huber (Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., pág. 543). Também
considera o problema, entre nós, A. Vaz Serra, A revisão geral do Código Civil—
Alguns factos e comentários, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXII, pág. 462.
(') Cfr. Manuel de Andrade, O Visconde de Seabra e o Código Civil, cit.,
in
"Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXVIII, págs. 281 e 295, nota 33.
(2) Arts. 231.° a 2403.°.
(3) Veja-se o que escreve A. Vaz Serra no preâmbulo do Decreto-Lei n.°
33 908, de 4 de Setembro de 1944, que autorizou o Ministro da Justiça a promo-

415
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Acresce que o decurso dos anos agravou consideravelmente as


insuficiências do Código. Foram sendo cada vez em maior número
as figuras jurídicas que não encontravam nele reconhecimento ou,
pelo menos, disciplina satisfatória. Haja em vista o que se passava
com o direito ao nome e à imagem, as fundações, as associações
não personalizadas, a representação, o abuso do direito, os negócios
jurídicos unilaterais, os negócios abstractos, o contrato de adesão,
os contratos entre ausentes, a cessão da posição contratual, a reso-
lução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias,
certos contratos em especial, o direito de superfície, a propriedade
horizontal, etc, etc. ( ).
Observe-se, ao mesmo tempo, que a respeito de muitos insti-
tutos se verificou manifesta quebra de unidade entre a regulamen-
tação do Código e as leis posteriores que os fizeram evoluir em
direcções opostas. Recordemos, apenas, os exemplos flagrantes do
direito matrimonial, de toda a moderna regulamentação do traba-
lho e da propriedade mobiliária, da responsabilidade civil objectiva
ou pelo risco e da indemnização de danos não patrimoniais, ou das
restrições ao direito de propriedade. Numa palavra, impunha-se,
progressivamente, um sistema jurídico de carácter social, a cujos
ideais não poderia corresponder o nosso primeiro Código Civil, de
marcada feição liberal e individualista.
Os aspectos que acabamos de alinhar traduziram-se, natural-
mente, em fortes limitações à esfera de aplicação do Código de
1867. A breve trecho, começou este a ser rodeado por uma imensi-

ver a elaboração de um projecto de revisão geral do Código Civil. Manuel DE


Andrade indica também, como exemplo no mesmo sentido, o art. 720.°, onde as
dúvidas de interpretação resultam apenas do facto de Seabra se ter afastado da
letra do texto francês correspondente (cfr. "Revista de Legislação e de Jurispru-
dência", cit., ano 77.°, pág. 354, e O Visconde de Seabra e o Código Civil, cit., in
"Boi. da Fac. de Dir.", pág. 296, nota 37).
(') Ver, por ex., M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.a
ed.,
Coimbra, 1984, págs. lie segs.

416
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

dade crescente de diplomas que tutelavam — para além ou contra


os seus preceitos — capítulos fundamentais do direito civil. Mas se
acrescentarmos que o Código de Seabra, também do ponto de vista
técnico, estava longe de poder satisfazer as instâncias da moderna
ciência jurídica, então, concluir-se-á que não se tornou necessário
o decurso de muitas décadas sobre a sua promulgação para terem
desaparecido, relativamente ao primeiro Código Civil português, as
melhores vantagens com que se abonam os defensores das excelên-
cias do direito codificado. Impunha-se, portanto, uma urgente e
completa revisão desse Código. Foi realizada pelo Código Civil de
1966 (•) (2).

68. Nova perspectiva do direito subsidiário

Já se recordou em que consiste o problema do direito subsidiá-


rio ( ). Nessas breves reflexões, procurámos explicar o porquê da
solução que ele teve até ao século XIX — a do recurso a outras
ordens jurídicas (4) — e da nova directiva imposta pelo pensamento
oitocentista. A integração das lacunas é deslocada para o âmbito
exclusivo do direito interno.
O primeiro Código Civil português ocupou-se da interpreta-
ção e da integração das normas jurídicas no artigo 16.°. Aí se esta-
tui o seguinte: "Se as questões sobre direitos e obrigações não

(') Quanto às justificações da reforma do Código Civil, consulte-se, fun-


damentalmente, o desenvolvido preâmbulo de Vaz Serra que indicámos, supra,
pág. 415, nota 3. Ver, também, Manuel de Andrade, Sobre a recente evolução
do
direito privado português, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXII, págs. 284 e segs.
(2) Relativamente à reforma do Código Civil de 1867 e aos trabalhos
preparatórios do actual Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 344, de
25 de Novembro de 1966, consultar a bibliografia indicada, supra, pág. 410, nota
4.
( ) Ver, supra, págs. 304 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 261 e segs., 307 e segs., e 356 e segs.

417
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei, nem pelo seu espí-
rito, nem pelos casos análogos, prevenidos em outras leis, serão
decididas pelos princípios de direito natural, conforme as circuns-
tâncias do caso".
Entendia-se que este preceito consagrava regras aplicáveis a
todas as áreas jurídicas, apenas exceptuadas as que, dada a sua natu-
reza especial, não se compadecessem com os referidos processos
integrativos. Portanto, em face de uma lacuna, devia recorrer-se,
primeiramente, à analogia, quer dizer, à disciplina estabelecida para
situação semelhante. Com efeito, existe analogia, sempre que a
razão substancial ou intrínseca de decidir seja a mesma no caso
omisso e num caso previsto em fonte de direito vigente.
Se não se encontrasse norma susceptível de aplicação analó-
gica a uma situação digna de tutela jurídica, o legislador remetia
para os princípios de direito natural. Discutia-se o alcance desta expres-
são, em que se confrontavam doutrinas jusnaturalistas e positivistas.
No predomínio das últimas, fez-se uma leitura correspondente a
"princípios gerais de direito", ou seja, da própria ordem jurídica
vigente ou legislada. Mais tarde, com o declínio positivista, preva-
leceu a orientação de que a referência aos "princípios de direito
natural, conforme as circunstâncias do caso", equivalia a confiar ao
juiz a tarefa do preenchimento das lacunas, tendo em conta a solu-
ção que presumisse adoptada pelo legislador, se ele houvesse pre-
visto o caso omisso(l).
Deixou de existir, pois, um direito subsidiário nos termos tra-
dicionais. Como acabamos de verificar, o Código Civil de 1867 não

(') Ver, por ex., Manuel de Oliveira Chaves e Castro, Estudo


sobre o
Artigo XVI do Código Civil Portuguez, Coimbra, 1871, Manuel de Andrade, Sobre
a
recente evolução do direito privado português, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol. XXII,
págs. 284 e segs., designadamente págs. 290 e segs., e L. Cabral de Moncada,
Integração de Lacunas, e Interpretação do Direito, in "Revista de Direito e de Estudos
Sociais", cit., ano VII, págs. 159 e segs., e Lições de Direito Civil—Parte Geral, cit.,
vol. I, págs. 188 e segs. Corresponde a esta solução o disposto no art. 10.°, n.° 3,
do Código Civil vigente.

418
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

manteve o critério anteriormente adoptado, que consagrava o


recurso a um direito subsidiário geral estrangeiro para a resolução
dos casos omissos. Tudo se passa, agora, dentro do sistema jurídico
português, onde se detectam, porém, direitos subsidiários particula-
res, no sentido de um ramo do direito ser chamado a preencher as
lacunas de outro ou de outros, como, por exemplo, o direito civil
em relação ao direito comercial ( ). E o mesmo ocorre na esfera
mais restrita de simples instituições ou institutos jurídicos.
Inaugurou-se, em suma, o quadro moderno do problema.

69. Extinção dos forais

Apurou-se como os forais vieram perdendo a sua importância


enquanto fontes do direito local. De estatutos político-concelhios
transformaram-se em meros registos dos encargos e isenções muni-
cipais. A reforma empreendida por D. Manuel I consumou essa
evolução (2).
Entretanto, tais contribuições não raro começaram a ser con-
sideradas um peso demasiado gravoso para os povos. Já Mello
Freire, nas Provas do seu projecto de Código de Direito Público
reconhecia a urgência da substituição dos forais manuelinos, e que
essa obra se apresentava "tão necessária, como o Código
mesmo"( ). Era, afinal, um tradicionalista que passava a palavra
aos adeptos dos novos ideais político-económicos do Liberalismo,
cujos avanços ou retrocessos, no plano legislativo, viriam a traduzir
as vicissitudes da controvérsia e da luta que envolveram o País.

(l) Cfr. o art. 3.° do Código Comercial.


r) Cfr., supra, págs. 313 e seg.
(3) Paschoal José de Mello Freire dos Reis, O Novo Código do
Direito
Publico de Portugal, com as Provas, cit. (l.a ed., Coimbra 1844), pág. 311.

419
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Assim nasceu a "questão dos forais". Referem-se apenas e muito


sucintamente os passos mais salientes da reforma (!).
Em Carta Régia de 7 de Março de 1810, enviada do Rio de
Janeiro, dá-se conta de que fora ordenado aos governadores do
Reino que se ocupassem dos meios "com que poderão minorar-se
ou suprimir-se os forais, que são em algumas partes do Reino de
um peso intolerável". Volvido cerca de um ano, no dia 12 de
Março de 1811, a Regência, pela mesa do Desembargo do Paço,
manda expedir ordens para que os corregedores das comarcas ave-
riguem esses gravames dos forais. Segue-se a Portaria de 17 de
Outubro de 1812, em que os governadores do Reino criam uma
Comissão para Exame dos Forais e Melhoramentos da Agricul-
tura. Através do Alvará com força de Lei de 11 de Abril de 1815,
ainda remetido do Rio de Janeiro, o Príncipe Regente renova o
propósito, agora a pretexto dos estragos feitos pela guerra, de revi-
são e exame dos "inconvenientes que da antiga legislação dos forais
provinham ao bem e aumento da agricultura".
Porém, só depois da Revolução de 1820 o problema é efecti-
vamente resolvido.. Como providência das Cortes Constituintes, o
Decreto de 3 de Junho de 1822, promulgado a 5 desse mês, deter-
mina a chamada redução dos forais: fixam-se em metade as pensões
e os foros estabelecidos, convertendo-se as rações ou quotas incer-
tas, assim reduzidas, em prestações certas e remíveis; extinguem-se
as lutuosas e demais encargos extraordinários; limitam-se os laudé-
mios à quarentena; e admite-se a prescrição do direito às presta-

(') De novo se remete para M. J. Almeida Costa, Forais, in "Dic.


de
Hist. de Port.", vol. II, págs. 280 e seg., e in "Temas de História do Direito",
págs. 55 e segs., com bibliografia. Ver, ainda, Albert Silbert, Le problème agraire
portugais au temps des premières Cortês libérales, Paris, 1968, e Nuno Gonçalo Mon-
teiro, Revolução liberal e regime senhorial: a "Questão dos forais" na conjuntura vintista, in
"Rev. Port. de Hist.", cit., tomo XXIII (Actas do Colóquio "A Revolução Fran-
cesa e a Península Ibérica"), págs. 143 e segs.

420
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

ções, ou a parte delas, quando não reclamadas por tempo superior a


trinta anos.
As contingências da luta política viriam, no entanto, a deter-
minar um retrocesso, decorrido escasso biénio. O Alvará com força
de Lei de 5 de Junho de 1824 restituiu provisoriamente os forais ao
estado anterior às modificações introduzidas pelas Cortes dissolvi-
das, até à reforma dos mesmos que fora prometida pela Carta
Régia de 7 de Março de 1810. Todavia, manteve-se a supressão dos
direitos banais (l), que resultara de Carta de Lei de 5 de Abril de
1821.
Um Decreto de 5 de Junho de 1824, portanto da mesma data
do referido alvará, criou uma Junta para Reforma dos Forais. Mas
logo outro Decreto de 1 de Fevereiro de 1825 a substituiria pela
Junta das Confirmações Gerais.
Expressão acabada do espírito renovador constitui o Decreto
de 13 de Agosto de 1832, de Mouzinho da Silveira. Traduz o pro-
grama liberal a respeito da propriedade. Nele se eliminam os foros,
censos e toda a qualidade de prestações, sobre bens nacionais ou
provenientes da Coroa, impostos por foral ou contrato enfitêutico.
A aplicação deste diploma, que acabava radicalmente com os
forais, levantou dúvidas e suscitou críticas apaixonadas, como a do
erudito João Pedro Ribeiro.
No entanto, a marcha legislativa continuaria, merecendo des-
taque a Carta de Lei de 22 de Junho de 1846, onde foram "confir-
madas, declaradas, ampliadas ou revogadas" as disposições da
reforma de Mouzinho da Silveira. Operava-se a abolição definitiva
dos direitos foraleiros. Seguiu-se a publicação do Regulamento de
11 de Agosto de 1847, contendo as normas a observar na conversão
e redução dos foros, censos e pensões.

( ) Diziam-se direitos banais os que se traduziam na cobrança de determina-


das prestações pelas entidades senhoriais, em contrapartida da utilização de certas
coisas, sobretudo meios de produção, como moinhos, azenhas, fornos, lagares,
prensas e açougues.

421
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

70. O ensino do direito

a) Fusão das Faculdades de Leis e de Cânones na moderna Faculdade de


Direito

O regime dos cursos jurídicos estabelecido pelos Estatutos


Pombalinos foi aperfeiçoado nos começos do século xix(1). Toda-
via, essas providências mal se experimentaram em clima de norma-
lidade. O período imediato caracterizou-se por uma enorme per-
turbação da vida universitária, como reflexo da crise que o País
atravessava. Os estudos superiores chegaram mesmo a ser suspen-
sos. Conhecem-se as causas: primeiro, as invasões francesas; e, em
seguida, após breves anos de relativa tranquilidade, a cisão política
interna consequente ao movimento vintista e que desembocou na
guerra civil (2).
A grande reforma dos estudos jurídicos produzida pelo triunfo
do Liberalismo consistiu na criação da moderna Faculdade de
Direito. Esta resultou da fusão das duas Faculdades jurídicas tradi-
cionais: a de Leis e a de Cânones.
Desde os Estatutos de 1772, começou-se, insensivelmente, a
preparar o terreno para tal unificação. Nessa altura o que se procu-
rava era combater o excessivo predomínio do direito romano e do
direito canónico através do alargamento dos horizontes do ensino
jurídico, com a introdução de novas disciplinas e, sobretudo,
desejando-se o prestígio do direito nacional (3). Daí derivou um

(') Ver, supra, págs. 366 e seg.


(2) Consultar Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal,
Lisboa,
1986, págs. 521 e segs.
(3) O decréscimo do interesse pelo direito romano, em proveito do ensino
do direito pátrio, foi um fenómeno universitário generalizado, desde os fins do
século xvih, excepto na Alemanha, onde alguma ênfase romanística se manteria
durante mais uma centúria com a Pandectística ("Pandektenwissenschaft"), quer
dizer, até ao começo da vigência do BGB, em 1900 (ver Gilissen, Introdução
Histórica ao Direito, cit., pág. 350).

422
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

núcleo de cadeiras comuns a legistas e a canonistas, embora sem se


avistarem ainda as derradeiras consequências a que o caminho ence-
tado conduziria.
A questão veio a assumir um aspecto diverso no quadro da
política liberal, a que não foi estranha uma notória desvalorização
do direito canónico e eclesiástico: unificavam-se agora os dois cur-
sos em obediência ao propósito de subalternizar e reduzir o ensino
desse ramo jurídico. Recorde-se, sucintamente, como a fusão se
produziu.
A ideia da unificação das Faculdades de Leis e de Cânones
manifestou-se, em 1833, na comissão que o Governo incumbiu de
proceder à reforma geral da instrução pública. Contudo, apenas se
concretizaria, após várias vicissitudes, dentro da ampla reforma rea-
lizada durante a ditadura setembrista de Passos Manuel (*). Em
Decreto de 5 de Dezembro de 1836, substituiram-se as Faculdades
de Leis e de Cânones pela Faculdade de Direito, continuando o
respectivo curso a ser de cinco anos, além do 6.° ano de "repeti-
ção" para os bacharéis formados que se candidatassem aos graus de
licenciado e de doutor (2).

(') Quanto a esta reforma em geral, ver Rómulo de Carvalho, A


História
do Ensino em Portugal, cit., págs. 559 e segs.
(2) Sobre a criação da Faculdade de Direito e a evolução do seu ensino até
aos fins do século xix, consultar a síntese de M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones,
Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 682 e segs.
Relativamente ao tema, existem estudos desenvolvidos de Paulo Merea, Como
nasceu a Faculdade de Direito, 2.a ed., Coimbra, 1956 (sep. do "Boi. da Fac. de
Dir.", cit., vol. de "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Alberto dos
Reis"), e Esboço de uma História da Faculdade de Direito de Coimbra, fase. I (1836-
-1865), Coimbra, 1952, fac. II (1865-1902) — Parte geral, Coimbra, 1954, e fase. III
(1865-1902) — As várias disciplinas, Coimbra, 1956 (sep. do "Boi. da Fac. de Dir.",
cit., vols. XXVIII a XXXI, e, ainda, vol. XXXIII, aditamentos a págs. 331 e
segs.). Consultar, também, o estudo já cit. de L. Cabral de Moncada, Subsídios
para uma História da Filosofia do Direito em Portugal (1772-1911), Coimbra, 1938. A
propósito do ensino do direito na segunda metade do século xix, ver as interes-
santes considerações de Jorge Borges de Macedo, Eça de Queirós universitário,
in
"Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II, págs. 49 e segs.

423
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

A reforma do setembrismo tomou por base os alvitres da pró-


pria Universidade. Desferiu-se um golpe decisivo no magistério do
direito canónico e eclesiástico e do direito romano, cada um deles
reduzido praticamente a uma cadeira professada no 2.° ano. O
estudo do direito pátrio, ao invés, passou a constituir o objecto
quase exclusivo dos três últimos anos do curso, desdobrando-se em
direito público, direito civil (duas cadeiras), direito comercial e
direito criminal. Isto, ao lado da cadeira de prática, que já existia, e
da cadeira de hermenêutica, agora no lugar das antigas cadeiras
analíticas, as quais tinham sido, segundo parece, de escassa utili-
dade. Deu-se, ainda, a inclusão da economia política (]) e tornou-se
obrigatória, para os quintanistas, a medicina legal.
Eis como se inaugurou um tipo de ensino jurídico que nada
desmerecia quando confrontado com o que se praticava no estran-
geiro. Segue-se um período de frutuosa actividade, caracterizado
pelo estabelecimento ou incremento de várias disciplinas, pela
introdução de novos métodos em certas delas e também pela redac-
ção de alguns compêndios de assinalado mérito.
Não deve causar estranheza o facto de a primeira fase da vida
da Faculdade de Direito ter sido extremamente movimentada.
Tratava-se da experiência inicial e da afinação de um plano de
estudos que envolveu uma ampla mudança, com os problemas típi-
cos dos períodos de transição. Desde logo, o de apurar se as duas
disciplinas tradicionais, o direito romano e o direito canónico e
eclesiástico, haviam encontrado a medida adequada. Por outro
lado, importava acolher e desenvolver convenientemente o estudo
de todas as matérias que os progressos jurídicos e pedagógicos iam
aconselhando. São essas neoformações e a sucessiva autonomização
de disciplinas ( ) um dos aspectos que tornam mais interessante a

(') A respeito desta disciplina, pode ver-se a súmula de António José


Ave-
lAs Nunes, Notas sobre o ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito, in
"Boletim de Ciências Económicas", vol. XXXI, Coimbra, 1988, págs. 197 e segs.
0 Ver, por ex., M. J. Almeida Costa, Apontamento sobre a
autonomização
do direito penal no ensino universitário português, in "Direito e Justiça", vol. II, Lisboa,
1981/1986, págs. 57 e segs.

424
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

história do ensino do direito, de então a nossos dias. Contudo,


durante o período que se encerra com os fins do século passado,
não se produziram mudanças bruscas e radicais, mas apenas reto-
ques na reforma de Passos Manuel. As alterações foram algumas
vezes pouco satisfatórias, o que em parte se explica pelo propósito
de não agravar, com mais cátedras, a situação extremamente
depauperada do erário público. Apenas se salienta, até aos fins de
oitocentos, a criação de uma cadeira de direito administrativo e
princípios de administração e de uma cadeira de finanças.

b) O ensino do direito nos começos do século XX

A Universidade de Coimbra entrou praticamente no século


XX com uma reforma de todo o seu ensino. A iniciativa pertenceu
a um gabinete de José Luciano de Castro, que, em Portaria de 3 de
Janeiro de 1899, convidou as diversas Faculdades a sugerir as provi-
dências que entendessem convenientes. Mas, pouco depois, suce-
deu-lhe um governo regenerador, de Hintze Ribeiro, que manteve
os propósitos pedagógicos do precedente gabinete progressista.
A Faculdade de Direito designou uma comissão integrada
por
Dias da Silva, Guilherme Moreira e Marnoco e Sousa, três destaca-
dos professores, com o encargo de elaborar um relatório sobre a
parte respeitante ao seu ensino. Introduziu a reforma o Decreto
n.° 4, de 24 de Dezembro de 1901.
Quanto aos estudos jurídicos, verifica-se que o período
ime-
diatamente anterior significou já uma mudança importante, consti-
tuindo como que o preâmbulo da quadra agora inaugurada. Na
verdade, durante o último vinténio do século XIX, assistiu-se a uma
penetração gradual das concepções positivistas e sociológicas no
ensino das várias disciplinas. O novo plano de estudos limitou-se a
consagrar inteiramente essa orientação. Era o triunfo do positi-
vismo sociológico.
Entendia-se que o direito não poderia limitar-se à simples <2&â-
lise e interpretação dos textos, mas que encontrava o seu adequado

425
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

complemento nos estudos respeitantes à vida do homem em socie-


dade. Esta perspectiva teve naturalmente grandes reflexos.
Recordem-se, por exemplo: o ensino da sociologia geral ao lado da
filosofia do direito; o estudo sociológico do crime ao lado do
direito penal propriamente dito; a importância básica atribuída à
história do direito, enquanto se via nela um vasto campo de obser-
vação e comparação dos factos, onde principalmente se fundava a
possibilidade do emprego, ha esfera jurídica, do método indutivo,
próprio das ciências naturais. Além disso, criaram-se a cadeira de
direito internacional, que abrangia tanto o direito internacional
público como o direito internacional privado, e as cadeiras de
administração colonial e de prática extrajudicial (').
Desde a primeira hora se dirigiram à reforma de 1901 apre-
ciações bastante severas (2). Não admira, portanto, que breve se
pensasse na sua substituição. A propósito do célebre conflito aca-
démico de 1907, o ensino da Faculdade de Direito tornou-se
objecto de violentíssimas críticas, não inteiramente justas. Aliás,
decorriam importantes diligências de reforma, que se incrementa-
ram e em que a Faculdade de Direito desenvolveu esforços notá-
veis. Devem recordar-se os nomes de Marnoco e Sousa, José
Alberto dos Reis, Guilherme Moreira, Machado Villela, Guimarães
Pedrosa e Ávila Lima.
Foram-se introduzindo algumas alterações ao sistema que
vigorava. Uma delas respeitou ao processo criminal. Suprimiu-se o

( ) Destinava-se esta cadeira a orientar os estudantes na aplicação do


direito substantivo às hipóteses concretas. Até aí, a "prática extrajudicial" era
ministrada na cadeira de processo do 5.° ano, ao lado da "prática judicial",
obviamente, relativa ao direito adjectivo.
(2) Quanto à reforma de 1901, pode ver-se M. J. Almeida Costa,
Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 687
e segs., e, para maiores desenvolvimentos, O ensino do direito em Portugal no século
xx (Notas sobre as reformas de 1901 e de 1911), I, Coimbra, 1964, págs. 5 e segs. (sep.
do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXIX).

426
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

complemento nos estudos respeitantes à vida do homem em socie-


dade. Esta perspectiva teve naturalmente grandes reflexos.
Recordem-se, por exemplo: o ensino da sociologia geral ao lado da
filosofia do direito; o estudo sociológico do crime ao lado do
direito penal propriamente dito; a importância básica atribuída à
história do direito, enquanto se via nela um vasto campo de obser-
vação e comparação dos factos, onde principalmente se fundava a
possibilidade do emprego, ha esfera jurídica, do método indutivo,
próprio das ciências naturais. Além disso, criaram-se a cadeira de
direito internacional, que abrangia tanto o direito internacional
público como o direito internacional privado, e as cadeiras de
administração colonial e de prática extrajudicial (!).
Desde a primeira hora se dirigiram à reforma de 1901 apre-
ciações bastante severas (2). Não admira, portanto, que breve se
pensasse na sua substituição. A propósito do célebre conflito aca-
démico de 1907, o ensino da Faculdade de Direito tornou-se
objecto de violentíssimas críticas, não inteiramente justas. Aliás,
decorriam importantes diligências de reforma, que se incrementa-
ram e em que a Faculdade de Direito desenvolveu esforços notá-
veis. Devem recordar-se os nomes de Marnoco e Sousa, José
Alberto dos Reis, Guilherme Moreira, Machado Villela, Guimarães
Pedrosa e Ávila Lima.
Foram-se introduzindo algumas alterações ao sistema que
vigorava. Uma delas respeitou ao processo criminal. Suprimiu-se o

( ) Destinava-se esta cadeira a orientar os estudantes na aplicação do


direito substantivo às hipóteses concretas. Até aí, a "prática extrajudicial" era
ministrada na cadeira de processo do 5.° ano, ao lado da "prática judicial",
obviamente, relativa ao direito adjectivo.
(2) Quanto à reforma de 1901, pode ver-se M. J. Almeida Costa, Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 687
e segs., e, para maiores desenvolvimentos, O ensino do direito em Portugal no século
xx (Notas sobre as reformas de 1901 e de 1911), I, Coimbra, 1964, págs. 5 e segs. (sep.
do "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXIX).

426
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

ensino do direito eclesiástico português, criando-se a cadeira de


processo penal e prática judicial (*). Estas matérias eram, até então,
ensinadas numa única cátedra do 5.° ano, que abrangia, ainda, os
processos especiais civis e comerciais e que apenas aos últimos
ficava agora consagrada.
Não tardaria a Faculdade de Direito a concluir o seu projecto
de reforma dos estudos jurídicos, em que Machado Villela teve
uma actuação muito destacada. Aceito pelo Governo Provisório
republicano, foi sancionado pelo Decreto com força de Lei de 18 de
Abril de 1911.
Na preparação dessa reforma desenvolveram-se esforços ver-
dadeiramente paradigmáticos — e nunca, entre nós, excedidos—,
dentro do regime de autonomia que em 1907 tinha sido concedido à
Universidade e pelo qual se reconheceu aos conselhos escolares a
importante atribuição de "determinar os métodos de ensino e a
forma dos exames e exercícios". O sistema introduzido, que mos-
trava inspiração do positivismo jurídico, representou uma audaciosa
transformação das bases pedagógicas do nosso ensino do direito.
Pelo que toca ao elenco das disciplinas, interessa salientar certas
inovações que se traduziam na inclusão do estudo da estatística, da
economia social, mercê da importância atribuída às questões operá-
rias, do direito constitucional comparado, da legislação civil com-
parada e da matéria das confissões religiosas nas suas relações com
o Estado. Acresce que se regressou à antiga separação entre a histó-
ria das instituições do direito romano e a história do direito portu-
guês (2) e se desdobrou o direito internacional num curso de direito
internacional público e numa cadeira anual de direito internacional

(') Houve uma proposta, nesse sentido, de Sidónio Pais, vice-reitor, apre-
sentada em conselho da Faculdade de Direito, a 4 de Novembro de 1910, que
obteve concordância (ver M. J. Almeida Costa, O ensino do direito em Portugal no
século xx, cit., I, pág. 34).
(2) Na reforma de 1901, existia uma única cadeira de história geral do
direito romano, peninsular e português.

427
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

privado. Foram ainda estabelecidos, anexos ao grupo de Ciências


Políticas, dois cursos complementares de habilitação para as carrei-
ras diplomática e consular: o curso anual de história das relações
diplomáticas e o curso semestral de direito consular.
Aconteceu, porém, que esta reforma, que tantas esperanças
concitara, nunca chegou verdadeiramente a receber uma perfeita
execução. O regime dos cursos livres não conduziu a resultados
satisfatórios (!). Seguir-se-iam, ainda na mesma linha do sistema de
1911, as reformas de 1918 (2) e de 1922/1923 (3). Pela última,
suprimiram-se os cursos de estatística e de direito constitucional
comparado, transformando-se o curso de direito internacional
público em cadeira anual e criando-se um curso de direito fiscal (4).

c) A criação da Faculdade de Direito de Lisboa

Produziu-se, entretanto, um facto de grande importância para


o nosso ensino jurídico: a criação da Faculdade de Direito de Lis-
boa (5). A ideia surgiu pouco depois de implantado o regime liberal,

(') A respeito da reforma de 1911, consultar M. J. Almeida Costa,


Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 688
e segs., e O ensino do direito em Portugal no século xx, cit., I, págs. 22 e segs.
(2) Decreto n.° 4648, de 14 de Julho de 1918, e Decreto n.° 4874, de 5 de
Outubro do mesmo ano.
(3) Lei n.° 1370, de 21 de Setembro de 1922, e Decreto n.° 8578, de 8 de
Janeiro de 1923.
(4) Quanto a estas e a outras reformas posteriores dos estudos jurídicos,
designadamente a de 1928 (Decreto n.° 16044, de 13 de Outubro) e a de 1945
(Decreto-Lei n.° 34850, de 21 de Agosto), consultar M. J. Almeida Costa, Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 692
e segs.
( ) Sobre a criação da Faculdade de Direito de Lisboa e as suas vicissitu-
des, ver M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic.
de Hist. de Port.", vol. II, pág. 691. Consulte-se, sobretudo, a larga exposição de
Marcello Caetano, Apontamentos para a história da Faculdade de Direito de
Lisboa,

428
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

mas apenas se efectivou com a proclamação da República. Por


Decreto com força de Lei de 22 de Março de 1911, foram estabele-
cidas as Universidades de Lisboa e do Porto (*), após o que, em 19
de Abril, a Constituição Universitária integrou na primeira uma
Faculdade de Ciências Económicas e Políticas.
Finalmente, a lei orçamental do Ministério do Interior de 30
de Junho de 1913 autorizou o Governo a organizar a nova escola,
que passaria a designar-se, ao estilo da época, Faculdade de Estudos
Sociais e de Direito. Seguiu-se o Decreto n.° 118, de 4 de Setembro
de 1913, que introduziu a Organização e Funcionamento das Facul-
dades de Direito, como lei única das Faculdades de Coimbra e de
Lisboa. Este diploma assentou nos princípios do Decreto de 18 de
Abril de 1911 e foi elaborado de harmonia com os regulamentos
sancionados por Decreto de 21 de Agosto do mesmo ano, apro-
veitando-se, todavia, a oportunidade para completar ou aperfeiçoar
certos aspectos.
A Faculdade de Estudos Sociais e de Direito abriu as suas
portas no ano lectivo de 1913/1914. Pelo Decreto n.° 3370-C, de 15
de Setembro de 1917, mudou-se-lhe o nome para Faculdade de
Direito. Viria a extingui-la o Decreto-Lei n.° 15365, de 12 de Abril
de 1928, juntamente com a Faculdade de Letras do Porto e a Facul-
dade de Farmácia de Coimbra, mas logo foi restaurada a 13 de
Outubro imediato, através do Decreto-Lei n.° 16044. Aliás, como
antes se salientou, este mesmo diploma introduziu um novo plano
dos estudos jurídicos (2).

in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. XIII, págs. 14 e segs.
Contém indicações valiosas o catálogo da exposição documental Os setenta anos da
Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1984.
(J) Determina o art. 1.° do referido diploma que "no território da Repú-
blica, além da Universidade de Coimbra já existente, são criadas mais duas
Universidades — uma com sede em Lisboa e outra no Porto".
(2) Ver, supra, nota 4 da pág. anterior.

429
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

71. Ciência do direito e literatura jurídica

a) Considerações gerais

Quanto à ciência do direito e à literatura jurídica neste ciclo,


pode dizer-se que não se verifica, entre nós, tal como sucedera nos
períodos anteriores, grande autonomia e originalidade relativa-
mente ao que se passava além-fronteiras ( ). Algumas observações
sobre a influência das escolas então imperantes no estrangeiro
foram já feitas ao tratar-se do movimento de codificação e do
ensino do direito ( ). Por outro lado, o reflexo da orientação dada
aos estudos universitários, em cujo âmbito predomina a doutrina da
época, afigura-se manifesto nas obras dos nossos autores e na vida
forense.
Durante a maior parte do século XIX, a literatura jurídica
portuguesa teve uma feição exegética e descritiva do regime legal,
sem fundamentais preocupações metodológicas (3). Em paralelo
com o ensino da Faculdade de Direito, os juristas propendiam para
se limitarem ao estudo da forma e modificação das normas vigentes
e ao comentário dos seus preceitos.

(') Pode cônsultar-se a síntese de Gilissen, Introdução Histórica ao Direito,


cit., págs. 513 e segs. Para maiores desenvolvimentos, ver, por ex., José M.
Rodríguez Paniagua, Historia dei Pensamiento Jurídico, 5.a ed., Madrid, 1984.
(2) Ver, supra, respectivamente, págs. 394 e segs., e págs. 422 e segs.
(3) Não falta quem abra três períodos, com duração aproximada, na nossa
história jurídica do século xix, tendo-se sobretudo em vista a distribuição dos
juristas que escreveram ao longo dele: o primeiro decorre do começo de oitocen-
tos às reformas de Mouzinho da Silveira, em 1832; o segundo, caracterizado por
intensa revisão legislativa, vai desde essas reformas até ao Código Civil de 1867;
e o terceiro estende-se daí ao fim do século (ver José Pinto Loureiro, in
"Juris-
consultos Portugueses do Século xix", cit., vol. I, págs. 92 e segs., e G. Braga da
Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I,
págs. 2 e segs.).

430
período da formação do direito português moderno

Nessa hermenêutica e explanação dos textos legais conti-


nuava, ainda, o predomínio dos antigos critérios, marcados pelo
demasiado apego à variedade de argumentos e de opiniões. Con-
tudo, alguns espíritos mais abertos iam-se manifestando contra os
excessos de dedução e de lógica abstracta, assim como contra o
estrito legalismo.
Assinalam-se, de facto, mesmo antes dos fins do século XIX, a
sedução generalizada das concepções positivistas e sociológicas, que
invadiram os vários ramos do direito, opondo-se à tendência para a
abstracção e ao formalismo. Entraram na ordem do dia a superação
do puro método exegético, o interesse pelas realidades sociais sub-
jacentes ao direito, a atribuição de específica importância à história
jurídica e à doutrina estrangeira.
E sob inspiração conceptualista que a ciência do direito portu-
guês entra no século XX. O positivismo jurídico imperou durante as
suas primeiras décadas. Constituía a orientação avassaladora, mas
não sem que se fizesse ouvir alguma voz que, contestando a vali-
dade dos alicerces ontológicos dessa corrente, comunicava ao pen-
samento do nosso país a reflexão prospectiva dos rumos futuros da
ciência jurídica e da própria cultura europeia(1).
Para se compreender exactamente o carácter da literatura
jurídica portuguesa dos fins do século passado e dos começos do
século em curso, há que ter presente que os nossos autores se depa-
raram com uma vaga perturbadora de novas codificações. Não
admira, consequentemente, que o primeiro esforço, tanto no plano
do ensino como da prática forense, estivesse voltado para a sua
interpretação. Tornava-se indispensável, antes de mais, realizar
trabalho exegético e de comentário. Só depois de lançados esses
alicerces se tornaram possíveis estudos de síntese e de exposição
sistemática.

0 Significativo, neste sentido, foi o já indicado estudo de Paulo


Mepêa,
Idealismo e Direito, Coimbra, 1913 (ver, supra, pág. 57).

431
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

b) Direito político e direito administrativo

No âmbito do direito político, cabe referência destacada à


obra de Manuel Emídio Garcia — que foi o iniciador da corrente
positivista na Faculdade de Direito, a qual se comunicou, em
seguida, às restantes disciplinas(l)—, de Lopes Praça(2), José Fre-
derico Laranjo (3) e Marnoco e Sousa (4). Paralelamente, quanto ao

(') A orientação sociológica de Emídio Garcia pode ver-se no Programa


da
4." cadeira para o curso respectivo ao ano de 1885 a 1886, Coimbra, 1885, e nos Aponta-
mentos de algumas prelecções do Dr. E. Garcia, por E. Camelo e Abel de
Andrade,
Coimbra, 1893. Garcia ascendeu a lente catedrático em 1870, regendo direito
administrativo até 1880 e passando no ano imediato para a cadeira de direito
político (4.a cadeira). Sobre este autor, consultem-se L. Cabral de
Moncada,
Subsídios para uma História da Filosofia do Diréto em Portugal, cit., págs. 164 e segs., e
Paulo Merêa, Esboço de uma História da Faculdade de Direito de Coimbra, cit., fase.
III, págs. 6, 24 e segs., e 46 e segs.
(2) José Joaquim Lopes Praça, Direito Constitucional Portuguez,
Coimbra,
1880, e Collecção de leis e subsídios para o estudo do direito constitucional portuguez, 2
vok, Coimbra, 1893/1894.
(3) José Frederico Laranjo, Princípios de Direito Politico e Direito
Constitucio-
nal Portuguez, Coimbra, 1898. Os fascículos desta obra que vieram à luz da publi-
cidade foram compêndio oficial até 1908/1909. Sobre Laranjo, ver Paulo Merêa,
Esboço, cit., fase. III, págs. 29 e seg. Frederico Laranjo, que assumiu também a
regência de direito administrativo, deu à estampa, nesse domínio, alguns fascícu-
los de um compêndio intitulado Princípios e instituições de direito administrativo, Coim-
bra, 1888 (2.a ed. em 1894).
( ) José Ferreira Marnoco e Sousa, Lições de direito político, feitas na
Univer-
sidade de Coimbra, ao curso do 2." ano jurídico de 1899-1900, Coimbra, 1900, Direito
político, etc, Coimbra, 1910, e Constituição politica da Republica portugueza. Commen-
tario, Coimbra, 1913. Relativamente a este ilustre mestre, consultem-se Machado
Vilela, Dr. José Ferreira Marnoco e Sousa (Notas biográficas), Caeiro da Mata,
O
Professor Marnoco e Sousa e o estudo da história do direito, Fezas Vital, O professor
Marnoco e Sousa e os estudos de direito político na Universidade de Coimbra, e Oliveira
Salazar, Doutor Marnoco e Sousa—O Professor de Sciências Económicas, in "Boi. da
Fac. de Dir.", cit., ano II, respectivamente, págs. 329 e segs., págs. 363 e segs.,
págs. 373 e segs., e págs. 381 e segs. Nesse mesmo vol. se inclui, a págs. 395 e
segs., a Relação das obras do Dr. José Ferreira Marnoco e Sousa. Aliás, trata-se de uma

432
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

direito administrativo, recordem-se, desde logo, Basílio Alberto de


Sousa Pinto (l) e Justino António de Freitas, que elaborou, entre
nós, o primeiro trabalho de exposição desta disciplina, com mar-
cada influência de Laferrière e de feição descritiva (2). Mas é pelos
começos do presente século que se cria e desenvolve em Portugal
uma verdadeira ciência do direito político e administrativo: ini-
cialmente, sob a forma de um conceptualismo ou dogmatismo
normativista, com Guimarães Pedrosa(3) e Rocha Saraiva (4);
depois, configurando-se como uma corrente positivista-evolucio-
nista, através de Marnoco e Sousa (5).
Contudo, o autêntico triunfo do positivismo jurídico havia de
verificar-se com a chamada "escola realista", que pouco antes da
I Grande Guerra, irradiando de Bordéus, começara a abalar os
alicerces da ciência clássica do direito público. Léon Duguit e Gas-

variada bibliografia, de onde constam estudos respeitantes a diversos ramos do


direito, à ciência económica e às finanças. Consultar, por último, Fernando
Emygdio da Silva, Doutor Marnoco e Sousa — O ensino das suas aulas e a lição da
sua
vida, in "Boi, da Fac. de Dir.", cit., vol. XLII, págs. 1 e segs., e Braga da Cruz,
A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs.
456 e segs.
(') Apontamentos de Direito Administrativo com referência ao Código Administrativo
Português de 18 de Março de 1842, redigidos segundo as prelecções oraes do limo. Sr. Basílio
de Sousa Pinto, feitas no ano de 1844 a 1845, por Lopo José Dias de Carvalho
e
Francisco de Albuquerque Couto, Coimbra, 1849. Sobre Basílio Alberto,
con-
sultar Merêa, Esboço, cit., fase. I, págs. 39 e seg.
(2) Justino António de Freitas, Instituições de Direito Administrativo
portu-
guês, Coimbra, 1857.
(3) António Lopes GuimarAes Pedrosa, Curso de ciência da
administração e
direito administrativo, Coimbra, 1904. Organizou, também, uma colectânea de legis-
lação posterior ao Código Administrativo de 1886, composta de três vols. edita-
dos em Coimbra, 1893/1894.
(4) Alberto da Cunha Rocha Saraiva, Construcção Jurídica do
Estado,
Coimbra, 1912.
(5) Consultar as desenvolvidas exposições de Marcello Caetano,
Manual
de Direito Administrativo, cit., vol. I, págs. 65 e segs., e 165 e segs., e de Afonso
Queiró, Lições de Direito Administrativo, cit., vol. I, págs. 251 e segs.

433
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

ton Jèze, separados embora por alguns postulados metodológicos,


estavam essencialmente unidos numa convergência caracterizada
pela adopção de uma técnica jurídica que, negando o pensamento
idealista, trazia para o mundo da dogmática juspublicista os pressu-
postos do positivismo de Comte e do sociologismo de Durkheim e
Lévy-Bruhl. Apenas um reduzido espaço de influência era deixado
ao institucionalismo da Escola de Toulouse, que Maurice Haurriou
proclamava sob inspiração bergsoniana.
A técnica realista francesa exerceu, no nosso país, profunda
influência. Magalhães Collaço(1) e Fezas Vital ( ), os juspublicistas
mais expressivos da época, tornaram-se seus adeptos incondicio-
nais (3).

c) Outros domínios jurídicos

Já sabemos que, antes dos meados de oitocentos, se iniciou,


entre nós, o movimento de codificação, o qual viria a acelerar-se
durante a segunda metade desse século (4). Também se observou,

(') Sobre João Maria Tello de Magalhães Collaço, cônsultem-se Fezas


Vital, Magalhães Colaço, professor de Direito, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
XIII, págs. 332 e segs., e Braga da Cruz, A Revista de Legislação e
de
Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 513 e segs.
(2) Quanto à bibliografia de Domingos Fezas Vital, consultar
Marcello
Caetano, Manual de Direito Administrativo, cit., vol. I, pág. 172. Ver, também, o
"Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXIX, págs. 303 e segs., e Braga da Cruz,
A
Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 613
e segs.
(3) Terá sido importante a presença do próprio Duguit nas Universidades
portuguesas: em 1910, veio a Coimbra proferir conferências; e, quando voltou,
pelos fins de 1923, a Faculdade de Direito de Lisboa consagrou-o como o seu
primeiro doutor "honoris causa" (cfr. Marcello Caetano, Apontamentos para
a
história da Faculdade de Direito de Lisboa, cit., in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de
Lisb.", vol. XIII, págs. 74 e seg.). Ver Lêon Duguit, Les grands doctrines juridi-
ques et le pragmatisme (conferência na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1923), in
"Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", cit., vol. II, págs. 7 e segs.
(4) Ver, supra, págs. 397 e segs.

434
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

quando tratámos da modernização privatística ( ), como as corren-


tes jurídicas e os próprios direitos estrangeiros iam sendo recebidos,
através das obras dos nossos autores.
Ora, a vida jurídica portuguesa, depois de iniciado o presente
século e até aos fins do período de que nos ocupamos, permaneceu
fundamentalmente idêntica à das décadas anteriores. Constitui um
ciclo de sinal homogéneo, de jurisconsultos como que perplexos e
não refeitos de hesitações bem explicáveis, pois, no breve tempo
compreendido entre 1867 e 1905, viram-se diante de um alude de
dez diferentes Códigos. A novidade e a complexidade dos seus
preceitos colocaram a teoria e a prática dos tribunais perante dúvi-
das e controvérsias interpretativas de vulto. Nem fora, decerto,
suficiente a elevação do nível jurídico que transparece do entu-
siasmo publicitário em torno das revistas especializadas então
nascidas (2).
Resulta do exposto a feição geral, antes salientada, que ofe-
rece a literatura jurídica portuguesa da época. Resta apenas recor-
dar alguns dos mais notáveis juristas do ciclo histórico em apreço,
que se afirmaram ao lado dos referidos cultores do direito político e
do direito administrativo.

Pelo que respeita ao panorama da civilística, considerando o


período que decorre até 1867, destacam-se Borges Carneiro (3),

( ) Ver, supra, págs. 386 e segs.


(2) Três delas sobreviveram até nossos dias: a "Revista de Legislação e de
Jurisprudência" (desde 1 de Maio de 1868), "O Direito" (desde 3 de Dezembro
de 1868) e a "Revista dos Tribunais" (desde 15 de Junho de 1882). Sobre o
periodismo jurídico português do século xix, consultar Braga da Cruz, A
Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 2 e
segs.
( ) Escreveu um livro importante com o título Direito Civil de Portugal,
Lisboa, 1826/1828. Trata-se de um trabalho extenso, cuja sistematização se ins-
pira no Código Civil francês e que consta de quatro tomos: os três primeiros
foram editados entre 1826 e 1828, mas o quarto, apenas postumamente, em 1840.
Reeditou-se a obra completa no ano de 1858. A respeito deste autor, veja-se

435
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

Correia Telles ('), Liz Teixeira (2) e Coelho da Rocha. O último,


sobretudo, legou-nos uma obra com forte cunho pessoal e reflec-
tindo as tendências que ao tempo marcavam a linha do progresso:
numa linguagem clara e mesmo elegante, traça o sistema do direito
civil em vigor, a que não faltam algumas análises certeiras dos
precedentes históricos ( ).
As Instituições de Coelho da Rocha, redigidas para o ensino,
vieram, de facto, ao encontro da necessidade de um livro actuali-
zado que substituísse o de Mello Freire, não só de acordo com a
legislação e o espírito da época, mas também que correspondesse ao
impulso que os estudos civilísticos assumiram após a unificação dos
cursos jurídicos (4). Devem considerar-se, ao lado do compêndio de
Mello Freire, uma das obras de referência da história do direito
português.

Adelino da Palma Carlos, Manuel Borges Carneiro, in "Jurisconsultos


Portugueses
do Século xix", cit., vol. II, Lisboa, 1960, págs. 1 e segs.
(l) Da sua ampla bibliografia, além do cit. Commentario Critico á Lei da Boa
Razão, em data de 18 de Agosto de 1769, Lisboa, 1824 (ver, supra, pág. 356, nota 3),
assinalam-se: Theoria da interpretação das Leis e Ensaio sobre a natureza do Censo Consig-
nativo, Lisboa, 1815 (a primeira parte é uma tradução extraída da obra de J.
Domat, Les loix civiles dans leur ordre naturel, a que Correia Telles acrescentou
algumas glosas; encontra-se republicada in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LV,
págs. 139 e segs.), Digesto Portuguez, Lisboa, 1835 (4.a ed., Coimbra, 1853), Manual
do Processo Civil. Supplemento ao Digesto Portuguez, Coimbra, 1842, Formulário de
Libellos e Petições Summarias, Coimbra, 1845, e Questões e Varias Resoluções de Direito
Emphyteutico, Coimbra, 1851 (obra póstuma).
(2) António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil
Portuguez,
Coimbra, 1845 (2.a ed., 1848), que se apresenta como um comentário às Institutio-
nes de Mello Freire, as quais em muitos pontos actualiza e completa, utilizando
com frequência o Código Civil francês.
(3) São fundamentais as já cit. Instituições de Direito Civil Portuguez, Coim-
bra, 1844 (l.a ed.) (ver, supra, pág. 50). Sobre a importância da obra de Coelho da
Rocha, ver Centenário da morte de Manuel António Coelho da Rocha, in "Boi. da Fac.
de Dir.", cit., vol. XXVI, págs. 275 e segs. (discursos de Henrique de
Brito
Câmara, Manuel de Andrade e G. Braga da Cruz).
( ) Ver, supra, págs. 422 e segs.

436
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

A partir da publicação do nosso primeiro Código Civil,


salientam-se José Dias Ferreira, autor de comentário valioso a esse
diploma (1), e, posteriormente, Guilherme Alves Moreira, que,
ultrapassando a fase da simples hermenêutica que a mesma lei tor-
nou inevitável, pode qualificar-se como o fundador da civilística
portuguesa moderna. Lançou, ao menos, os seus alicerces (2). Por
referência à obra de Coelho da Rocha — em cujo confronto
importa atender às diferenças legislativas e científicas das respecti-
vas épocas—, terá de considerar-se aquela de tipo institucional ou
sintético e a de Guilherme Moreira mais analítica, posto que não
chegue a fornecer uma visão completa do nosso direito civil.
Lembre-se, ainda, Teixeira de Abreu, que inaugurou na
docência a utilização de lições impressas, da autoria e responsabili-
dade do professor (3). Não deixou, propriamente, uma obra inova-

( ) Código Civil Portuguez Annotado, Lisboa, 1870/1876. Entre os estudos de


J. Dias Ferreira, contam-se umas Noções Fundamentaes de Philosophia do Direito,
Coimbra, 1867. Sobre este ângulo do autor, vejam-se L. Cabral de
Moncada,
José Dias Ferreira, in "Est. Fil. e Hist.", cit., vol. I, págs. 304 e segs., e, também,
Mário Reis Marques, Do "Direito Natural" à "Filosofia do Direito": José Dias
Fer-
reira, in "Nomos — Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado", n.05
3/4, Lisboa, 1987, págs. 38 e segs., com a indicação de outros estudos respeitantes
a Dias Ferreira e uma lista ampla de publicações deste relativas a temas de
diversa natureza (Aid., pág. 45, nota 17).
( ) A sua obra básica foram as Instituições do Direito Civil Português, Coim-
bra, 1911 (compostas de dois extensos volumes referentes à parte geral e às
obrigações). A respeito de Guilherme Moreira, ver Centenário do nascimento do
Doutor Guilherme Alves Moreira, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXVII,
págs. 187 e segs. (discursos de A. Vaz Serra e JoAo de M. Antunes Varela),
e
Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História,
cit., vol. I, págs. 431 e segs., e vol. II, Coimbra, 1979, pág. 137. Relativamente à
passagem de Guilherme Moreira pelo ensino da história do direito, ver, supra,
pág. 56.
(3) António José Teixeira d'Abreu, Lições de Dirdto Civil, tomo I,
Coim-
bra, 1898, que foram aprovadas como compêndio da cadeira correspondente.
Acrescentam-se: Lições de direito civil (litografadas), Coimbra, 1890/1891, Das subs-
tituições fideicomissarias, Coimbra, 1894, Curso de Direito Civil, Coimbra, 1910 (já

437
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dora ou que realizasse alguma transformação significativa. Todavia,


as suas exposições prosseguem, com assinalável brilho e agudeza
jurídica, um sistema exegético moderado (*). Outro civilista rele-
vante foi José Tavares (2).

Quanto ao direito comercial, surge, desde logo, Ferreira Bor-


ges (3), mencionado a propósito da elaboração do nosso primeiro
Código Comercial ( ). Mas devem, também, assinalar-se diversos
autores, ligados ao ensino universitário.
Com a criação da Faculdade de Direito, institui-se a cadeira
de direito comercial (5), matéria anteriormente sem autonomia

cit.), Das aguas, Coimbra, 1917, e Apontamentos sobre direitos reais, Coimbra, 1928.
Recordem-se, ainda, os Elementos de pratica extrajudicial, Coimbra, 1910. Quanto à
produção deste autor no domínio do direito internacional privado, ver, infra, pág.
446.
(') Teixeira de Abreu introduziu no ensino civilístico a chamada "Carti-
lha" (Summario do Código civil portuguez, Coimbra, 1908, de que existem várias
edições), que era uma síntese breve do Código Civil destinada a fornecer aos
estudantes uma visão global desse ramo do direito. Sobre este autor, vejam-se
Marnoco e Souza/Alberto dos Reis, A Faculdade de Direito e o seu ensino,
Coim-
bra, 1907, págs. 71 e segs., e Paulo Merèa, Esboço, cit., fase. III, págs. 44 e seg.
(2) Nesta área, José Maria Joaquim Tavares escreveu: Sucessões e
Direito
sucessório, Coimbra, 1903, Tratado da capacidade civil, Coimbra, 1905, e Princípios
fundamentais do direito civil, vol. I (Noções gerais. Obrigações, direitos reais, família e
sucessões) e vol. II (Pessoas, cousas, factos jurídicos), Coimbra, 1922. Assinale-se, tam-
bém, A pratica extrajudicial e o tabelliado, Porto, 1896. A respeito do sistema rota-
tivo, na regência das cadeiras de direito civil, entre Guilherme Moreira, Teixeira
de Abreu e José Tavares, consultar Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de
Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, nota 1052 da pág. 435. Sobre José
Tavares como comercialista, ver, infra, pág. seguinte.
(3) Destacam-se os seguintes estudos de José Ferreira Borges:
Instituições
de Direito Cambial Portuguez, Londres, 1825, Jurisprudência do Contrato Mercantil de
Sociedade, Londres, 1830, e Diccionario Juridico-Commercial, Lisboa, 1839. Sobre este
jurtista, consulte-se J. M. Barbosa de Magalhães, José Ferreira Borges, in
"Juris-
consultos Portugueses do Século xix", cit., vol. II, págs. 202 e segs.
(4) Ver, supra, págs. 398 e segs.
(5) Ver, supra, pág. 423.

438
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

didáctica e pouco versada por Mello Freire. O seu primeiro titular


foi Machado de Abreu, que se limitou a utilizar como livro de
texto o próprio Código Comercial de 1833, comparando-o com as
modernas codificações estrangeiras e os respectivos tratadistas.
Ocupou, depois, essa cátedra, entre 1858 e 1870, Diogo Forjaz, que
produziu obra escrita (*). Os professores subsequentes mantiveram a
linha da exposição exegética da lei mercantil básica. Entretanto,
após a publicação do Código Comercial de 1888 (2), tornou-se
ponto fulcral e muito debatido a análise do artigo 2.° do novo
diploma, sobre os actos de comércio (3).
No trânsito do século xix para o século XX, assume relevo
Abel de Andrade. As suas lições encontram-se inspiradas pelo posi-
tivismo evolucionista e denunciam apreciável esforço de actualiza-
ção, mediante o recurso à doutrina estrangeira, sobretudo ita-
liana (4). À mesma orientação se prende José Tavares ( ). Recor-

(') O nome completo deste lente da Faculdade de Direito era Diogo


Pereira rwjaz de Sampaio Pimentel. Constam da sua bibliografia duas obras:
Síntese do Código de Commercio Portuguez, Coimbra, 1865 (2.a ed. alterada, de 1866),
e Annotações ao Código de Commercio Portuguez, 6 tomos, Coimbra, 1866 (existem
edições parciais de 1855 e 1857; há uma nova ed. de 1875, em 4 tomos, que
contém um projecto de Código Comercial do autor, com os motivos). Consultar
Paulo Merèa, Esboço, cit., fase. III, págs. 58 e seg.
(2) Ver, supra, pág. 400.
(3) A respeito dos vários regentes da cadeira de direito comercial, até aos
fins do século xix, ver Paulo Merèa, Esboço, cit., fase. III, págs. 59 e seg.
(4) Abel Pereira de Andrade, Direito Comercial: apontamentos das
prelecções
do Dr. Abel de Andrade, Coimbra, 1899. Esta obra foi inteiramente redigida pelo
professor, como se declara. Na parte final da sua carreira universitária
(1915/1936), Abel de Andrade passaria à docência do direito penal e do corres-
pondente processo (ver M. J. Almeida Costa, Apontamento sobre a autonomização
do
direito penal no ensino universitário português, cit., in "Direito e Justiça", vol. II, págs.
57 e segs., designadamente págs. 77 e seg.).
(5) A fiança no direito commercial, Coimbra, 18%, Das sociedades commerciaes,
Coimbra, 1898/1899, Das emprezas no direito commercial, Coimbra, 1898, Curso de
direito commercial, tomo I, Coimbra, 1901 (cuja impressão ficou incompleta), e

439
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

dem-se, finalmente, Marnoco e Sousa, que também neste domínio


deixou os sinais de grande operosidade (l), José Gabriel Pinto Coe-
lho (2) e Luís da Cunha Gonçalves (3). Começavam a dar-se passos
importantes que encaminhariam para a modernização posterior da
nossa dogmática comercialística.

Em matéria de direito penal, ocorrem, primeiro, os nomes de


Silva Ferrão (4) e de Levy Maria Jordão (5). Aliás, mencionaram-se
estes autores ao tratar-se do movimento codificador português i(6).

Sociedades e emprezas comerciais, Coimbra, 1924 (2.a ed. completada Das sociedades
commerciaes e da parte jurídica Das emprezas no direito commercial). Acerca da obra
civilística deste autor, veja-se, supra, pág. 438.
( ) Sobre este eclético mestre, ver, supra, pág. 432, nota 4. A sua bibliogra-
fia em matéria de direito mercantil inclui Das letras no direito commercial portuguez,
Coimbra, 1897, e Das letras, livranças e cheques. Commentario ao titulo IV do livro II do
Código Commercial, 2 vols., Coimbra, 1905/1906.
(2) A sua obra de comercialista distinto inicia-se com a publicação de
umas primeiras lições de Direito commercial portuguez, vol. I, Coimbra, 1914. A
partir de Fevereiro de 1918, durante a licença sabática de Pinto Coelho, o direito
comercial foi regido por Guilherme Moreira e continuou a sê-lo, em 1919, por
virtude da transferência daquele professor para a Faculdade de Direito de Lisboa.
No ano lectivo de 1921/1922, a cadeira passou a Mário de Figueiredo. Sobre
Pinto Coelho, ver Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência —
Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 492 e segs., e vol. II, pág. 137.
(3) Lembre-se, especialmente, o Comentário ao Código Comercial Português, 3
vols., Lisboa, 1914/1918. Cunha Gonçalves também viria a dedicar-se à civilís-
tica, onde se destaca o Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Portu-
guês, 15 vols., Coimbra, 1929/1940. A sua obra tornou-se muito conhecida
no Brasil, tendo mesmo escrito os Princípios de Direito Civil Luso-Brasiláro, 3 vols.,
São Paulo, 1951. A propósito de uma publicação civilística mais tardia de Cunha
Gonçalves, ver a extensa recensão crítica de Manuel de Andrade, in "Boi.
da
Fac. de Dir.", cit., vol. XXVIII, págs. 349 e segs.
(4) Francisco António da Silva FerrAo, Theoria do direito penal,
applicada ao
Código Penal Portuguez, Lisboa, 1856/1857. Ver, supra, pág. 407.
(5) Ver o seu Commentario ao Código Penal Portuguez, Lisboa, 1835. Indicou-
-se, supra, pág. 408, nota 1, mais bibliografia de Levy Maria Jordão.
(6) Ver, supra, pág. 407.

440
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

No plano universitário, importa salientar, antes de mais, Basí-


lio Alberto de Sousa Pinto, que teve a regência de 1843 a 1861 ( ),
ou seja, desde que o ensino do direito criminal se associou ao
direito administrativo numa única cátedra e em seguida a readqui-
rir a posição de cadeira exclusiva (2). Sucedeu-lhe Henriques Secco,
que, ao menos de começo, pouco se afastou das lições de Sousa
Pinto, mantendo as suas posições fundamentais — caracterizadas
pela adesão às doutrinas utilitárias e preventivas (3)—, excepto
quanto à pena de morte, a que votava franca hostilidade (4). Depois
de Secco, em 1887, a cátedra de direito criminal foi ocupada por
Henriques da Silva, cujo início da docência coincide com a pene-
tração, entre nós, das ideias da escola italiana de sociologia crimi-
nal. As suas exposições, começadas no ano imediato ao da publica-

(') Podem cônsultar-se as Lições de Diráto Criminal redigidas segundo as prelec-


ções oraes do Ulmo. Sr. B. A. S. Pinto, feitas no ano lectivo de 1844-45 e adaptadas
às Instituições de direito criminal português de P. J. de Mello Freire, por
Fran-
cisco dAlbuquerque e Couto e Lopo José Dias de Carvalho, Coimbra,
1845.
Após a publicação do Código Penal de 1852 (ver, supra, págs. 406 e segs.), foram
dadas à estampa novas Lições de Direito Criminal Portuguez redigidas segundo as prelec-
ções oraes de B. A. S. Pinto, por A. M. Seabra d'Albuquerque, Coimbra, 1861.
A
respeito de Sousa Pinto, ver, supra, pág. 433, nota 1, e Paulo Merêa, Esboço, cit.,
fase. I, págs. 50 e segs.
(2) Ver M. J. Almeida Costa, Apontamento sobre a autonomização do
diráto
penal no ensino universitário português, cit., in "Direito e Justiça", vol. II, págs. 57 e
segs., designadamente págs. 66 e seg.
(3) Ver M. J. Almeida Costa, est. e lug. cits. na nota anterior, págs. 68
e
seg.
(4) António Luiz de Sousa Henriques Secco propôs-se escrever
um
Compêndio de direito criminal portuguez, de que saíram alguns capítulos na "Revista
de Legislação e de Jurisprudência", cit., anos 5.°, 8.° e 9.°. Publicou na mesma
revista, ano 4.°, um extenso artigo intitulado Da historia do direito criminal desde os
mais remotos tempos. Foi, ainda, autor de um Código Penal seguido de um appendice e
annotado, que conheceu várias edições, dirigido à prática e não propriamente ao
ensino universitário. Sobre Henriques Secco, consultem-se Paulo Merêa, Esboço,
cit., fase. III, págs. 62 e segs., e Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de
Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 57 e segs.

441
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

ção do Código Penal de 1886(1), procuraram corrigir os excessos


da escola antropológica com a relevância atribuída às causas sociais
da criminalidade ( ). Encontrava-se Caeiro da Mata na regência do
direito penal, quando se encerra o período estudado (3).

Relativamente ao direito processual, há que apontar, das gera-


ções oitocentistas precursoras, Correia Telles, também cultor deste
ramo jurídico (4), Francisco Nazaré th (5), Alves de Sá(6), Bernardo
de Serpa Pimentel(7) e Neves e Castro (8). Viriam, depois, Chaves

( ) Ver, supra, pág. 409.


(2) António Henriques da Silva, Lições de Direito Penal ao 5° Ano
Jurídico,
compiladas por J. F. Gomes, H. C. Oliveira Martins e Macedo e Castro,
Coimbra, 1898/1899 (ed. policopiada da Lithographia da R. das Cozinhas), e os
seus Elementos de sociologia criminal e direito penal, Coimbra, 1905/1906 (que ficaram
incompletos). No mesmo sentido, consulte-se Afonso Costa, Commentario ao
Código penal portuguez, I — Introducção, escolas e princípios de criminologia moderna,
Coimbra, 1895. A respeito da obra e do ensino de António Henriques da Silva,
ver L. Cabral de Moncada, Subsídios para uma História de Filosofia do Direito em
Portugal, cit., págs. 178 e segs., Paulo Merea, Esboço, cit., fase. III, págs. 65 e
segs., Eduardo Correia, A influência de Franz v. Liszt sobre a reforma penal portu-
guesa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XLVI, págs. 1 e segs., e Braga da
Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I,
págs. 71 e segs.
(3) Ver Braga da Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço
da sua História, cit., vol. I, pág. 566, nota 1258.
(4) Ver, supra, pág. 436, nota 1.
(5) Francisco José Duarte Nazareth escreveu duas obras
importantes:
Elementos de Processo Criminal, Coimbra, 1846 (ver, especialmente, a 4.a ed., de
1861, e a 7.a ed., de 1866, revistas e aumentadas), e Elementos de Processo Civil, 2
vols., Coimbra, 1850/1857 (ver a 3.a ed., de 1860, revista e aumentada).
(6) Eduardo Dally Alves de Sá, Commentario ao Código de Processo
Civil
Portuguez, 3 vols., Lisboa 1877/1884. Trata-se de uma obra valiosa.
(7) Publicou umas Lições de Theoria do Processo, Coimbra, 1874/1875 (existe
uma edição litografada de 1873/1874), e a Correspondência de artigos entre a edição
precursora e a primeira edição oficial do Código de processo civil, Coimbra, 1876.
(8) O nome completo deste autor era Francisco Augusto das Neves e Cas-
tro. Assinalam-se as suas obras seguintes: Varias questões de jurisprudência theorica e

442
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

e Castro, Dias da Silva, Afonso Costa e José Alberto dos Reis. Esta
segunda linha de autores merece uma referência particular, pois
encontra-se mais na base da nossa processualística moderna.
Manuel de Oliveira Chaves e Castro teve uma grande impor-
tância. Foi um professor com elevado empenho pedagógico (1).
Além disso, a feição de cientista prático que o caracterizava, de
preferência a um pendor para a especulação teórica e as inovações,
trouxe-lhe enorme prestígio e significado na actividade forense.
Constituiu, por assim dizer, o último destacado adepto, entre nós,
da escola francesa, que colocava o juiz numa situação passiva
perante a disponibilidade das partes quanto à condução da lide e ao
próprio conteúdo da decisão (2).
Não tardou, porém, que a doutrina processual italiana,
realçando-se Lodovico Mortara, Alfredo Rocco e Giuseppe
Chiovenda — este último fortemente inspirado pelas orientações
austríacas de Franz Klein—, penetrasse, embora com alguma
mediação alemã, no meio português. Os novos horizontes proces-
suais acentuavam, num alto grau, a intervenção do juiz (3). Entre-

pratica, Coimbra, 1860, Theoria das provas e sua applicação aos actos civis, Porto, 1880,
Manual do processo civil ordinário em primeira instancia, Coimbra, 1881 (2.a ed., publi-
cada em 1901), Manual de processo civil especial em primeira instancia, Coimbra, 1883, e
Manual das execuções, Coimbra, 1885.
(') Ficaram famosas as simulações de tribunais que organizava com os
alunos e a exigência de que estes elaborassem processos completos (ver Paulo
Merêa, Esboço, cit., fase. III, pág. 71).
(2) Nas suas lições, conferia grande desenvolvimento à matéria de organi-
zação judiciária e ao comentário sistemático do Código de Processo Civil. Deu à
estampa um livro sobre Organização e competência dos tribunais portugueses, Coimbra,
1910. Foi Manuel de Oliveira Chaves e Castro um dos fundadores e o primeiro
director da "Revista de Legislação e de Jurisprudência" (ver, supra, pág. 435, nota 2),
onde publicou estudos de relevo. A respeito deste autor, consultem-se Paulo
Merêa, Esboço, cit., fase. III, págs. 70 e seg., e Braga da Cruz, A Revista
de
Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, especialmente págs.
39, 42, 46 e segs., e 542 e segs.
( ) Ver, supra, págs. 403 e seg.

443
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

tanto, Afonso Costa baseava-se muito nos escritos de Mortara(1).


A evolução, prosseguiria com Manuel Dias da Silva, que se dedicou,
sobretudo, aos processos especiais (2).
É pelos começos do presente século que assume relevo José
'berto dos Reis, um processualista significativo que, não só teve
intervenção decisiva no plano legislativo, mas também deixou obra
doutrinal que muito ultrapassaria o tempo em que viveu (3).
Atribui-se-lhe, ainda, um esforço didáctico expressivo ( ). Dificil-
mente se encontra outro jurisconsulto seu contemporâneo com
maior influência na prática dos tribunais. Os estudos que elaborou,
em particular os comentários e as anotações à lei ou à jurisprudên-

(') Consultar Marnoco e Souza/Alberto dos Reis, A Faculdade de


Direito
e o seu ensino, cit., págs. 78 e segs. Salienta-se a extensa obra de L. Mortara,
Commentario dei Códice e delle leggi di procedura civile, 3.a ed., s.d., Milano (a l.a ed.
recua a 1900). Mortara foi o último e o mais famoso italiano da escola exegética.
Chiovenda apresentar-se-ia como o fundador da escola sistemática ou histó-
rico-dogmática.
Sabe-se que Afonso Augusto da Costa escreveu sobre outras matérias,
como a ciência económica e o direito económico português (ver, infra, nota 2
da pág. seguinte), o problema da emigração, o direito penal, as escolas e os
princípios de criminologia então actuais (ver, supra, pág. 442, nota 2), e o direito
comercial. No âmbito do processo e da organização judiciária, recordam-se, por
ex.: Lições de organisação judicial e theoria do processo civil, Coimbra, 1893, Os peritos no
processo criminal. Legislação portugueza, critica, reformas, Coimbra, 1895, e as já cit.
Lições de Organisação Judiciaria, Coimbra, 1897 (existem várias edições).
(2) Como resultado da exposição docente, publicou a obra Processos espe-
ciais, civis e commerciaes e processo criminal, Coimbra, 1904. A respeito de Manuel
Dias da Silva, também um dos fundadores da "Revista de Legislação e de Juris-
prudência" (ver, supra, pág. 435, nota 2), consultar Braga da Cruz, A Revista
de
Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, particularmente
nota 151 da pág. 74, nota 153 da pág. 76, e págs. 267 e seg.
(3) Ver, supra, pág. 404, notas 1 e 2.
(4) Utilizava, fora do tempo destinado à prelecção, um sistema análogo ao
de Chaves e Castro (ver, supra, nota 1 da pág. anterior).

444
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

cia, marcados por uma clareza extrema e larga exemplificação,


tornaram-se sumamente atractivos e divulgados (*).

Mais tardia se apresenta a produção científica na área do


direito internacional privado (2). Observou-se que a inclusão desta
disciplina no elenco do ensino jurídico apenas foi realizada pela
reforma de 1901 (3) e que a sua autonomização didáctica do direito
internacional público, como a diversidade das matérias impunha, se
atrasou até à reforma de 1911 (4). Relaciona-se com esse ensino
serôdio o desenvolvimento da ciência e da literatura do direito de
conflitos, ligadas ainda em maior grau ao claustro universitário do
que as respeitantes às outras áreas jurídicas.
Pertence a Machado Villela o posto inequívoco de fundador
do direito internacional privado português moderno, quer devido à

(') Sobre Alberto dos Reis, consultar Braga da Cruz, A Revista de Legisla-
ção e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I, págs. 474 e segs. Quanto à
sua extensa obra, veja-se MArio Alberto dos Reis Faria, Bibliografia do Doutor
José
Alberto dos Reis, in Suplemento XV ao "Boi. da Fac. de Dir.", cit. — "Colectânea
de Estudos em Homenagem ao Doutor José Alberto dos Reis", vol. I (Coimbra,
1961), págs. XIII e segs.
(2) Ainda posterior foi o incremento de alguns ramos jurídicos e da sua
dogmática, embora na altura estivessem despontando, como o direito fiscal, a
princípio mais ou menos versado, com o pouco definido direito financeiro, entre
as matérias de economia política e de finanças (ver Paulo Merêa, Esboço, cit.,
fase. III, págs. 31 e segs., e 53 e segs.). Só em 1923 (Decreto n.° 8578, de 8 de
Janeiro) se criaria um curso de direito fiscal (ver M. J. Almeida Costa, Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 693
e seg.). Encontra-se, por outro lado, muito longe das concepções modernas o
direito económico contemplado por Afonso Costa, Apontamentos das prelecções do
Dr. A. Costa sobre ciência económica e direito económico português, Coimbra, 18%. Tam-
bém o direito do trabalho era encarado de um puro ângulo privatístico. Sobre o
seu ensino tardio já com uma feição moderna, ver M. J. Almeida Costa, Leis,
Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in "Dic. de Hist. de Port.", vol. II, pág. 694,
e Marcello Caetano, Apontamentos para a história da Faculdade de Direito de Lisboa,
cit., in "Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisb.", vol. XIII, págs. 107 e seg.
(3) Ver, supra, pág. 426.
(4)) Ver, supra, págs. 427 e seg.

445
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

importância que teve na criação da respectiva cadeira e sua


regência durante vinte anos(!), quer pelo significado da obra
escrita que deixou (2). Anteriormente, não existia, no nosso país,
uma exposição de conjunto sobre a matéria. Além disso, os escassos
estudos monográficos dados à estampa encontravam-se antiquados.
Recordem-se os de Lucas Fernandes Falcão (3), Teixeira de
Abreu (4) e José Alberto dos Reis (5), em todo o caso meritórios.
Mas a estes autores ainda faltava uma compreensão do direito
de conflitos rasgada para o futuro. Foi Machado Villela que a
trouxe.

(') Foi quem primeiro a leccionou, tanto na fase em que o direito interna-
cional privado esteve unido ao direito internacional público, como após a auto-
nomização (ver. M. J. Almeida Costa, O ensino do direito em Portugal no século xx,
cit., I, págs. 24, nota 43, e 46).
(2) A obra básica de Álvaro da Costa Machado Villela é o
Tratado
elementar (teórico e prático) de Direito Internacional Privado, liv. I (Princípios gerais) e liv.
II (Aplicações), Coimbra, 1921/1922. Pode ver-se uma bibliografia seleccionada de
Villela, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXII, págs. 408 e segs. Sobre este
distinto professor, consultem-se A. Ferrer Correia, Homenagem à memória do
Dou-
tor Álvaro da Costa Machado Vilela, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXXVI,
págs. 353 e segs., M. J. Almeida Costa, Machado Vilela e a Comunidade Luso-
-Brasileira (Na ocasião de um centenário), in "Boi. do Min. da Just.", cit., n.° 210, págs.
5 e segs. (também in "Scientia Ivridica", cit., tomo XX, págs. 375 e segs., sob o
título Machado Vilela, Pioneiro), Haroldo ValadAo, Machado Vilela, Primeiro
Jurista
Luso-Brasileiro, J. Baptista Machado, Autonomia do problema do reconhecimento
dos
direitos adquiridos em Machado Vilela, e António de Oliveira Braga, Machado
Vilela
e a Comunidade Lusíada, in "Scientia Ivridica", cit., tomo XX, respectivamente,
págs. 384 e segs., págs. 3% e segs., e págs. 410 e segs. Ver, ainda, Braga da
Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência — Esboço da sua História, cit., vol. I,
págs. 462 e segs., e vol. II, págs. 119 e segs.
(3) Escreveu Do Direito Internacional Privado. Dissertação inaugural para o acto de
conclusões magnas, Coimbra, 1868.
(4) Foi autor de Estudos sobre o Código Civil Portuguez, II — Das relações civis
internacionais, Coimbra, 1894. Quanto à obra civilística de Teixeira de Abreu, ver,
supra, pág. 437, nota 3.
(s) Deve-se-lhe a monografia Das sucessões no direito internacional privado,
Coimbra, 1899. A respeito de Alberto dos Reis como processualista, ver, supra,
págs. 444 e seg.

446
§3.°

ÉPOCA DO DIREITO SOCIAL


72. Considerações gerais

Chegamos ao direito português contemporâneo. Passa-


-se da história ao quadro do presente, pelo que a respectiva exposi-
ção deixa de pertencer, ao âmbito deste livro. Apenas se acrescenta,
portanto, um rápido apontamento introdutório (').
Ora, querendo-se indicar um marco cronológico — mais uma
vez, com toda a sua relatividade inevitável — que sirva de ponto de
referência para o começo do ciclo que se designa como sendo a
época do direito social, ocorre a I Grande Guerra (1914 a 1918). Um
alargamento sensível das actividades humanas trouxe consigo novas
relações sociais, pôs ao direito imprevistas exigências de tutela, sus-
citou conflitos até então desconhecidos ou agudizou outros, cha-
mando a ordem jurídica a desempenhar uma tarefa cada vez mais
extensa, variada e melindrosa.
As tendências, por exemplo, do moderno direito privado
enraizam, antes de tudo, na mudança de estruturas económicas e
sociais que resultaram da crise do liberalismo clássico. Como se
apresentam diversos dos anteriores os pólos de gravitação das mais
autênticas aspirações individuais e colectivas do nosso tempo.
Importantes factores culturais, progressos da ciência, sucessi-
vas revoluções industriais e tecnológicas (2), que acompanharam a

(') Cfr. M. J. Almeida Costa, Uma perspectiva da evolução do direito português,


cit., págs. 19 e seg.
(2) E comum aludir-se a três revoluções industriais: a da máquina a vapor;
a do dínamo e seus correlativos; e a dos microprocessadores e electrónica. Tam-

449
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

formação de sociedades massificadas, constituíram aspectos a que


os problemas do direito e da realização da justiça não poderiam
ficar alheios. Ensina a história, como vimos, que sempre cada época
lhes deu ou procurou dar a sua própria resposta.
Um sentido de democratização económica e o intervencio-
nismo da legislação do Estado, a limitar os anteriores dogmas da
autonomia da vontade e da liberdade contratual, determinaram,
por toda a parte, a edificação de um direito social, ou, se preferir-
mos, de uma tendência social do direito, e o desenvolvimento da
sua publicização. Verificam-se neoformações jurídicas, que se
foram produzindo em múltiplos sectores, ao lado das instituições e
dos ramos tradicionais do direito. Bastará pensar no que sucedeu
quanto às relações de trabalho, ao instituto da propriedade, ao
direito económico e industrial, ao contrato de arrendamento, ao
direito agrário, ao direito de defesa do consumidor, etc.
Sobre a inspiração última do fenómeno, aliás, comum à gene-
ralidade dos povos da nossa civilização, pode dizer-se, esquemati-
camente, que ele partiu das diversas tendências solidaristas moder-
nas, que subordinam os interesses individuais aos colectivos. Entre
estas, a que mais toca ao espírito do direito português é a doutrina
social cristã, que propõe a consecução do bem individual através da
sua coordenação com os interesses gerais da comunidade, ao mesmo
tempo que o próprio Estado procura, também por si, aumentar os
poderes e impor-se ao individualismo neutralizador da sua acção.
A tais transformações que se têm operado no âmbito do
direito correspondem viragens da ciência que o cultiva e do pensa-

bém se encontram referências a revoluções tecnológicas ou revoluções energética


e informática. Com maior exactidão, caberá indicar cinco revoluções industriais
sucessivas: a da máquina a vapor; a da electricidade e da química; a dos produtos
artificiais; a da energia atómica; e a da cibernética. Através desses ou idênticos
qualificativos, pretende-se, em suma, mais ou menos rigorosamente, assinalar e
alicerçar profundas e encadeadas mutações que se operaram nas sociedades indus-
trializadas, por virtude dos avanços científicos e técnicos.

450
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

mento filosófico-jurídico. A par do renovado direito natural cató-


lico, e depois do neokantismo e correntes concomitantes, e mesmo
do neo-hegeleanismo, com relevo, ainda, para a fenomenologia,
sublinha-se hoje o que poderá dizer-se a axiologia crítica no hori-
zonte da reformulação hermenêutica e do aprofundamento metodo-
lógico, que vão sendo, entre outros, caminhos diversificados de
superação das perspectivas positivistas, sem prejuízo dos contributos
significativos que, a seu turno, estas trouxeram à ciência jurídica.
As breves referências anteriores deixarão entrever as profun-
das mudanças registadas no campo do direito. Como é óbvio, elas
produziram-se em todas as suas áreas, publidsticas e privatísticas.
Enormes resultaram as paralelas transformações metodológicas e a
evolução da ciência jurídica.
Sustenta a metodologia moderna que os cultores do direito
não devem propor-se a mera explicação teórica das soluções consa-
gradas na lei, com vista a uma compreensão sistematico-formal do
ordenamento jurídico, segundo postulava a jurisprudência dos conceitos.
Em vez dessa linha metodológica, considera-se que incumbe ao
jurista, como tarefa principal, a indagação dos motivos práticos das
soluções da lei, dos interesses materiais ou ideais e finalidades que
as determinaram, como sugere a jurisprudência dos interesses; ou
melhor, de acordo com a subsequente orientação da. jurisprudência das
valorações, é necessário que ao aplicar-se o direito se atenda, essen-
cialmente, aos princípios ou critérios valorativos em que as formu-
lações legislativas se baseiam e imanentes ao ordenamento jurídico.
Esta orientação, contudo, não se mostra indiscutida.
Acresce que, numa acentuação do momento pragmático
de
linguagem e dos esquemas institucionais, as próprias correntes ana-
líticas destacam o facto de uma adequada resolução dos problemas
jurídicos concretos apenas se tornar possível mediante a ponderação
das especificidades destes, em referência a uma certa prática, e
nunca por mera via axiomático-dedutiva de subsunção. Trata-se do
modo actual de encontro do homem com o direito.

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