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MITOS INDÍGENAS NO AMBIENTE ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE O

UNIVERSO GUARANI A PARTIR DA ANÁLISE DA OBRA TUPÃ TENONDÉ


Haroldo Nélio Peres Campelo Filho1

Luciana de Oliveira Dias2

INICIAÇÃO

Este artigo começa não pela palavra introdução, comumente usada,


mas com uma expressão sinônima propositalmente escolhida por se tratar de
um trabalho que tem a proposta de refletir sobre a “iniciação” dos não-índios às
culturas indígenas, por meio do ambiente escolar. Uma introdução, por ser um
tema tão amplo que se refere a centenas de grupos espalhados pelo vasto
território brasileiro. A verdadeira iniciação é feita pelos pajés, ou xamãs, e
também por meio do sentir, ouvir, beber e comer da cultura, viver o jeito de ser,
de existir no mundo, de descobrir o sentido e reconhecer o significado de cada
coisa, de cada símbolo, de cada construção material ou intelectual. Mais do
que falar sobre, iniciar em tradições ancestrais significa vivenciar culturas. E a
porta de entrada desta iniciação podem ser os mitos.
Falar sobre mitos sem usar de poesia é uma tarefa difícil. Mito é
pura poesia que tenta explicar o inexplicável e que não fecha em si, pelo
contrário, abre caminhos para várias interpretações e aplicações diversas no
cotidiano. É por isso que os mitos ultrapassam o tempo e servem, de uma
maneira geral, para nortear a vida em comunidade. São simples, e ao mesmo
tempo, complexos. Para falar de mitos indígenas, especialmente tendo como
referência os Guarani que são tonais, que são som em carne, que possuem
alma musical, é imprescindível uma dose a mais de poesia. Lévi Strauss afirma
que é impossível compreender um mito como uma sequência contínua.

1
haroldocampelo@hotmail.com
2
(Orientadora) - professoralucianadias@gmail.com . Curso de Especialização em
Gênero e Diversidade na Escola – GDE - Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão –
Polo Cidade de Goiás
Esta é a razão porque devemos estar conscientes de que se
tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo
de jornal, ou seja, linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos
chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e
descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência de
acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de
acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos
diferentes da história. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 42).
Lévi Strauss usa o exemplo da música para falar de mito. Para ele,
teríamos que ler o mito de uma forma similar à leitura de uma partitura, para
compreender seu significado.
Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma
partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a
página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase
musical da página só adquire significado se considerar que faz parte e é uma
parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim
por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas
simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada
página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura
orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma
totalidade, e extrair o seu significado. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.42)
Na primeira parte deste trabalho é apresentado o Universo Guarani
a partir da tradição oral relatada por Kaká Werá Jecupé na obra “Tupã
Tenondé”, e as influências do tronco Tupy-Guarani em outros povos e na
sociedade brasileira. A cosmologia indígena ajuda a entender a relação das
pessoas com a natureza e com o planeta de uma forma ampla.
Segue uma abordagem sobre a importância dos mitos para os povos
indígenas como instrumento elementar de propagação de história e cultura, e
de construção de identidade. Os mitos ajudam a entender o lugar no mundo e o
papel de cada um na grande roda universal.
Por fim, os mitos indígenas no ambiente escolar apontam para a
construção de identidades mais coerentes com o brasileiro, juntamente com as
origens africanas e europeias, bem como as demais, respeitando a diversidade
e pluralidade. No imaginário popular ainda fazem parte os estereótipos do índio
preguiçoso, de uma cultura única, atrasada e estática. Vencer os preconceitos
e estereótipos é o desafio de todos e, também, de uma educação
comprometida com a valorização das diversidades com abordagens inovadoras
pautadas na riqueza das culturas ancestrais.

O UNIVERSO GUARANI, O SOM, A PALAVRA E O SILÊNCIO.

1.
Ñande Ru Pa-pa Tenondé
guete rã ombo-jera
pytu yma gui.

Nosso Pai Primeiro


criou-se por si mesmo
na Vazia Noite iniciada (JECUPÉ, 2001, p. 25)

O Universo foi criado misteriosamente entre o vazio e o silêncio.


Tupã Tenondé, o Grande Pai Primeiro, é Espírito-Música, gerador de vidas e
manifestado na forma de um colibri.
Ao publicar a obra “Tupã Tenondé” o autor, Kaká Werá Jecupé,
revela as palavras formosas algo que, para os Guarani, é vivido e transmitido
pelos grandes pajés em volta da fogueira. Jecupé é de família oriunda de um
clã Tapuia e, como ele próprio diz, não nasceu Guarani, tornou-se por meio de
iniciações específicas. Kaká Werá Jecupé realizou conferências sobre
diversidade cultural nos Estados Unidos, Reino Unido, França, México, Índia e
Israel. Escritor, político e ambientalista, Jecupé defende a demarcação de
terras indígenas como forma de assegurar o equilíbrio da natureza e a
qualidade de vida não somente local, mas sim global. Kaká Werá Jecupé
propõe o ensino de história e cultura indígena nas escolas através da vivência
dos mitos, cantos e danças.
Trabalhar mitos indígenas na escola é também falar de uma parte da
identidade brasileira muitas vezes esquecida e que perpassa pelo absurdo de
parecer que se trata de algo exótico, distante, ou que ficou no passado, mas
que de fato deveria ser valorizado como base cultural fundamental na formação
de uma identidade nacional. Conhecer, reconhecer, valorizar a história e
cultura dos povos indígenas é, para alguns, retomar o que falta em sua
existência e, para outros, significa vencer preconceitos e estereótipos criados
por ideologias dominantes que tentaram, e tentam “branquear” o Brasil,
desmerecendo as raízes africanas da população brasileira e querendo relegar
os povos indígenas ao esquecimento. O que é esquecido, nesta ótica, deixa de
existir. Por isso falam-se tanto dos indígenas no tempo passado, como se já
não existissem.
Na obra “Tupã Tenondé”, Kaka Werá Jecupé apresenta um pouco
do Universo Guarani, o qual, segundo ele, somente pode ser compreendido
totalmente por quem tenha nascido em uma comunidade Guarani. A sabedoria
ancestral é compartilhada pelas palavras formosas que falam sobre o Universo,
a Terra e o Homem de uma maneira poética e profunda, inerente à tradição
oral indígena.
4.
Ayvu rapyta rã i oguero-jera i ma vy,
mborayú petei i oguero-jera i ma vy,
o yvára py mba’ekuaá gui,
o kuaa-ra-ra vy ma
mba’e-a’ã rapyta petei i oguero-jera.
Yvy oiko eỹ re,
pytũ yma mbyte re,
mba’e jekuaá eỹ re mba’e-a’ã petei
i oguero-jera ojeupe.

Os fundamentos do ser desabrocham-se,


havendo criado de uma pequena porção de amor,
da sabedoria contida em sua própria divindade
e em virtude de sua sabedoria criadora,
e tendo originado um som sagrado
de sua sagrada solidão.
Antes de existir a terra,
em meio à Noite Primeira
e antes de ter-se conhecimento das coisas,
originou-se um som sagrado criado da
bem-aventurada solidão. (JECUPÉ, 2001, p.44)

Índio é a forma europeia de denominação, do século XVI, dos


habitantes das terras que viriam a ser chamadas de Brasil. Naquele tempo
havia os ancestrais dos Tupinambá e Tupy-Guarani, e todas as outras
civilizações nativas que eram chamadas pelos Tupinambá de Tapuia, que na
língua tupi significa “bárbaros”.
Segundo Kaka Werá Jecupé, os Tupy-Guarani influenciaram
diversos outros povos e ocuparam um território que ia da Amazônia ao litoral
brasileiro. Palavras em tupi estão incutidas em outras línguas indígenas e
algumas fazem parte do português que se fala no Brasil. Na cultura brasileira,
mesmo fora das comunidades indígenas, permanecem costumes, culinária,
práticas curativas e “noventa por cento das fábulas, lendas e mitos conhecidos
são de origem tupi” (JECUPÉ, 1998, p. 47). O Tupy-Guarani é, portanto, base
cultural importante na construção histórica do povo brasileiro. Mesmo com
toda a violência do massacre e da imposição de culturas advindos da chegada
do europeu e com as transformações sofridas ao longo dos séculos, dentro e
fora das comunidades indígenas, os valores e a cosmovisão permaneceram
sagrados, cotidianos, dando significado e alimento espiritual à vida.
Na tradição Guarani o som, a palavra e o silêncio são fundamentais
para a existência do ser. Calar é também se resguardar, pois a palavra possui
espírito e, portanto, não pode ser gasta inutilmente. A palavra manifestada em
forma de som pode construir ou destruir, gerar vida ou dirimir forças. O ser
humano é um som encarnado, por isso emitir palavras negativas é agir
contrariamente a si próprio, é se desgastar, jogar fora sua essência. O som, a
palavra, são tão importantes que Hèlene Clastres (1978, p. 88) diz que para os
Guarani a “morte é a perda da palavra: a alma, o princípio vital”.
Existir no mundo é ser um “som-de-pé”, um tom assentado em uma
matéria que busca se afinar com a grande música universal. Por isso é tão
importante a relação com a natureza. O desenvolvimento das culturas e das
civilizações se deu com base nesta afinidade umbilical, que interliga
socialmente as pessoas aos reinos animal, vegetal e mineral, numa forma
ampla de concepção familiar onde tudo se conecta na grande teia da vida. “O
pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração. Homens, árvores,
serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Esse conceito
só pode ser compreendido através do coração, ou seja, da natureza interna de
cada um” (JECUPÉ, 1998, p. 61).
O Guarani é essencialmente musical desde a sua origem. Tupã
Tenondé, o Grande Som Primeiro, é composto, segundo Kaká Werá Jecupé
(2001, p. 33), de tu (“som”), pan (sufixo indicador de totalidade) e Tenondé
(“primeiro, início”). Esse seria um conceito indígena de Deus, como um som
inicial, a “Suprema Consciência” manifestada em forma de ritmo gerador de
vida. Essa concepção divina foi de difícil compreensão para o religioso europeu
do século XVI, devido à sua visão etnocêntrica que concebia a Europa cristã
como centro do mundo. Na concepção etnocêntrica “existe uma verdade única
e universal, entendida como o centro, e é a partir dela que se institui os
parâmetros de verdade, do que se considera certo ou errado” (BONETI, 2009,
p. 166).
Para tentar compreender um pouco do modo de ser indígena é
necessário que o não-índio se dispa de sua lente etnocêntrica. Não cabe tentar
fazer comparações ou medir valores conforme um modo de vida outro. A
composição social, hierárquica, e a relação com o espiritual, com o sagrado,
são únicos de cada povo indígena, diversos entre e si e com pontos em comum
também.
Todo sistema cultural tem a sua própria lógica e não passa de um
ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para
outro. Infelizmente, a tendência mais comum é de considerar lógico apenas o
próprio sistema e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo. (LARAIA,
2001, p. 87).
Em “Tupã Tenondé” Jecupé apresenta a criação do Universo
segundo a tradição oral Guarani nas palavras originais, em traduções e
comentários. Segunda a tradição, o Pai Primeiro criou-se colibri no vazio da
noite, observado pelos olhos da coruja, cunhando o tempo e o espaço. De si
próprio surgiram os ventos, a brisa e a essência da palavra expressada em ser-
humano. Antes de existir a terra concebeu o Amor, o primeiro fundamento.
O coração do criador é o sol, antepassado deste sol que vemos e o
qual é apenas um reflexo. Tudo o que se vê é somente um pálido reflexo do
que foi no início. Dançar, cantar, afinar-se com a música universal é a tentativa
de se aproximar daquilo que já fomos e de tudo o que podemos ser. “Para a
tradição ancestral o bálsamo de cura mais profundo é a música, o espírito da
vida” (JECUPÉ, 2001, p.34).
A cosmologia Guarani conta da origem das coisas, do tempo, do
espaço, dos fundamentos do ser. É história, numa concepção diferente da
historiografia tradicional, e religião diversa das concepções religiosas trazidas
pelos não-índios ao Brasil. Segundo esta cosmovisão existe Nandecy, a Mãe
Terra e os ciclos regidos por Jakaíra, Deus da névoa; Tupã, Deus do trovão e
das águas; Karai Ru Ete, Deus do fogo; e Namandu, divindade responsável
pela terra e por criar unidade entre os ciclos, que por sua vez mantêm a
relação entre a natureza, o homem, e o divino. Segundo Jecupé (1998, p. 58)
“o índio surgiu desses ancestrais sagrados: sol, lua, arco-íris, terra, água, fogo
e ar. Dos reinos vegetal, animal, mineral”.

A IMPORTÂNCIA DOS MITOS PARA OS POVOS INDÍGENAS

Um narrador da história do povo indígena começa um ensinamento


a partir da memória cultural do seu povo, e as raízes dessa memória cultural
começam antes de o Tempo existir. (JECUPÉ 1998, p. 26).
A história oficial do Brasil começa em 1500 com a chegada de
Cabral e o encontro com os povos nativos. A partir daí os indígenas
“aparecem” dentro de uma história construída sob perspectivas que não
agregaram, ou não valorizaram a forma de se contar os fatos do jeito índio. Do
encontro com os europeus surgem conflitos, resistências, subjugação,
tentativas de aculturação e conversão religiosa e a exploração de mão-de-obra.
Essa história também destaca o massacre do “índio”, que é visto algumas
vezes como povo único, que ficou no passado, praticamente extinto e que
deixou para o povo brasileiro somente o que chamam de heranças. Para esta
história a sequência cronológica dos fatos é fundamental e tudo deve estar
comprovado por meio de documentos. O tempo é definido por períodos de
acontecimentos marcantes e não se pautam nos ciclos da natureza.
Para os povos indígenas, o tempo é algo completamente diferente
daquilo que se faz usando o relógio, ou a folhinha do calendário. O tempo
indígena dialoga com as estações, com os ciclos da natureza, como o dia e a
noite, com os momentos de fazer e com o respeito aos momentos de não fazer.
Esse tempo, incalculável por meio de números e datas, é o tempo da história
dos povos indígenas que antecede a 1500 e que está vivo, não por meio de
documentos, mas na memória de cada povo, e que é transmitida oralmente
através dos mitos, muitas vezes pelos pajés ao redor da fogueira, e que
engloba grafismos, cantos, danças e afazeres cotidianos entre outras coisas. É
história viva verdadeiramente, que retoma as raízes ancestrais, mas que serve
de orientação para o fazer atual. Passado, presente e futuro têm outra
dimensão e se confundem, se misturam no hoje. É por isso que os mitos são
tão importantes para os povos indígenas, pois eles são portadores de todo o
arcabouço sociocultural. Eles explicam a origem das coisas e o lugar de cada
um na grande roda universal. Os mitos fazem parte da maneira indígena de
contar a história, de dizer o que as pessoas são e o porquê de ser no mundo,
ajudam a compreender como ser e colaboram para a construção de identidade
dentro da coletividade. A construção de identidade depende fundamentalmente
da cultura, obtida de geração em geração, em grande parte pelos mitos.
Segundo Laraia (2001, p. 45), “O homem é o resultado do meio cultural em que
foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que
reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações
que o antecederam”.
“Tupã Tenondé” mostra que os mitos, dentro da cultura Guarani,
falam de forma poética da origem musical do mundo, do surgimento do ser
humano como um som e do seu lugar nesta música universal. Para harmonizar
com o todo, o indivíduo primeiramente tem que se afinar internamente, em uma
busca pessoal dentro do coletivo, e isso requer uma autonomia rara entre os
não-índios.

MITOS INDÍGENAS NO AMBIENTE ESCOLAR


A educação atual tem se mostrado cada vez mais centralizada no
saber técnico, desconsiderando o ato de ensinar a viver em grupo, em
sociedade. Os mitos indígenas, ao contrário, trazem um senso de coletividade
que abarca não somente as pessoas, mas toda a existência num conceito
amplo de família.
Mitos indígenas, pelo seu poder de abranger cultura, história e
cosmovisão, ao serem usados no ambiente escolar contribuem para a
construção de identidades mais coerentes com o brasileiro que é originário de
africanos, europeus e dos povos autóctones destas terras. Buscar a
compreensão de como os indígenas enxergam o mundo ao seu redor contribui
para uma visão menos etnocêntrica, preconceituosa ou discriminatória. Se o
aluno consegue reconhecer a riqueza cultural transmitida com os mitos, ele
pode construir uma opinião mais respeitosa a cerca destes povos.
Segundo Mendes (2014, p. 2), “Um elemento importante é remover
da história indígena ensinada os estereótipos de uma cultura unívoca,
atrasada, exótica, fixa”. É preciso romper com a mentalidade equivocada que
atribui valor, faz comparações e que imagina existir uma cultura superior, ou
estágios de evolução onde os índios passam a ser “civilizados” a partir da
imposição das culturas europeias. Outro equívoco recorrente no ambiente
escolar é de se referir aos índios no tempo passado, como se estivessem
extintos ou como se suas histórias se resumissem apenas aos anos inicias da
invasão dos não-índios às terras hoje chamadas de Brasil.
Daniel Munduruku (2010), autor de diversos livros, relata em “Coisas
de índio: versão infantil” que quando criança ouvia dos colegas de escola que
índio era comedor de gente, preguiçoso. Ele sofria com o preconceito e a
exclusão, e seus traços físicos não o permitia negar sua identidade. Daniel
Munduruku chegou a desejar não ter nascido índio, mas seu avô falou de toda
a beleza a qual ele pertencia e disse que deveria mostrar isso a todos. Suas
obras, hoje, cumprem este papel.
Em seu blog Munduruku relata que em vinte e cinco anos de
atuação em escolas já viu de tudo, iniciativas muito boas, mas também criança
com medo do “índio canibal”, outras cantando a música “Vamos brincar de
índio” ou “One, two, three, little indians”. Não dá para somente brincar de índio,
cantando músicas que “falam” sobre eles usando cocar de papelão com penas
de galinha, isso só aumenta a imagem estereotipada e contribui para a falta de
conhecimento dos alunos. A educação tem urgência em romper com o
preconceito e promover a valorização da diversidade na escola. Os cantos,
danças, pinturas, artes e utensílios de cada povo são ricos, cada grafismo tem
um significado específico, cada coisa tem sua função e simbologia, nada é feito
por acaso. Não se coloca um cocar na cabeça, um colar no pescoço, uma
braçadeira ou saiote só por estética. Tem que se ter um mínimo de
conhecimento e são aos próprios povos indígenas que a educação tem que
recorrer ao trabalhar essas diversas culturas em sala de aula.
Propor o ensino de história e cultura indígena nas escolas por meio
da vivência dos mitos pode colaborar para que o ser humano, um som
encarnado, consiga chegar mais perto do objetivo de se afinar no mundo. Os
mitos encontram ressonância na essência do ser e ao pulsar no coração das
pessoas podem provocar mudanças. Eles são profundamente atuais porque
evocam questões existenciais inerentes a todas as pessoas e, baseado na
visão musical e rítmica de mundo dos Guarani, o som das palavras evocadas
pela oralidade dos mitos tocam fisicamente os ouvidos, entram nas veias,
percorrem o sangue, aquecem a alma, vibram no corpo de maneira a romper
com a inércia, criando movimento, mais som, mais vida.
A utilização dos mitos no ambiente escolar é um ato cultural
realizado através da comunicação. A própria comunicação é, segundo Laraia
(2001), um processo cultural. “Mais explicitamente, a linguagem humana é um
produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não tivesse a
possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral”. Ou
seja, a transmissão oral é fundamental para a aquisição de cultura, e os mitos
indígenas cumprem este papel ao revelar a sabedoria dos ancestrais sol, lua,
arco-íris, terra, fogo, água e ar.
Pierre Clastres fala da importância da oralidade para os Guarani:

O desejo guarani de transcender a condição humana ultrapassou por


sua vez a história e, conservando intacta sua força através do tempo,
investiu totalmente no esforço do pensamento e de sua expressão
falada. Linguagem de um desejo de supra-humanidade, desejo de
uma linguagem próxima da dos deuses: os sábios guarani souberam
inventar o esplendor solar das palavras dignas de serem dirigidas
somente aos divinos. E que ninguém se engane: o lirismo das Belas
Palavras designa ao mesmo tempo a eclosão de um pensamento no
sentido ocidental do termo. (CLASTRES, 1976, p.13).
Segundo Boneti (2009, p. 162), “a escola ainda não conseguiu ver
as diferenças culturais e sociais como possibilidade de meio de ensino, como
por exemplo, de se considerar verdadeiros diferentes saberes, mesmo os que
são construídos fora dos muros da escola”. Utilizar os mitos como forma
original de contar a história é agregar saberes diferentes à forma com que se
constrói o conhecimento escolar. A história indígena vem muito antes do
contato com o europeu e sua forma de transmissão é pela oralidade, através
dos mitos. Eles são carregados de arte, linguagem, biologia, sociologia,
antropologia, filosofia... Enfim, tudo aquilo que se trabalha no ambiente escolar
de forma sistematizada e dividida por áreas de estudo e matérias. Para os
indígenas, o conhecimento é adquirido desde o seio materno e, segundo
Marcos Terena (2003, p. 102) “O conceito de ser educado sempre foi uma
tradição indígena”. Para ele, a educação indígena se sustenta na “confiança do
índio em si mesmo e no respeito mútuo”.
Para educar desta forma, primeiramente, os mitos devem fazer parte
da cultura do professor para que ele tenha vivência e condições de transmitir
ao aluno. Forquin diz que “ninguém pode ensinar verdadeiramente se não
ensina alguma coisa que seja verdadeira ou válida a seus próprios olhos”
(FORQUIN apud BONETI, 2009, p. 163). Ensinar história e cultura indígena em
sala de aula requer inovação. Novas práticas pedagógicas são necessárias
para ultrapassar as quatro paredes de concreto, levantar os alunos das
carteiras enfileiradas, botar os pés descalços no chão e construir roda. E isso
não se encontra em livro didático. A educação não pode encarcerar o aluno
entre os muros da escola, ela deve romper as barreiras hierárquicas pautadas
somente no poder e alimentar a construção de relações fundamentadas na
alteridade. Deve ser propiciada aos alunos a possibilidade de enxergar além
das imagens negativas que foram criadas a respeito dos povos indígenas. Isso
tem se tornado urgente, também, pela obrigatoriedade da lei.
Até chegar ao momento educacional atual houve muitas lutas e
reivindicações sociais em prol da real aplicação das leis. Segundo Mendes
(2014, p. 3), a constituição de 1988 já destacava que o ensino de História do
Brasil deve considerar as diversas culturas e etnias que formam a população
brasileira. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases), de 1996, especifica as matrizes
africana, europeia e indígena como constituintes do brasileiro e destaca a
inclusão da diversidade regional e cultural no ensino fundamental e médio. Os
PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), a partir de 1997, entendem que
valorizar a presença dos povos nativos passa por explicitar a variedade e
diversidade destes povos, rompendo com a ideia de um povo indígena único.
Em 09 de janeiro de 2003, o Presidente Lula, recém-empossado
para o seu primeiro mandato, sanciona a lei 10639/03 alterando a LDB e
incluindo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto públicos quanto
particulares. Somente em 2008 há a inclusão dos indígenas com a lei 11645/08
que amplia a lei 10639/03 e torna obrigatório, também, o ensino de História
Indígena. Esta alteração da LDB significa um grande avanço, uma conquista,
mas que de certa forma ainda destaca a História Indígena a partir da chegada
dos europeus e na relação com eles na constituição da sociedade brasileira.
Art. 26-A § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo
incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo
da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas
no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).
Para utilizar os mitos indígenas como referência no ensino é
necessário que o professor se atente aos sinais. Segundo Ailton Krenak (2012,
p. 119), a História manda sinais. “Se a gente estiver atento, se a gente estiver
desperto, se a gente estiver com a nossa mente aberta, a gente percebe os
sinais da História, interpreta os sinais da História e viaja dentro da História”.
Ficar atento aos sinais é buscar outra percepção de mundo que
implica em formas diversas de se aplicar os estudos no ambiente escolar. Não
é necessário ser um Pajé, ou Xamã, mas é preciso buscar a compreensão de
como eles enxergam o mundo, da maneira revelada a eles em sonhos, visões,
e que é acessível, em parte, nos mitos.
O xamã, um pajé, ele não precisa ler um livro de História para ver
essas coisas acontecendo. Ele não precisa ir ao museu pra ele chamar a
memória e visitar os eventos do passado e do presente, inclusive porque o
passado e o presente são outras abstrações. Então, o xamã ele viaja em todas
as direções; ele consegue visitar antes da chegada dos brancos aqui, outros
eventos, muitos outros eventos. Eventos de fundação, eventos que estão
naquilo que é chamado de mitologia. (KRENAK, 2012, p. 126).
As mitologias indígenas aplicadas no ambiente escolar devem ser
instrumento não apenas conteudista, mas sim um ato verdadeiro de educar.
Educar para corações valorosos, para uma humanidade que reconhece seu
lugar no planeta e com o planeta. Educar para uma prática constante de
alteridade e de reconhecimento do outro e de toda a existência como unos de
uma família ampla, num respeito profundo da natureza interna e externa. A
mensagem dos grandes pajés, revelada por Kaká Werá Jecupé na obra Tupã
Tenondé, provoca este despertar de uma relação outra com todo o universo.
A atual geração tem o desafio de reequilibrar a natureza, repensar a
tecnologia, descobrir economias auto-sustentáveis e, sobretudo, redescobrir a
arte de viver em tribo, a arte de viver suas afeições e expressões sagradas.
Para isso, ela deve buscar entender a natureza, o universo e,
consequentemente, o Ser. Essas palavras formosas falam sobre isso – e falam
sobre a formação de corações valorosos. (JECUPÉ, 2001, p. 97).
Algumas experiências ajudam a refletir sobre como lidar com a
diversidade étnico-racial no ambiente escolar. Na cidade de Goiás, em Goiás, o
Espaço Cultural Vila Esperança trabalha a mais de vinte anos com a educação,
cultura e arte, desenvolvendo atividades direcionadas, principalmente, às
crianças e jovens de baixa renda, para a apropriação e valorização das origens
africanas e indígenas. Escolas da cidade e região participam de oficinas
ligadas a essas matrizes culturais, em dois momentos: o Ojó Odé (vivência
cultural africana e afro-brasileira), com oficinas de estética afro, capoeira
angola, dança, percussão, tecelagem, cerâmica, jogo de Orí (Ayó ou Mancala),
língua Iorubá, culinária; e o Porancê Poranga (vivência cultural indígena), com
oficinas de trançados em palha, construção de instrumentos musicais como o
maracá, grafismo e pintura corporal, culinária, cerâmica, adornos, brincadeiras,
língua Tupi Guarani.
A Vila Esperança mantém ainda uma escola que antecedeu à
criação da lei 10.639/2003. A Escola Pluricultural Odé Kayodê atende crianças
da primeira fase do ensino fundamental e educação infantil, tendo como base
as culturas nativas e as oriundas do continente africano. Nessa escola tão
importante quanto saber a conta de matemática é igualmente fundamental
poder fazer roda, saber dialogar, respeitando o momento de o outro falar e
compreender o momento de se manifestar com clareza, com contribuição
efetiva para o grupo.
Robson Max de Oliveira Souza, Graduado em Antropologia pela
PUC-GO, Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás e
presidente fundador do Espaço Cultural Vila Esperança, afirma em publicação
disponível no site da Vila Esperança que a busca é pelo respeito às diferenças,
“pela quebra de preconceitos e discriminações, construímos e demolimos
ideias fechadas e cristalizadas do que é ser-índio”. Para ele é necessário
esforço e disponibilidade interior para que isso ocorra. “É tempo de se firmar
um ethos planetário. E os povos originais têm uma enorme contribuição a dar”
(SOUZA, 2010).
Os estudos e vivências acontecem tendo como base os mitos, que
se manifestam nas rodas de início do dia na escola, nas atividades diárias,
contados ao redor do fogo na Oca Poranga (onde acontece a vivência do
Porancê Poranga), dramatizados pelas crianças no estúdio da “Rádio da Vila”;
bem como os mitos africanos contados no Ojó Odé e com o mesmo trabalho
realizado cotidianamente. A partir dos mitos, indígenas e africanos, surgem os
vários aspectos culturais por eles abarcados e cosmovisão que dão sustendo
ao fazer, e ao ser, da escola e deste espaço pluricultural, encravado em
rochas, em meio a uma vegetação exuberante, às margens do Rio Vermelho,
na região central do território brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensino de história e cultura indígena pode colaborar para a


diminuição do preconceito e estereótipos na medida em que os alunos têm a
oportunidade de conhecer mais a respeito dos povos indígenas, suas culturas,
organizações sociais, modo de se relacionar com o outro e com o ambiente.
Tentar entender como pessoas de diferentes culturas enxergam o
mundo é um ato de valorização das diversidades. Os mitos indígenas, por sua
vez, podem colaborar com a construção de atitudes de alteridade, transmitindo
saberes e cosmovisão e dando oportunidade aos não-índios de adentrarem em
culturas as quais historicamente lhe foram negadas. Se colocar no lugar dos
indígenas é ter atitude crítica e política de ir além da manchete do jornal que
fala simplesmente que um grupo com cocares, bordunas e facões invadiu um
determinado local para manifestar, ou que “apossou” das terras de fazendeiros,
transmitindo assim informações fragmentadas que não esclarecem o real
sentido dos atos, que não debatem as causas e que somente expõe uma visão
negativa oriunda dos tempos da colônia portuguesa.
O papel das professoras e professores é fundamental para contribuir
com a tentativa de mudar a forma como a sociedade brasileira lida com as
diversidades. É por isso que eles devem ter algo em si, primeiro, antes de
oferecer. Quando se adquire um entendimento do porquê fazer, torna-se mais
fácil encontrar o como fazer. Os mitos indígenas ajudam a conhecer as culturas
e a descobrir o sentido das coisas. Com esta percepção de mundo os
professores tornam-se educadores, pois iniciam seus alunos em uma maneira
outra de se relacionar com tudo à sua volta, de maneira global. Educar desta
forma implica em saber que tudo tem um sentido, um significado, mesmo que
não se saiba inteiramente qual é. Conhecer mais sobre a diversidade de
culturas e valorizar a riqueza das raízes indígenas é se apoderar de uma parte
fundamental da identidade brasileira. É um exercício constante na busca de
novas relações, mais respeitosas com o outro, com a terra e com o universo.

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