Educação da vida, educação da rua, pedagogia da rua, pedagogia do futebol
João Batista Freire
Não pretendo falar de pedagogia da rua sem pensar a pedagogia de maneira
geral. Não pretendo falar de educação da rua sem pensar a educação de maneira geral. Não pretendo falar de futebol sem falar do esporte, nem falar da rua sem falar da vida. O que pretendo dizer é que não compreenderemos as coisas sem ter uma visão ampla sobre elas. Não podemos entender o futebol sem entender o jogo, a cultura, a vida de maneira geral. Esclarecendo: quando falo de rua, estou falando de uma instância educacional. Há outras, duas delas tão decisivas quanto a rua: a família e a escola (duas instituições). Não temos dúvidas quanto à importância da educação familiar e da educação escolar. A novidade é darmos status educacional, tão importante quanto as duas mencionadas, à rua. Não estou chamando de rua somente o espaço entre duas calçadas. Rua é todo ambiente onde realizamos nossas ações cotidianas. Para a criança, por exemplo, pode ser a sala de casa, a rua de seu bairro, o campinho onde se reúne com outras para brincar, o pátio da escola, o pátio do prédio etc. A família é privada, a escola é quase pública, a rua é pública. A rua é o espaço onde somos publicados, onde tudo que fazemos é público. É assustador verificar como a educação da rua é subestimada, quando sua importância é tão decisiva na vida de todos nós. Não pretendo ampliar meus estudos à rua de modo geral, mas apenas em alguns de seus ambientes e manifestações. Mais especificamente, o jogo e o jogo de bola. Há muitas crianças que dão seus primeiros chutes de bola nas brincadeiras com os pais, quase sempre, o pai. Quando isso acontece, é comum o pai querer que seu filho se torne um futuro craque; raramente investe seus sonhos de craque de bola na filha. O pai, ao ensinar o jogo de bola para o filho, pensa no privado, na família, na sua continuação, na realização de seus sonhos. Na escola, eventualmente a criança brinca de bola na aula de Educação Física e no pátio de recreio. De maneira geral, a bola só é autorizada com o controle da situação por parte da escola. Exceto por alguns professores e professoras diferenciados, o jogo de bola, na escola, só é espaço de criação nos jogos livres do pátio. Na rua o jogo é livre, o de bola e os demais. Joga-se bétis, bolinha de gude, pipa e futebol, de acordo com as regras tradicionais e com a criatividade de cada momento. Na rua, joga-se em sociedade, publicamente, embora a sociedade das crianças seja pequena. Na rua a criança ou o adolescente não jogam para realizar projetos de família, mas para realizar o projeto dessa pequena sociedade do jogo de rua e da sociedade mais ampla quando o sonho é se tornar maior, melhor jogador. Ninguém se matricula para aprender as coisas da rua. A entrada é franca. O único constrangimento é ser ou não ser morador local, ser ou não ser aceito no grupo, por ser mais novo ou ter alguma diferença. Mais novos passam algum tempo se submetendo aos mais velhos. Mas todos são voluntários. Os objetivos são muito claros. Joga-se bola para se autossatisfazer, para ganhar o jogo, para realizar sonhos etc. Empina-se pipa para ter prazer, para exibir habilidades, para cortar a linha do outro... Cada qual começa a brincar do seu jeito e vai até onde puder. Não há avaliações, a não ser quando se é cortado do time, xingado, elogiado etc. Na rua, eu não era obrigado a aprender a jogar bola, mas eu queria aprender. Não me obrigavam a ser habilidoso no pião ou na bolinha de gude, mas eu queria ser. Se, no mesmo prazo, eu aprendesse matemática tanto quanto aprendi a jogar pião, minha matemática seria de alto nível. Só que eu não tinha o menor interesse em aprender matemática ou gramática, mas tinha um enorme interesse em aprender a jogar pião ou bola. Na verdade, era o que mais me causava interesse, entre todas as coisas de minha vida de menino. Diziam-me que era muito importante para meu futuro aprender geografia, história, português, mas não conseguiam me interessar por isso. Eu não conseguia ver esse futuro. No jogo de bola eu via o futuro, estava logo ali na minha frente. Futuro de menino eram as duas pedras que marcavam o gol. Futuro de menino era a bolinha do adversário que eu tinha que acertar com minha batedeira. Pela brincadeira de rua eu arriscava ser castigado em casa ou na escola, pela brincadeira eu judiava dos pés, vivia cheio de feridas, pela brincadeira eu brigava, apanhava e batia, pela brincadeira eu até fazia a lição – às pressas – para ser autorizado a sair para encontrar os amigos. A gente aprendia todas as brincadeiras e aprendia depressa. Não havia alguém específico que ensinasse, todos se ensinavam. E todos aprendiam ao seu modo. Não é possível aprender sem método, portanto, a gente aprendia a brincar com método. Não conhecíamos a palavra método, muito menos a palavra pedagogia. Nem nós conhecíamos o método que nos ensinava tão bem, nem os estudiosos conhecem esse método, porque não se interessam por ele, é coisa de criança, coisa de brincadeira. Escola é coisa séria, não se pode aprender brincando. Mas a rua não exigia de nenhuma criança que deixasse de ser criança para aprender. Todos podíamos aprender como criança. Só que, quando a gente ia para a escola, queriam que não fôssemos crianças. Porque criança fala muito, ri, chora, grita, se mexe o tempo todo, não para sossegada. E a escola precisa de silêncio, de monotonia, de imobilidade, caso contrário, segundo ela, não consegue ensinar. Escola não consegue ensinar criança. Então, que as crianças deixem de ser crianças. Acontece que a escola não conhece o método de educar da rua, e não tem nenhum método tão eficiente para ensinar criança ou adolescente. O resultado é que a escola pouco ensina. Perto do que a rua faz, a escola é quase nada.