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INSTITUTO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE WINNICOTTIANA

Curso de Formação Winnicottiana

Nathália de Bortole Perosa Ravagnani

PARA ALÉM DOS OUVIDOS – DE OLHAR, BRAÇOS, PEITO E COLO


ABERTOS – NASCE A CONFIABILIDADE

São Paulo
2020
Nathália de Bortole Perosa Ravagnani

PARA ALÉM DOS OUVIDOS – DE OLHAR, BRAÇOS, PEITO E COLO


ABERTOS – NASCE A CONFIABILIDADE

Trabalho de conclusão da disciplina Seminário Teórico-Clínico I

Orientador: Alice McCaffrey


Busnardo

São Paulo
2020
INTRUDUÇÃO

É preciso que haja no analista uma crença na


natureza humana e nos processos de
desenvolvimento para que algum trabalho possa ser
feito.
(WINNICOTT, 1954)

A obra de Winnicott é marcada por ideias inovadoras. Ele cunhou conceitos,


propôs novas práticas e atuou novos enquadres, questionando os paradigmas vigentes,
tanto na Medicina quanto na Psicanálise. Como se aventurou por diferentes territórios e
experiências – a pediatria, a psiquiatria infantil, a psicanálise, o consultório, o hospital,
os tempos de guerra, as reconhecidas sociedades, os pequenos grupos, o indivíduo por
dentro e por fora – se permitiu um olhar de grande alcance, o que lhe deu condições e
elementos para assistir à neuróticos e psicóticos, aos casos fronteiriços, àqueles que
ferem a lei, ao individuo em vários momentos do seu desenvolvimento, bem como ao
ambiente que o contém; deixando um precioso legado na forma de uma sensível teoria
que contempla muito além do intrapsíquico, seu principal objeto de estudo e experiência
é a natureza humana.
Winnicott não partiu de uma teoria para ver e ouvir seus pacientes, não buscava
enquadrá-los à técnica já posta e sabida, pôde contemplar cada um – cada ser, cada
sofrer – e se perguntar, e assim, foi em busca de respostas junto com seus pacientes,
criando e recriando o como fazer de modo adaptável e sensível, confiando sempre na
natureza humana. Essa trajetória experimental – no sentido de criada a partir da
experiência – possibilitou a Winnicott vislumbrar aspectos essenciais da existência
humana, inacessíveis quando se contempla um individuo sob a ótica de uma teoria.
Foi assim que surgiu um dos principais conceitos e marcas da teoria de
Winnicott: o manejo ou management, tema que será desenvolvido neste estudo.
A proposta de se atuar o manejo na clínica é uma das coisas que mais
claramente justificam a afirmação de que a psicanálise de Winnicott representa uma
mudança paradigmática em relação à psicanálise tradicional, uma vez que põe em
questão o primado absoluto da interpretação como o método que rege o trabalho
analítico. (Cf. Dias, 2017)
O conceito de management foi de tal modo assimilado que se tornou uma
espécie de jargão winnicottiano e seu sentido foi tomado por auto-compreensível, como
uma palavra que diz por si só. Talvez porque o manejo se refere àquilo que muitas vezes
já se faz, seguindo um princípio meramente normativo, porém é de suma importância
que não seja confundido com um laissez faire, incorrendo no risco de se tornar algo
vago e aleatório e de se perder a riqueza e o alcance que o manejo insere na prática
clínica. Segundo Dias (2017), não se chega ao manejo afrouxando a regra analítica da
abstinência, é todo um outro espírito o que o rege, espírito muito bem fundamentado
nos princípios da teoria do amadurecimento de Winnicott e nas condições
suficientemente boas de um ambiente facilitador. (Cf. Dias, 2017)
Em suma, o manejo, na prática clínica, se refere a atitude que o analista toma
em relação ao paciente e sua doença: o interesse que manifesta, a pessoalidade que
emprega, a regularidade, coerência e até a pontualidade da sua presença. Tudo isso, na
verdade, está baseado em algo fundamental: a confiabilidade. Esse é o pano de fundo de
toda análise. Winnicott ressalta que nada de muito útil pode ser feito se não obtivermos
cooperação inconsciente do paciente e ela só acontece se o analista se der ao trabalho de
encarregar-se ativamente do caso, mantendo a confiabilidade. (Cf. Dias, 2017)
Para ser percebido como confiável, o analista deve ser guiado pela necessidade
do paciente, que varia conforme a natureza do distúrbio que este apresenta e sua
maturidade. Dias (2017) afirma que a necessidade, diferente do desejo, não é para ser
interpretada e sim compreendida e, na medida do possível, atendida, o que aponta para
uma mudança com relação a técnica tradicional. (Cf. Dias, 2017)
Assim sendo, o manejo se torna tarefa do analista e ganha o estatuto de
procedimento terapêutico legítimo, sobretudo no que se refere aos distúrbios cuja
etiologia, de acordo com a teoria do amadurecimento de Winnicott, esta associada com
um ambiente que falhou no princípio, comprometendo a continuidade do ser e a
constituição do si-mesmo, como é o caso das psicoses. Esses pacientes precisam
regredir a esse ponto em que seu desenvolvimento fora congelado e só podem fazer isso
mediante um novo ambiente, confiável e atento às suas necessidades.
Mesmo os pacientes que tiveram um bom início precisam de cuidados
confiáveis. Na verdade, as necessidades fundamentais nunca são inteiramente
ultrapassadas e há momentos na vida, situações de sobrecarga do ponto de vista
emocional, que mesmo os pacientes dotados de boa saúde precisam poder depender e
contar com um ambiente disponível e sensível a eles. “Por tudo isso, a inclusão do
manejo, que reconhece a imaturidade e atende à dependência, é fundamental. Isso altera
o lugar da interpretação como o método central do tratamento analítico.” (DIAS, 2017,
p. 1237)
A introdução do manejo como método na prática clínica significou, portanto,
uma importante mudança na concepção do trabalho terapêutico, bem como ampliou os
horizontes da clínica psicanalítica. Desse modo, é bom e se faz necessário lançar luz e
especial atenção a compreensão desse conceito, que não é simples de ser descrito,
tampouco objetificado como regra a ser replicada, uma vez que se trata de algo
experienciado num encontro pessoal e único, algo silencioso, aparentemente
insignificante, mas grandemente notável e transformador.
Para apreender o sentido do manejo e as ideias que fundamentam esse recurso
clínico, faremos um breve percurso por algumas reflexões a respeito da noção de saúde
em Winnicott e a ética que guia sua clínica: o cuidado, para então nos debruçarmos à
caracterização do manejo e suas especificidades.

DESENVOLVIMENTO

A cura pelo cuidado

A continuidade do ser significa saúde


(WINNICOTT, 1988)

A teoria de Winnicott é elaborada com base no percurso que o indivíduo, como


amostra temporal da natureza humana, faz ao longo da sua existência no sentido do
amadurecimento, concebido como uma tendência inata. Sendo portanto, uma teoria que
versa sobre a linha da vida, a saúde, o que destoa da construção da teoria psicanalítica
clássica, que parte do sintoma e das patologias. Para Winnicott, o indivíduo é
impulsionado pela necessidade de ser e continuar sendo, de modo que, à saúde,
corresponderia a possibilidade de existir com base nessa necessidade. Assim, o que
atrapalha e interrompe a continuidade de ser, especialmente nos primeiros tempos de
vida, é o que leva o indivíduo a adoecer. A doença vem da interrupção, que gera a
necessidade de organizar uma reação, todo viver reativo corresponde a uma patologia
do ser: “a alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila”
(WINNICOTT, 1960/1983, p. 47)
O que faz com que a vida valha a pena ser vivida é justamente a possibilidade
de agir por si mesmo, com base em uma individualidade que não é
constituída reativamente ou, noutros termos, em uma ação que pode ser
caracterizada como criativa ou espontânea. (FULGENCIO, 2011, p. 45)
Podendo ser e continuar sendo, o indivíduo tem a possibilidade de realizar sua
linha da vida, realizando as tarefas previstas para cada fase, daí decorre uma das
conceituações de saúde de Winnicott: “(...) saúde é maturidade emocional, maturidade
de acordo com a idade, e doença mental tem, subjacente, uma detenção da mesma.”
(WINNICOTT, 1983/2007, p. 200)
Outro aspecto indicativo de saúde é a possibilidade de cuidar de si mesmo,
adquirida pela incorporação dos cuidados recebidos. Diz Winnicott (1988/1990, p. 137):
“à medida que o self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter
lembranças do cuidado ambiental, e, portanto, de cuidar de si mesmo, a integração se
torna um estado cada vez mais confiável”. Uma das dimensões desse cuidado pessoal é
a preocupação com o outro, com o ambiente e com os efeitos do próprio viver no
mundo, o que requer a integração dos impulsos amorosos e destrutivos. É nesse sentido
que Winnicott também caracteriza a capacidade de reparar danos e de sentir-se
deprimido como atributos da saúde. Na saúde, portanto, “(...) o indivíduo pode cuidar de
si e do outro, pode sentir-se responsável pelo bom e pelo mal que podem advir de suas
ações, sentir arrependimento pelo dano feito e alegria pelo bem alcançado.”
(FULGENCIO, 2011, p. 45-46).
Chegamos a três importantes indicativos de saúde: a maturidade relativa à
idade, a capacidade do indivíduo de se adaptar ao mundo sem perda demasiada do senso
de si mesmo e de sua espontaneidade e a possibilidade de realizar as chamadas
identificações cruzadas, que passa por colocar-se no lugar do outro e fazer o inverso.
Tudo isso, como vimos, depende de um bom cuidado, ou, como dito por Winnicott, de
um cuidado suficientemente bom, suficiente no sentido de sensível às necessidades. Daí
advém o principio básico que norteia seu trabalho clínico e o manejo: o cuidar.
Em seu artigo de 1970 intitulado A cura, Winnicott formula uma nova ética
para o trabalho clínico, resgatando a raiz etimológica da palavra cura: o “ato de cuidar”.
Ele mostra que, ao longo do tempo, esse sentido original se perdeu houve um processo
de objetificação da cura, com a substituição do cuidado pela aplicação de algum
elemento ou substância curativa. Além disso, à cura, foi associada a ideia de um
desfecho bem-sucedido e à doença, um mal a ser erradicado, sendo os medicamentos
uma via para isso, se sobrepondo ao ato de cuidar. Ele assinala a importância de impedir
que os dois significados da cura – o tratamento e o cuidado – percam contato um com o
outro. Segundo ele, embora seja imprescindível conhecer os tratamentos, não se pode
perder de vista o cuidado.
A orientação clínica preconizada por Winnicott – o cuidado sensível às
necessidades do indivíduo – é radicalmente diferente daquela que orienta o trabalho
psicanalítico de Freud, para o qual “a cura deve ser realizada em regime de abstinência.
(...) O que quero é postular o seguinte: há que se deixar subsistir, no doente,
necessidades e aspirações, como forças que impelem para o trabalho e para a mudança,
e evitar apaziguá-los com substitutos”. (FREUD, 1915/1989, p.168 apud DIAS, 2013,
p.26)
Em outro momento, Freud diz:
O doente busca a satisfação substitutiva, sobretudo no próprio tratamento,
dentro da relação de transferência com o médico, e até pode querer ressarcir-
se, por este caminho, de todas as renuncias que lhe impõem nos demais
campos. Sem dúvida que é preciso consentir-lhe algo, mais ou menos,
segundo a natureza do caso e a peculiaridade do enfermo. Mas não é bom
consentir-lhe demasiado. Quem, como analista, talvez por extravasar seu
coração caridoso, dispense ao paciente aquilo que todo ser-humano tem
direito de esperar de seu próximo, cometerá o mesmo erro econômico no qual
incorrem nossos sanatórios para doentes nervosos. Esforçam-se para que tudo
seja o melhor possível para o doente, de modo que este se sinta a gosto e, em
outra ocasião, venha ali refugiar-se das dificuldades da vida. Deste modo,
renunciam a fortalecê-lo para esta, a torna-lo mais produtivo em suas
genuínas tarefas. No tratamento analítico, é preciso evitar qualquer mimo
dessa índole. Ao doente, tem que restar muitos desejos não cumpridos em sua
relação com o médico. O adequado é, justamente, negar-lhe aquelas
satisfações que mais intensamente deseja e que exterioriza com a maior
urgência. (FREUD, 1919/1989, pp.159-160 apud DIAS, 2013, p. 27)
Essa proposta é muito diferente da proposta de Winnicott:

O analista deve dispor de toda a paciência, tolerância e confiabilidade da mãe


devotada ao bebê. Deve reconhecer que os desejos do paciente são
necessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar
disponível e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na
verdade precisa ser dado apenas em razão das necessidades do paciente.
(WINNICOTT, 1947, p. 287)
A perspectiva de Freud está pautada em outra ética, a ética da lei. Segundo
Loparic (2013), a lei paterna da proibição do incesto, que se manifesta na situação
edípica familiar, na rivalidade entre pai e filho pela mãe como objeto de desejo, e na
situação mítica de Totem e Tabu, a respeito da disputa pelas fêmeas da horda primitiva
ente o pai e seus filhos, é necessária e organizadora, de modo que a lei “seria o
fundamento do processo de desenvolvimento humano, tanto dos indivíduos, que passam
por uma série de fases de organização sexual, como das sociedades, dando origem, com
base no processo de sublimação da libido, à ordem social, ordem moral, religião e
atividades culturais em geral, incluindo a arte.” (LOPARIC, 2013, p. 25)

Desse modo, cada individuo para crescer e deixar de ser infantil deve superar o
apego ao princípio do prazer, e enfrentar o princípio de realidade e para tanto dominar
seus instintos, aceitar e saber lidar com as frustrações que a realidade impõe, tornando-
se autônomo e não escravo dos desejos, sobretudo os infantis. Por estar baseada no
princípio do prazer, como algo que sempre se impõe, e não na ideia de tendência ao
amadurecimento, Freud induz à concepção de que o paciente, quando pode, agarra-se ao
bem bom e não quer sair do lugar. Para Winnicott, a natureza humana impulsiona
sempre o indivíduo a amadurecer, de modo que o ficar retido não é uma posição
buscada, não tem a ver com um caro e saudoso infantilismo e sim, uma imaturidade.
Isso altera substancialmente a compreensão do problema e a tarefa do analista caso
queira empreender a cura. “Quando recebe o que necessita, o bebê winnicottiano, assim
como o paciente, incorpora os cuidados ambientais, e vai em frente.” (DIAS, 2010,
p.30)
Assim sendo, no exercício da prática clínica, tal como proposto por Winnicott,
deve-se tomar como modelo a dinâmica que caracteriza o bebê no colo da mãe. O
analista, tal como a mãe, deve dar condições ambientais que sustente o processo de
amadurecimento do seu paciente. É nesse sustentar que está baseado o manejo, fruto de
uma comunicação profunda do analista com o paciente, este precisa sentir que o
primeiro se adapta às suas necessidades, que ele é confiável, previsível, não o
decepciona, não o retalia, não impõe seus sentidos e intenções, e sim oferece uma
relação humana viva e direta. (Cf. Fulgencio, 2011)

Especificidades do manejo

Executo o meu trabalho muito mais a partir do meu ego corporal.


(WINNICOTT, 1960)

Winnicott, ao longo da sua obra, fez inúmeras indicações sobre o significado


clínico do manejo, porém não é fácil defini-lo com clareza, tudo que abarca e representa
e o como se faz. “Essa falta de contornos precisos talvez seja intrínseca ao próprio
conceito, assim como não há regras claras para definir ou nortear a atitude da mãe
suficientemente boa” (DIAS, 2017, p. 1344). O cuidado materno é baseado na
identificação e não na aprendizagem, Winnicott diz que a mãe, em geral, “não tem que
fazer uma lista do que tem de fazer amanhã; ela sente o que é necessário no momento”
(WINNICOTT, 1965/1983, p. 68). O mesmo vale para o manejo na situação clínica.
(Cf. Dias, 2017)
A capacidade da mãe de identificar-se com o bebê deve-se ao estado natural
regredido de “preocupação materna primária” que lhe permite saber, a cada
momento, o que o bebê necessita. Essa capacidade não tem nada a ver com
inteligência nem advém de algum conhecimento obtido em cursos ou livros:
vem da sua saúde ou relativa saúde emocional, de sua própria experiência de
ter sido um bebê, de ter sido cuidada de algum modo, de estar viva e ter
imaginação. Se a mãe é do tipo que teme a regressão e não é capaz de pôr-se
no lugar do bebê, ela tenderá a cuidar dele por via de conhecimentos
intelectualmente adquiridos. Ela poderá́ prover o bebê de algumas coisas
básicas, mas não entrará em comunicação com ele e não saberá́ o que de fato
ele necessita num dado momento. Ela cuidará de seu bebê “como se cuida de
bebês” e essa generalização tornará seu cuidado impessoal. Esse é
tipicamente o caso da mãe que faz mas não é. (...) Ora, o mesmo vale para o
analista. Sendo humano, ele já́ sentiu na pele o que é desamparo e o que é ser
cuidado; é, sobretudo, a sua sensibilidade pessoal que o guia na compreensão
das necessidades do paciente. (DIAS, 1999, p. 314)
A identificação com o paciente é, portanto, um importante guia para o analista
empreender o manejo. Winnicott (1963) fala que satisfazemos as necessidades do
paciente por sabermos mais ou menos como ele está se sentindo, justamente porque
podemos encontrar o equivalente do paciente em nós mesmos. E para que esse tipo de
coisa se estabeleça é preciso que o analista se autorize a viver uma relação pessoal com
seu paciente, não é guardando uma abstinência, isenção, uma neutralidade árida ou
mesmo uma hierarquia que isso se dá. Em seu artigo A cura, Winnicott inclusive alerta:

Descobrimos que, quando estamos face a face com um homem, uma mulher
ou uma criança, estamos reduzidos a dois seres humanos de mesmo nível. As
hierarquias caem. Posso ser médico, enfermeiro, assistente social, um parente
que vive na mesma casa – ou, a propósito, psicanalista ou padre. Não faz
diferença. Relevante é a relação interpessoal, em todos os seus ricos e
complicados matizes humanos. (WINNICOTT, 1960, p. 108)
Essa troca humana gera a possibilidade de auscultar o coração do paciente,
estabelecendo um tipo de comunicação profunda e silenciosa que confere à dupla
analista-paciente uma intimidade ímpar – no sentido de rara e particular e talvez, nos
casos mais graves, no sentido de única, por não ter sido experimentada antes. Isso dá ao
paciente a possibilidade de confiar no analista. É nessa peculiar e confiável
comunicação que deve estar baseada o manejo. Na verdade, pode-se dizer que o manejo
é isso, quando se pode entrar nesse tipo de troca, já se está manejando.

Dias (1999), em seu artigo Sobre a confiabilidade: decorrências para a


prática clínica, diz que a confiabilidade se assenta nessa comunicação silenciosa, uma
vez que o senso do real – do si-mesmo e do mundo – está diretamente ligado ao
estabelecimento de uma crença em. Uma crença que não é nisto ou naquilo, numa
palavra, mas em algo que é encontrável, permanece, tem vida própria, não precisa ser
produzido ou prometido. O real encontrado através dessa crença é uma espécie de
fundamento que dá sustentação às possibilidades humanas, no entanto, não tem
fundamento concreto em si mesmo. É um real que se apoia numa ilusão. (Cf. Dias,
1999)
Essa crença básica só́ pode chegar a pertencer naturalmente ao indivíduo
quando atos silenciosos de confiabilidade humana estabelecem uma
comunicação muito antes que a fala signifique algo. A mãe mostra ao bebê
que é confiável, não com palavras, mas, através dos cuidados, por saber, a
cada momento, o que ele necessita. O bebê, diz Winnicott, “não ouve ou
registra a comunicação mas apenas os efeitos da confiabilidade.” A
confiabilidade materna é um traço inaparente e essencial que se faz sentir em
todos os cuidados e os reúne em um mundo para o bebê, sem jamais falar de
si mesma: é silenciosa. E, para Winnicott, ou bem a comunicação é silenciosa
e a confiabilidade está garantida, ou bem é traumática, produzindo a
experiência de uma angústia impensável ou primitiva. (DIAS, 1999, p. 298)
Se o ambiente não estabelece com bebê esse tipo de comunicação e cuidado
sensível, acaba por falhar em provê-lo de confiança na realidade de si-mesmo e do
mundo, de modo que a pessoa não alcança a capacidade de acreditar em, de confiar,
restando-lhe uma desconfiança básica, uma inconsistência que torna tudo irreal. “Esse
individuo não pode entregar-se aos acontecimentos da vida e fica todo o tempo tomando
conta do ambiente, à espreita de alguma invasão ou tomando conta do frágil si-mesmo,
sempre passível de ser perdido, aniquilado.”(DIAS, 1999, p. 298-299) Desse modo, o
que falta à essas pessoas não é propriamente chegar ao princípio de realidade, mas, de
maneira mais básica, alcançar um sentido de realidade do si–mesmo e do mundo.
Winnicott diz que essas pessoas passam a vida não sendo, num esforço desesperado
para encontrar uma base para ser.

Nesses casos, o manejo se mostra fundamental, por se tratar de pessoas que não
se constituíram num EU e são carentes de experiências de natureza pré-verbal, pré-
simbólica e pré-representacional, ou seja, muito anteriores a palavra. Winnicott (1955)
afirma que a análise desses pacientes deverá lidar com os estágios iniciais do
desenvolvimento emocional, anteriores ao estabelecimento da personalidade como uma
entidade, são casos em que a estrutura pessoal não está solidamente integrada. Lidar
com essas problemáticas exige um tipo de trabalho em que o manejo se torna mais
importante que a interpretação. A ênfase é transferida de um aspecto para outro. “O
comportamento do analista, por ser suficientemente bom em matéria de adaptação à
necessidade, é gradualmente percebido pelo paciente como algo que suscita a esperança
de que o verdadeiro EU poderá finalmente correr os riscos implícitos em começar a
experimentar viver.” (WINNICOTT, 1955-1956, p. 395)
A teoria concebida originalmente para a compreensão das neuroses é
insuficiente para dar conta da compreensão e do tratamento das patologias psicóticas ou
dos episódios de natureza psicótica que surgem no tratamento analítico. Winnicott é
incisivo ao afirmar que “a técnica psicanalítica clássica é inaplicável no tratamento da
esquizofrenia” (Winnicott 1964, p. 372).
Segundo Winnicott, existem muitas variedades de psicoterapia, que deveriam
depender não dos pontos de vista do terapeuta, mas das necessidades do paciente ou do
caso. “Quando possível, aconselhamos psicanálise. Quando não for possível, então
pode-se criar uma modificação adequada.” (WINNICOTT, 1961/2016, p. 93). Ele diz
que um “um psiquiatra praticante precisa ser capaz de passar de um tipo de psicoterapia
para o outro com facilidade, e até fazer os três tipos ao mesmo tempo, se necessário.
(WINNICOTT, 1961/2016, p. 101)
Cada paciente faz, portanto, um tipo de transferência, contato e comunicação,
demandando cuidados diferentes. Um diagnóstico inicial, que considere em qual etapa
do amadurecimento o indivíduo se encontra, bem como as condições do seu meio, pode
auxiliar o analista no exercício da sua prática, de modo a resgatar as tarefas da mãe
suficientemente boa como guia para o manejo.
No inicio, na fase da dependência absoluta, na qual, em geral, estão estagnados
os pacientes psicóticos, é preciso que a mãe (e o analista) se adapte de modo absoluto às
necessidades de seu bebê (e seu paciente), tornando-se devotada (o) a ele, funcionando
como objeto subjetivo, tão adaptada (o) que parece criada (o) pelo bebê (paciente). Ao
mesmo tempo, é preciso que ela (e ele – o analista) conserve contato com o mundo, para
proteger o bebê (e o paciente) do que ele ainda não dá conta de experimentar,
garantindo um ambiente estável, previsível e seguro. Winnicott fala que esse conjunto
de cuidados, que inclui o próprio bebê (paciente) e seu entorno, poderia ser entendido
como uma extensão do segurar no colo. Tudo que ainda não pode ser sustentado, até o
si-mesmo, vai para o colo e às vistas da mãe (analista):
Vocês podem perceber que muito do que uma mãe faz com uma criança
poderia ser chamado de “segurar”. Não é só o segurar concreto, que por si já
é muito importante, constituindo um ato delicado que só pode ser realizado
pelas pessoas certas, e de modo delicado; muito do cuidado com a criança
corresponde a uma interpretação cada vez mais ampla da palavra “segurar”.
(...) Doenças de qualidade psicótica exigem que organizemos um tipo
complexo de “segurar” que inclui, se necessário, o cuidado físico.
(WINNICOTT, 1961, p.99 e p.102)
Todas essas experiências e cuidados talvez nunca tenham sido vividos pelo
paciente. Muitas vezes, é na relação com o analista, que o paciente, pela primeira vez,
entrará em contato com esses elementos essenciais do ambiente, o que lhe permitirá
retomar sua trilha no processo de amadurecimento. Winnicott afirma que uma das
características da transferência com os pacientes que se encontram presos aos estágios
mais primitivos é o fato de que devemos permitir que o passado do paciente se torne
presente. “Enquanto na neurose de transferência o passado vem ao consultório, neste
tipo de trabalho é mais correto dizermos que o presente retorna ao passado, e é o
passado.”(WINNICOTT, 1955-1956, p. 396)

Com o tempo, no estágio da dependência relativa, é preciso que a mãe seja


capaz de se separar do seu bebê, de modo que a sua desadaptação se torna uma tarefa.
Poderia ser pensado como um equivalente a essa tarefa, a falha do analista e sua
possibilidade de ser odiado e excluído, importante manejo no cuidado dos casos
fronteiriços. Mais tardiamente na linha do amadurecimento, na fase do concernimento,
quando se dá a integração dos impulsos instintuais, a criança precisa poder atacar a mãe
e precisa que ela sobreviva. Daí vem um cuidado fundamental na clínica, em especial
com os casos de depressão, mas também nos casos em que houve uma deprivação, ou
seja, a perda de um ambiente bom, que é a possibilidade do analista de sobreviver aos
ataques do seu paciente e sustentar as experiências que precisam ser experimentadas,
legitimando seus impulsos pessoais e reafirmando a confiabilidade e permanência do
ambiente.
Esses são exemplos de casos que, apesar de não se configurarem numa psicose
do tipo esquizofrenia, ainda são caracterizados, numa visão Winnicottiana, como
patologias de etiologia ambiental, no sentido que remontam à uma época do
amadurecimento, em que o ambiente ainda tem papel fundamental, tempos de grande
dependência. São casos em que o manejo e a confiabilidade também se revelam de
suma importância, uma vez que para se fazer um percurso efetivo com o paciente, é
preciso que ele regrida a essa etapa em que seu amadurecimento foi congelado.
Se uma mudança significativa é o que se pretende conseguir, o paciente
precisará passar por uma fase de dependência infantil. (...) Se se quiser que o
self verdadeiro oculto aflore por si próprio, o paciente terá de passar por um
colapso como parte do tratamento, e o analista precisará ser capaz de
desempenhar o papel de mãe para lactente do paciente. Isto significa dar
apoio ao ego em grande escala. O analista precisará permanecer orientado
para a realidade externa ao mesmo tempo que identificado ou mesmo fundido
com o paciente. O paciente precisa ficar extremamente dependente,
absolutamente dependente mesmo, e estas palavras são certas mesmo quando
há uma parcela sadia da personalidade que atua como um aliado e na verdade
informa ao analista como se comportar. (WINNICOTT, 1960, p. 149)
Uma experiencia fundamental dos processos regressivos trata-se da
possibilidade de viver o ódio na transferência, motivado pela falha do analista, algo que
podemos considerar como inevitável pelo mero fato de sua humanidade. Segundo Dias
(1999), um ambiente confiável não está imune ao erro e o problema não é esse. A
questão é o reconhecimento e a atitude do ambiente ante a falha. Na verdade, o bebê ou
paciente precisa dos erros do analista – desde que não sejam erros grosseiros – pois é a
partir dessa experiência de falha que o trauma se atualiza, mas dessa vez, em um
ambiente protegido que pode sustentar e sobreviver.
A maneira como essa mudança se processa, da experiencia de ruptura para a
experiencia da raiva, é algo que me interessa de um modo todo especial, pois
é nesse ponto do meu trabalho que me percebo surpreendido. O paciente usa
as falhas do analista. Sempre ocorrem falhas, já que não há realmente
tentativa alguma de proporcionar uma adaptação perfeita. (...) A chave para
compreende-lo é a de que a falha do analista está sendo usada e deve ser
tratada como uma falha antiga, que o paciente pode agora perceber e abarcar,
e zangar-se por isso. O analista deve ser capaz de usar suas próprias falhas
em termos de sua significação para o paciente, sendo necessário que ele
assuma a responsabilidade sobre cada uma delas, mesmo que isto implique
em examinar sua contratransferência inconsciente. (...) Se ele se defende, o
paciente perde a chance de zangar-se com uma falha passada justamente no
momento em que a raiva tornou-se possível pela primeira vez.
(WINNICOTT, 1955-1956, p. 397)
Todas essas atitudes – tais como identificar-se, segurar, dedicar-se, sustentar,
sobreviver, preocupar-se – são atos de cuidado que caracterizam um ambiente/mãe/
analista suficientemente bons. Dizem justamente do manejo aplicado à situação clínica.
A possibilidade de agregar tais recursos ao tratamento psicoterapêutico ampliou o
alcance da clínica winnicottiana. No fundo, independente do diagnóstico, toda pessoa
precisa e tem o direito de receber cuidados desse tipo, pois, como visto, é justamente o
cuidado que confere a humanidade ao ser. Mesmo nos casos de boa saúde, em que há
maior integração e maturidade, como nas neuroses, nos quais a técnica psicanalítica
clássica é recomendável, o manejar não deixa de ter o seu lugar, uma vez que a relação
analista-paciente é primeiro e, acima de tudo, uma relação humana.

CONCLUSÃO

A psicanálise não se resume a interpretar o


inconsciente reprimido; é, antes, o fornecimento de
um contexto profissional para a confiança, no qual
esse trabalho pode ocorrer.
(WINNICOTT, 1970)
Essa afirmação de Winnicott, apesar de simples e breve, guarda uma longa
trajetória e um valoroso processo de transformação nos métodos de tratamento das
“psico” patologias, bem como na concepção de saúde e cuidado, que teve efeitos
marcantes nas renomadas sociedades de psicanálise, no interior dos consultórios e em
ultima e principal instância, na relação entre analista-paciente.
Despretensiosamente, por meio de um simples gesto de abrir além dos ouvidos
– o olhar, os braços, o peito, o colo – Winnicott foi brincando de recriar o jogo
terapêutico com seus pacientes e acabou trazendo contribuições inestimáveis à teoria e
ao método psicanalíticos, ampliando o alcance da Psicanálise no tratamento de casos
considerados irremediáveis à técnica tradicional.
Por meio do manejo, inspirado na mais fundamental, natural e primeira relação
da vida, a relação mãe-bebê, Winnicott operou mudanças significativas no ser e no
viver dos seus pacientes e nos deixou preciosas experiências e orientações, que não são
facilmente replicáveis, por não serem objetificáveis, uma vez que estão fundamentadas
em um tipo de comunicação profunda, íntima e silenciosa, mas que podem ser
sintetizadas em uma palavra: confiabilidade.
Guiado pela lógica da confiabilidade e da necessidade de dependência, comum
a todo ser humano, podemos dizer que Winnicott fundou uma nova ética para o trabalho
clínico, a ética do cuidado. Cuidado que cura e humaniza.
E como herança de suas corajosas aventuras e descobertas, Winnicott nos deixa
uma nota com algumas diretrizes no cuidado com os nossos pacientes, nota essa que
todo analista deveria ter na cabeceira do seu divã.

Você se dedica ao caso.


Você aprende a saber como é se sentir como o seu cliente.
Você se torna digno de confiança para o campo limitado de sua
responsabilidade profissional.
Você se comporta profissionalmente.
Você se preocupa com o problema do seu cliente.
Você aceita ficar na posição de um objeto subjetivo na vida do cliente, ao
mesmo tempo em que conserva seus pés na terra.
Você aceita amor, e mesmo o estado de enamorado, sem recuar e sem
representar sua resposta.
Você aceita ódio e o recebe com firmeza, ao invés de como vingança.
Você tolera, em seu cliente, a falta de lógica, inconsistência, suspeita,
confusão, debilidade, mesquinhez, etc. e reconhece todas essas coisas
desagradáveis como sintomas de sofrimento. (Na vida particular as mesmas
coisas o fariam manter distância).
Você não fica assustado nem sobrecarregado com sentimentos de culpa
quando seu cliente fica louco, se desintegra, corre pela rua de camisola, tenta
suicídio, talvez com êxito. Se você é ameaçado de assassinato, chama a
polícia não só para proteger a si mesmo, mas também ao seu cliente.
Em todas essas emergências você reconhece o pedido de socorro de seu
cliente, ou um grito de desespero por causa da perda de esperança nessa
ajuda.
Em todos esses aspectos, você é, em sua área profissional limitada, uma
pessoa profundamente envolvida com sentimentos e ainda assim, à distancia,
sabendo que não tem culpa da doença de seu cliente e sabendo os limites de
suas possibilidades de alterar a situação de crise. (...) (WINNICOTT, 1963, p.
206)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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