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Resenha: A política sexual da carne

Escrito em setembro 16th, 2016 por Leon Denis & arquivado


em Artigos, Resenhas.

Carol J. ADAMS. A política sexual da carne. Alaúde, 350


páginas.
Publicada originalmente em 1990, trata-se da obra mais conhecida da ativista
feminista Carol Adams. A presente tradução para o português, realizada pela
editora Alaúde em 2012, em uma edição comemorativa de 20 anos, teve a
infelicidade de traduzir seu subtítulo original, “A feminist-vegetarian critical
theory” por “A relação entre carnivorismo e a dominação masculina”, cometendo
o erro que a autora criticará no decorrer da obra ao analisar os “textos
desmembrados”. A tradução ignorou contexto e forçou um significado de modo
a contribuir para o discurso dominante viril-carnista. Lamentável.
A obra que agora o público brasileiro tem em mãos, traz três prefácios da autora
e uma apresentação de Nelly Mckay. Composta de nove capítulos distribuídos
em três partes, um interessante epílogo e uma vasta bibliografia.
O início do prefácio à edição de vigésimo aniversário é de uma beleza estética
típica das grandes utopias. Adams repete nesse prefácio alguns pontos que
havia dito no anterior: que a razão de ser da obra é o ativismo. Ela é uma teoria
engajada. Ou seja, sua práxis está em expor os problemas de uma sociedade
sexista e especista e, não menos, oferecer soluções. As definições de A política
sexual da carne são apresentadas e a autora conclama os leitores e leitoras a
se juntarem aos ativistas que acreditam na mudança, no fim da cultura sexista,
especista e belicosa.
No prefácio à edição de décimo aniversário, a autora conta como passou de
feminista para feminista-vegetariana, como foi seus primeiros pensamentos de
inclusão do vegetarianismo dentro do contexto feminista a partir das feministas
do século XIX que já tinham feito essa conexão. Adams rebate a crítica de que
sua obra é demasiadamente acadêmica, dizendo que ela mesma não é uma
acadêmica e sim uma trabalhadora cultural.
“Sou grata pelo fato de que, com essa edição de décimo aniversário posso
afirmar que este livro foi escrito por uma ativista. Sou uma ativista imersa na
teoria, é verdade. Mas ainda assim sou uma ativista…”
Em resposta a ideia de que as causas sociais humanas devem ser priorizadas,
Adams defende a intersecção, a inter-relação, “temos que por fim ao ativismo
fragmentador”. Após dizer que compreende a preocupação das feministas que
dizem que a defesa dos animais desvia o foco da luta que as mulheres travam
contra o machismo, fica claro que a autora não concorda com essa hierarquia de
lutas por justiça. Adams pontua que o vegetarianismo que ela trata na obra exclui
não só as carnes, mas também laticínios e ovos. E propõe um novo conceito:
“proteína feminilizada”, para se referir ao leite e os ovos, ou seja, proteína que
vem de um corpo feminino. A conclusão desse prefácio é magnífica, pois ressalta
a importância de ambas as lutas: o feminismo e o vegetarianismo. E afirma que
o feminismo deve adotar o vegetarianismo pelo que ele é e representa.
O prefácio à primeira edição inicia com a certeza da autora de que o feminismo
e o vegetarianismo estão intimamente ligados, inter-relacionados, assim como o
domínio patriarcal está secularmente sustentado pelo consumo dos animais,
tornando-os indissociáveis. Os capítulos que virão a seguir são apresentados de
modo bem sucinto pela autora.
A parte I – os textos patriarcais da carne – começa com o capítulo intitulado “A
política sexual da carne” onde vemos a íntima relação do patriarcado com o
consumo de proteína animalizada. O consumo de proteína animalizada não só
contribui para manter a virilidade, ou fortalecê-la, mas é sinônimo dela. Comer
animais é ser viril. Por outro lado, o comer vegetais é o que define o feminino.
Para analisar essa tese, Adams recorre a fontes históricas numa ampla literatura.
Nas obras de culinária, por exemplo, o sexismo alimentar é explícito: carne para
eles, vegetais para elas.
Nesse capítulo encontramos outra temática polêmica: a política racial da carne.
Para Adams o consumo hiperbólico da carne não é só símbolo do poder
masculino, é também do racismo. Existe uma hierarquia da proteína
animalizada, como motor da hierarquia de raça, gênero e classe. Para os
homens brancos civilizados, carne, para outras raças e as mulheres, cereais e
frutas. Segundo a ativista, “o racismo e o sexismo, juntos, defenderam a carne
como alimento do homem branco”. Vemos também que a suposta supremacia
masculina advinda do consumo de proteína animalizada é passada
cotidianamente pelo sexismo lingüístico. O machismo também influência nossa
forma de expressão verbal. E dentro da lógica machista, os homens que ousam
não comer animais, são chamados efeminados, gays, fracos.
“Estupro de animais, retalhamento de mulheres” é o título do segundo capítulo
da obra. O estupro e o retalhamento dos corpos de fêmeas de outras espécies
e de mulheres são, infelizmente, corriqueiros; frutos de uma tradição milenar
machista que não mede esforços para naturalizar tais práticas. Para analisar
essa questão Adams apresenta o conceito de “referente ausente”. Conceito
descoberto por ela em 1987 ao ler a obra Bearing the Word de Margaret
Homans. Era o que precisava para entrelaçar a opressão das mulheres e dos
animais. O capítulo traz as três formas pelas quais os animais se tornam
referentes ausentes: o literal, o conceitual e o metafórico. Depois de dissertar
sobre o “racismo e referente ausente”, a “violência sexual e o consumo de carne”,
e o “ciclo de objetualização, fragmentação e consumo” metafórico da carne,
Adams tratará da fragmentação eliminadora em seis partes: 1, violência com
equipamentos; 2, o matadouro; 3, a linha de desmontagem como modelo; 4, o
estupro de animais; 5, Jack, o estripador; 6, retalhamento de mulheres. Cada
uma dessas fragmentações é apresentada de forma sucinta pela autora, porém
buscando apoio numa ampla literatura.
Adams também apresenta limites no uso que algumas teóricas feministas fazem
da analogia do consumo da mulher como consumo de animais ou partes deles.
Há uma limitada intersecção, que vai somente até o ponto de expor o referente
ausente feminino, não adentra na problemática dos animais. Quanto aos
defensores dos animais não-humanos devem ser cautelosos no uso que se faz
da linguagem, como usar o “estupro metafórico” sem incluir no debate o protesto
contra a violência sexual originária. “Nosso objetivo é resistir à violência que
separa matéria e espírito, eliminar a estrutura que cria os referentes
ausentes”. Quando Adams, diz “nosso objetivo”, ela se refere a quem? Será as
ecofeministas animalistas, que conseguiram ver a lógica da opressão além do
que viram as feministas tradicionais e os vegetarianos sexistas?
Após tratar do consumo de algo que não está presente, mas apenas sua
referência, a autora inicia o capítulo terceiro que versará sobre a objetualização
do consumo por meio da linguagem. Em “violência mascarada, vozes
silenciadas”, Adams expõe as opressões sofridas por mulheres e animais
transmitidas pela linguagem para em seguida discutir o silêncio das vozes
vegetarianas diante da cultura dominante do consumo de carne. Chamando a
atenção das feministas tradicionais para o especismo na linguagem, Adams
inicia dizendo que: “até agora, o feminismo aceitou o ponto de vista dominante
com relação à opressão dos animais, em vez de lançar sobre essa opressão
toda a luz da sua teoria – nossa linguagem não se centra apenas no masculino,
ela também é centrada no humano”.
Para a autora a linguagem transmite comumente o que vemos e fazemos no
cotidiano violento no que se refere aos animais. O especismo e a coisificação
são expressados por metáforas e alegorias. Segundo ela a opressão
institucionalizada dos animais se sustenta em dois níveis: na formal com
matadouros, açougues, zôos e circos; e, por meio da linguagem, como por
exemplo, se referir ao consumo de carne e não o de um cadáver. O que é servido
é vitela e não “pedaços de bezerrinho anêmico morto”. Boi, porcos e frangos são
“unidades animais consumidores de grãos”.
Tanto as feministas quanto os vegetarianos buscam redefinir as palavras ou
buscam suas origens e usam o termo com o sentido correto, literal, sem a carga
de opressão que adquiriu com o tempo. Mas aproveitando para escancarar a
violência mascarada pelo pensamento simbólico, dois exemplos emblemáticos
são citados, o uso de “estupro violento” e “abate humanitário”, em ambos, um
adjetivo tira a violência inerente na ação.
Segundo Adams, num mundo patriarcal, a cultura dominante viril-carnista
constrói barreiras às vozes vegetarianas, e os protestos a essa forma de
violência institucionalizada são constantemente frustrados. Os vegetarianos são
denominados, de um lado, como “seletivos, exigentes, ácidos, hipócritas,
confrontadores”, e de outro, sua objeção à violência é tida como sentimentalista,
infantil ou “imoralidade gay”, ou seja, “feminina”. O discurso vegetariano é
vinculado ao feminino por um motivo estratégico: tudo que se refere às mulheres,
ao feminino, é visto como fraco, inferior, sentimental (e não racional); logo, o
vegetarianismo carece de sustentação, de potência, de força.
Dentre os nomes novos que buscam romper com a opressão via linguagem,
temos “vegetariano”. A palavra passou por uma batalha no século XIX para se
estabelecer, no entanto, em pouco tempo foi distorcida, e o “vegetarianismo”
passou a incluir pessoas que comiam peixe, frango e laticínios. Adams é enfática
ao dizer que quem não come carne vermelha, mas come outros animais, não é
vegetariano. Para a autora, aceitar que quem come algum produto de origem
animal seja considerado um vegetariano tira o significado e a historia do termo.
Outro nome novo utilizado pelas vozes silenciadas é “proteína animalizada e
feminilizada”. Os termos, “animalizada” e “feminilizada’’, tem como objetivo
reinserir o referente ausente no debate. Após um breve lembrete de como se dá
a exploração das fêmeas (vacas, galinhas e abelhas), Adams lembra que: “os
veganos boicotam a proteína feminilizada e animalizada”.
Outro nome novo que vale destacar é “vegano”. Segundo Adams o conceito
superou a distorção que foi feita com o “vegetariano” e reconhece o problema
das “proteínas feminilizadas”. Após falar da criação da palavra, Adams cita sua
inclusão no dicionário ilustrado de Oxford, porém, ao criticar a não inclusão de
“veganismo” no programa da Microsoft, ela o define assim: “veganismo é uma
postura ética baseada na compaixão por todos os seres vivos.” Uma pena.
Justamente num capítulo sobre a linguagem, termos e conceitos, a autora define
veganismo dessa forma absurdamente equivocada. O capítulo é finalizado com
apontamentos sobre a literatura de protesto vegetariano que vem da antiguidade
grega aos dias atuais pelas obras de não ficção.
Já no último capítulo da parte I, intitulada “A palavra se faz carne”, Adams
disserta sobre o diálogo entre vegetarianos e carnistas, o motivo de alguns
tornarem-se vegetarianos e a maioria não. Segundo a autora, os vegetarianos
não percebem as barreiras que se colocam entre eles e seu público. Um motivo
é a crença de que todos os que o ouvir se convencerão como outrora ele fora
convencido. Outro fato é a ausência de um olhar feminista no diálogo
vegetariano; e outro, é o lugar e a hora em que a conversa se realiza, geralmente
nas horas das refeições.
Após analisar a literatura de protesto vegetariana, Adams passa pelas barreiras
políticas e culturais à palavra vegetariana. Exige-se, por exemplo, que a
feminista e a vegetariana explique os motivos que levaram a adoção de tal
postura, partindo do princípio de que essa ideologia e essa dieta não são
“normais”, fogem aos padrões. Uma feminista que destaca a violência sexual
embutida em determinado contexto é tachada de histérica; e a vegetariana que
foca no assassinato dos animais é chamada de sentimentalista. Segundo
Adams, “quem é feminista ou vegetariano torna-se um problema”.
A segunda parte da obra, chamada “Da barriga de Zeus”, começa com o capítulo
intitulado “textos desmembrados, animais desmembrados”. Neste capítulo a
autora discorrerá sobre o significado de desmembramento, tanto o que
fragmenta os animais quanto o que distorce textos. Vemos aqui que o texto pode
ser desmembrado de varias formas: ignorando os textos vegetarianos; ignorando
contexto ou significado do vegetarianismo; forçando o significado de modo que
contribua para o discurso dominante viril-carnista. Tanto feministas quanto
vegetarianos tentam preservar a integridade do texto original.
A ativista dedica uma longa seção a Joseph Ritson, defensor da integridade dos
textos e apologista da dieta vegetariana. Na seqüência vemos a importância de
escrever o vegetarianismo, como escrita do literal e rompendo com o simbólico.
Na esteira de Margaret Homans e Mary Shelley, Adams propõe promovermos a
palavra vegetariana. Ao analisar a obra de Isabel Colegate, apresenta quatro
formas de se promover a palavra vegetariana. E por fim, escritores como Percy
Shelley, Joseph Ritson e Henry Salt são citados como referências na tentativa
de multiplicar os adeptos do vegetarianismo pela leitura de textos que combatem
a dominação viril-carnista e defensores de um modo de vida onde se alimenta
decentemente.
O sexto capítulo é dedicado ao “monstro vegetariano de Frankenstein”, à obra
de Mary Wollstonecraft Shelley. Adams inicia o capítulo dizendo que: “O monstro
criado por Frankenstein era vegetariano. Este capítulo, ao analisar o significado
da dieta adotada por uma Criatura composta de partes desmembradas,
demonstrará os benefícios de “re-membrar”, em vez de desmembrar, a tradição
vegetariana”. Segundo a autora, Mary Shelley promove a palavra vegetariana ao
unir feminismo, radicalismo romântico e vegetarianismo em seu texto. No
entanto, esse fato é ignorado pelos cuidadosos críticos literários nessas últimas
décadas. Na primeira parte de sua análise, Adams recorre ao interessantíssimo
conceito de “círculos concêntricos” da filósofa Mary Midgley.
No segundo momento dedicado ao radicalismo romântico, Adams disserta a
partir de uma junção primorosa das pesquisas de historiadores do século XVIII
com alguns clássicos da literatura produzida na época. Em ambas vemos o
destaque dado à forma como o vegetarianismo, uma dieta de vegetais, era tida
como algo subversivo, uma afronta a sociedade tradicional. No entanto, ao
produzir sua obra, Mary Shelley, não só utiliza o que aprendeu com a literatura
(palavra) vegetariana greco-romana e moderna e com o círculo romântico
masculino ao qual cresceu, mas dá um passo além, acrescentando a voz
feminina. É importante destacar que ao colocar Frankenstein como vegetariano
representante da Era de Ouro e da dieta naturalista, destaca-se que a Criatura
segue a dieta ideal de Rousseau que incluía ovos, leite e queijo; Adams cai em
contradição com a definição de vegetarianismo dada no prefácio à edição de
décimo aniversário: “o vegetarianismo tratado neste livro não admite os
laticínios, nem os ovos”.
Na terceira e última parte de sua análise dedicada à “decifração de significados
silenciados”, somos apresentados a representação que a Criatura faz do
feminismo e do pacifismo. Assim como o vegetarianismo que a Criatura
representa foi ignorado pelos críticos, sua voz representativa da luta feminina
contra a invisibilidade das mulheres nos círculos intelectuais da época também
é ignorada ainda hoje, segundo Adams.
No sétimo capítulo, o mais longo da obra, a autora irá se dedicar a tríade
conceitual: vegetarianismo, pacifismo e feminismo; tendo como pano de fundo a
Primeira Guerra Mundial. Para Adams a Grande Guerra uniu as ideias pacifistas
e vegetarianas, e acabou por estimular o vegetarianismo tornando-o o
movimento do século XX, além de um tema corrente nos romances assinados
por mulheres. Utilizando da mesma estratégia de leitura realizada no capítulo
quinto, Adams levanta quatro temas correntes nas escritoras do pós-guerra:
repúdio a violência masculina; a identificação com os animais; a rejeição do
domínio masculino sobre as mulheres; e, a proposta de um mundo ideal formado
pelo vegetarianismo, pacifismo e feminismo.
Uma seção é dedicada a “narrativa da interrupção”. Segundo Adams, a técnica
da interrupção foi utilizada pelas romancistas feministas para dar voz ao
vegetarianismo. A história sofre um desvio, o assunto é interrompido para dar
lugar a um tema vegetariano ou em defesa dos animais, o que provoca uma
instabilidade no domínio patriarcal. A interrupção no decorrer do texto, que retira
o protagonismo do macho viril-carnista é representativa da subversão da ordem.
Na conclusão do capítulo Adams volta a dizer que vegetarianismo e pacifismo
andam de mãos dadas. Ao afirmar que a contestação do ethos dominante que
naturaliza o consumo de animais é a contestação da guerra, de um mundo
belicoso, Adams faz a crítica a homens e mulheres que se prendem a
esse ethos dominante.
A terceira parte da obra, “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, é uma resposta
as questões de gênero embutidas na opressão dos animais ignoradas pelas
feministas. Segundo a autora, o oitavo capítulo, intitulado “A distorção do corpo
vegetariano” foi escrito como resposta a pergunta se ela tinha escrito alguma
coisa sobre a história dos direitos animais. O objetivo do capítulo é analisar a
tendência das especialistas em ignorarem a relação do feminismo com o
vegetarianismo. Para concretizar tua intenção, Adams fará uso do conceito de
“corpo vegetariano”.
A autora inicia dizendo que algumas feministas se vestem de peles e comem
proteína animalizada e feminilizada em eventos feministas. Uma correção a
afirmação de Adams é necessária, não são algumas, mas a maioria, e que
distorce o corpo vegetariano. Isso nos leva a um ponto importante, e polêmico,
se a maioria das feministas distorce esse corpus enaltecedor do vegetarianismo
que não é bem visto pela cultura dominante masculina, acaba por reproduzir a
lógica da opressão que dizem combater. Um tópico de destaque nesse capítulo
é o que Adams chama de “textos da carne” que são usados em oposição ao
corpo vegetariano. Para ela, influenciados pela cultura dominante, historiadores
contestam a crítica radical dos textos vegetarianos, ao invés de explicá-los.
Dentre os usos comuns de detratação e desmembramento da palavra
vegetariana está a afirmação de que Hitler era vegetariano. Adams responde a
essa mentira histórica recorrendo a Roberta Kalechfsky e ao historiador vegano
Rynn Berry. Em sua obra Living Among Meat Eaters, de 2001, Adams analisará
com detalhes a dinâmica que leva as pessoas a protegerem seu consumo de
carnes apelando ao falso vegetarianismo de Hitler.
Na esteira de Isaac Bashevis Singer, a ativista critica a adoção do
vegetarianismo apenas por motivo de saúde, ignorando sua base política e
moral. Outro tema corriqueiro e que segundo Adams é estimulado pela cultura
dominante é a acusação de que o vegetarianismo é racista. Mas provavelmente,
a crítica de Adams a omissão das feministas quanto ao vegetarianismo, ou
melhor, aos textos feministas-vegetarianos é o que mais provoca oposição a sua
obra. O recado dado na última seção do capítulo é bem claro: “ao recusar a
ordem masculina da comida, as mulheres praticaram a teoria do feminismo por
meio do seu corpo e de sua opção pelo vegetarianismo”. Para Adams “a matança
de animais” para consumo “é uma questão feminista que as feministas deixaram
de levantar…” por estarem mergulhadas numa opção dietética masculina e na
estrutura do referente ausente.
No último capítulo a autora propõe “uma teoria crítica feminista-vegetariana”,
com o objetivo de dar continuidade à associação que algumas escritoras
feministas fizeram no decorrer da historia entre feminismo e vegetarianismo.
Adams insiste na ideia de que o vegetarianismo representa a independência da
mulher. Vegetarianismo é posto como resistência a cultura dominante masculina.
Para ela assim como o vegetarianismo é a prática dos direitos animais, o
vegetarianismo também é parte da prática da teoria feminista; e defende a
intersecção do feminismo e do vegetarianismo, pois aspectos fundantes de um
e do outro se cruzam. Logo, se animais e as mulheres são explorados e
coisificados pela mesma estrutura social viril-carnista, é preciso um ativismo não
fragmentado para por fim a essa opressão.
Ao fazer um apanhado histórico, mostrando desde os tempos homéricos essa
relação íntima da libertação da mulher com a abstenção do consumo de carnes,
Adams relata as oferendas que as gregas ofereciam as deusas como
vegetarianas, porém contendo mel, peixe e talvez aves. Novamente a autora cai
em contradição com sua definição de vegetarianismo dado no prefácio ao
décimo aniversário da obra.
Adams dedica uma seção a adoção do vegetarianismo. Atitude que ela
denomina “busca vegetariana”, dividida em três partes: 1) a revelação da
nulidade da carne como um componente da alimentação; 2) nominar as relações
(entre carne no prato e o animal morto, entre nossa ética e nossa dieta, etc.); 3)
a censura a um mundo carnívoro (censurar uma sociedade carnívora é censurar
uma sociedade patriarcal). Para a autora, além da busca vegetariana colocar as
atitudes isoladas das mulheres dentro de um contexto que pode explicar suas
decisões, pode contribuir para novas interpretações literárias de romances e
biografias de mulheres. Uma nova crítica literária surge a partir daqui, com um
significado vegetariano. O último capítulo da obra termina chamando a atenção
novamente para o fato de que o ativismo em defesa dos animais, assim como
os escritos das feministas-vegetarianas foram ignorados pela insensibilidade dos
críticos especializados. Diante disso Adams conclui argumentando que para
fundar e desenvolver uma teoria crítica feminista-vegetariana é necessário estar
munido de sensibilidade aos significados tanto literários quanto históricos que
divergem das interpretações tradicionais.
Em seu Epílogo, “Desestabilização do consumo patriarcal”, a partir da questão
do custo de se consumir proteína animalizada, Adams reforça a ideia de que na
cultura patriarcal as mulheres têm sido engolidas e também são as que engolem.
São consumidoras e as consumidas. A carne é um símbolo do poder masculino,
comer animais é uma prática fundada em valores patriarcais. Logo, esse
consumo é a representação da exclusão da mulher e de sua autonomia. Para
Adams não é possível derrubar o poder patriarcal se as mulheres continuarem a
consumir proteína animalizada e feminilizada. Uma interessantíssima
mensagem é passada nesse epílogo, a de que os códigos dos textos da carne
precisam ser rompidos. Para isso a carne não pode estar presente, já que sua
presença materializa os códigos antigos. Para a ativista indiscutivelmente haverá
uma destruição do atual prazer gustativo das refeições regadas à proteína
animalizada, mas o que vem substituir é o prazer advindo da gastronomia
vegana.
Em tom poético, a desestabilização do consumo de carne vem de um pedido de
fé nas mulheres, de libertação de Métis e de todas as que foram engolidas por
Zeus. Assim restaurando a integridade das relações que foram mantidas
fragmentadas entre humanos e com os outros animais.
Fazendo uso de um discurso interseccional, a ativista Carol Adams, procura
apresentar em A política sexual da carne, sua teoria crítica feminista-vegetariana
que está fundada num tripé: feminismo, vegetarianismo e pacifismo. A obra é
realmente um manual de ativismo não fragmentado. Um chamado a ação,
porém, bem fundamentado, ou como ela chama: “teoria engajada”. São trinta e
oito laudas de notas e referências. Uma ampla bibliografia que expressa as
quase duas décadas de pesquisa para a construção das teses defendidas na
obra. Para além de um estéril discurso teórico acadêmico, o leitor e a leitora são
jogados diante de situações cotidianas da antiguidade aos dias atuais – que
escancaram o sexismo, o especismo e o belicismo de nossas relações sociais.
Fica perceptível o quanto uma escolha dietética pode ser revolucionária ou
mantenedora do status quo. Portanto, A política sexual da carne é uma leitura
indispensável, para homens e mulheres, ambos reprodutores e mantenedores
da naturalização de uma cultura de opressão.

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