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O MITO DA SUBSIDIARIEDADE E AS REFORMAS DO ESTADO SOCIAL:

Um Brainstorm sobre o Governo e a Administração no Brasil atual

Caroline Müller Bitencourt 1


Emerson Gabardo 2

O artigo tem como objeto o estudo da conjuntura político-governamental do Brasil nesta


segunda década do século XXI. Tem como foco o problema da revitalização da ideia de
subsidiariedade pela mais recente reforma administrativa levada a efeito pelo Governo
Bolsonaro. Analisa a reforma administrativa da década de 1990, bem como os conceitos
operacionais fundamentais para a caracterização do modelo de Estado Social num
contexto constitucional em que o desenvolvimento é um dever dos Poderes Públicos.
Utiliza como técnica de investigação a análise bibliográfica teórico-conceitual, que
implica considerações da doutrina e da legislação pertinente. Como método científico
propugna pela realização de um brainstorm no entorno da seguinte hipótese: que a ideia
da subsidiariedade não é compatível com o regime jurídico do Estado social,
configurando apenas um mito justificador típico da ideologia neoliberal. A pesquisa
realizada e a argumentação elaborada são adequadas para a sustentação final da hipótese
em caráter de conclusão. As considerações finais do texto retomam a ideia central,
considerando que não se trata de uma pesquisa empírica ou dialética e sim um trabalho
teórico de análise jurídico-política do tema.
Palavras-chave: Subsidiariedade, Estado Social, Desenvolvimento, Administração
Pública; Reforma Administrativa.

Sumário: 1. Introdução; 2. Texto e contexto: o que há de novo para se falar em


“subsidiariedade”; 3. Subsidiariedade do Estado e protagonismo da sociedade civil: qual
sociedade civil no velho debate entre “o bem e o mal”?; 4. As recusa ao princípio da
subsidiariedade: velhas razões e novos contextos; 5. Considerações Finais; 6. Referências
Bibliográficas.

1 Introdução

A palavra “mito” pode assumir diversos significados, considerando a linha teórica


e a área do saber sobre as quais o tema é abordado, mas, no contexto deste trabalho, está
sendo utilizada no sentido da filosofia, para designar o campo semântico do crer, como
aquilo que existe no imaginário independente das justificativas ciências, daquilo que

1
Professora do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade de Santa
Cruz do Sul (UNISC-RS). Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul com estágio pós-
doutoral pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Chefe do Departamento de Direito da
UNISC. Advogada.
2
Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Professor Associado de Direito Administrativo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em
Direito do Estado pela UFPR com Pós-doutorado em Direito Público Comparado pela Fordham University
School of Law (EUA – 2013). Professor Visitante Sênior na Universidade da Califórnia (EUA – 2020).

1
decorre no pensamento mítico. O mito configura, assim, a própria visão de mundo dos
indivíduos, a maneira pela qual vivenciam e projetam uma realidade, excluindo outras
perspectivas. O mito caracteriza-se sobretudo pelo modo como as explicações sobre a
realidade que se pensa viver são dadas e elaboradas, ou seja, singulariza-se pelo tipo de
discurso que constitui. Por isso, o mito “não se justifica, não se fundamenta, portanto,
nem se presta ao questionamento, à crítica ou à correção.3
Partindo dessa concepção de mito, pode-se estabelecer uma relação analógica entre
mito e subsidiariedade, o que se faz neste texto por meio da discussão sobre a
possibilidade de os problemas sociais brasileiros encontrarem respostas em
compromissos constitucionais assumidos em 1988. Ao longo deste ensaio, procura-se
apontar razões que justificam uma tendência de a atual Constituição brasileira não
espelhar a ideia de subsidiariedade.
De tempos em tempos, a subsidiariedade aparece como a solução quase que
instantânea para os problemas da vida em sociedade,4 como se a sua adoção fosse
carregada de significados quase ontológicos que responderiam aos grandes problemas
sociais, especialmente aos relativos ao desenvolvimento. Diante do um cenário de crise
política, econômica e social em que vive o Brasil atualmente, eis que reaparecem os
defensores da subsidiariedade.
As origens e significados da ideia são antigos e remontam a menções na obra de
Aristóteles, no pensamento cristão, na doutrina social da Igreja e nas Encíclicas, sempre
norteadas pela ideia de bem comum.5 Envolve, portanto, o reconhecimento de um
paradigma hierárquico para a ordenação da relação entre Estado e Sociedade,6 procurando
definir, particularmente, qual seria o papel e o tamanho do Estado.

3
MARCONDES, Danilo. Iniciação a história da filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein. 10. ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 2016. p. 20. No mesmo sentido: HELFERICH, Christoph. História da Filosofia. Trad.
Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
4
O “princípio da subsidiariedade” foi positivado, pela primeira vez, justamente pelo fascismo, na
célebre Carta del Lavoro, editada por Benito Mussolini em 1927, em seu item IX: “A intervenção do Estado
na produção econômica tem lugar unicamente quando falte ou seja insuficiente a iniciativa privada ou
quando estejam em jogo interesses políticos do Estado. Tal intervenção pode assumir a forme de controle,
de encorajamento e de gestão direta”. BERCOVICI, Gilberto. Administração pública dos cupons. Conjur,
set. de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-06/estado-economia-administracao-
publica-cupons. Acesso em: 20 dez. 2020.
5
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Belo
Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1995. p. 33.
6
Quando se fala nas relações entre sociedade e Estado, certamente a problemática não reside somente na
questão da ineficácia normativa ou da prestação de serviços e essa nem mesmo é uma questão exclusiva
dos países não-desenvolvidos. Esta premissa conduz à identificação de um caráter social ao Estado que não
se restringe à sua eficiência econômica em propiciar o desenvolvimento (a não ser que se tenha um sentido
bastante restrito de desenvolvimento). GABARDO, Emerson. Estado Social e Estado Subsidiário: dois

2
Importante destacar que o recorte dessa investigação não trata da noção de
subsidiariedade na relação de competência e colaboração entre os entes federativos
(sentido vertical), mas sim da subsidiariedade como princípio reitor dos papéis do Estado
e da Sociedade Civil (sentido horizontal). Ademais, se pretende expor uma abordagem
do tema por meio da reflexão sobre prescritividade imposta pela Constituição de 1988,
na qual está a ideologia que guia essa investigação. 7 Dessa forma, propõe-se discutir a
seguinte questão: Por qual razão a subsidiariedade de tantos antigos debates
administrativos, como a reforma gerencial da década de 1990, passa a protagonizar uma
nova proposta de reforma?
Não se pode ignorar que a proposta de Projeto de Emenda Constitucional n. 32, por
mais que, no seu bojo, pareça desordenada e atécnica sob o olhar dos mais variados
administrativas (seja os adeptos do Direito administrativo social ou daqueles cujo viés é
do Direito administrativo liberal), tem um fundamento explícito: o princípio da
subsidiariedade, que passa a constar no art. 37 da Constituição Federal. A proposta eleva
a subsidiariedade a princípio da ordem constitucional, estabelecendo um novo paradigma
quanto ao papel do Estado e à forma como realizar seus compromissos constitucionais. É
possível dizer que há uma ordem no caos, pois não se trata meramente de acrescentar um
princípio, mas de legitimar um plano de governo em defesa de um Estado próximo ao
mínimo, muito verbalizado nas mais recentes iniciativas governamentais.
O que será dito sobre o princípio da subsidiariedade talvez não se revele como dado
novo; o novo é o contexto no qual ele se insere: a da maior crise política vivenciada no
Brasil após a Constituição de 1988. É colocada em xeque a opção pelo modelo de Estado
Social adotado e, mais do que isso, identifica-se este modelo como a grande causa das
atuais mazelas sociais – o que é um equívoco. Em realidade, mais do que um mero engano
ou uma falácia, esta identificação é uma forma articulada de desmanche das conquistas
do Estado de bem-estar social.

modelos distintos de desenvolvimento. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura. Belo


Horizonte, v. 11, n. 3, p. 283-299, 2019.
7
Propositadamente, utilizou-se o termo ideologia para referir-se à orientação de Estado/sociedade a partir
da Constituição de 1988. Vale o alerta: “O conceito de ideologia, além de encontrar inúmeras definições, é
sempre um campo movediço, propício a facilmente se confundir com uma espécie de ideologia. Algumas
situações parecem terreno comum quando se trata desse conceito: 1) necessidade de um conjunto de ideias
sistematizadas; 2) compartilhamento social dessas ideias, produção de identidade social; 3) pretensão de
coordenar planos de ação, ou seja, devem as ideologias ter caráter normativo”. GABARDO, Emerson. O
jardim e a Praça para além do bem e do mal: uma antítese ao critério de subsidiariedade como
determinante dos fins do Estado social. Tese aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor
em Direito do Estado, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. p. 38.

3
Por isso, é necessário considerar texto e contexto em que o tema se insere, tornando
válida uma análise a partir do método do brainstorm. Inicialmente, cumpre salientar que
o artigo utiliza a técnica de investigação bibliográfica teórico-conceitual, que implica um
estudo sobre a doutrina e da legislação pertinente. Sustenta-se a hipótese de que a ideia
da subsidiariedade não é compatível com o regime jurídico do Estado social,
configurando apenas um mito justificador típico da ideologia neoliberal. A pesquisa
realizada e a argumentação elaborada são adequadas para a sustentação final da hipótese.

2. Texto e contexto: o que há de novo para se falar em “subsidiariedade”

A partir de 2021 é preciso ser apresentada uma da agenda da reconstrução. O papel


do Estado precisa ser estabelecido a partir da renovação do marco dos compromissos
assumidos com a Constituição de 1988, especialmente aqueles vinculados ao tema das
desigualdades e da justiça social. A crise atual demanda uma retomada do modelo de
Estado Social e não o inverso. É isso que vai se defender a partir de vários elementos
teóricos e experiências empíricas, mas de fato não é a única narrativa disponível. Por essa
razão, a importância da investigação científica consiste em demostrar a viabilidade do
caminho que se está propondo no cenário de disputa das possíveis alternativas para
enfrentamento da crise vivida no campo político brasileiro e, por conseguinte, na
definição do papel do Estado. A subsidiariedade apresentada no atual contexto, diante do
cenário de ameaças democráticas, atenta contra os compromissos da Constituição Cidadã
e rechaça o compromisso com o Estado social, que é um modelo que se demonstrou para
muito além de mera utopia.8 Nesse cenário, protagonizam os embates dois diferentes
discursos:
1) No campo dos defensores da ampliação da presença do Estado, a CF 88 é um
divisor de águas para as políticas públicas no Brasil. Essa corrente atribui ao tema das
políticas públicas a grande forma de concretizar o modelo de Estado social, bem como as
mais importantes conquistas humanitárias do século XXI, além de acreditar na necessária
permanência desse modelo. Os adeptos dessa vertente defendem que tal paradigma
propiciou uma melhoria de vida das camadas mais pobres, conhecidos como outsiders do

8
O cenário que antecedeu a aprovação da Constituição de 1988 não foi permeado por consensos em prol
dos valores ali eleitos, mas foi resultado de uma negociação necessária para o enfretamento da desigualdade,
que, em uma condição extrema, aniquila qualquer sistema capitalista. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos.
Prefácio da obra de: Kerstenetzky, Celia Lessa. O estado do bem-estar social na idade da razão: a
reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

4
sistema, tanto pelo incremento da renda quanto pela acessibilidade aos serviços públicos
e a sofisticação de técnicas de controle a partir das capacidades estatais, que, com a
Constituição, vêm conseguindo romper com o persistente patrimonialismo que domina
os espaços públicos desde a colonização. Acreditam que “não apenas o Estado não está
falido, mas teve sucesso em construir e coordenar esquemas de ação capazes de orientar
os entes públicos e privados para resultados relevantes”.9 E que, talvez, justamente por
essa capacidade da ação estatal aplacar os índices de desigualdade tão acentuados no
Brasil, é que se justificaria o constante ataque das elites ao Estado social;
2) De outro lado, há os defensores do Estado próximo ao mínimo, cujo discurso da
crise do Estado atribui-se justamente à concretização do Estado social, como um Estado
caro, moroso, burocrático e que entrava o desenvolvimento do país. Para essa corrente,
liderada pelo atual governo e personificada na figura do Ministro da economia Paulo
Guedes, as palavras de ordem são: desindexar, desburocratizar e desvincular, conhecidas
como “DDD”. Nesta corrente, aposta-se nas medidas de austeridade fiscal para um maior
equilíbrio econômico e no ajuste fiscal para a recuperação dos índices de crescimento.
Juntamente com as alternativas “DDD”, estaria a diminuição do tamanho do Estado, uma
vez que não se acredita nas capacidades estatais, preferindo-se privilegiar os espaços
privados como protagonistas e parceiros na prestação de serviços públicos, inclusive os
essenciais – as propostas como vouchers e cupons nas escolas privadas e na saúde pública
são um bom exemplo. O protagonismo seria do mercado e aqui a aposta é no Estado
subsidiário. Uma questão crucial é que essa disputa de narrativas não tem se dado apenas
no campo científico. Os embates são altamente político-ideológicos e permeados de
inimigos imaginários, haja vista que os fundamentos teóricos de justificação dos modelos
evidentemente disputam várias narrativas, dentre as quais as jurídicas e as morais.
Observa-se um cenário ainda mais complexo quando se investiga o avanço, no
âmbito nacional e internacional, de discursos inflamados em defesa ao modelo neoliberal
que traz em seu bojo a redução das funções de Estado, o discurso das privatizações e o
enfraquecimento dos serviços públicos; discursos segundo os quais eficiência e
desenvolvimento são qualidades que não combinam com o Estado. Retórica esta que
passa a se utilizar, inclusive, de perspectivas negacionistas da ciência e dos dados. Quanto
mais tecnológica tem se tornado a sociedade e mais informações encontram-se
disponíveis, paradoxalmente, mais obscuridade tem aparecido na tratativa dos assuntos

9
BUCCI, Maria Paula Dallari Os trinta anos da Constituição e as políticas públicas: a celebração
interrompida. São Paulo: Saraiva, 2018.

5
de caráter público. Portanto, essa crise está muito aquém de se configurar como
meramente econômica. Há uma crise moral permeada por uma mentalidade neoliberal,10
como bem alerta Christian Laval:

É importante considerar que não se trata, portanto, somente de uma ideologia


de natureza econômica. Além da “tese econômica” sobre as finalidades do
Estado (centrada na ideia de maior eficiência do mercado), a ideologia
neoliberal típica da última transição de século compreende de forma marcante
uma “tese moral” (traduzida por uma concepção individualista dos direitos
humanos) e uma “tese política” (que valoriza as ações autônomas da sociedade
civil como meio de desenvolvimento.11

O individualismo gera sociedades e sujeitos que não só duvidam de fatos, mas que
não querem tornar suas vidas mais complexas e ricas com elementos culturais. Os grupos
de WhatsApp refletem grande pobreza intelectual e poucas alternativas e espaços de
resistência política são gerados. Todavia, a sociedade contemporânea vem confirmando
que esta fórmula individualista e despolitizada não tem produzido aumento de bem-estar.
Pelo contrário, são fortes as externalidades negativas que a resistência desse egocentrismo
produz.12 O indivíduo, agrupado em clusters identitários resiste a esquemas jurídicos
voltados ao interesse público de modo que se enfraquecem os institutos interventivos de
Direito administrativo. O conceito de interesse público torna-se difícil de ser
estabelecido.13 E até mesmo noções clássicas como o poder de polícia são flexibilizadas,

10
A capacidade do neoliberalismo como ideologia, sua capacidade de reinvenção e disseminação de suas
ideias são identificadas em todos os continentes e em diferentes segmentos sociais. Para além dos êxitos
eleitorais e sua onda de avanço nas últimas décadas, ele ganha impressionante vitaliciedade diante da
vulnerabilidade de seus históricos opositores, como a queda do socialismo real, a crise dos Estados de bem-
estar, a dessindicalização. Difícil é encontrar freios à altura da retomada do neoliberalismo e suas ideologias
após o “colapso do modelo soviético”. Para que as alternativas não recaiam em devaneios utópicos, a
esquerda também deverá superar suas incapacidades na construção de alternativas. SADER,
Emir; GENTILI Paolo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático: As
políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 32-37.
11
LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A Nova Razão Do Mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal.
Trad. Mariana Echelar. São Paulo, Contracorrente, 2016. p.13.
12
Este fenômeno foi antecipado por Michel Maffesoli quando criou a categoria da “transfiguração do
político”. O saber ou o poder oficial acabou tornando-se abstrato demais. Assim as pessoas veem na
abstenção a única resposta possível a ser dada a todas as elites “dirigentes”. Como propõe o autor, “a energia
juvenil deixou de ter como objeto a reivindicação, o projeto, a história. Ela se manifesta e se esgota no
instante – festas, solidariedade na urgência – e não precisa de uma tradução política abstrata”, o que gera
várias formas de indiferentismo. Se uma das características marcantes da sociedade moderna era a
segurança pautada na confiança (autoconfiança; confiança nos outros; confiança nas instituições), na
atualidade a insegurança rompe até mesmo com o desejo de uma sociedade confiável. Neste contexto, o
saber científico não determina mais a ação. Para a nova ordem ética, a ação moral não tem necessariamente
fundamentos, o que poderia condenar o indivíduo apenas a uma inevitável e niilista apatia política.
MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Tradução de Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 19.
13
GABARDO, Emerson; REZENDE, Maurício Corrêa de Moura. O conceito de interesse público no direito
administrativo brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 115, jul.-dez. 2017.

6
já que implicam a imposição de limites à liberdade (em uma noção radicalizada da
expressão). Nesta visão, ou o Estado está a serviço desse novo cenário que se apresenta
com seus excêntricos atores, ou já não lhe serve.14
É evidente que todo esse cenário produziu grandes abalos nos sistemas
democráticos. O significante “democracia” não desaparece, mas perde seu conteúdo. É a
constituição de uma cidadania alienada a favor do poder econômico – apática, apolítica
ou antipolítica, mas, acima de tudo, acrítica. A democracia liberal, de caráter material,
talvez não seja mais a forma de produção da decisão ante o cenário atual, mas apenas um
mecanismo formal de legitimação. Há quem defenda, como Steven Levistky e Daniel
Ziblat, que se vive a morte das democracias,15 ou, nas palavras de David Runciman, o
fim das democracias.16 Isso porque se experiencia um cenário de demonização da política,
ou seja, a política passa a ser percebida como uma negatividade – como aquilo que é
corrupto ou contraprodutivo. O Estado e a política são vistos como inimigos, como algo
que não interessa às pessoas. A concepção essencialmente moderna do século XX, que
vê a política como espaço de luta por uma vida mais digna, torna-se anacrônica.
Mas é mais do que isso, a política na contemporaneidade vive um “retorno” do
populismo, que passa a dominar o espaço da política democrática. A ideia básica por trás
do populismo, seja de esquerda ou de direita, é o domínio da democracia pelas elites e de
que a democracia fora roubada de seu povo. Esse tipo de teoria da conspiração, quando
convertido em filosofia de governo, passa a colocar tudo em cheque: o sistema eleitoral,
a validade das urnas, as instituições – o mantra do populismo é afirmar que “o sistema é
manipulado”. Desse modo, os populistas conseguem impregnar “a paranoia para todos os
lados”.17 Este novo populismo da contemporaneidade carrega consigo características
recorrentes. Na história, está sempre presente diante das crises econômicas, das mudanças
tecnológicas, das desigualdades crescentes, dos fenômenos corruptivos e de momentos
de insegurança da sociedade. Assim, resta aberta a janela de oportunidades para que possa
ser fomentada a quebra de confiança nas instituições democráticas, mediante a
apresentação de soluções simplistas para problemas altamente complexos. Um discurso

14
NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia: impacto da eficiência da
configuração do Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012. p. 110
15
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT , Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
16
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Trad. Sergio Larksman. São Paulo:
Todavia, 2018.
17
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Op. cit. p. 72-73.

7
de fácil identificação popular. E a situação torna-se ainda mais grave quando o populismo
passa a também ser encontrado dentro do Poder Judiciário.18
Esse cenário está posto no caso brasileiro. O governo Jair Bolsonaro,19 encontra-se
em uma guerra aberta e declarada contra a democracia e suas instituições. Sua vitória
esteve calcada justamente na devastação social e institucional que coloca todo o sistema
político-jurídico sob suspeita. A devastação é a base de seu estilo de governo, ou seja, o
fomento permanente do colapso institucional demonstra que o caos não é a consequência,
mas sim o método de sua gestão contra um “sistema” que ele elegeu como inimigo.
Ademais, é feita uma identificação deste “sistema” com a própria democracia.
Interessante é perceber que Estado e a burocracia continuam funcionando
formalmente. O peculiar é que o governo se coloca, surpreendentemente, no outro lado,
ou seja, denunciando as mazelas institucionais às quais ele foi eleito para gerir. Um
paradoxo que alimenta um sentimento de “normalidade da crise”, e que transforma o
colapso em uma autêntica forma de governar.20 Este modelo de exercício do poder
governamental paradoxalmente “antiestatal” necessita ser fomentado e legitimado
continuamente. Para isso é utilizada uma estrutura de campanha permanente, direcionada
ao seu público específico.
Nesse contexto, entra em cena um segundo passo de seu modo de governar:
aproveitando-se da supressão ou da mutilação das instituições democráticas, “o governo
de plantão decreta que tudo começou a funcionar bem”. Finge que não há oposição, que
a imprensa crítica é mentirosa, que os movimentos sociais são somente os favoráveis.
Que o povo está integralmente a seu favor. Assim, as mazelas são declaradas coisa do
passado, de seus adversários ou da própria essencial institucional do Estado.
A partir do momento em que o autoritarismo não encontra resistência, diz ele que
agora, sim, tem-se: “autêntica representação do governo do povo”.21 O interessante é que
o discurso populista negacionista está sempre pronto para parasitar a sua própria crítica.

18
SALGADO, Eneida Desiree. Populismo judicial, moralismo e o desprezo à Constituição: a democracia
entre velhos e novos inimigos. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 117, p. 193-217, 2018.
19
É fato que Bolsonaro não está sozinho em seus ataques à democracia. O atual presidente mimetiza táticas
de populismos autoritários mundo afora, que atacam permanentemente o que continua a funcionar; e se
beneficia das coisas que continuam a funcionar apesar de seus ataques. Nessa lógica, o parasitismo
antissistema faz parte apenas de seu primeiro estágio de um projeto antidemocrático por via eleitoral. É
apenas em um segundo momento – após uma reeleição, após mudanças constitucionais e institucionais
radicais – que esses populismos autoritários se estabelecem em definitivo, suprimindo paulatinamente as
instituições democráticas. NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a Democracia. São
Paulo: Todavia, 2020.
20
NOBRE, Marcos. Ponto Final. Op. cit.
21
NOBRE, Marcos. Ponto Final. Op. cit. p. 23.

8
Ou seja, se é acusado de promover Fake News, então passa a acusar de que seus oponentes
produzem Fake News; se é acusado de ser autoritário, diz que autoritários são os
oponentes; se é acusado de negar a ciência, diz que a ciência está sendo negada pelos
críticos. Os fatos em questão são irrelevantes, pois é um modelo que propugna pela
liberdade de ter uma opinião sobre a realidade objetiva, ainda que a negue. A confusão
de discursos favorece a mentira e desacredita os fatos verdadeiros.
Quando se considera a história recente, nota-se que o modelo administrativista
brasileiro já vivenciou os reflexos de modelos econômicos liberais que primavam por
maior participação dos setores privados, redução do aparato estatal e da amplitude e
prestação de serviços – como no caso dos governos de Fernando Henrique Cardoso. E
também já vivenciou uma amplitude dos serviços públicos, a ênfase em políticas sociais,
maior controle da atividade privada, especialmente após o segundo governo Lula. Essas
oscilações após Constituição de 1988 sempre ocorreram no âmbito de alguns limites, tais
como as garantias de direitos fundamentais, a ampliação dos elementos de controle e
deveres de proteção do Estado; tudo isso à luz dos princípios da administração pública
dispostos no art. 37 da Constituição, como legalidade, moralidade, publicidade e
eficiência.
Contudo, essas diretrizes não foram suficientes para barrar a atual desvalorização
dos serviços públicos, o ataque às instituições públicas como prestadores dos serviços
essenciais, bem como a aposta no setor privado para o desenvolvimento econômico e
social no país – uma aposta que foi perdida. Ou seja, o Brasil não está passando imune às
sucessivas ondas de liberalização econômica e a todos os reflexos que advêm da adoção
desse modelo para o campo do Direito administrativo. Passou-se a desacreditar não só o
modelo do Estado empresário, mas também o do próprio Estado prestador de serviços ou
garantidor do bem-estar. Aparentemente, o único campo em que o Estado tornou-se
protagonista foi na promoção e defesa de valores pós-materialistas, de índole moral,
notadamente conservadora.22
Impossível tratar das transformações do Direito administrativo sem fazer menção à
reforma gerencial vivenciada no Brasil a partir da década de 1990,23 cujo foco era a

22
GABARDO, Emerson. Os perigos do moralismo político e a necessidade de defesa do direito posto na
Constituição da República de 1988. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional. ano 17,
n. 70, out./dez. 2017.
23
Um resumo bastante explicativo do histórico da reforma bem como as dimensões jurídica, social e mesmo
intelectual está expresso de forma bastante didática na obra de: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reflexões
sobre a Reforma Gerencial brasileira de 1995. Revista do Serviço Público. Ano 50. Out/Dez de 1999.

9
transferência de serviços do setor público para o privado em nome do fortalecimento da
sociedade civil e, em tese, realizar uma retomada da cidadania. Luiz Carlos Bresser
Pereira foi central nesse processo com a sua proposta de “reforma do Estado”, a qual,
segundo ele, tinha como significado “transitar de um Estado que promove diretamente o
desenvolvimento econômico e social para um Estado que atua como regulador e
facilitador ou financiador a fundo perdido desse desenvolvimento”.24 Entre as propostas
desta reforma, cabe destacar, especialmente, a implementação de uma administração
pública gerencial calcada na ideia de eficiência, de privatizações, de contratação de
organizações públicas não estatais para prestar serviços públicos, como educação, saúde,
cultura.25 O intento, ainda, era de “publicização” com a realização de serviços não-
exclusivos do Estado, como escolas, hospitais, teatros, museus, enquanto o mercado se
incumbiria da parcela que seria privatizada, tais como exploração de minerais e bancos.
A rigor, a proposta de redução do tamanho do Estado amparava-se nestas três dimensões:
publicização, privatização e terceirização.
A reforma consistiria em quatro processos conectados entre si: 1) redução do Estado
(afinal, a experiência do Estado Social já teria provado o seu custo); 2) o Estado em seu
papel de regulador (caberia ao Estado a tarefa de controle de mercado nas áreas tidas
como prioritárias, ou seja, há diferentes formas de controle a partir da distinção do público
do privado e dentro do público o público estatal e o não estatal);26 3) a recuperação da
governança (com a superação da crise fiscal, rever a forma de o Estado intervir na
economia e enfrentar a burocracia da administração pública); 4) governabilidade (que,
para o autor, seria a recuperação da legitimidade do Estado na gestão dos interesses com
a devida adequação das diferentes instituições políticas).27 A reforma seria também

24
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle.
Novos Estudos CEBRAP, n. 50. p. 91-98. mar. 1998.
25
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova
interpretação da América Latina. Trad. Ricardo Ribeiro e Martha Jalkauska. São Paulo: Editora 34, 1996.
26
Em outras palavras, está se supondo a existência de quatro esferas ou formas de propriedade relevantes
no capitalismo contemporâneo: a propriedade pública estatal, a pública não-estatal, a corporativa, e a
privada. A pública estatal possui o poder de Estado e/ou é subordinada ao aparato do Estado; a pública não-
estatal está voltada para o interesse público, não tem fins lucrativos, ainda que sendo regida pelo Direito
privado; a corporativa também não tem fins lucrativos, mas está orientada para defender os interesses de
um grupo ou corporação; a privada, finalmente, está voltada para o lucro ou o consumo privado. PEREIRA,
Bresser; GRAU, Nuria Cunill. Entre o estado e o mercado: o público não-estatal. In: PEREIRA, Luiz
Carlos Bresser (Org.). O Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora FGV, p.
15-48. 1999. p.17.
27
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Lua
Nova - Revista de Cultura Política, v. 45. p. 49-95. 1998.

10
implementada a partir de três frentes,28 uma de ordem técnica, cujo objetivo era a
produção de controle dos resultados da atividade administrativa; uma de ordem
econômica, com a redução de custos através do incremento da competição para a
prestação de serviços públicos e contratualização do Estado; e política, por acreditar que
propiciaria um aumento da cidadania através da participação dos cidadãos nas atividades
Estatais, inclusive com papel importante no exercício do controle social.29
A eficiência defendida via reforma administrativa trouxe à tona, em verdade,
apenas um determinado tipo de eficiência, buscando resultados mesmo que haja
flexibilização dos meios. “Trata-se de noção que mais se aproxima da concepção de
eficácia do que eficiência propriamente dita.”30 O foco no resultado e na competitividade
econômica é importante, mas no contexto da Administração Pública, é muito perigoso e
pode produzir fortes externalidades negativas.31
Mas se esses eram os fundamentos da primeira proposta de reforma administrativa
após 1988, da qual se pode rechaçar suas bases teóricas, precisa-se reconhecer que se
tratava de uma proposição na qual a ideia de eficiência e administração pública gerencial
encontrava razões de justificação. Mesmo os idealizadores da reforma da década de 1990
já reconheceram que, sob a perspectiva de sua implementação, na distância entre o ideal
e o real houve vários pontos críticos. Ademais, independentemente dos equívocos de sua
base ideológica (neoliberal), havia vários pontos da reforma interessantes na medida em
que denunciavam vícios do estamento burocrático. Tratava-se, evidentemente, de uma
reforma racional, fortemente fundamentada em dados científicos e análises sólidas a
respeito do status quo de então. A concepção de Administração Pública de seus
defensores implicava por um lado uma restrição à intervenção direta, mas por outro lado
uma ampliação da atuação reguladora do Estado. Embora reconhecesse a subsidiariedade
como uma ideia estruturante, seu foco era o princípio da eficiência.32
Contudo, a nova proposta de reforma administrativa, desenvolvida nesta segunda
década do século XXI, demostra que se está preso à uma agenda teórica típica do Estado

28
Três outros projetos, além da reforma constitucional, são ainda seriam essenciais para a reforma do
aparelho do Estado brasileiro de então: descentralização dos serviços sociais através das “organizações
sociais”, implementação das atividades exclusivas de Estado através das “agências executivas” e
profissionalização do servidor.
29
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira
na perspectiva internacional. São Paulo: Editora 34, 1998.
30
NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. Op. cit. 2012. p. 127.
31
NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. Op. cit. p. 110.
32
GABARDO, Emerson. O princípio da eficiência. In: NUNES JR., Vidal S.; ZOCKUN, Maurício;
ZOCKUN, Carolina Z.; FREIRE, André L. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. (Coords. de Tomo). Tomo:
Direito Administrativo e Constitucional. SP: PUCSP, 2017.

11
mínimo. A ideia de “PIB privado” ou então de “Estado subsidiário” como aquele que
deve apenas assegurar propriedade e liberdade é um anacronismo incompatível com uma
visão racional de gestão pública pautada em evidências. Não é sem razão que esta
perspectiva faz parte de um combo de ideias nonsense, temperado com forte
negacionismo científico. O resultado é uma atuação evidentemente incompetente, cujos
resultados efetivos têm colocado o país em sentido contrário ao da agenda econômica e
social mundial.
A invés do Brasil estar se preparando para os desafios da Sociedade 4.0 com o
fomento às novas tecnologias em prol do desenvolvimento,33 estamos retomando ideias
já abandonadas pelo percurso histórico da humanidade. Ao contrário do que tem sido
disseminado por governos recentes (notadamente no Brasil), a presença da intervenção
do Estado torna-se essencial, e ainda mais intensa, para reduzir desigualdades, inclusive
digitais,34 bem como promover a felicidade das pessoas em um ambiente adverso
caracterizado pela pobreza, pela insegurança social (e de dados pessoais), pela frustração
psicológica generalizada, pela polarização ideológica, e pela ampliação do poder de
controle das grandes corporações privadas tanto sobre a vontade individual quanto sobre
a gestão política das nações.
As transformações digitais e a era da robotização atingem brutalmente a valorização
do trabalho. Em certa medida, o ser humano perde sua importância frente ao capital – o
que caracteriza o hipercapitalismo. Por derradeiro, o investimento em educação e mesmo
em saúde não é a prioridade do mercado, haja vista a substituição dos trabalhados pelas
máquinas ou outros meios de produção em massa. Por outro lado, o cidadão passa não
somente a ser reduzido à figura de consumidor, como também se transforma no próprio
objeto de consumo – em que pese uma parte considerável do grupo de consumidores seja
totalmente dispensável seja numa posição, seja noutra.35 Nesse cenário, fora o mercado
financeiro, que outro mercado se abre para a geração substancial de lucro na
contemporaneidade?
Se o espaço público for um espaço para o mercado, é preciso entender dois fatores:
1) Quem vai prestar e explorar os serviços? 2) O que comporta esse mercado? Isso porque,

33
REIS, Camille Lima; CARVALHO, Fábio Lins de Lessa. O fomento às novas tecnologias na
Administração Pública como direito ao desenvolvimento. International Journal of Digital Law, Belo
Horizonte, ano 1, n. 3, p. 11-28, set./dez. 2020.
34
SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; SOUSA, Thanderson
Pereira de. Administração Pública digital e a problemática da desigualdade no acesso à tecnologia.
International Journal of Digital Law, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 97-116, maio/ago. 2020.
35
HABERMAS, Jürgen. Na esteira da Tecnocracia. São Paulo: Unesp, 2014. p. 187.

12
se a subsidiariedade leva ao protagonismo da atuação nesses espaços para outras
entidades que não o Estado, de quem se está falando? De quais serviços e de quais
prestadores? Trata-se de uma questão de meio ou de fim? Eis que, para enfrentar a
resposta da primeira indagação, recorre-se aos defensores da subsidiariedade para olhar
o papel atribuído à sociedade social civil, mas é necessário lembrar-se de que a proposta
é pensar texto e contexto.

3. Subsidiariedade do Estado e protagonismo da sociedade civil: qual sociedade civil


no velho debate entre “o bem e o mal”?

O modelo de Estado Democrático de Direito, com a Constituição de 1988,


enquanto opção política e jurídica da sociedade, tem como principal compromisso a
realização dos direitos fundamentais a fim de diminuir as desigualdades sociais em prol
da realização da justiça social e tem como principal característica a existência de limites
legais ao exercício do poder. Não há noção de desenvolvimento que possa estar
desconectada do cumprimento dos objetivos sociais.36 Dessa forma, a limitação e
vinculação à lei e a normatividade constitucional seriam suas marcas na modernidade,
além do entendimento de que direitos sociais devem ser reconhecidos pelo Estado da
mesma forma que os demais direitos fundamentais.37
Um legado da modernidade e do Estado de Direito foi a dicotomia entre a esfera
pública e a privada, em um primeiro momento excluindo a competência da esfera privada
para a tomada de decisão política e jurídica, resultando na formação de uma sociedade
civil em oposição ao Estado e não como compartilhamento de responsabilidades.38 Uma
esfera social não regulada pelo Estado, em um primeiro momento, com interesses restritos
a questões de experiências sociais, liberdade de expressão, sociabilidade, troca de
informações, autonomia negocial, entre outros. Mesmo nessas relações privadas, não
livres de conflitos, o Estado guardava um papel de resolução e mediação. Com o passar
do tempo, diminuíram-se as distâncias, e Estado e sociedade civil passaram a vivenciar
uma aproximação; por isso, não é possível entender a ideia de sociedade civil sem

36
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da
Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
37
HACHEM, Daniel Wunder. São os direitos sociais “direitos públicos subjetivos”? Mitos e confusões na
teoria dos direitos fundamentais. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito
(RECHTD), São Leopoldo, v. 11, n. 3, p. 404-436, set./dez. 2019.
38
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do Texto,
1992. p.179.

13
compreender a do próprio Estado, pois ambos se definem mais pela sua relação do que
de forma unilateral. Daí o papel fundamental do Direito, que vai atuar como um médium
dessa relação entre Estado e sociedade civil,39 com o intuito de realizar a difícil tarefa de
dar legitimidade ao poder político, justificando assim a própria legitimidade do Estado de
Direito perante a sociedade.
Conceitualmente, a sociedade civil pode ser caracterizada como uma organização
não estatal, que possui pautas sociais e de interesses coletivos. Busca ser organizada e
crítica em relação a suas demandas, podendo estar em constante tensionamento umas com
as outras, mas frequentemente com o próprio Estado.40 Ainda é uma força propulsora na
inserção de pautas Estatais, compondo-se de movimentos, organizações e associações que
recolhem demandas e as transmitem à esfera política.41
Os espaços de atuação da sociedade civil pressupõem a existência de uma gestão
compartida, a qual se destaca justamente pela busca da racionalidade comunicativa, pela
amplitude dos espaços de decisão democrática, e sujeição ao controle social, no qual o
cidadão, mais do que ser um simples legitimador do processo de tomada de decisão, passa
a ser o próprio gestor e destinatário das políticas públicas. Logo, sai de sua posição de
inércia e, mais do que destinatário dos atos Estatais, é copartícipe deles. Evita-se, assim
uma gestão pública não-compartihada que, segundo Janriê Reck, é aquela cuja
racionalidade instrumental seria o paradigma dominante, o interesse público seria abstrato
e a priori, e a sociedade civil serviria apenas para pressão sobre a administração. O
cidadão seria, então, entendido como cliente das políticas públicas.42
A sociedade civil, na concepção da institucionalização da cultura, da religião e da
ciência, existe no contexto de diversificação das ações coletivas, muitas vezes
contraditórias. Ademais, na atualidade, a definição de sociedade civil implica pensar em
uma perspectiva teórica que tradicional e comumente divide aquilo que é público daquilo
que é privado. Uma forma para aprofundar essa discussão é refletir sobre o público e o
privado em debate na ágora, como se refere Zygmunt Bauman:

39
HABERMAS, Jürgen. Op. cit. p. 194.
40
KEANE, John. A sociedade civil: velhas imagens e novas visões. Trad. Mara José Figueiredo. Lisboa:
Temas e Debates, 2001.
41
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 99
42
RECK, Janriê. Aspectos teórico-constitutivos de uma Gestão Pública compartida: o uso da
proposição habermasiana da ação comunicativa na definição e execução compartilhada do interesse
público. Dissertação de mestrado. Santa Cruz do Sul, Unisc, 2006. Disponível em
<http://www.unisc.br/portal/images/stories/mestrado/direito/dissertacoes/2006/janrie.pdf>. Acesso em: 20
nov. 2019.

14
O público e o privado se encontram na ágora como o guia e o guiado,
respectivamente. O público era o sujeito primordial da ação e o privado, o
objeto dessa ação [...]. Quanto ao poder público parece cada vez mais terra de
ninguém. O campo de batalha foi praticamente abandonado a mercê de
qualquer aventureiro que queira invadi-lo.43

A Ágora, para Bauman, como o espaço da política e da conformação dos bens


públicos, poderia ser a solução para o rompimento das barreiras que separam o público e
o privado enquanto um espaço de construção da sociabilidade e reconstrução dos
interesses coletivos. O individualismo (ou superindividualismo) movido pelos preceitos
neoliberais adoece o sujeito enquanto indivíduo e enquanto coletividade e precisa ser
combatido.44 Todavia, deve ser mantido o entendimento da sociedade civil como uma
esfera autônoma, ou seja, ao lado do Estado, mas que com ele não se confunde. Assim,
mantem-se capaz de configurar uma área de manifestações culturais e políticas de óbvia
natureza intersubjetiva e plural que reforça a capacidade das instituições estatais.45
No caso brasileiro, o termo sociedade civil ganhou espaço a partir do final da década
de 1970,46 coincidindo com a oposição ao governo da ditadura militar. Nesse contexto, o
Estado (no caso o militar) é visto como algo ruim e a sociedade civil, que nasce como sua
oposição, é associada àquilo que é positivo. Assim, formam-se as imagens do mal e do
bem. Todavia, no caso brasileiro, a despeito da existência de uma visão positiva do Estado
no período ditatorial, há um movimento explícito de apoio do povo à ditadura, que até

43
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001. p. 103.
44
Habermas encontra o conceito de individuação por meio da socialização, conceito no qual se ampara o
sentido da expressão individualidade que, em seu entendimento, só é possível quando os sujeitos, dotados
de razão situada, percebem-se como capazes de discurso e ação, dispostos assim a se justificarem perante
terceiros como insubstituíveis por serem cada qual singulares. Por conseguinte, a individuação, sendo um
processo que se dá por meio da socialização, portanto, gerada a partir da interação comunicativa, demanda
a reconstrução do modelo de indivíduo da filosofia da consciência e sua adequação ao paradigma da
filosofia da linguagem. EISENBERG, José. A democracia depois do liberalismo: ensaios sobre ética,
direito e política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
45
GABARDO, Emerson. Interesse Público e subsidiariedade. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
46
Esse processo de reconhecimento da sociedade civil no caso brasileiro não pode ser desconectado de um
processo de mudanças paradigmáticas ocorridas na sociedade em geral, apesar de que, no caso brasileiro,
os processos de mudanças costumam ser mais retardados e a isso Castells atribui três razões principais:
“Um novo mundo está tomando forma neste fim de milênio. Originou-se mais ou menos no fim dos anos
60 e meados da década de 70 na coincidência histórica de três processos independentes: revolução da
tecnologia da informação; crise econômica do capitalismo e do estatismo e a consequente reestruturação de
ambos; e apogeu de movimentos sociais culturais, tais como libertarismo, direitos humanos, feminismo e
ambientalismo. A interação entre esses processos e as reações por eles desencadeadas fizeram surgir uma
nova estrutura social dominante, a sociedade em rede; uma nova economia, a economia
informacional/global; e uma nova cultura, a cultura da virtualidade real. A lógica inserida nessa economia,
nessa sociedade e nessa cultura está subjacente à ação e às instituições sociais em um mundo
interdependente”. CASTELLS, Manuel. Fim de milênio. Trad. Klauss Brandini Gerhardt e Roneide
Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 412.

15
hoje mantém muitos simpatizantes e tolerantes aos governos militares, justificando-os
como algo necessário; eis uma das razões pelas quais a ditadura brasileira manteve a
aparência de normalidade em alguns aspectos, como a estrutura do parlamento,47 ou
mesmo a permanência da validade de uma Constituição “formal”, deixando para os atos
de exceção as grandes impactações interventivas na vida social.
A visão dicotômica – como algo do bem e do mal – acerca do Estado ditatorial no
Brasil revela também outras tensões. Uma delas – e a que interessa no âmbito desta
pesquisa – relaciona-se à existência de conflitos de classe. Para Alain Touraine, os
conflitos de classe seriam um verdadeiro “fermento da ação social”, mas, no caso da
América Latina, chama atenção para o que ocorre nesses movimentos sociais. Segundo
ele, em face do nacional-populismo, as figuras de Estado, sociedade e sistema político
estão muito próximas, ou mesmo misturadas.48 Nesse sentido, José Murilo de Carvalho
explica que o conceito de cidadania ressignificado com a Constituição de 1988 merece
uma abordagem mais complexa, especialmente porque o exercício de determinados
direitos não implica necessariamente o exercício de outros, daí a necessidade de uma
ampla análise sobre seus conteúdos e níveis de concretização. A própria diferenciação
nos sistemas modernos exige também que se tracem linhas de diferenciação das funções
do Estado.
Alerta o autor que, em certa medida, há um entusiasmo ingênuo da conquista da
Constituição de 1988 no aspecto da cidadania, afinal, a crença na democracia ou na
participação popular através do voto, evidentemente, não seria garantia de acesso aos
serviços fundamentais, proteção e garantia das liberdades, e, menos ainda, de justiça
social e desenvolvimento nacional. Se, por um lado, a conquista da participação política
teve ampla receptividade, seja pela universalização do voto, representação sindical e
resguardo ao âmbito da liberdade de manifestação do pensamento, por outro, tantas outras
áreas não lograram o mesmo êxito. Muitos dos problemas se mantiveram, especialmente
no tocante aos direitos sociais, como habitação, segurança, saneamento básico, saúde e
educação, e o confronto a estes problemas caminhava em outra velocidade.49
Tal fator foi impactante no desgaste do próprio sistema da política representativa,
pois a distância entre a Constituição jurídica e a Constituição real coloca em xeque as

47
GABARDO, Emerson. O jardim e a Praça para além do bem e do mal: ... Op. cit. p.72.
48
TOURAINE, Alain. Como sair do liberalismo. Trad. Maria Leonor Loureiro. São Paulo: EDUSC,
1999.
49
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. p. 7-8.

16
promessas de uma cidadania plena. Além disso, ficou cada vez mais latente a ideia de que
a democracia por si só não seria suficiente para o enfretamento das desigualdades sociais,
resultando em um abalo das próprias instituições democráticas, que acabam por perder
força ou mesmo legitimidade.
Após toda a euforia do processo democrático e da cidadania de 1988, as sucessivas
promessas não cumpridas, a crise no sistema de representatividade, os escândalos de
corrupção e o descompasso das diferentes conquistas de caráter político e social
ocasionaram uma crescente insatisfação com o sistema e a busca por respostas rápidas e
mágicas; respostas que costumam ser contrárias à própria democracia e às instituições.
Tudo isso leva a uma aposta em figuras mitológicas e messiânicas capazes de salvar
diretamente as pessoas, ou então, a democracia e a cidadania; valores, que, ao contrário,
começam a ruir por dentro, mantendo sua forma e esvaziando seu conteúdo, dando espaço
e margem aos extremismos. A pauta é das reformas, sem amadurecimento e sem um plano
sobre aonde se quer chegar e quais os caminhos possíveis para levar ou conduzir os
cidadãos.50
Como uma possível resposta às desconfianças causadas pelo desgastes das
instituições, surge a aposta na sociedade civil, nas parceiras em que o poder público atua
mais como fiscalizador do que prestador. No entanto, no caso brasileiro, essas
aproximações são eivadas de vícios paternalistas e clientelistas, não pensadas em uma
ideia de cidadania civil e social. O caminho considera aspectos ideológicos de que o
privado faz bem e o Estado faz mal, assim criando um espaço muito distante entre o
jardim e a praça.51
Chega-se a uma difícil constatação, a de que se formam cidadãos consumidores
(cada vez mais ensimesmados) e não cidadãos livres (politicamente ativos). Ademais, a
demanda pós-moderna por maior pluralidade e diversidade das estratificações sociais não
foi realizada. Em geral, as pessoas passaram a comprar os mesmos sonhos de consumo e,
dessa forma, o silêncio das lutas políticas na arena pública tende a permanecer. Trocam-
se direitos por bens, ou sequer compreende-se a diferença. Aquela ideia de seguir em uma
direção qualitativa da vida, com acesso à cultura e diversificação, vem sendo substituída
por uma direção quantitativa, homogeneizadora nas formas (e paradoxalmente
segregadora nas questões de conteúdo). Vive-se a espera de um milagre, concebendo a
democracia como um vetor da corrupção e constante inimiga, nutrindo paixões pelas

50
ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
51
CARVALHO, Laura. Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020. p. 64.

17
obscuridades, pelo desconhecido e pelas apostas na sorte e não nas estatísticas e
probabilidades. Nesse contexto, vê-se o futuro repetir o passado em mais uma de suas
versões autoritárias, irracionalistas e polarizadoras.

4. A recusa ao princípio da subsidiariedade: velhas razões e novos contextos

Agora a investida é de produzir possíveis respostas às demais indagações


apresentadas ao final do primeiro tópico desse estudo: quando se fala em subsidiariedade,
além de identificar o protagonismo de quem age, qual o seu objeto? O que comporta esse
mercado? A quais serviços se refere? Trata-se de uma questão de meio ou de fim? As
medidas de austeridade que têm sido a grande bandeira do governo federal atual são o
único caminho possível para a retomada da economia e recuperação do emprego e
acessibilidade e bens e serviços públicos? As respostas a essas questões retratam um
verdadeiro embate entre as concepções republicanistas e as concepções liberais.52
Em defesa das concepções republicanas que consideram a dimensão política como
uma dimensão social do viver bem, razão pela qual toda liberdade deve também estar
atrelada à ideia de igualdade, pressupõe um protagonismo do cidadão e do Estado. Já a
concepção liberal (particularmente neoliberal) compreende como opressão histórica a
atuação do Estado frente à sociedade civil, apostando na valorização das virtudes do
mercado e num projeto de minimização do aparato estatal, visualizando na sociedade civil
e no mercado o espaço do progresso, da liberdade e da eficiência. Segundo a distinção de
Marcelo Cattoni, “os republicanos darão prioridade à autonomia pública em detrimento
da privada e os liberais darão prioridade à autonomia privada em detrimento da
pública”.53 Essa disputa de narrativas vai conduzir à resposta do “mais” ou “menos”
Estado no enfretamento das crises sociais, econômicas e democráticas, vai determinar o
tamanho e o papel do Estado na prestação dos serviços públicos e no combate à
desigualdade social. Ademais, determina qual será o espaço das políticas públicas nesse
cenário que diz ressignificar, mas que, na verdade, traz o velho debate do Estado “mal” e

52
Sobre as concepções liberais, ver: BORGES, Eduardo Araújo; MARIN, Bruna. Liberalismo, justiça e
felicidade. In: SALGADO, Eneida Desiree; GABARDO, Emerson. Direito, felicidade e justiça. Belo
Horizonte: Fórum, 2014, p. 37-70. Já sobre as concepções republicanistas, ver: LOPES, Ana Paula Veiga;
VALIATI, Thiago Priess. O republicanismo entre felicidade e justiça. In: SALGADO, Eneida Desiree;
GABARDO, Emerson. Direito, felicidade e justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 219-250.
53
OLIVEIRA, M. A. C. Republicanismo e liberalismo: da relação entre constitucionalismo e democracia
no marco das tradições do pensamento político moderno. Virtuajus, v. 2, n. 2, p. 1-45, dez. 2003. Disponível
em: http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/ano2_2/Republicanismo%20e%20Liberali smo.pdf Acesso em:
17 jan. 2021.

18
do privado (representado na sociedade civil e mercado) como “bom”.54 Mais uma vez
entre o jardim e a praça o fetiche da meritocracia poderá ser o fio condutor da organização
da vida em sociedade.55
O “mito” da subsidiariedade e sua relação com o desenvolvimento referido ao caso
56
brasileiro realiza um importante papel no imaginário social: I) o Estado (e,
particularmente, o Estado Social) é posto como inimigo da sociedade, então torna-se
preciso combater a ineficiência das instituições, que cada vez mais caminham rumo ao
descrédito, propiciando o abandono do interesse público como valor; II) é promovida a
ideia de que Estado é um burocrata que atrasa o processo de avanço econômico da
sociedade, enquanto o mercado é eficiente e produz soluções de forma mais rápida; III)
fomenta-se a visão do Estado como um organismo corrupto desde sua origem e, assim,
as pautas localizam-se no combate à corrupção, mas muitas vezes um combate seletivo
(a sonegação de impostos, a isenção a grandes empresas e as ilegalidades cometidas pelas
operações anticorrupção, por exemplo, não são vistas pelo senso comum como
corrupção); IV) valoriza-se a terceirização das relações de trabalho,57 inclusive no setor
público, o que também contribui para o processo de apatia social, uma vez que as
condições de trabalho estão longe de ser garantidoras da felicidade enquanto objetivo do
Estado e da dignidade enquanto condição fundamental.

54
Jesse Souza alerta ser uma verdadeira falsa oposição entre mercado e Estado, e essa demonização do
Estado interessa à boa parte das elites. SOUZA, Jesse. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de
Janeiro: Leya, 2017.
55
SANDEL, Michael J. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Trad. Bhuvi Libano.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
56
Na análise da relação entre subsidiariedade e desenvolvimento, podem-se colocar em pauta duas questões
aparentemente distintas, mas que possuem o mesmo objeto: a manutenção do desenvolvimento e a
conquista do desenvolvimento (como processo acabado). A implementação de um critério de
subsidiariedade seria a melhor forma das organizações políticas estabelecerem as competências político-
jurídicas que lhe cabem, considerando estes dois objetivos? Tal critério é capaz de promover o visado
afastamento das condições de desequilíbrio social, instabilidade política, comprometimento da democracia
e má distribuição de renda, que são típicos do subdesenvolvimento? A resposta indica ser negativa. É
necessário ser efetuada uma intervenção estatal perene e programada. Particularmente no Brasil esta é,
inclusive, uma exigência do art. 174 da Constituição Federal. Aquele que alguns autores denominam de
“princípio do desenvolvimento”, mas que talvez deva ser mais bem entabulado como um “direito ao
desenvolvimento”, que se justifica plenamente apenas quando se tem em vista que se trata de um meio apto
à consecução de um objetivo maior: a felicidade. GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento
teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista Digital de Direito Administrativo. v. 5, n. 1,
2018, p. 99-141.
57
Para Carolina Zancaner Zockun, tal situação desconfigura de certa forma o Estado Social caraterístico
por sua proteção trabalhista, que se vê erodido pelo fenômeno da terceirização, que, embora de fato possa
contribuir para redução de custos ou para tornar os custos fixos em variados, certamente contribui para a
redução de qualidade de vida do trabalhador. ZOCKUN, Caroline Zancaner. Da terceirização na
administração pública. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 30.

19
Dificilmente alguém seria contra a formação de parcerias com a sociedade civil,
desde que se esteja tratando, efetivamente, de uma ação comunitária eficiente em prol da
concretização do interesse público. Mas o que não pode ser admitido é a formatação de
organizações e corporações repletas de interesses privados e mercadológicos, travestidas
sob o manto de não lucratividade, sejam elas ONGs (Organizações não-governamentais),
OSCIPS (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), OSs (Organizações
Sociais) ou OSCs (Organizações da Sociedade Civil). O que parece inadequado é que a
suposta eficiência dessas configurações tem muitas vezes que ser legitimada pelo
abandono do regime jurídico de Direito público. E isso é um problema, especialmente
porque, quando se trata de administração pública, certamente os meios são tão importante
quanto os fins. Ademais, se houver lucratividade nas parcerias, tende a pertencer ao
parceiro privado; mas, se houver prejuízo, tende a ser chamado o Estado para arcar com
as consequências, haja vista ser dele o compromisso constitucional de concretização dos
direitos sociais após 1988.
Uma reversão do atual quadro de cisão entre público e privado, de Estado de um
lado e sociedade civil de outro, passa pelo verdadeiro “espírito de cidadania”. Este, além
de não se abster de superar as características do homem pós-moderno, implica uma
sociedade civil capaz de realizar manifestações de natureza intersubjetiva e plural.58
Infelizmente, o cenário não é otimista:

No pior cenário possível, encontram-se prognósticos como: tanto nos serviços


públicos liberalizados, como nos serviços terceirizados, transferidos a ONGs
ou pagos mediante vouchers, há uma evidente fuga do Direito Administrativo,
a remuneração poderá ultrapassar o teto, parentes poderão ser contratados,
perseguições ideológicas internas poderão ser empreendidas, favorecimentos
na escolha dos fornecedores serão liberadas. Enfim, todas as travas decorrentes
da moralidade, do mérito e da igualdade – o Direito Administrativo é
construído em torno delas – estão ruindo. A queda pode-se consolidar ou não.
De todo modo, a privatização em sentido amplo se distancia tanto em extensão
como em intensidade de aplicação do Direito Administrativo. A configuração
desse cenário futuro, no campo jurídico-social, permite apontar,
resumidamente, três ideias principais: novos mercados estão escassos, sendo
que o fim dos freios morais permite a abertura mercadológica para o que até
então era regido pelo interesse público; Serviços de alguma forma transferidos
a privados possuem a garantia de pagamento via tributos ou se transformam
em atividades liberalizadas com preços elásticos; As atividades antes regradas
por normas de moralidade administrativa deixam de sê-lo: favoritismos,
ineficiências, perseguições de toda ordem agora estão fora do Direito
Administrativo, porém sustentadas por recursos públicos.59

58
GABARDO, Emerson. O jardim e a Praça para além do bem e do mal: ... Op. cit. p. 60.
59
RECK, Janriê Rodrigues; BITENCOURT, Caroline Müller. Direito Administrativo e o diagnóstico de
seu tempo no Brasil. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano
19, n. 75, p. 241-264, jan./mar. 2019. p. 248-249.

20
Também não estão sendo ignoradas as diferentes conotações atribuídas à ordem
econômica no desenho do art. 173 da CF, ou da lógica imposta pelo seu art. 175,
especialmente quando conectado com serviços públicos essenciais que serão
redimensionados na ordem social da Constituição de 1988. Mas por qual razão o Estado,
em termos de desenvolvimento, tomado aqui muito além da dimensão econômica, deveria
ser visto sob a óptica da subsidiariedade em termos de compromisso constitucional após
1988? Por que a exploração de bens e de produtos estratégicos não poderia ser uma forma
de coordenação e geração de renda com intuito de propiciar maior equilíbrio social através
do investimento em políticas públicas? A situação é ainda mais complexa quando se pensa
em acessibilidade a serviços públicos como saúde, educação e saneamento básico. Será
relegado ao Estado apenas aquilo em que não houver interesse de exploração por parte
do mercado? E quando o Estado, atuando nesses setores, não for superavitário, será ele
ineficiente?
No cenário caótico após pandemia ressurgir, revigorar e normatizar o “mito” da
subsidiariedade como forma de enfrentamento dos problemas sociais, políticos e
econômicos é mais uma vez valer-se do populismo e do discurso “antissistema” para
eximir-se das necessárias respostas estruturais e institucionais a respeito da maior crise
vivenciada até então no século XXI. É uma resposta ultrapassada que não se reflete nos
planos de reconstrução dos Estados.60 No caso europeu já se fala em um segundo plano
Marshall. Tanto no processo de industrialização brasileira ocorrido em um cenário
autoritário, que chega ao poder através de um golpe do Estado, em 1964, quanto no final
da década de 1990, em plena reforma gerencial,61 tal resposta dada pelo mito da

60
Não se está defendendo que o Estado acabará com as desigualdades ou será o provedor da justiça social,
longe disse, o Estado tanto por vezes as cria e mesmo as reproduz. Contudo: “Na contemporaneidade é
difícil imaginar outro agente político e econômico poderoso o suficiente para interferir e controlar as
mazelas humanas sociais (como a pobreza e a marginalização), morais (como o preconceito e a
discriminação) e naturais (como a destruição do meio ambiente); por enquanto, o Estado (ou organizações
análogas, como a União Europeia) é o único ente capaz de assumir este papel sob o ponto de vista
institucional; e mesmo assim de forma precária”. KERSTENETZKY, Celia Lessa. O estado do bem-
estar social na idade da razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2012. p. 59.
61
(...) estruturação tardia do sistema de proteção social no Brasil ocorreu justamente quando o welfare state
entrava em crise na Europa. Fato que atuou fortemente para aumentar as pressões políticas que sempre
existiram, mesmo nesse período, contra o aumento do gasto público na área social e em favor da
subordinação do orçamento social às diretrizes da política de estabilização macroeconômica adotada pelo
governo federal. Nesse sentido, nos anos de 1990, o discurso sobre a necessidade de enxugamento e
modernização do Estado chegou com força ao cenário nacional e a reforma neoliberal desse período teve
implicações em várias áreas, inclusive nas políticas sociais, reduzindo o seu potencial enquanto instrumento
de integração social no âmbito do capitalismo subsidiário ou periférico brasileiro. Em vista disso, a maioria
dos avanços conquistados com a Carta de 1988 foram esvaziados sistematicamente no contexto imediato

21
subsidiariedade já não era satisfatória. O desenvolvimento de empresas e a
competitividade de mercado foram conquistas realizadas às custas de fortíssimos
investimentos estatais cujo retorno nem sempre foi considerado.62
Ainda lembrando a leitura do contexto, o governo eleito em 2018 manteve uma
agenda reformista baseada no desburocratizar, desvincular e desanexar, apostando nas
medidas de austeridade para alavancar o desenvolvimento econômico. Com isso contou
como base de apoio o empresariado nacional. Na verdade, as medidas adotadas não
trouxeram os resultados esperados. Deslegalizar direitos, promover retrocesso sociais,
defender um regime fiscal asfixiante, aumentar a carga tributária indireta que reflete nos
menos abonados, desestabilizar a assistência e a previdência sociais são medidas
geradoras de fortes externalidades negativas. Qualquer benefício de curto prazo acaba por
ser engolido pelos prejuízos sistêmicos de largo período. E a situação fica ainda pior, se
nem mesmo os benefícios de curto prazo são realizados. Tradicionalmente, a conquista
efetiva de dignidade e bem-estar somente foram conquistados pelas nações cujo modelo
político implicava a forte intervenção do estado na redução das desigualdades.63
Desestimular o papel do Estado na sua função de promoção da economia e dos direitos
sociais e encolher-se diante de outras frentes, como o combate à sonegação fiscal, as
isenções indevidas, buscando fomentar a “liberdade de mercado” é uma fórmula que já
se demonstrou historicamente fracassada.
Diante da crise, o tema da responsabilidade fiscal, ou da segurança fiscal deve
ocupar o cenário onde a responsabilidade social aparece como a única saída possível.
Célia Lessa há muito tempo combate os economistas defensores do Estado liberal, que
compreendem o aumento de despesa, especialmente com o gasto social é prejudicial à

que se segue a ela. Nesse contexto, cresce a legitimidade de uma base política que defendia um modelo de
proteção social baseado numa ideia de cidadania fragmentada e fundamentado na focalização. De outro
modo, a metamorfose neoliberal do Estado implicou numa forte regressão em relação aos direitos sociais
que a Carta de 1988 havia ampliado de forma significativa e no avanço da mercantilização dos programas
sociais. BARRA E LOPE, Edmar Aparecido de. Sistema de Proteção Social no Governo Lula (2003-2010):
Mudança ou Continuidade no Padrão de Intervenção do Estado na Sociedade? Mediações - Revista de
Ciências Sociais. v. 24, n. 1, jan./abr. p. 154-180, 2019.
62
Para Eduardo Moreira, é uma grande falácia dizer que o Estado deve estimular a iniciativa privada, sua
natureza é em si desejar crescer sem limites. O papel do Estado deveria ser exatamente outro, o de colocar
freios , limites e fazer direcionamentos que interessem a coletividade. Sobre o papel do Estado ver a obra
de MOREIRA, Eduardo. Economia do desejo: a farsa da tese neoliberal. 4. ed. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2020.
63
DRAIBE, Sônia M. O welfare state no Brasil: características e perspectivas. Cadernos de Pesquisa,
Campinas, n. 8, p. 57-60, 1993. BARRA E LOPE, Edmar Aparecido de. Sistema de Proteção Social no
Governo Lula (2003-2010): Op. cit.

22
economia e ao seu desenvolvimento,64 uma vez que, para esses, isso reduziria
competitividade das empresas, a procura pelo trabalho, tornando-se parasitas dessa opção
de assistencialismo. Sua obra demostra exatamente o oposto, a de que essa forma de
Estado “promove o desenvolvimento econômico a partir do momento em que
trabalhadores mais bem alimentados, educados e protegidos contra os problemas de saúde
e o desemprego são mais produtivos”. As sociedades capitalistas social-democráticas, que
constroem estados do bem-estar social, são menos desiguais e mais solidárias que as
sociedades meramente liberais:

A intervenção pública via provisão de serviços sociais financiada


progressivamente e via ampliação do acesso ao crédito se justificaria assim por
promover eficiência, crescimento e desenvolvimento econômico. Em outras
palavras, ao favorecer a desconcentração da riqueza, a intervenção pública
contribuiria para viabilizar a participação nos mercados e em igualdade de
condições de grupos em desvantagem que então veriam seus valiosos projetos
produtivos finalmente realizados.65

Mais além vai o pensamento da economista Mariana Mazzucato, que, em sua obra
o “Estado Empreendedor”, dedica-se a confrontar numericamente o Estado como um ente
burocrático improdutivo e ineficiente, defendendo a tese de que deve o Estado ter um
papel protagonista no desenvolvimento, muito além de receber a incumbência de mero
coadjuvante para minimizar os impactos negativos do mercado. Sua obra apresenta como,
nos setores tecnológicos, de inovação e pesquisa, vários dos grandes desenvolvimentos
foram propiciados com financiamentos e apoios estatais, além de se manter na ponta da

64
Cabe uma breve observação sobre a crise econômica sueca do início dos anos 1990, a qual se manifestou
sob a forma de um aumento significativo do desemprego por muitos atribuído a incentivos adversos criados
pelo estado do bem-estar. A afirmação é controversa: em primeiro lugar, porque, se há evidência de uma
relação positiva entre as generosas licenças por doença e o desemprego, a gradual expansão da provisão
pública de creches aumentou a participação feminina no emprego; em segundo lugar, porque escolhas de
política econômica jogaram um papel adverso importante com a decisão governamental de atar a moeda
sueca à unidade monetária europeia (o ECU) e se pôr à mercê da política contracionista do Banco Central
Alemão. Contudo, a partir de meados dos anos 1990, e com o abandono dessa política, a situação havia
melhorado e o desemprego havia caído de 7,5% em 1995 para 5% em 2002, enquanto o PIB real per capita
havia crescido em sete anos o equivalente ao que havia crescido nas duas décadas entre 1975 e 1995. A
despeito de reformas nas políticas sociais que nos anos 1990 reduziram taxas de reposição e critérios de
elegibilidade, essas reduções foram pequenas, e o estado do bem-estar sueco seguiu nos anos 2000 como
um dos mais generosos do mundo, acomodando, ao lado de um dos maiores PIB per capita e uma das
maiores taxas de emprego dentre os países desenvolvidos, os mais baixos índices de desigualdade e
pobreza. Nota-se, em suma, no modelo ideal sueco e em sua aplicação prática, o entremeio e a conciliação,
no seio das próprias políticas econômicas, de objetivos distributivos e de crescimento econômico. Em um
contraste com o Brasil e a Coreia em suas trajetórias desenvolvimentistas pretéritas, esse modelo impôs à
política econômica uma condicionalidade social que limitou sua autonomia e minimizou os efeitos
secundários indesejáveis do processo acelerado de modernização econômica praticado pelas
industrializações tardias. KERSTENETZKY, Celia Lessa. O estado do bem-estar social na idade da
razão: Op. cit.
65
KERSTENETZKY, Celia Lessa. O estado do bem-estar social na idade da razão: Op. cit.

23
exploração e desenvolvimento de setores nos quais o próprio mercado não via relevância.
Na contramão do que os economistas do atual governo brasileiro têm defendido,
Mazzucato demonstra que há três pilares fundamentais para o crescimento e
desenvolvimento: a ideia de crescimento inteligente, a se dar a partir da inovação; a ideia
de crescimento sustentável, o que requer a noção de proteção ambiental; e a ideia de
crescimento inclusivo, no qual o centro é a diminuição das desigualdades sociais – e isso
é papel do Estado empreendedor.66
A obra de Irene Nohara e Alessandro Octaviani, acerca do papel das empresas
Estatais no Brasil e no mundo, demostra o quanto tais empresais são fundamentais no
desenvolvimento, podendo-se vincular o crescimento, como no caso brasileiro, à
utilização estratégica de estatais, como o BNDES, a Caixa Econômica Federal, a
Petrobrás, a Embrapa, entre outras. Além disso, pode-se valorizar as perspectivas locais
e regionais e focar em setores estratégicos, munidas por um regime jurídico em que não
apenas o fim é o que importante, mas também os meios utilizados para a produção de
resultados. A valorização dos setores produtivos, mão de obra nacional e incentivo ao
desenvolvimento sob a óptica da normatividade e compromissos sociais, jurídicos e
políticos da Constituição de 1988 estão presentes como grandes fatores para a impulsionar
a valorização dessas empresas.67 Na atual conjuntura é particularmente importante
rememorar a importância de entidades estatais como a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz
e o Instituto Butantan, que se demonstraram insubstituíveis por entidades privadas no
contexto da crise pandêmica do Covid-19.
É lamentável, todavia, que as iniciativas sejam isoladas, pois a política pública
governamental é avessa ao reconhecimento que tais entidades públicas merecem.
Ademais, em meio à pandemia, é missão do Estado orientar a política de desenvolvimento
produtivo e tecnológico, que também resultaria em resultados econômicos. Uma agenda
estatal (notadamente federal) poderia ter sido colocada em prática, articulando
Universidades, institutos de pesquisa, bancos de desenvolvimento e agências de fomento,
como uma forma de estimular as políticas de financiamento, compras públicas, geração
de empregos ajudando a aplacar as desigualdades sociais tão expostas e assentadas pela
incidência do vírus. É uma pena que a realidade seja de desarticulação e desprestígio
destas instituições. “O Brasil tem instrumentos para planejar e executar políticas
necessárias, mas vem desmontando nos últimos anos, e deixando de lado a necessidade

66
MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.
67
NOHARA, Irene; OCTAVIANI, Alessandro. São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2019.

24
de desenvolver uma estrutura produtiva diversificada e capaz de atender desafios do
século XXI”.68
Os desafios para o enfrentamento do tema são muito maiores do que o romantismo
de que a solução estaria no mercado e seus novos parceiros. Nessa perspectiva, Ladislau
Dowbor alerta que o mundo capitalista tem se transformado. O mundo está dominado por
altas corporações planetárias, sobre as quais nem o mercado tem controle, nem o Estado
tem o poder de regular. Além disso, evidencia-se a truculência do avanço das esferas
privadas sem freios do setor público. São entes altamente tecnológicos com objetivo de
apropriação a curto prazo e independentemente dos custos, seja no plano social ou
ambiental. Como evidentemente a sociedade não prospera neste ambiente, elites e grupos
minoritários radicais exigem culpados para destilar seu ódio e frustração. A privatização,
neste contexto, é vista como uma “tabua de salvação”.69 Obviamente trata-se de uma
tendência equivocada e que precisa ser combatida jurídica e politicamente.
As razões são objetivas para, no atual contexto, refutar-se a velha ideia da
subsidiariedade, especialmente porque calcada estrategicamente na mentalidade de que:
i) o estado ruim e a iniciativa privada boa; ii) o terceiro setor é uma forma de buscar uma
flexibilização do regime de Direito administrativo, havendo necessidade de abrir mão de
alguns espaços, a exemplo da inovação – para conseguir executar com mais eficiência
algumas tarefas; iii) a sociedade civil é uma forma de oposição ao Estado; iv) as parcerias
não se sujeitam à lógica de um regime forte de Direito público; v) não há grande
importância na programação e na objetividade quanto ao planejamento das parcerias a
médio e longo prazo; vi) os recursos destinados às entidades são obscuros, não
submetendo-se à transparência completa (notadamente sujeitando-se aos portais de
transparência); vii) a resistência por parte dos estados para maiores investimentos, sempre
mantendo o setor público como refém de grandes estruturas e corporações (insere-se
nesse contexto a tragédia de Brumadinho e de Mariana para reflexão); viii) a visualização
da concretização dos direitos sociais meramente como fator de mercado, em busca de
maior lucratividade.
As razões apresentadas não fogem daquelas elencadas pelo professor Bercovici: a)
se a subsidiariedade já fosse incorporada na lógica constitucional, não seria necessária
uma proposta de emenda para incluí-la expressamente como princípio no art. 37; b) nada

68
CARVALHO, Laura. Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020. p. 109.
69
DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: SESC, 2020.
p.168-169.

25
mais é do que a chancela da preponderância da atuação privada, servindo o Estado para
suprir as carências advindas dessa atuação; c) atuação estatal como exceção e não como
regra, retirando o protagonismo do Estado à luz dos compromissos constitucionais de
1988; d) mesmo para o administrativista do mercado, a subsidiariedade defendida era
essencialmente aquela da ordem econômica, a proposta do atual governo vai mais além,
pois é a concretização do Estado mínimo fundamentado nas teorias econômicas da escola
de Chicago, como a de Milton Friedman; e) é a gestão das demandas sociais via setor
privado por meio de vouchers ou cupons.70
E, pior que tudo isso, mais uma vez os meios deixam de importar na gestão da coisa
pública. Parece que o espaço para as negociatas, para os nichos eleitorais, para o privilégio
dos “amigos do rei” vem pregar um retorno ao patrimonialismo, à falácia da meritocracia,
além de romantizar o mercado e sua velha mão invisível, não tão invisível assim. Não é
sem razão que a subsidiariedade pode ser entendida como um mito na atribuição de um
papel ao Estado contemporâneo, principalmente no caso dos países em desenvolvimento,
como o Brasil.71

5. Considerações Finais

Se há divergentes perspectivas quanto ao paradigma do Estado Pós-Moderno, é


ponto praticamente pacífico na doutrina que a caracterização do modelo de Estado
Democrático de Direito, enquanto opção política e jurídica da sociedade, teria como
principal compromisso a realização dos direitos fundamentais. Ademais, tem como
principal característica a existência de limites legais ao exercício do poder – de qualquer
poder, pois a ideia de controle é ínsita ou mesmo anterior a sua própria existência, ou seja,
é também aquilo que o justifica. O embate é sempre relacionado sobre qual a melhor
forma de o Direito administrativo concretizar o interesse público, e assim se introduz a
discussão quanto aos responsáveis pela prestação do serviço, aos atores envolvidos e suas
respectivas responsabilizações. A limitação e vinculação à lei e a normatividade
constitucional seriam suas marcas, independente se o Estado prestaria diretamente ou não

70
BERCOVICI, Gilberto. Administração pública dos cupons. Conjur, set. de 2020. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-set-06/estado-economia-administracao-publica-cupons. Acesso em: 22
de dezembro de 2020.
71
GABARDO, Emerson. O papel do Estado e o mito da subsidiariedade. In: NOHARA, Irene Patrícia
(Coord.). Gestão Pública dos Entes Federativos: Desafios Jurídicos de Inovação e Desenvolvimento. São
Paulo: Clássica, 2013.

26
o serviço. Claro que tudo sob o aspecto teórico, pois sabe-se que a práxis não é tão simples
assim.
São notórios o desafio de maximizar o potencial redistributivo, o enfrentamento da
desigualdade e o potencial desenvolvimentista aliados a novos desafios tecnológicos no
mundo da inovação. Mas, se o desafio é novo, por que a antiga “solução” da
subsidiariedade para seu enfrentamento? A verdade é que a estratégia de desmoralização
do Estado tem sido mais eficaz que a defesa estrita da privatização, assim, através da ideia
de atuação da sociedade civil, encolhe-se o tamanho do Estado em nome do que vem na
linha de salvaguardar núcleos estratégicos para o desenvolvimento social, cidadania e
justiça social. Justamente os núcleos que, com a Constituição de 1988, justificariam os
compromissos do Estado com o tema das políticas públicas.
Normativa e politicamente, os compromissos firmados com a Constituição de 1988
colocam o Estado atuando na linha de frente na concretização dos direitos fundamentais
sociais, o que pressupõe o protagonismo tanto na prestação dos serviços quanto na
coordenação do desenvolvimento nacional. Mais do que nunca, a resposta para as crises
estatais passa pelo papel estratégico adotado pelos governos em consonância com a ordem
constitucional na tão necessária reconstrução do Estado social após crise. O Brasil não
pode e não deve estar na maré contrária às respostas internacionais, de revalorização do
desenvolvimento sustentável e do combate à desigualdade social. De resto, é apenas mito.

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