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Considerações iniciais
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LONER, Beatriz Ana. Negros: organização e luta em Pelotas. História em revista. Pelotas: UFPel, v.5, dezembro de
1999, p. 07-27.
8
ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Demografia escrava das charqueadas pelotenses. In: MAESTRI, Mario; ORTIZ, Helen
(org.). Grilhão negro: ensaios sobre a escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo,
2009, p. 247-269.
9
MAESTRI, Mario. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993.
10
ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. A produção charqueadora e a mão-de-obra servil. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau
(org.). História geral do Rio Grande do Sul: Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006, p. 189-202, p. 202.
11
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad, 2010, p. 111.
2
De ideias avançadas, foi em todo o Rio Grande do Sul um dos mais antigos batalhadores da
abolição da escravatura12. Bernardo Taveira Junior13 viveu cinquenta e seis anos dedicados ao
letramento, atuando como professor, poeta, cronista, folhetinista, teatrólogo e tradutor.Ele se insere
na história da cidade de Pelotas, em 1866, ao começar sua carreira de professor nos principais
colégios de ensino primário e secundário. Concomitante ao ofício de professor, Bernardo atuava
ativamente na imprensa local e regional como colaborador, escrevendo crônicas14, folhetins e
poemas. Por intermédio deste ofício, defendeu a Abolição dos escravos.
Em 1867, públicou um poema intitulado Liberdade destacando o intuito de batalhar pela
liberdade dos escravos: “troa em minha alma a voz da liberdade [...] embora eu veja o mundo
escravo sempre / na minha rude lyra hei de cantar-te / o’ doce liberdade!”15. Posteriormente,
Bernardo Taveira Junior publicou uma série de dez crônicas no jornal Diário de Pelotas intitulada
Emancipação servil. Nesta série, destaca que a emancipação era um passo grandioso para a
civilização e, por isso, dependeria de tempo para ser realizado. Apesar disso, a população deveria
unir esforços e protestar para conquistar a liberdade dos cativos. “O povo é quem sempre opera
grandes revoluções [...] do povo parte sempre a iniciativa das mais generosas ideias”16.
Bernardo Taveira Junior também destacou a relação do escravo como trabalhador, a partir
do sentimento que o cativo, como oprimido, nutre pelo seu opressor. Para ele, o escravo é
condenado a degradação, principalmente pelo castigo que sofre do capataz, produzido pelo abuso de
força e violência. Essa relação de oprimido/opressor provoca no escravo formas de resistência,
como fugas, assassinatos, furtos e “corpo mole”. Não há escravo, ainda o mais conformado com o
12
RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Bernardo Taveira Junior. Revista Província de São Pedro. Ed. Livraria do globo, n.
06, 1946, p. 78-94, p. 79.
13
Bernardo Taveira Junior nasceu em 1836 na cidade de Rio Grande, com dezoito anos foi estudar direito em São
Paulo, mas completou apenas os cursos de preparatórios. Com o agravo de seus problemas de saúde e com dificuldades
financeiras, Bernardo regressa a Província do Rio Grande do Sul. O escritor morreu em 19 de setembro de 1892, na
cidade de Pelotas, diagnosticado de diabetes. Segundo os periódicos da época, ele morreu paupérrimo.
14
As primeiras crônicas de Bernardo Taveira Junior datam da década de 70 do século XIX e encontram-se organizadas
no arquivo do escritor disponível no Arquivo Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense
15
ARCÁDIA, 1º série, 1867.
16
DIÁRIO DE PELOTAS, 10/05/1870.
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peso do cativeiro, que não tenha a sós consigo os seus ímpetos, os seus momentos de desespero e de
imprecação17.
“Dirão os escravocratas que o possuir escravos ainda é entre nós um direito de propriedade,
o qual deve ser respeitado. Mas esse tão apregoado direito não é, e nunca o foi, ante a lei natural;
não passa de um fenômeno social produzido pelo arbítrio da força e da violência”18. Bernardo
Taveira Junior argumentava em seus textos que apesar da escravidão ser uma herança de gerações
passadas, caberia à população protestar contra esse crime hereditário. Complementa que a educação
seria uma das soluções para o desaparecimento da escravidão, pois o povo saberia seus direitos para
reivindicar e seus deveres para cumprir.
Não obstante, destacamos que os textos de Bernardo Taveira Junior eram lidos por uma
minoria19 letrada e aristocrática, ou seja, provavelmente não concordariam com as manifestações do
autor, tendo em vista que a cidade dependia da escravidão para produzir o charque, movendo a
economia e a renda dos charqueadores. É possível relacionar essas críticas com uma passagem do
escritor:
Em Pelotas, ainda nenhuma voz ousará levantar-se em prol do miserando escravo? Tive coragem para isso, tive
mesmo a audacia de desafiar as ideias desses homens egoístas e emperrados, e de apresentar-me à descoberto
como aldo do que o estolido resentimento da ignorancia os levasse a praticar contra a minha pessoa. Apesar
das ameaçasinhas ridículas que indiretamente abalançarão-se à fazer-me nada surdiu. [...] Falarão muito,
gritarão ainda mais, tudo porém tem o seu termo: calarão-se à final, sem que se revolvessem a me fazer calar20.
Além disso, destacamos que as primeiras crônicas do escritor a favor da Abolição dos
escravos datam da década de 70 do século XIX e, como vimos anteriormente, a campanha pela
emancipação se alastrará no Brasil apenas na década de 80. Isso posto, aumenta a nossa hipótese
que o escritor tenha sofrido represálias, principalmente porque neste período, Pelotas contava com o
maior contigente de escravos da Província, logo uma voz que levanta-se a favor da liberação destes
trabalhadores não seria bem vista:
Bernardo Taveira Junior destacou-se na vida da Província pela luta que sempre manteve contra a escravatura.
Vivendo em Pelotas, centro de grande concentração de escravos, devido às charqueadas, o autor possuía uma
17
DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870.
18
A VOZ DO ESCRAVO, 15/02/1881.
19
Segundo Alberto Coelho da Cunha, em 1872, somando o 1º, 2º e 3º distrito de Pelotas, os leitores entre homens e
mulheres somavam 5.938. Em contrapartida, 15.320 pessoas não sabiam ler.
20
DIÁRIO DE PELOTAS, 15/10/1871.
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vivência bastante grande do problema da escravatura. Por sua posição contrária ao regime escravagista, muitas
foram as ameaças que sofreu, embora nunca tenha cessado de, através de seus poemas, lutar pela abolição21.
Em seus textos, Bernardo denunciava o atraso brasileiro em abolir a escravidão. Entre todas
as leis promulgadas22, ele destaca primeiramente a Lei do Ventre Livre como a mais marcante a
favor da luta contra a escravidão, considerando-a como um passo gigantesco a caminho da
civilização. Posteriormente, com o advento da década de 80, a luta contra a escravidão tomou conta
do país, mas em Pelotas a Abolição acirrou os ânimos e influenciou a cena política e social23:
Na verdade, o que ocorre é que a campanha pela Abolição levantava problemas diversos, de difícil resolução
numa cidade em que o motor do seu desenvolvimento econômico estava atrelado ao charque, o qual
necessitava de escravos para sua produção e ainda tinha o agravante de ter seu mercado de consumo também
condicionado pela escravidão, pois era comprado para alimentação de escravos24.
Por conseguinte, a Abolição dos escravos em Pelotas ocorreu em três fases distintas25. A
primeira refere-se a publicação do jornal A Voz do Escravo,em 1881. A segunda diz respeito a
publicação do jornal A Penna, em 1884. Por fim, a última fase contempla os anos finais da
escravidão antes da promulgação da Lei Áurea. Além disso, durante a década de 1880, surgiram
associações que dissemiram as ideias antiescravistas, como por exemplo o Clube Abolicionista
(1881) e Centro Abolicionista (1884).
O jornal A Voz do Escravo nasce de uma associação de três pessoas paradigmáticas: um
jornalista, João José Cezar; um literato e professor, Bernardo Taveira Jr. e um construtor negro
livre, Manoel Conceição da Silva Santos26. O jornal objetivava principiar a campanha abolicionista
em Pelotas:
Queremos ser o eco transmissor dos sentimentos desses nossos irmãos, que, lá em imundas senzalas esperam
em vão por uma voz que os console, e lhes mitigue as dores com o bálsamo da esperança. Não dirige a nossa
21
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do Sul 1868 a 1880. Porto
Alegre: Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1982, p. 57.
22
Em 1830 foi promulgada a lei Feijó que declarava livre todos os escravos que entrassem em território e nos portos
brasileiros. Contudo, o tráfico persistia e para combatê-lo foi promulgado, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós que
objetivava acabar com o tráfico. Posteriormente, em 1871, promulgou-se a Lei do Ventre Livre que declarava livre
todos os filhos de escravas nascidos no Brasil. Em 1885, promulgou-se a Lei dos Sexagenários que libertava os
escravos maiores de sessenta anos e, por fim, promulgou-se a Lei Áurea em 13 de maio de 1888 que abolia a escravidão
no Brasil.
23
LONER, Beatriz Ana. Abolicionismo e imprensa em Pelotas. Anais do II Congresso Internacional de Estudos
Históricos: Imprensa, história, literatura e informação. Rio Grande: Ed. da FURG, 2007, p. 57-64.
24
Ibidem, p. 58.
25
LONER, Beatriz Ana. Abolição. In: GILL, Lorena; LONER, Beatriz Ana; MAGALHÃES, Mario Osório (org.).
Dicionário de história de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2012, p. 08-09, p. 08
26
LONER, 2007, p. 59
5
pena a ambição, e teremos por bem empregados todos os nossos esforços quando puder os apresentar-nos
cheios de orgulho diante das demais nações e dizer-lhes: Hoje sim, o Brasil é verdadeiramente um país livre27.
27
A VOZ DO ESCRAVO, 16/01/1881, grifo original.
28
A Voz do Escravo foi acusado de tornar-se partidário devido ao apoio na campanha de Fernando Osório para o cargo
de deputado geral. Por causa das manifestações políticas constantes, o jornal deixou em segundo plano a campanha
abolicionista e foi muito criticado pela imprensa local devido a essa postura. A partir disso, A Voz do Escravo perdeu
seu principal redator – João José Cezar. Possivelmente, Bernardo Taveira Junior tenha deixado o periódico em
consequência de a campanha política ter tomado o lugar da abolicionista. Diante disso, após algumas publicações o
jornal deixa de circular.
29
A VOZ DO ESCRAVO, 15/02/1881.
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redações para o leitor ter um panorama das publicações, mantendo ainda, uma coluna intitulada
Questão Jerônimo, na qual apresentava as últimas novidades do caso. Segundo a testemunha
Geraldo Casal de Lis, em declaração para o jornal Onze de Junho, afirma:
No dia 21 do corrente, às 7 horas da manhã chegou a charqueada do Sr. Paulino Teixeira da Costa Leite, o Sr.
Antonio Teixeira da Costa Leite, num carro trazendo em sua companhia o crioulo Jerônimo com as mãos
manietadas. Descendo do carro o Sr. Antonio Leite, em frente ao tronco, ordenou ao capataz que mandasse
manea-lo de pés e mãos e tirar-lhe a camisa, começando o bárbaro e cruel suplício. Como porém o crioulo
Jerônimo não pudesse suportar o castigo, de pé, mandou amarrá-lo em uma tronqueira, com os braços
amarrados para cima, continuando o castigo. Achando-se fatigado um dos algozes, veio outro, e depois um
terceiro que foi quem finalizou o castigo. Quando principiou o terceiro algoz a castigar Jerônimo, já o pobre
infeliz não gemia. Estava moribundo30.
Geraldo Casal de Lis relatou a indiferença que Antonio Teixeira da Costa Leite apresentou
frente aos golpes sofridos por Jerônimo, mandando que continuassem a acertá-lo e castigá-lo. Logo
em seguida, quando o escravo estava quase morto, Antonio Leite ordenou que outros escravos
levassem Jerônimo para o tronco, deixando-o ali por horas. No dia posterior ao crime, Jerônimo
deixou o tronco e foi encaminhado para a senzala por ordem de Paulino Leite. A testemunha
descreveu que após algumas horas, Antonio Leite colocou o cativo no carro e trouxe-o para a
cidade, confirmando a sua morte.
Uma das primeiras críticas apresentadas na matéria do jornal A Voz do Escravo refere-se que
ao atestado de óbito expedido pelo médico da cidade. Segundo o médico, Jerônimo havia morrido
por tétano, posteriormente modificou o laudo e afirmou ser por peritonite. O jornal questiona se não
foram os próprios charqueadores que modificaram o atestado para fugirem da vinculação com o
caso. As discussões nos periódicos condenaram a postura do médico, tendo em vista, que para a
imprensa a causa da morte de Jerônimo era óbvia. Para responder a estes questionamentos e alguns
depoimentos, o corpo de Jerônimo foi exumado. Segundo o relato de Geraldo Casal de Lis, o corpo
apresentava sinais de retaliação e do castigo sofrido, sendo possível comprovar que o corpo era
mesmo do escravo e que havia morrido devido aos maus tratos em que foi submetido.
O jornal Correio Mercantil questionou o porquê da exumação, tornando-se o porta-voz dos
acusados, publicando artigos que visavam ludibriar os leitores: temos de um lado a opinião da
medicina legal, que deve inspirar toda a confiança, e do outro a maledicência em sociedade com a
especulação, inventando crimes, exercendo vinganças, que não podem merecer a menor
30
ONZE DE JUNHO apud A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.
7
consideração31. A partir desta postura do Correio Mercantil, a folha ilustrada Cabrion publica uma
ilustração que faz alusão a postura do periódico e ao crime.
Legenda: [Na lápide] Aqui jaz o infeliz Jerônimo vítima do cancro social que civiliza o nosso país
[Na mão do homem do canto direito] Correio Mercantil defensor perpétuo de infâmias.
Fonte: Cabrion, Pelotas, n.114, p. 01, 03/04/1881.
O jornalista e editor do Correio Mercantil, Antônio Joaquim Dias, foi acusado pela folha
ilustrada o Cabrion de ser um dos algozes responsáveis pelo assassinato do escravo. Apesar da
ilustração, Dias não estava envolvido no crime, contudo foi considerado um dos algozes devido a
defesa dos verdadeiros idealizadores – atuando como porta-voz dos acusados – ocultando a verdade,
promovendo uma mentira e persuadindo os leitores. Além disso, segundo o Cabrion, Dias recebia
para defender os mandantes do caso:
31
CORREIO MERCANTIL apud A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.
8
É pois um fato degradante, ou para melhor dizer um crime, que este mercenário se torna saliente querendo
ocultar a verdade e patenteando a mentira [...] a infâmia e a ignorância própria de um vendilhão, onde um
miserável carrasco. É pois de um fato horroroso praticado pelos Srs. Joaquim e Paulino Teixeira da C. Leite
que o vendilhão Dias defende-os como mandatários de tão bárbaro crime32.
32
CABRION, 03/04/1881.
33
DIÁRIO DE PELOTAS, 07/04/1881.
34
DIÁRIO DE PELOTAS, 09/04/1881.
35
DIÁRIO DE PELOTAS, 13/04/1881.
36
DIÁRIO DE PELOTAS, 19/04/1881.
37
CABRION, 10/04/1881.
9
Bernardo Taveira Junior em suas primeiras crônicas relatou o que para ele seria a vida de
um escravo. Nascido como objeto de um senhor, garantido através de uma legislação que legitimava
as ações de seus senhores. Em seus primeiros anos de vida já vislumbraria a imagem do cativeiro
adquirindo consciência da realidade que está submetido. Embora, em alguns casos, a convivência
do filho de escravo com o filho do charqueador retardasse este processo de conscientização. A partir
disso, transforma-se em escravo “sob todas as amarguras do cativeiro” a partir do tronco, chibata e
da senzala, percebendo a sua “nova” existência. Para Bernardo Taveira Junior, a partir desse
instante nasce o sentimento de ódio do oprimido pelo opressor, do cativo contra seu senhor, não
passando de um objeto. É uma mercadoria que passa de mão em mão até que os maus tratos ou a
velhice façam-na desaparecer da face da terra38. Além disso, por ser uma mercadoria, é tratado
diferente frente à legislação. O homem livre tem a justiça para apontar as suas falhas e determinar
suas condenações, já o escravo nunca tem a lei ao seu lado, cabendo ao senhor determinar a forma
de punição mais cabível para seus atos, geralmente punindo-o com castigos e maus tratos,
culminando, em alguns casos com a morte, como no caso de Jerônimo.
No exemplar da Voz do Escravo que denuncia o assassinato de Jerônimo, Bernardo Taveira
Junior publicou uma crônica intitulada Sonhos de um escravo. Neste texto, Bernardo apresenta a
história de um escravo que dentro da senzala, acordava de um sonho e contava aos demais cativos:
[...] Ainda há pouco vi um anjo. Atrás dele vinha um cativo como qualquer de nós com os pulsos algemados e
os pés acorrentados. O anjo fez adiantar o escravo para o meu lado, e com um instrumento que trazia numa das
mãos começou por partir as algemas e as correntes ao cativo. A proporção que os ferros caiam por terra
despedaçados, vi desenhar-se aos poucos, uma figura de mulher [...] Quando ele não sentir mais o duro e gélido
contato dos ferros que o prendiam, aquela figura de mulher veio colocar-se a direita do anjo [...] Quem é esse
anjo? Quem é essa formosa mulher? O que significa tudo quanto estou vendo? Era o que eu perguntava a mim
mesmo dominado por uma comoção tão forte, que quase não me deixava respirar. Súbito, ouvi uma voz. Dizia
assim: animo, filhos da desgraça! [...] Venho hoje visitar-vos para prenunciar-vos a doce liberdade de que vos
hão despojado os déspotas da terra! [...] Olha para este – e apontou-me o cativo a quem o anjo havia quebrado
os ferros – é assim que ficareis todos livres39.
Esta crônica relaciona-se com o caso do escravo Jerônimo se a considerarmos uma metáfora.
O anjo quebra as correntes que prendiam Jerônimo e através de sua morte, ele obteve a sua tão
sonhada liberdade. Os escravos que morrem, “deixam para sempre a terra da escravidão, veem-se
38
DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870.
39
A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.
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para sempre livres da tirania dos homens, suas almas voam à suspirada. Chamam, lá, onde não há
opressores nem oprimidos”40. Acrescenta-se ainda, quantos crimes não foram cometidos pelos
escravocratas no Brasil? Quantos ficaram imunes?
Ah! Se possuíssemos o dom de evocar os mortos e de fazê-los falar, nós contaríamos aqui a história de muito
cativo assassinado nos golpes do azorrague, de muitos cativos enterrados no seio das matas espessas, no fundo
dos valos, no leito dos rios, e nas profundezas dos abismos. Coitados! Arrojou os a impunidade do crime no
seio da morte! Acabaram, sem que no extremo alento mão amiga lhe fechasse os olhos, sem as doces palavras
da caridade, sem os consolos da religião41.
A partir desta passagem podemos questionar quantos escravos se feriram por intermédio dos
excessos de violência? Quantos escravos morreram por ordens de seus senhores? Quantos buscaram
o suicídio como meio de escapar da escravidão? Todavia, apenas em 1881, com a morte de
Jerônimo que a causa em prol da liberdade dos escravos tomou amplamente as colunas de jornais.
Ademais, destaca-se a importância da denúncia de um caso de excesso de violência para aumentar a
comoção pela causa abolicionista.
Bernardo Taveira Junior, em um folhetim intitulado Oferecido ao remorso vivo: sessão
extraordinária no Palácio de Plutão42, escrevendo sobre o julgamento dos envolvidos na morte do
escravo Jerônimo. Contudo, este julgamento tem como um dos acusados o jornalista Antônio
Joaquim Dias devido a forma que defendeu os mandantes do assassinato em seu periódico. Além
disso, o julgamento proposto pelo escritor tem como indiciados pelo crime: Paulino, Antonio e o
capataz Manoel. Os três escravos envolvidos, para o autor, não foram os responsáveis pelo
assassinato, diferentemente do julgamento oficial.
Bernardo começa o folhetim dizendo que cinco anos após o assassinato do escravo, o
chamaram para comparecer na sessão dos espiritistas no palácio de Plutão, objetivando indagar
sobre o destino da alma de Jerônimo e de seus algozes. As sombras desses algozes e seus defensores
que foram desaparecendo dentre os vivos neste espaço de cinco anos, vão comparecer diante deste
gravíssimo Tribunal, para que vós, Srs. Juízes, deis, como sempre a sua sabia sentença43.
40
TAVEIRA JUNIOR apud DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870.
41
DIÁRIO DE PELOTAS, 13/05/1870.
42
Para o artigo foi utilizado o folhetim manuscrito.
43
Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 4
11
No banco dos réus encontram-se: Paulino Teixeira da Costa Leite, Antonio Teixeira da
Costa Leite, o carrasco Maneca – O nome do capataz era Manoel, mas Bernardo o coloca como
Maneca –. Bernardo Taveira Junior apresenta-os aos leitores: Paulino Leite é retratado como
alguém que no final do julgamento perceberia que o dinheiro compra tudo na terra dos mortais, mas
ali não tinha valor nenhum. Já Antonio Leite mandou, com consentimento de seu irmão, arrancar a
pele de Jerônimo para fazer um capacho. E, por fim, Maneca é apresentado como uma pessoa livre
que nunca deveria se prender a cruel e horrível execução ordenada por seus patrões.
O interrogatório é principiado por Paulino. Questionado sobre o porquê Antonio havia se
queixado de Jerônimo e o motivo que o levou a querer arrancar a pele e fazer de capacho, o réu
nada respondeu, apenas gaguejou. Antonio é questionado porque ordenou que maltratassem
Jerônimo, o que ele fez para sofrer tamanha tortura e porque o viu agonizar. O réu ajoelha-se e nada
responde apenas ruge em desespero. O interrogador afirma que este era o som do desespero e que
ele pagará pelo crime que cometeu. O último a ser interrogado, Maneca, é questionado sobre o
porquê ele chamou três escravos para castigar Jerônimo e ele ficou apenas observado, como
cúmplice do crime. Maneca não respondeu, apenas olhou para os irmãos Leite. O interrogador
afirma que através desse olhar ele percebeu a consciência que o capataz detinha. Por fim, é
chamado para o interrogatório o Mondongueiro44:
Tu que pela tua vileza eras corrido de toda a sociedade honesta, que punhas em almoeda o teu pasquim para
servir de instrumento ao desaforo, tu a quem os mortais acusarão de passador de moeda falsa, tu, enfim, que
foste o Mondongueiro, responde a isto: Que razão tiveste para renderes o teu mercantil aos assassinos do
escavo Jerônimo? Para advogares uma causa amaldiçoada de todos os homens de boa consciência?45
Após a acusação, Antônio Joaquim Dias respondeu que tinha fome de ouro, ajoelhou-se e
pediu perdão, pois tinha medo dos Infernos. Em seguida, o interrogatório foi seguido pela acusação
aos legistas que realizaram o corpo e delito, questionando o porquê falsamente foi declarado que
Jerônimo havia morrido de perionite. Por fim, questionou o porquê o Vigário havia associado o seu
nome ao dos assassinos, escutou e baixou o rosto. O silêncio não importa numa defesa; é antes uma
condenação46.
44
Mondongueiro era o “apelido” que o jornalista Antônio Joaquim Dias recebeu dos editores da folha ilustrada o
Cabrion.
45
Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 9
46
Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 09
12
Em seguida, Plutão levantou-se e deu fim ao interrogatório dos réus e fez duas perguntas ao
júri: está provado que Paulino, Antonio e Maneca Capataz são os assassinos de Jerônimo? Está
provado que o Mondongueiro e os outros dois empenharam-se para proteger os criminosos e
iludirem as autoridades da Terra? As duas perguntas são respondidas com sim e todos foram
condenados a pagarem pelo crime no Tártaro47. Confirmo a sentença que condena os réus presentes
aos horrores e eternos suplícios do Tártaro48.
Após participar do Supremo Tribunal dos Espiritistas, Bernardo Taveira Junior relata que
por fim passou pelos Campos Elíseos49, local onde as almas desfrutam de felicidade e paz. Neste
lugar, Bernardo encontrou Jerônimo:
Cheio de intenso jubilo abraçou-me e disse-me que já cinco anos se tinham passado, desde que ali a achava no
gozo de sua plácida bem aventurança. Quando comuniquei-lhe da parte de quem vinha e o fim da minha
missão, ele abraçou-se [...] e disse-me: Levai os meus votos de gratidão as autoridades de Pelotas, ao ilustrado
jovem Dr. Promotor Público, ao honesto Juiz Municipal, as testemunhas que depuseram contra os meus
algozes, a toda a imprensa honrada – os quais todos, por sua energia, honra e integridade, tornaram-se dignos
dos maiores louvores e galardões50
Bernardo Taveira Junior conclui o folhetim afirmando que a justiça havia sido feita e que ele
havia cumprido a sua missão junto ao Supremo Tribunal dos Espiritistas.
Considerações finais
47
Significativo a inferno.
48
Ibidem, p. 12.
49
Significativo a paraíso.
50
Ibidem, p. 14
13
uma forma de fazer justiça com Jerônimo, com os verdadeiros culpados e com a população pelotense que
clamavam por justiça.
Fontes primárias
1) Arquivo Municipal de Porto Alegre:
A Voz do escravo, Pelotas/RS, 1881
Bibliografia
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad,
2010.
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do Sul 1868 a
1880. Porto Alegre: Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1982.
14
LONER, Beatriz Ana. Negros: organização e luta em Pelotas. História em revista. Pelotas: UFPel,
v.5, dezembro de 1999, p. 07-27.
__________________. Abolição. In: GILL, Lorena; LONER, Beatriz Ana; MAGALHÃES, Mario
Osório (org.). Dicionário de história de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2010, p. 07-09.
MAESTRI, Mario. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993.
RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Bernardo Taveira Junior. Revista Província de São Pedro. Ed.
Livraria do globo, n. 06, 1946, p. 78-94.
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