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Artigo

Religiões afro-brasileiras na terra das charqueadas: proteção que se reflete no espelho


de Oxum.

Resumo: Neste artigo convido o leitor a conhecer a religiosidade afro-brasileira em Pelotas,


um município erguido pela indústria do charque na construção de sua economia, um processo
marcado pelo trabalho escravo. Para isso realizei uma pesquisa bibliográfica sobre o tema,
conversei com líderes de Federações e Associações de religiões afro-brasileiras no Município,
além de fazer uma pesquisa sobre a legislação que se propõe a criar instrumentos de proteção
do Povo de Terreiro. A perspectiva metodológica que ampara minha pesquisa é a da
descolonialidade, entendo que é preciso encontrar uma nova forma de pensar para que
possamos entender culturas diversas das euro centradas, que têm tradições e formas de viver
dentro de uma complexidade que desconhecemos. Um dos grandes desafios de estudar as
religiões de matriz africana é a oralidade, algo que está fora do entendimento eurocêntrico
como forma de produção ou transmissão de conhecimento. Este artigo não esgota o tema
proposto, minha intenção é provocar a reflexão sobre a importância de entender a diferença
entre discurso e retórica quando tratamos de políticas públicas.

Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras. Pelotas. Charqueadas. Descolonização. Racismo


religioso.

Afro-Brazilian religions in the land of charqueadas: protection reflected in the mirror of


Oxum

Summary: In this article I invite the reader to know the afro-brazilian religiousness in
Pelotas, a city built by the charque industry in the development of its economy, a process
marked by slave labor. For that, I performed a bibliographic research about the matter, I have
talked with afro-brazilian religions federations and associations leaders in the city, aside from
researching about the legislation that proposes to create protection instruments for the terreiro
people. The methodological perspective that supports my research is that of the decoloniality,
I find it necessary to encounter a new way of thinking so that we all can understand cultures
diverse from euro centered ones, wich have traditions and forms of living inside a complexity
we do not know. One of the biggest challenges of studying the African originated religions is
the orality, something that outgrows the eurocentic understanding as a form of knowledge
production or transmission. This article does not deplete the proposed theme, my intention is
to induce the reflection about the importance of understanding the difference between
discourse and rhetoric when concerning public politics.

Key Words: Afro-brazilian religions. Pelotas. Charqueadas. Decolonization. Religious


racism.
Neste artigo compartilho as inquietações que residem no olhar de quem vive e se
propõe a estudar as religiões de matriz africana. Resido em Pelotas há mais de duas décadas e
provocada pelos ensinamentos de Oxum — a mãe das águas doces que rodeiam a cidade pela
Laguna dos Patos, o Arroio Pelotas, o canal São Gonçalo e o Santa Bárbara, que clama por
Iansã — e por viver a religião, vendo a exaltação das charqueadas pelotenses, a exploração
imobiliária ameaçando o Passo dos Negros, terreiros e caminhadas contra a intolerância
religiosa, senti o anseio de entender como a religião afro-brasileira existe como agente social
em uma terra marcada pelo sangue negro e pelo enriquecimento dos colonizadores europeus.
Para isso, trago neste trabalho, aspectos históricos do município e das religiões de matriz
africana nele presentes, percepções de uma pesquisa pré-projeto de Doutorado com agentes
religiosos, e avanços na legislação de instrumentos de proteção e efetivação de direitos do
povo de terreiro em âmbito municipal.
A inspiração de Oxum vem do ouro e de seus espelhos. O ouro, elemento deste Orixá
que nos foi trazido pelos negros escravizados de cultura Iorubá, é o brilho que reflete a luz, e
assim deixa tudo mais claro, além disso adorna seus espelhos que nos dizem que nem sempre
o que vemos refletido é a realidade. A história de Pelotas, e do Rio Grande do Sul pouco nos
conta da importância do povo negro escravizado responsável pelo enriquecimento econômico
do estado na época do charque, nos trabalhos da campanha e sua participação nas lutas da
Revolução Farroupilha. Como nos lembra o antropólogo Ari Oro "Este é um estado que criou
ideologicamente figuras como representativas, o gaúcho e os imigrantes" e embora negros e
índios estejam presentes em todo contexto da história gaúcha, a "narrativa ideológica
invisibilizou, e essa invisibilização, infelizmente, ela se mantém até os dias atuais"
(CAVALO, 2020).
Diante da crescente discussão sobre racismo religioso, decolonialidade do
pensamento e crescimento da violência contra as religiões de matriz africana, a maior arma
que temos nesta batalha é o conhecimento, e sendo Pelotas, conforme dados da Prefeitura
Municipal (2018), a segunda maior cidade com população negra no País— sobre estes dados
não encontrei em outro órgão nada que corroborasse essa certeza —, se torna um importante
campo para o estudo das religiões afro-brasileiras. A religiosidade sempre esteve presente no
processo de colonização europeia, que ao chegar a terras habitadas por pessoas
"animalizadas" e posteriormente, pelo processo escravagista, por "negros sem alma", trouxe a
bandeira da salvação através do cristianismo. Ainda hoje vislumbramos movimentos
evangélicos em aldeias indígenas em busca do apagamento da identidade desses povos que se
dá, muitas vezes, em última instância, através da Religião.
História e afro-religiosidade na terra das charqueadas
Mesmo antes da fundação da Província de São Pedro, segundo Maestri, os cativos
africanos já chegavam ao sul do Brasil. No ano de 1874 o Rio Grande do Sul era a terceira
província do País com o maior número de trabalhadores escravizados, tendo o Rio de Janeiro
e o Espírito Santo à sua frente (MAESTRI, 2008b). No estado gaúcho, o Município de
Pelotas, talvez seja a cidade com maior influência cultural e religiosa de matriz africana por
ter sido o centro da economia das charqueadas, evento responsável pelo maior contingente de
escravos neste estado da Federação. Os primeiros escravos trazidos da África, chegam ao Rio
Grande do Sul entre os séculos XVIII – XIX, data da ocupação do estado com a fundação do
forte Jesus Maria-José na Barra, onde hoje é a cidade de Rio Grande. No fim do século XIX
“as unidades charqueadoras mais aperfeiçoadas constituíam verdadeiras manufaturas
escravistas” (MAESTRI, 1993a, p.47) sendo que em 1780 a produção de charque solidificava
um polo escravista em Pelotas. No mesmo ano, o primeiro levantamento demográfico
conhecido, mostra que, havia 17.923 habitantes na província de Pelotas, dos quais, "eram 28%
trabalhadores escravizados, 53% brancos e 19% índios aculturados, o que, em números
absolutos, se traduzia em 5.102 negros, 9.433 brancos e 3.388 índios" (LONER et al., 2011),
os negros eram quase 50% da população pelotense. Sobre o trabalho escravo no Município,
Corrêa afirma que: “O negro construiu no mínimo as bases da economia rio-grandense. A
grandeza e o luxo dos prédios de Pelotas são testemunho, ainda hoje, do volume de dinheiro
que jorrava das charqueadas locais” (CORRÊA, 2006, p. 41). Diversos pesquisadores
apontam o Município com características exclusivas no trato com os escravos e na forma com
que foram responsáveis pelo crescimento da indústria do charque através de seu trabalho.
A história mostra que a cidade de Pelotas foi construída a partir do trabalho de
escravos trazidos de diversas regiões da África sem que tenhamos dados minimamente
precisos sobre sua origem, “A indústria charqueadora escravagista determinou a própria
essência da sociedade pelotense” (MAESTRI, 1993ª, p. 48). Nas charqueadas, os relatos de
historiadores e antropólogos mostram que os cativos negros recebiam o mais cruel tratamento
dado aos mesmos no estado gaúcho, como assevera o botânico francês Hilaire (1820-1821)
nos registros de sua viagem pelo Rio Grande do Sul sobre o que observou em visita a
charqueada de Antônio José Gonçalves Chaves:
Nas xarqueadas os negros são tratados com rudeza. O Sr. Chaves, tido como um dos
xarqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com a gerada severidade, no
que é imitado por sua mulher; os escravos parecem tremer diante de seus donos.
Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os
outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço
creatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo
algum brinca. Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente
maltratado pelos filhos do dono. A noite chega-lhe o sono, e quando não há ninguem
na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa êsse
impiedoso sistema: êle é frequente em outras. Afirmei que nesta Capitania os negros
são tratados com bondade e que os brancos com êles se familiarizam, mais que em
outros pontos do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em pequeno
número; nas xarqueadas a cousa muda de figura, porque sendo os negros em grande
número e cheios de vícios, trazidos da Capital, torna-se necessário tratá-los com
mais energia. (HILAIRE, 1820-1821)
Neste contexto de escravidão, que o filósofo africano Achile Mbembe traduz como
um triplo mecanismo de captura, esvaziamento e objetificação, que tira do homem a liberdade
de viver ou mesmo de manter uma consciência própria, o negro precisa encontrar formas de
se definir e a luta por manter sua tradição na cultura e na religião foi uma delas (MBEMBE,
2022, p.94). As roças de Candomblé, os Terreiros de Batuque, de Umbanda e de Quimbanda
são espaços onde a cultura negra resiste, mesmo com sincretismos e adaptações necessárias
como forma de sobrevivência, foi um caminho encontrado para manter vivas as tradições
como afirma Mãe Juci D'Óyá: "reinventar uma forma de dar continuidade as visões de
mundo, de práticas, de religiosidades como resistência às violências dos colonizadores
cristãos"(DÒYÁ, 2021). No estado do Sul as relações sociais estabelecidas em um ambiente
onde negros e brancos passam a conviver e a história de ambos tem registros absolutamente
diversos, r-existem três vertentes religiosas de matriz africana; Batuque, Umbanda e
Quimbanda, a construção do solo gaúcho ecoa em seus tambores sua origem, tornando o Rio
Grande, o estado com o maior número de adeptos de religiões afrodiaspóricas 1 conforme
dados do IBGE (2010).
Em estudos realizados por Corrêa, o autor estima que os primeiros terreiros de
Batuque foram fundados em Rio Grande ou Pelotas. Por estas cidades concentrarem um
elevado número de negros com predominância de sudaneses, pode-se supor, que no período
que vai de 1833 a 1859 aproximadamente, foi fundado o primeiro Terreiro de Batuque,
entretanto, não se tem informações que possam precisar qual tenha sido, sendo a religião que,
ao lado do Candomblé (Bahia e Rio de Janeiro) pode ser considerada como a mais africana
das religiões afro-brasileiras conforme explica o autor:
A linha-mestra que caracteriza o Batuque é a presença de uma forte e efetiva herança
tradicional africana, que se mantém apesar da longa convivência com uma sociedade
ocidentalizada e da repressão aberta e/ou velada de que foi (e de certa forma
continua sendo) vítima, ao longo de sua história, no Rio Grande do Sul. A identidade
batuqueira é construída em torno ao campo religioso através desses elementos que o
compõem, como os mitos, os deuses, os ritos, e ela se define e reforça, individual e
socialmente, pelas oposições que estes compreendem em relação aos correlatos da
cultura envolvente, ocidental. A avocação desta africanidade se revela
explicitamente em atitudes como a que referi, de se auto excluírem simbolicamente,
como grupo, da sociedade brasileira, além de considerarem-se de "nação africana"
(ou "não-brasileiros"), denominação esta que consta dos nomes oficiais de muitos
templos (CORRÊA, 2006, p.68)
Por volta de 1850, com o declínio das charqueadas os negros começam a se deslocar
para lugares mais urbanizados chegando a Porto Alegre, onde por volta de 1880 surge o
Batuque. O encontro da cultura africana com a colonização europeia torna inevitável a
miscigenação nos terreiros, e a Umbanda, que talvez seja a mais afro-brasileira das três
vertentes se nos orientarmos pela definição de Capellari entendendo por afro-brasileira como:
“[...] o conjunto das práticas religiosas desenvolvidas a partir do contato entre civilizações de
origem europeia, africana e americana em solo brasileiro”. (CAPELLARI, 2001, p. 65) é fruto
deste encontro de culturas. É uma religião originada no Brasil, e embora existam muitas
divergências sobre sua origem, têm entre muitos adeptos, como marco de fundação o ano de
1908 com o que chamamos de advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas, na cidade de
Niterói no Rio de Janeiro, A Umbanda é muito sincrética, ou como prefiro dizer, com a
capacidade de absorção de tudo que não seja contrário ao Princípio da Caridade, sua pedra
fundamental. No estado do Rio Grande do Sul, o primeiro Terreiro de Umbanda ocorreu no
ano de 1926 na cidade de Rio Grande, o Centro Espírita Reino de São Jorge foi fundado pelo
ferroviário Otacílio Charão, e em 1932 Laudelino de Souza Gomes, funda a Congregação
Espírita dos Franciscanos de Umbanda na cidade de Porto Alegre, essas datas são consenso
entre os estudiosos das religiões no Estado.
Não é tão fácil determinar o nascimento da Umbanda em Pelotas, por ser a oralidade
uma das características preservadas nas religiões afro-brasileiras, assim como no Batuque, é
muito escasso o que se tem registrado documentalmente. Conversei com várias pessoas da
religião nas pesquisas que venho realizando, e para escrever este artigo, através de Carlos
Alberto Pereira cheguei ao senhor Luiz Antônio Azocar, sacerdote do Terreiro de Umbanda
Caboclo Sete Espadas, fundado em 1952, pelo senhor César, a respeito de quem não consegui
informações. Nem o senhor Luiz sabe informar mais detalhes além do primeiro nome. A casa
foi fundada com o nome de Terreira de Umbanda Santa Terezinha, localizado na Vila
Leocádia em Pelotas, depois passou para a rua Anchieta com o Sacerdote Ciro Cavalheiro até
o ano de 79 e teve mais dois Sacerdotes, sendo hoje dirigida pelo Pai Luiz e estando
localizada na Avenida Juscelino Kubitschek, embora não se possa ainda afirmar que foi a
primeira casa, certamente foi uma das precursoras na Umbanda pelotense.
O forte sincretismo com o catolicismo e, em muitos centros influenciada pelo
kardecismo, faz com que esta religião tenha algumas peculiaridades importantes no processo
de miscigenação cultural, seu principal ponto de encontro com as religiões africanas está no
culto aos Orixás e na manifestação de entidades de Pretos-velhos, ancestrais africanos
escravizados. Do solo brasileiro traz a manifestação dos Caboclos, entidades que trazem
consigo o conhecimento dos povos indígenas e boiadeiros do cerrado e segundo Corrêa "Das
três formas rituais é a que mais atinge os brancos da classe média e alta" (CORRÊA, 2006, p.
58).
A terceira ocorrência de religião de matriz africana no município de Pelotas é a Linha
Cruzada também chamada de Quimbanda (ou Kimbanda), que para Corrêa, com quem
concordo, é a grande maioria das casas de culto no Rio Grande do Sul, embora seja uma
religião jovem, e tenha em torno de 60 anos, quando ele realizou sua pesquisa há mais ou
menos 20 anos, representavam 80% dos Terreiros no estado. A principal característica, desta
determinação é o culto, no mesmo templo, de entidades da Umbanda e do Batuque,
acrescentando ainda as entidades da linha de Exús, oriundos da própria linha-cruzada, que
segundo Corrêa essas entidades estão ligas à Macumba do Rio de Janeiro (CORRÊA, 2006, p.
61). Sua pesquisa mostra que o crescimento da linha cruzada se dá por razões de ordem
econômica, sendo que o Batuque se torna caro em virtude dos sacrifícios e rituais que exige e
enquanto a Umbanda é menos dispendiosa, trabalhar com as duas linhas se torna vantajoso.
Dentro das doutrinas ritualísticas das três vertentes é possível afirmar que há um
elemento econômico importante. Na Umbanda o fundamento da caridade torna todos os
atendimentos gratuitos e os centros mantém sua estrutura pela colaboração dos integrantes e
doações da comunidade que o frequenta. No Batuque, além de ser uma religião “cara”, onde o
uso do sacrifício animal é fundamento, também reside o atendimento caritativo, o sacerdote
pode cobrar pelo jogo de búzios e por Ebós2, porém, quando necessário é responsável por
todo custo de um trabalho. A Quimbanda tem uma ritualística diferente, o atendimento e
auxílio prestados pelas entidades pode ser cobrado, o fundamento é que Exu recebe para
ajudar, dessa forma os terreiros conseguem se manter financeiramente sem depender
unicamente dos trabalhadores da casa e da caridade da comunidade.
Em período concomitante a movimentação da mão de obra negra para outras regiões
do estado, entre os anos de 1824 e 1875 chegam à Pelotas colonos alemães e posteriormente
italianos, e a partir disso, "verifica-se um aumento da população branca e uma redução na
porcentagem da população negra em território gaúcho" (CAVALO, 2020). Com a queda do
charque e a chegada dos colonos vindos do continente europeu, o encontro dessas culturas faz
com que o Rio Grande do Sul se torne uma sociedade multiétnica e pluricultural, onde
associam-se no mesmo solo, indígenas "que viram seu território sendo ocupado pelos
portugueses e espanhóis, aos quais foram associados os escravos africanos e, posteriormente,
os imigrantes europeus, com destaque para os alemães e os italianos" (ORO, 2002a). Pelotas é
um dos principais palcos desta miscigenação cultural e sua história é marcada pela crueldade
escravagista no enriquecimento das charqueadas, que se outrora era inferno dos negros como
relata o Arquiteto e gestor cultural Zulu Araújo no filme Cavalo de Santo:
No relato das punições que eram feitas aos escravos que fugiam das charqueadas, é
de deixar horrorizado qualquer um. Escravos eram amarrados na salmoura para que
as suas partes de baixo, os seus membros inferiores apodrecessem devido a
quantidade gigantesca de sal que era absorvida. Ou seja, eles apodreciam vivos
como punição por estarem fugindo. Foram eles que com seu sangue, o seu suor, o
seu trabalho, que enriqueceram parte da elite gaúcha. (CAVALO, 2020)
Hoje, as mesmas charqueadas tornaram-se espaços de visitação, lazer, ostentação e
festas da elite pelotense, o contraste entre passado e presente torna Pelotas um terreno fértil
para a investigação da construção dessas relações e seu reflexo na sociedade atual. A cultura
Cristã trazida pelos colonizadores europeus sempre demonizou a herança africana. Isso é bem
retratado na obra de Pierre F. Verger, que faz toda sua pesquisa etnográfica, rica em registros
fotográficos e fatos históricos da Religião Africana. Fazendo uma conexão entre Brasil e
África, e narrando a chegada dos escravos africanos ao Brasil a partir de suas nações, regiões,
e memórias de dor, sangue e Itans3, se volta à África, nos permitindo conhecer a base da
religiosidade do povo Iorubá, que trouxe para o Brasil o culto do Orixá: “A religião dos
Orixás está ligada a noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo
antepassado, que engloba os vivos e os mortos” (VERGER, 2019, p. 26).
Verger nos fala da família, originária, do antepassado que engloba vivos e mortos. A
herança africana nos ensina que para estar vivo, receber o asé4 Orixá é preciso lembrar,
cultuar, honrar, e assim deveria ser com toda história. Nascer em Pelotas, ser pelotense, é ser
fruto da história dessa terra, que como o estado do Rio Grande do Sul nas palavras de
Gonzaga deixa a cultura do negro escondida, invisível, camuflada "disfarçada nessa mitologia
da Democracia Racial. Aliás é um estado que se viu frequentemente como um estado branco,
um estado de gente branca, os brancos se veem como os únicos representantes da verdade
dessa província" (CAVALO, 2020). Nos descaminhos de uma história esquecida, lembramos
o ouro e escondemos a dor, em 2018 a Charqueada São João, foi tombada pelo Patrimônio
Cultural Brasileiro, lembrando que foi construída em 1810 pelo português Antônio José
Gonçalves Chaves, onde rapidamente fez fortuna, sendo um dos homens mais ricos desta
província, sem mencionar que o mérito de sua fortuna que tem suor e sangue negro, é hoje um
espaço de festas, aberto à visitação, e segundo o Nonada Jornalismo (2021) "oferece passeios
de barco e visitas monitoradas, com direito a uma visão privilegiada da senzala". Sobre isso, a
historiadora Daiane Molet lembra:
que existe uma Pelotas por trás da história oficial sobre a “princesa do sul” dos
grandes charqueadores, de seus casarões e suas charqueadas como um símbolo de
orgulho e do poderio econômico. “Existe uma outra Pelotas, uma Pelotas Negra, do
samba, do carnaval, do hip-hop, dos clubes sociais negros, do charme, das
comunidades quilombolas, dos povos de terreiro, dos Griôs e de tantos outros que
sequer sabemos o nome, de uma população negra que está principalmente assentada
na periferia da cidade”, observa. (CAETANO, 2021)
Pelotas é uma cidade encantadora, e estarrecedora, em seu processo de pluralidade
cultural e estratificação social, que nega sua negritude. Atualmente o processo de especulação
imobiliária se aproxima do último vestígio da história de chegada dos negros à essa terra, a
localidade conhecida como Passo dos Negros está sendo engolida pelo "progresso". Seria
injusto dizer que Pelotas esconde, mas certamente menospreza a história de sua origem, a
localidade conhecida como Passo dos Negros foi um importante porto de travessia do gado,
de cobrança de impostos e de comercialização de pessoas escravizadas, com elementos que
contam a história das primeiras comunidades negras em Pelotas, como a Ponte dos Dois
Arcos, o Engenho Pedro Osório, figueiras centenárias e o corredor conhecido como caminho
das tropas, fazem parte do patrimônio cultural pelotense. Na localidade vivem famílias que se
encontram lá há gerações:
Tanto no primeiro, quanto no segundo Plano Diretor da cidade de Pelotas, a região
do Passo dos Negros foi ocultada nos mapas e nas diretrizes de legislação urbana,
sendo considerada zona rural. Já na revisão do III Plano Diretor de 2018, a área
consta como vazio urbano, mesmo com habitações já consolidadas. Hoje a
valorização imobiliária tomou lugar de protagonista na produção e ocupação
oficial do espaço, abarcando o centro jurídico da cidade, Shopping, Bairro
planejado com eventos culturais e condomínios fechados, que estão
transformando o espaço em uma nova centralidade na cidade. (SILVEIRA, et
al. 2020)
Apoiada na arqueologia de Michael Foucault me arrisco a afirmar que existem
pressupostos e preconceitos inconscientes que têm organizado objetivamente o fazer político
em Pelotas, torna-se evidente uma desconexão entre discurso e prática na proteção da cultura
e da história desta importante parcela da população e isso se reflete no espaço da Religião.

Desafios e conquistas na construção de políticas de proteção


A miscigenação que tornou as religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul
espaços de convivência de diferentes culturas, e gera aos olhos menos atentos, a ideia de que
o fato de estarem dentro dos Terreiros, pessoas brancas, inclusive como Sacerdotes, torna
essas Religiões mais aceitas socialmente. Porém, a presença branca no Terreiro não faz com
que essas religiões deixem de ter sua origem e matriz, na herança africana.
A pluralidade cultural do estado gaúcho faz com que atualmente encontramos
pessoas brancas à frente de terreiros 5, independente da vertente à qual a casa pertença.
Segundo Oro, os brancos se aproximam da religião por questões diversas ligada à sua classe
social, para o autor, "pobres estão à busca de soluções para problemas práticos como doenças,
desemprego ou dificuldade econômica, ou problemas legais, geralmente relacionados à sua
condição desfavorável de classe". Já aqueles de "maior poder aquisitivo" buscam pelas razões
ligadas à própria existência seu "sentido, identidade, afetivos, etc.". Para o autor a religião dos
Orixás, tem uma eficácia simbólica e gera fascínio além do mistério e exótico que contribui
para a atrair os brancos:
Em outras palavras, parece prevalecer no Rio Grande do Sul a representação negra
segundo a qual é importante a presença simultânea de brancos e de negros nos
terreiros por serem, os primeiros, detentores principalmente de capital econômico e
os segundos principalmente de capital simbólico, religioso, dado pela tradição [...] É
mais recorrente neles a afirmação de que "o axé não tem cor".
No entanto, há terreiros multiétnicos onde o preconceito de cor tende a se manter.
Isto se dá especialmente quando os brancos implicados na religião detêm pouca
consciência da origem africana desta e não realizam uma aproximação mais efetiva
com a etnia negra. (ORO, 2002a)
Sugere ainda, que existe uma "negociação velada" entre negros e brancos, necessária
à manutenção do Terreiro, onde um dispõe de recursos financeiros e o outro de recursos
religiosos. Essa relação se estende para além do pátio religioso, sobre a afirmação de que
somos o estado com o maior número de Terreiros, Babá Diba de Yemojá do Ilé Asè Yemojá
Omi Olodó, questiona a afirmação que o estado do Rio Grande do Sul é o estado que tem o
maior número de Terreiros do Brasil: “[...] se estes Terreiros ficam na invisibilidade? Ficam
na subterraneidade? Como dizer? As pessoas de dia negam e de noite todo mundo toca tambor
e saracoteia. É assim que a sociedade hipócrita funciona” (CAVALO, 2020). Entre os desafios
enfrentados no combate a intolerância religiosa, hoje reconhecida como racismo religioso e
que coloca em xeque o mito da democracia racial, se encontra a falta de unidade entre as
religiões afro-brasileiras, como bem define Corrêa quando aborda esse encontro de raças e
culturas no processo de transformação das religiões afro-brasileiras:
"[...] o processo de reinvenção das religiões africanas que se dá no Brasil, que
pressupõe encontros e confrontos entre as diversas etnias e seus saberes ancestrais e
religiosos, num contexto político de perseguição à essas práticas, de um lado, e de
estímulo a mestiçagem, de outro, como parte de uma política de embranquecimento
da população. Ao contrário do que se diz no senso comum, não se trata de tudo junto
e misturado, mas de uma complexa cena de ora misturado, ora junto, ora separado."
(CAVALO, 2020)
Ao lado da questão racial dentro dos Terreiros, outro fator de enfraquecimento na luta
contra o preconceito e a conquistas de Direitos está na luta por espaços de poder entre as
vertentes religiosas. A adoção de uma postura onde muitos religiosos colaboram para
manutenção de uma sociedade colonial que traz, segundo Mbembe, uma de suas faces mais
perversas, a função, de "não somente esvaziar o passado do colonizado, mas, pior ainda,
precluir seu futuro" (MBEMBE, 2018, p. 285). No processo necessário de descolonização
para a construção de uma sociedade igualitária, não podemos negar nossa história e nos
furtarmos à reparação, é premente a necessidade de olhar com mais atenção à essa população.
Vivemos um aumento crescente do racismo religioso no País, uma pesquisa coordenada pela
Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro) e pela entidade Ilê Omolu
Oxum, publicada no Correio Brasiliense aponta que 91,7% dos pais e mães de santo
brasileiros entrevistados já ouviram algum tipo de preconceito por conta da religião escolhida
e que 78,4% já foram alvo de violência, seja por intolerância ou por racismo religioso
(ANDRADE, 2022). Mãe Juci D’Oyá ao participar do V Congresso Nacional de Diversidade
e Questões Etnicorraciais em 2021 assevera que, "Os terreiros são os quilombos de resistência
de culturas negras e indígenas, sobretudo".
Na construção de meu projeto de pesquisa e posteriormente para escrever este artigo,
busquei verificar dados que considero de fundamental importância dentro do tema proposto,
como o número de casas de religiões em Pelotas. Entrei em contato através de mensagem de
WhatsApp com a Federação Sul Rio Grandense de cultos Afro-brasileiros, na pessoa do então
presidente Joab Bonhs e com o senhor Marcos de Oxalá da FECAB (Federação de Cultos
Afro-brasileiros Umbanda e Quimbanda), ambos sediados em Pelotas, sem obter resposta.
Importante salientar que ambos tiveram ciência da mensagem, o senhor Joab me envia
seguidamente propagandas de encontros religiosos e nunca respondeu à minha pergunta. Já o
senhor Marcos, novamente questionado no momento de escrita deste artigo, novamente
ignorou totalmente meu contato.
O secretário da AMUKCAB (Associação Municipal de Umbanda, Kimbanda e Cultos
Afro-Brasileiros) Rodrigo Domingues, Babalorixá Rodrigo de Bará Adaguê, se colocou de
forma colaborativa e ao responder à pergunta sobre quantos Terreiros de Batuque, Umbanda e
Quimbanda temos no Município? Afirmou que, estima que existem hoje no Município em
torno de três mil centros religiosos dessas determinações, destes, apenas 150 (cento e
cinquenta) tem registro ativo na entidade e complementa o religioso que, "porém, tem muitos
Terreiros que não tem filiação alguma ou estão em outras Federações/Associações". No
mesmo sentido sinaliza Juliano Silva da Silva, Babalorixá Juliano De Oxum, presidente do
CMPTERPEL (Conselho Municipal do Povo de Terreiro de Pelotas) que para o mesmo
questionamento, informa "não ter esses dados mapeados". A desinformação sobre o número
de Terreiros não é característica exclusiva de nosso Município:
Existe um déficit nas análises na distribuição dos territórios de terreiros, (CARMO,
2017) observa que é quase unanime entre os fieis religiosos de matrizes africanas,
que afirmam que os órgãos que fazem o levantamento de dados sobre os espaços de
religiosidade, fazem uma análise superficial, havendo pouco estudo. (SILVA et al,
2021, p. 103)
O cenário pelotense na relação com as religiões africanas transita entre pequenas
concessões e grandes discussões. No ano de 2012 Pelotas foi palco de luta por liberdade
religiosa em torno de um dos símbolos com muito significado no Batuque, o Mercado
Central, que por caracterizar o comércio está ligado a atuação do Orixá Bará. Nesta ocasião,
ao passar por uma reforma de revitalização de sua área interna, um processo que já durava
praticamente dez anos, suscitou nas religiosas Mãe Gisa de Oxalá e Iyalorixá Sandrali de
Oxum, a ideia de fazer em Pelotas o assentamento de Bará no Mercado Público, à exemplo do
que já ocorre em Porto Alegre, ambas movidas pelo propósito de gerar prosperidade para sua
reabertura. Autorizadas pelo poder público, realizaram o ritual e passaram a ser alvo de
ataques de intolerância religiosa por parte da imprensa local e por setores da sociedade
pelotense, sendo que mãe Gisa de Oxalá foi acionada judicialmente:
[...] judicialmente repressão por realizar o assentamento do Bará do Mercado,
mesmo com o consentimento do poder público. Isso ocorreu com a Comunidade
Beneficente de Terreiro Caboclo Rompe Mato Ilê Axé Xangô e Oxalá, liderada pela
Mãe Gisa de Oxalá e Pai Paulo de Xangô. O caso foi considerado como intolerância
religiosa por intermédio de ONGs protetoras de animais[..] (ÁVILA, 2017 p. 49)
Não raramente a afro-religiosidade é levada de alguma maneira para os Tribunais em
nosso estado. Em de 2019 foi julgado, depois de doze anos, o Recurso Extraordinário
494.601/2019 movido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul contra a Assembleia
Legislativa do estado, discutindo a constitucionalidade da LEI 11.915/2003 que dispõe, sobre
a permissão do sacrifício ritual de animais em cultos afro-religiosos. A Lei foi declarada
constitucional por unanimidade. Durante sua argumentação no plenário o Dr. Hédio Silva
Júnior representando União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e o Conselho
Estadual da Umbanda e dos cultos afro-brasileiros, afirma que esta ação tem sua origem no
racismo religioso já reconhecido por aquela corte em outra oportunidade:
[...] há estatísticas no Brasil que comprovam que nas periferias das cidades, jovens
negros são chacinados como animais, mas não há comoção na sociedade brasileira,
não vejo instituições jurídicas ingressar com medida judicial para evitar a chacina de
jovens negros mortos como cães na periferia. Mas a galinha da macumba, parece
que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida de milhares de jovens
negros. É assim que coisa de negro é tratada no Brasil. (GALINHA, 2018)
No campo político pequenos avanços são percebidos em Pelotas. Em 2018 ocorrem
dois marcos importantes na história pelotense, quatro vereadores negros foram eleitos para a
Câmara Municipal e no mesmo ano é assinada a Lei Municipal nº 6.584, que institui o
Conselho Municipal do Povo de Terreiro que em seu artigo primeiro o caracteriza “como um
instrumento de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural e
da eliminação das discriminações” (LEI 6,584 art. 1º, 2018). Durante o período de atuação do
órgão têm sido desenvolvidos eventos de combate à intolerância religiosa como a Semana de
Combate a Intolerância Religiosa na cidade de Pelotas, conferências municipais e eventos que
buscam reunir a comunidade religiosa. O atual Presidente é sempre muito solicito quando
questionado e mostra-se constantemente comprometido com o avanço na luta pelo respeito as
religiões de matriz africana, nos dias 12 e 13 de junho de 2023 será criado um acervo das
religiões na Biblioteca Municipal e será realizada a 8ª Procissão do Bará que marca a luta pelo
tombamento do assentamento realizado em 2012, conforme informa Juliano de Oxum.
Importante destacar que em 2023, o Conselho irá comemorar 5 (cinco) anos de existência e
até o dia 19 de maio 2023 (dezenove de maio de dois mil e vinte três) quando fiz o último
acesso ao site oficial da Prefeitura de Pelotas, o mesmo não constava na lista de Conselhos do
Município embora represente uma grande conquista para as pessoas do Axé.
Após a criação do Conselho do Povo de Terreiro, no ano de 2021 a Lei 6.178/2014
recebeu emenda do vereador Paulo Coitinho (Cidadania) na redação do inciso VII do artigo
28 que isenta do IPTU os templos e casas religiosas do Município, mediante a sua
regularização junto à entidade associativa ou apresentação de alvará de funcionamento.
Ocorre que, como afirma Prandi "Grande parte da fraqueza das religiões afro-brasileiras
advém de sua própria constituição como reunião não organizada e dispersa de
grupos pequenos e quase domésticos, que são os terreiros" (PRANDI, 2003, p.25), diante
disso, poderíamos pressupor que algumas Leis que estão sendo criadas para o Povo de
Terreiro encontrem obstáculos específicos dentro da forma de organização da própria
comunidade. Ainda em 2021 foi instalado um adesivo no centro do Mercado Público de
Pelotas, para marcar o local do assentamento de Bará realizado lá em 2012 e em 2022 foi
determinado um espaço no encontro das ruas Quinze de Novembro e Lobo da Costa, no Largo
do Mercado Central, que passou a se chamar Esquina do Axé e das Manifestações Populares.
Foi sancionada a lei de autoria do vereador Paulo Coitinho, que dedica o local para eventos e
cultos ligados às religiões e outros movimentos de matriz afro-brasileira.
Outro aspecto preocupante é a falta de união e diálogo entre Associações e
Federações Religiosas, isso se evidencia em eventos como a festa em Homenagem a Iemanjá
e Ogum, que acontecem em dias diversos conforme o grupo que organiza. Ao falar em luta
pela religião em Pelotas, não posso deixar de trazer a atuação de um grupo particular que
reúne líderes religiosos chamado Amigos da Umbanda, dirigido por Carlos Alberto Pereira,
um grande conhecedor da religiosidade pelotense e que tem um trabalho expressivo na luta
dentro do legislativo pelotense ao lado do Vereador Paulo Coitinho na construção de um
arcabouço legal de proteção e de garantia de direitos, que como já disse esbarra na própria
forma de constituição dos espaços religiosos. Uma importante conquista deste grupo informal
de religiosos foi a colocação de uma imagem — por eles adquirida — na zona portuária da
cidade, em homenagem ao orixá Ogum. O discurso da prefeitura: “inauguração de uma
imagem de São Jorge [...]. A estátua foi instalada pela Prefeitura [...]. O monumento também
representa o orixá Ogum nas religiões de matriz africana”, corrobora minha tese de que há
disparidade entre discurso e retórica. Foram meses de campanhas do grupo para aquisição da
imagem e preparação do local, como vemos na imagem onde o senhor Júnior da Oxum limpa
o monumento.
Fonte: https://www.facebook.com/carlosalbertopereira1937/photos_by
Considerações finais.
A história das lutas sociais de grupos diversos dentro da sociedade acontecem no
ambiente agônico da Democracia, por momentos nos dirigimos a antagonismos e é nestes
momentos que precisamos reconhecer as diferentes identidades sem esquecer nossa
capacidade de empatia. A luta antagônica não permite diálogo e sem diálogo não avançamos
em estabelecimento de Direitos de respeito às diferenças. As religiões de matriz africana têm
sua história marcada pelo medo e pela violência, ainda hoje vemos terreiros queimados e
pessoas sendo agredidas pela cor da sua fé. E que cor é essa? Em momento nenhum durante a
entrevista realizada com Pai Luiz Azocar, herdeiro de uma das mais antigas Terreiras de
Umbanda de Pelotas eu soube a cor da pele na sua história pregressa, soube a sua por tê-lo
diante de mim, e pelo que luto em minhas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras, essa
informação não deveria importar ao leitor, por isso não a trago.
Não há como negar que existem diferentes frentes lutando pela religião em Pelotas,
porém a falta de unidade faz com que os avanços sejam ainda muito pequenos, se de um lado
vemos espaços sendo criados, de outro vemos a história sendo destruída como está
acontecendo na comunidade do Passo dos Negros. A caminhada é longa, a “intolerância” com
as religiões de matriz africana se reveste de racismo, ou você já ouviu falar de intolerância ou
violência com outras religiões de forma tão expressiva?
Pelotas têm uma história sui generis em sua negritude e não pode enfrentar essa
questão envolta em armadilhas, como a de dar ênfase as tradições africanas que sobreviveram
à escravidão — e aqui podemos colocar a religião —, ignorando ou mergulhados em um
“esquecimento” do processo escravagista. Essa posição faz com que não percebamos a
dificuldade imposta na manutenção e transformação dessas tradições que se refletem até hoje.
Precisamos nos voltar a noção de arqueologia em que é necessário olhar além da superfície
quando somente a profundidade nos permite entender o processo social que existe entre nossa
história vivida e contada, os discursos e as práticas concretas. A Pelota no pórtico de entrada,
lindamente encenada no tempo em que os indígenas a usavam, tornou-se posteriormente
importante instrumento das charqueadas e seus nadadores eram negros escravizados, como ela
seria refletida pelo espelho de Oxum? Deixo a indagação ao bel prazer do leitor.
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Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pixo/article/view/12788. Acesso
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utilizados como templos religiosos, desde que apresentados “alternativamente” os seguintes
documentos: alvará de funcionamento e/ou certidão de regularidade de registro junto a
entidade associativa e/ou declaração da entidade associativa de sua condição de associada
credenciada ao poder municipal, RG e CPF do responsável legal na falta de estatuto ou
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Instituto Pierre Verger, 2018.
1
“Como uma alternativa à metafísica da “raça”, da nação e de uma cultura territorial fechada, codificada no corpo, a
diáspora é um conceito que ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento” (GIROY, 2012. As
religiões afro-brasileiras são por mim entendidas como afrodiaspóricas porque são um símbolo cultural que se expandiu por
meio da diáspora, da migração dos povos africanos pelo processo de escravidão.
2
Trabalhos feitos com elementos ritualísticos com diversas finalidades, de saúde, abertura de caminhos, amor, entre outros.
3
Mitos e histórias dos Orixás, passadas pela oralidade através de gerações na África.
4
Energia vital presente nos elementos da Natureza que representam a força do Orixá africano.
5
Espaço físico onde se realizam os encontros religiosos de vertentes afro-brasileiras, podendo ser conhecido também como
roça, denominação mais comum no Candomblé.

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