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discurso narrativo e a realidade, a narrativa texto dependente de sua forma não implica,
histórica mantém relações necessárias e de modo algum, reduzir a história ao texto,
estreitas com o seu objeto social real.” como fazem os autores estruturalistas ou
(CARR, 1986, p. 26). pós-estruturalistas, que negam a existência
Assim, se, como propõe Iohannes da história fora do discurso. Trata-se, antes,
Kabatek, “um dos problemas fundamentais de relacionar texto e contexto, de buscar os
da lingüística histórica em geral – e dos nexos entre as ideias contidas nos discursos,
estudos da língua medieval, em particular – as formas pelas quais elas se exprimem e o
reside na relação entre a evolução lingüística conjunto de determinações extratextuais que
e a tradição textual”, (KABATEK, 2001, p. presidem a produção, a circulação e o
97) à história impõe-se o da relação entre consumo dos discursos. Em uma palavra, o
texto e contexto, entre o discurso e a historiador deve sempre, sem negligenciar a
sociedade em meio à qual se produz, à qual forma do discurso, relacioná-la ao social
se refere mas que o ultrapassa. Autor de (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 378). Por
discursos que se produzem, ainda hoje, outro lado, negar a redutibilidade da história
essencialmente a partir de outros discursos – ao texto não significa admitir que haja uma
à história se impõem as línguas, história independente do texto. A história é
instrumentos cruciais do diálogo – tal sempre texto, ou mais amplamente, discurso,
relação, tão íntima, não é isenta de tensões e seja ele escrito, iconográfico, gestual etc., de
controvérsias que, em última análise, põem forma que apenas a partir da decifração dos
em xeque a natureza do próprio ofício do discursos que exprimem ou contêm a
historiador. Será a história apenas um história poderá o historiador realizar seu
nominalismo bem temperado, e seu objeto ofício. Como destaca Verón (1981, p. 192),
tão somente os ecos quase inaudíveis dos no funcionamento de uma sociedade
discursos de outrora? O historiador pós- historicamente dada, o sentido não se
modernista F. R. Ankersmit, por exemplo, encerra em uma instância particular, antes se
declara: encontra por toda parte, assim como a
ideologia e o poder. Segundo o mesmo
Suponhamos que perguntamos pela autor, as “condições de produção” de um
causa da [...] ‘Revolução Industrial’ ou discurso têm a ver com o “ideológico”, com
da ‘Guerra Fria’. Devemos agora os valores sociais da comunidade que o
lembrar que esses termos não se
produz, ao passo que as “condições de seu
referem a uma realidade histórica fora
do texto, mas a elementos da narrativa.
reconhecimento” dependem do poder, isto
Isso significa que essas perguntas não é, das instâncias capazes de legitimar ou não
são perguntas sobre a causa de um a sua aceitação na sociedade.
complexo estado de coisas no fim do Situando-me no contexto da transição da
século XVIII ou após a II Guerra Antiguidade à Alta Idade Média Ocidental, e
Mundial, mas sobre a causa de uma em meio ao fluxo de um processo histórico
idéia ou de um elemento da narrativa. marcado pelo fenômeno da implantação e
(ANKERSMIT, 1990, p. 285). disseminação do cristianismo, abordarei, na
sequência deste artigo, as controvérsias
A abertura do historiador à linguística, à historiográficas relativas ao teor a ser
semiótica e à crítica literária – como de resto atribuído às “sobrevivências pagãs”
às demais ciências humanas, ao menos sob recorrentes nos textos de época,
tal perspectiva acrítica e subserviente de denunciadas e combatidas pelos homens da
interdisciplinaridade – concorre menos ao Igreja. Atas conciliares, hagiografias,
pleno cumprimento de seu ofício de fazer sermões, legislação constituem apenas
história do que à intenção de evadir-se dele! alguns exemplos de gêneros discursivos
Fixemos, pois, a nossa perspectiva de amplamente devotados à caracterização de
base: considerar o conteúdo histórico do crenças incompatíveis com o sistema cristão
BASTOS, M. J. da M. Imagens da Educação, v. 1, n. 2, p. 1-11, 2011
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contudo, ao campo da subjetividade. “Esta tópico, isto é, consistia num vasto sistema de
realidade era mais mental do que prática representações e de práticas simbólicas pelas
refletindo, essencialmente, os temores e quais os homens do período concederam
receios que preocupavam a mente dos um sentido e uma ordem ao mundo, ou seja,
autores”. (HEN, 1995, p. 171) Trata-se de representaram, organizaram e legitimaram as
adotar, em tais “análises”, implícita ou relações estabelecidas entre si e com a
explicitamente, as premissas do famoso natureza.
“método arqueológico” de Foucault, As reiteradas condenações às crenças
dedicado a evidenciar um conjunto de regras visavam práticas contraditórias com a
de formação e transformação – tipos de ortodoxia cristã, revelando, ademais, que a
apresentação, construção, encadeamentos, relativa autonomia preservada pelas
figurações, imagens, etc. – que controlam, comunidades camponesas sustentou uma
em cada época (ou episteme), os diversos base de contínua elaboração e reelaboração
domínios do discurso, de acordo com de uma cosmovisão irredutível, plenamente,
“práticas” (ideológicas, sobretudo) aos preceitos ditados pelas elites
articuladas ao próprio discurso. Essa eclesiásticas. Numa época em que os
maneira de encarar a pesquisa permitiria sacerdotes cristãos arrogavam-se, e
tomar os enunciados como efeito de um impunham pela força, o exclusivo da
modo de apresentação discursiva que regula mediação com os céus, erguiam-se fáceis, e
a sistematicidade deles, ressaltando o que há ao alcance de todos, as pedras, as fontes e as
de comum, a respeito, em diferentes tipos de árvores sagradas (BASTOS, 2003, p. 290-
discurso. Este modus operandi apresenta, 291).
porém, graves distorções, cuja caracterização Portanto, as práticas veiculadas pelos
conclui este artigo. discursos não são, em si,
Ora, considerando-se os campos de predominantemente discursivas, não se
manifestação dos vários cultos condenados, limitam ou se reduzem ao plano da
destaca-se a sua incidência no âmbito de “discursividade”. Não se trata, inclusive,
atividades e necessidades várias, apenas de aludir ao aspecto prático dos
fundamentais e correntes na vida quotidiana discursos. É fundamental à sua plena
e trabalho das comunidades camponesas, compreensão a consideração da diversidade
como a fertilidade dos campos, a garantia e das práticas sociais, inserindo-as no campo
preservação das colheitas, a proteção da casa de estudos a partir de alguma teoria relativa
e do trabalho doméstico, além daquelas que ao funcionamento e à mudança das
podem estar diretamente associadas à sociedades humanas (McNALLY, 1999, p.
importância econômica crucial das 33-49). Ademais, as tais “regras que
atividades nas áreas incultas, como os cultos controlam o discurso” determinam, quando
às árvores, rios, mar, fontes. Referem-se, muito, as condições de possibilidade, e não
pois, a um âmbito essencial da estruturação as condições efetivas de produção dos
das sociedades humanas, aquele que se textos. Assim, a emergência, numa
efetiva nas relações estabelecidas entre os sociedade, de um enunciado, de um
homens e a natureza. Nenhuma ação costume, de uma experiência, num contexto
material do homem sobre a natureza, dado – o fato de que isto ocorra – não
nenhuma ação intencional, pode se depende apenas (nem principalmente) de
desenvolver sem considerar, desde seu tais “regras”, e sim, do jogo complexo das
início, as realidades “ideais”, isto é, as condições econômico-sociais, políticas e
representações, as concepções acerca da ideológicas diversas. Depende,
ordem do funcionamento da natureza. Na essencialmente, do estado deste conjunto de
sociedade medieval, como em várias fatores naquele momento específico, da
daquelas estudadas pelos antropólogos, a intervenção dos indivíduos e, até mesmo, de
religião incidia, justamente, sobre este certa dose de acaso. As “regras” são
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