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A FORMAÇÃO PARA SER TREINADOR

António Rosado1 e Isabel Mesquita2


1
Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa
2
Faculdade de Desporto, Universidade do Porto

RESUMO
Quando, hoje, se reflecte sobre a formação de treinadores não é tanto a sua pertinência que
é equacionada mas os modos de a concretizar. Apesar de não existirem estudos de
avaliação do actual sistema de formação de treinadores, os diversos modelos têm
evidenciado uma verdadeira incapacidade de melhorar significativamente quer a formação
científica quer as competências profissionais dos treinadores. No que se refere aos âmbitos e
estruturas de formação a diversidade é, também, significativa, quer no que respeita às linhas
orientadoras, à estrutura institucional e logística, aos pré-requisitos de acesso, à natureza e
extensão dos currículos, aos modelos e estratégias de formação e avaliação.
Na realidade, a formação de treinadores desportivos, pouco presente como formação de
nível superior, têm-se estruturado em torno daquilo a que chamaremos uma visão
tecnocrática estrita. Os modelos de formação têm seguido uma orientação transmissiva e
tecnicista, exigindo-se que os treinadores assimilem conhecimentos, nomeadamente,
“conhecimentos práticos” e que, no âmbito desta abordagem tecnicista, o façam
reproduzindo comportamentos fundamentalmente de cariz técnico-metodológico. Fazem-no,
assim, fundamentalmente, na direcção do desenvolvimento de competências de ordem
técnica e metodológica deixando de lado, muito significativamente, a formação em matéria
relacional e deontológica, o desenvolvimento de posturas profissionais reflexivas e sócio-
críticas, a aquisição de uma consciencialização de si enquanto pessoa e enquanto
profissional e a possibilidade de desenvolver competências de investigação e criatividade.
Importa, pois, discutir as condições mais adequadas para fundar a profissionalidade do
treinador desportivo. Repensar a formação de treinadores com base em novas perspectivas,
considerando os actuais desenvolvimentos internacionais é, hoje, essencial. A reflexão a
desenvolver sublinha a necessidade de uma formação perspectivada como desenvolvimento
pessoal, técnica e cultural, científica e pedagógica, caracterizando os diversos modelos e
estruturas de formação no plano da auto e da hetero-formação, procurando destacar
princípios gerais da formação de treinadores e as correspondentes estratégias de formação.

Palavras-chave: Formação de treinadores, Competências, Estratégias de formação

1
INTRODUÇÃO
Treinar deve ser entendido como fazer aprender e desenvolver capacidades, ou
seja, como um conjunto de acções organizadas, dirigidas à finalidade específica de
promover intencionalmente a aprendizagem e o desenvolvimento de alguma coisa
por alguém, com os meios adequados à natureza dessa aprendizagem e desse
desenvolvimento. Neste contexto, o treinador deve ser visto como o profissional que
tem a função específica de conduzir esse processo, o treino desportivo, fazendo-o
no quadro de um conjunto de saberes próprios, saberes esses que sustentam a
capacidade de desempenho profissional.
As funções do treinador definem-se, assim, com base num conjunto de
competências resultantes da mobilização, produção e uso de diversos saberes
pertinentes (científicos, pedagógicos, organizacionais, técnico-práticos, etc.),
organizados e integrados adequadamente em função da complexidade da acção
concreta a desenvolver em cada situação da prática profissional.
Uma concepção moderna de treinador exige que se reconheça o carácter integrado,
complexo e diferenciado dos processos de aprendizagem, treino e desenvolvimento
dos diversos tipos de desportistas, competindo ao clube e ao treinador promovê-los
e assegurá-los, no quadro do desenvolvimento dos indivíduos no clube, na
comunidade desportiva e na sociedade.
Na realidade, quando, hoje, se reflecte sobre a formação de treinadores não é tanto
a sua pertinência que é equacionada mas, sim, os conteúdos e as estratégias ou
modos de a concretizar, criando condições para a construção de uma profissão com
capacidade de resposta aos desafios que o mundo do desporto actual lhe coloca.
Evidenciado o reconhecimento da importância da formação de treinadores
reconheça-se, também, a clara tendência para a sua complexificação, dadas as
exigências crescentes que se colocam ao exercício destas práticas profissionais no
espaço nacional e internacional. Parece-nos, apesar de não existirem estudos de
avaliação do actual sistema de formação de treinadores, que os diversos modelos
adoptados têm evidenciado uma verdadeira incapacidade de melhorar
significativamente quer a formação científica quer as competências profissionais dos
treinadores. Constituindo a diversidade de modelos uma das primeiras
características da situação actual importa debruçarmo-nos sobre esta problemática
com particular atenção. Em primeiro lugar, a diversidade é muito significativa,
ultrapassando os limites de uma variabilidade aceitável; as possibilidades de
formação inicial são diversas, quer no que respeita às linhas orientadoras, à
estrutura institucional e logística, aos pré-requisitos de acesso, à natureza e
extensão dos currículos, aos modelos e estratégias de formação e avaliação. Em

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matéria de formação contínua, por outro lado, parece estar tudo por fazer. As
tentativas de harmonização europeia dão, aliás, conta desta situação sendo uma
problemática que está na ordem do dia nas redes europeias de formação, mantendo
toda a actualidade quer científica quer profissional.
Repensar a formação de treinadores envolve, necessariamente, embora não
exclusivamente, a utilização dos conhecimentos científicos mais actuais nesta
matéria e a consideração das experiências de formação em outras áreas
profissionais afins. Na realidade, esta problemática corresponde a uma área da
investigação em Ciências do Desporto onde a investigação é, ainda, muito limitada.
No entanto, as similaridades entre a formação de treinadores e a formação de
professores, em particular de Educação Física, onde a investigação é
substancialmente superior, aconselham a utilização, ainda que criteriosa e
particularmente contextualizada, dos resultados da investigação nesse ambiente
evitando incorrer-se nos riscos e nos erros por que passou a própria formação de
professores.
Rupert and Buschner (1989) consideram, aliás, que ambos os grupos profissionais
beneficiariam se tivessem em conta a investigação dos dois campos. Neste âmbito,
algumas analogias podem ser particularmente benéficas para a formação de
treinadores desportivos. Tratam-se, na realidade, de profissões de uma mesma
área, hoje referenciada como “profissões do desporto”, com muitas semelhanças no
que se refere à sua missão, ao serviço que providenciam e às populações a que se
dirigem. Pela nossa parte gostaríamos de sublinhar alguns tópicos de reflexão
estruturantes da formação de treinadores.

Valorizar a competência académica


Perrenoud (1995) define formação como uma intervenção visando uma modificação
nos domínios dos saberes, dos saberes-fazer e dos saberes-ser do sujeito em
formação. No âmbito desta concepção, teremos de reconhecer que a formação
envolve o desenvolvimento de pessoas não só na área dos conhecimentos mas,
também, das realizações e das atitudes, devendo acontecer ao longo da vida dos
profissionais com base em movimentos estruturados, de base institucional, como,
também, da auto-formação, do investimento e reflexão em situações de auto-
formação. A formação do treinador deve orientar-se, não só para o treinador como
objecto mas para o treinador enquanto sujeito, permitindo-lhe encarar o
conhecimento não, exclusivamente, como um instrumento profissional mas, também,
como um meio de realização pessoal, permitindo conceber a profissão como um
projecto de vida, de valorização e crescimento pessoal. Trata-se de defender a

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organização de processos de desenvolvimento pessoal que respeitem a
individualidade do treinador, que o estimulem a descobrir-se e a descobrir a sua
maneira pessoal de se tornar treinador, o seu estilo, os seus sentimentos, os seus
valores e crenças, num ambiente de reflexão sobre si que personalize a formação.
Neste sentido, a formação académica não pode ser menosprezada; esta refere-se a
processos e resultados de estudos que se orientam para o desenvolvimento mais
acentuado numa ou mais áreas ou para aquilo a que se convencionou chamar
cultura geral, isto é, o desenvolvimento de competências de cultura alargada que
permitam desenvolver atitudes críticas fundamentadas, abertura a novas ideias e a
capacidade de encarar os limites do seu próprio conhecimento. O treinador terá de
ser uma pessoa culta esperando-se que essa cultura alargada lhe permita
corresponder às expectativas dos atletas, desenvolver processos de auto-formação
e de inovação, competências de exercício da profissão que exigem uma formação
de base, académica ou escolar, cada vez mais elevada. Ora, a formação de
treinadores de cariz mais tradicional assenta numa lógica de formação prática, de
saberes práticos, muitas vezes sob a forma de “receitas” e num ambiente de grande
desvalorização dos aspectos teóricos e dos espaços de reflexão. Por outro lado, a
formação teórica que ainda existe, escassa, envolve-se em saberes teóricos
abstractos onde não é possível a experimentação, não potenciando o
desenvolvimento de saberes-fazer profissionais. Os níveis de formação escolar são
decisivos para garantir um conjunto de pré-requisitos fundamentais à formação
especializada como treinador desportivo, tendendo a condicionar o acesso a
diferentes níveis de formação profissional.

Combater a visão tecnocrática estrita


Na realidade, a formação de treinadores desportivos, pouco presente como
formação de nível superior, tem-se estruturado em torno daquilo a que chamaremos
uma visão tecnocrática estrita. Os modelos de formação têm seguido uma
orientação transmissiva e tecnicista, exigindo-se que os treinadores assimilem
conhecimentos, nomeadamente, “conhecimentos práticos” e que, no âmbito desta
abordagem tecnicista, o façam reproduzindo comportamentos fundamentalmente de
cariz técnico-metodológico. Fazem-no, assim, fundamentalmente, na direcção do
desenvolvimento de competências de ordem técnica e metodológica deixando de
lado, muito significativamente, a formação em matéria relacional e deontológica, o
desenvolvimento de posturas profissionais reflexivas e críticas, a aquisição de uma
consciencialização de si enquanto pessoa e enquanto profissional, a possibilidade
de desenvolver competências de investigação e criatividade. Uma formação com

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bases pouco científicas, quer nos momentos de formação inicial quer de formação
contínua, não pode permitir uma verdadeira apropriação dos conhecimentos da sua
área profissional.

Adoptar posturas sócio-críticas


A formação pedagógica e humanista tem estado arredada das formações
profissionais dos treinadores. Deixa-se de lado a formação humanista dos
treinadores e o desenvolvimento das suas competências de intervenção nesta
dimensão, afastada que está, da formação, a reflexão ético-deontológica e uma
análise mais aprofundada do sentido do desporto e das suas práticas profissionais.
Repare-se, em referência à formação de professores que, recentemente, têm
existido alterações nos paradigmas de estudo do ensino da Educação Física,
discutindo-se que filosofia pedagógica é mais adequada para fundar a
profissionalidade em Educação Física (Kelly et al. 2000). Se responder ao “como
ensinar” não deixa de ser essencial, outros programas estão preocupados em formar
professores que sejam mais do que técnicos de educação e adoptam posturas
orientadas para uma formação sócio-crítica (Tinning 1991). A formação de
professores aproxima-se, cada vez mais, do conceito de desenvolvimento do
professor, envolvendo mais do que os aspectos técnicos da profissão, as dimensões
pessoais e culturais. Na realidade, mesmo considerando que a aproximação
positivista e os paradigmas tradicionais de pesquisa contribuíram decisivamente
para a Pedagogia do Desporto, da Educação Física e do Treino Desportivo, a
adequação desses paradigmas tem vindo a ser desafiada (Macdonald, 2002). Como
resultado, uma pedagogia socialmente construída tem vindo a emergir,
reconhecendo alguns princípios e crenças básicas; entre esses princípios, de uma
pedagogia socialmente crítica, sublinha-se a dedicação à justiça social, à inclusão e
mudança social (Leistyna et al. 1996), procurando-se desafiar o status quo e
provocar mudanças sociais (Sparkes 1992). A formação de treinadores não pode
ficar alheia a estes desenvolvimentos. O estatuto, emergente, da Pedagogia do
Treino Desportivo, necessita de retomar um processo já percorrido pela formação de
professores de Educação Física embora este processo, com base na experiência da
formação em Educação Física, possa, agora, ser acelerado. Na realidade, embora
existam algumas dificuldades na caracterização da actividade profissional de
treinador (vejam-se os actuais desenvolvimentos da AEHESIS), do seu perfil de
competências profissionais e dos seus modelos de formação, é largamente aceite a
sua natureza multifacetada, variando entre as competências de um professor até às

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de um estratega de jogo, passando por competências de liderança, de gestão de
pessoas e muitas mais.
Os treinadores necessitam de possuir extensos conhecimentos técnicos, técnicas de
aconselhamento, atributos de liderança e formação em ciências do desporto (Potrac
et al. 2000). Por outro lado, uma área que exige maior desenvolvimento é a
pedagogia do treino, quer nas suas dimensões teóricas quer aplicadas. Na
realidade, ao contrário do que acontece com a formação de professores, onde a
formação pedagógica é obrigatória e está bastante presente na formação inicial e
contínua, na formação de treinadores esta formação é largamente negligenciada.
Por exemplo, estudando o programa da NCAS, Alexander et al. (1994), verificaram
que a Pedagogia só era tratada a nível teórico e não promovia, suficientemente, as
estratégias instrucionais relacionadas com a comunicação e a gestão de grupos. Tal
é, também, a realidade, em Portugal.

Evitar a falácia do “accountability”


É hoje corrente pugnar por sistemas de formação desenhados de forma a garantir a
sua “accountability”. Trata-se tão só de promover modelos de formação que
assumam responsabilidade pelos resultados previamente definidos, permitindo
prestar contas. Tal significa, no essencial, a capacidade de responsabilização no
plano estrito do contracto explícito e em termos de acções verificáveis. Este
paradigma é claramente insuficiente em matéria de formação de treinadores. O
paradigma da responsabilização tem que ser substituído pelo paradigma da
responsabilidade. Na realidade, sublinhamos, a responsabilidade não é sinónima de
responsabilização; inclui-a mas é algo mais. É, no essencial, um compromisso não
só com os meios mas, também, com os fins, com o projecto, com a missão. A
responsabilidade aponta para objectivos mais latos, envolvendo deveres
profissionais que, provavelmente, não será fácil ou possível, traduzir, de modo
verificável, pelo menos a curto e médio prazo. A responsabilidade, insistimos, guia-
se mais por princípios do que por procedimentos, mais pela criatividade do que pela
anuência. Não existirá profissionalidade sem missão, sem referência a uma
ideologia de serviço, determinando esta uma estrutura ética balizadora das
intervenções profissionais.

Fundar a profissionalidade numa prática reflexiva


A reflexão sobre as experiências práticas tem vindo a revelar-se fulcral na aquisição
de competências profissionais (Gould et al., 1990; Knowles, Borrie & Telfer., 2005;
Salmela, 1995), colocando em causa as tradicionais estratégias de formação de

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treinadores baseadas na valorização do aporte teórico transmitido pelo formador,
assentes, não raramente, em prescrições de desempenho profissional, sem conferir
espaço à aprendizagem pela reflexão acerca da própria prática (Knowles, Borrie,
Telfers, 2005). O sentido da mudança não implica tanto a necessidade de reflectir
para adquirir conhecimento declarativo mas, preferencialmente, a capacidade de
reflectir a prática e de contextualizar o conhecimento declarativo e processual, de
forma a melhorar o conhecimento condicional (Potrac et al., 2000). A importância da
reflexão na aquisição de competências profissionais encontra suporte na teoria de
Schön (1983, 1987). Este autor, baseado na investigação de modelos profissionais
em áreas diversificadas, verificou que o crescimento profissional é consumado
através da experiência de reflexão sobre os dilemas práticos, referido como
conversação reflexiva. Segundo o autor os indivíduos prestam mais atenção à
informação que tem um significado pessoal e imediato para eles e quando a atenção
operativa é grande, o que significa que a aprendizagem quando é situada (problema
concreto, emergente de cenários reais de treino/competição) com um envolvimento
pessoal intensificado, promove a focalização nos problemas e, consequentemente, a
sua resolução. De acordo com Schön (1987) a teoria da reflexão é particularmente
apropriada para ambientes onde os procedimentos são altamente flexíveis, com
possibilidades de respostas diferenciadas, sujeitas a apreciações qualitativas de
processos complexos, apanágio dos envolvimentos de intervenção do treinador.
Todavia, a ilusão de que a capacidade reflexiva é adquirida naturalmente pela
experiência tem conduzido à sua negligência nos programas de formação de
treinadores. Não é raro assistir-se a uma preocupação exagerada em se cumprir o
programa, ou seja, dar toda a matéria, sendo negligenciados os processos de
reflexão e, mesmo quando estes existem, são desencadeados nas horas que,
eventualmente, sobram. Neste âmbito, as reflexões não são sistemáticas, não
possuem orientação de acordo com parâmetros de reflexão preestabelecidos, não
exercem a influência desejada na capacidade reflexiva acerca da própria acção.
Complementarmente, a reflexão deve acontecer em envolvimentos situacionais
apelativos da discussão, na medida em que a reflexão sobre a própria actuação ou a
de outros, só melhora a capacidade reflexiva se a troca de ideias, conceitos,
sentimentos, etc., for intencionalmente promovida. Sendo assim, os programas de
formação devem deliberadamente provocar experiências de auto-reflexão, de
partilha de pensamentos, da valorização das experiências práticas, em contextos
específicos suportadas pela supervisão e aconselhamento. Obviamente que a
reflexão sobre a prática não se deve cingir, exclusivamente, aos conteúdos de
natureza técnica mas também, e não menos importante, ao desenvolvimento

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pessoal e social dos formandos concretizado na capacidade de aprender a partilhar
ideias, de aceitar as diferenças, de desenvolver valores morais, de valorizar a boa
prática desportiva, etc. A construção de um estilo pessoal é um dos requisitos para
se ser expert, sendo potenciada pela prática reflexiva.

Apostar na aprendizagem experiencial


Do que foi exposto acima resulta que, mais do que adquirir elevado conhecimento
teórico, importa, acima de tudo, possuir conhecimento prático acerca de soluções a
aplicar, em cada situação particular de treino/competição. O mesmo será afirmar que
no processo de formação interessa, sobretudo, que os treinadores em fase de
formação, adquiram e dominem os conhecimentos que são capazes de aplicar. De
facto, é o sentido de aplicação dos conhecimentos que permite a consolidação das
aprendizagens sustentáveis a longo prazo. Daí que é o conhecimento condicional
(quando e onde aplicar procedimentos particulares), adquirido pela aprendizagem
experiencial, que confere apropriação ecológica ao conhecimento declarativo
(informação factual sobre o que fazer) e processual (como fazer). Tal significa que
os conhecimentos teóricos adquiridos só se tornam verdadeiramente úteis e
significativos quando mostram ser eficazes em contextos dinâmicos sujeitos a
circunstâncias únicas, apanágio do treino/competição (Jones et al., 2003). Todavia,
aprender experienciando não pode significar a utilização, ausente de critério, de
situações práticas, sem referenciais pedagógicos e metodológicos norteadores das
estratégias de formação a aplicar pelos formadores. A aprendizagem experiencial
deverá ser aproveitada pelos formadores, enquanto meio prioritário de
aprendizagem, desde que se baseie na compreensão das decisões tomadas e nos
erros cometidos.

Diversificar as estratégias de formação


Na formação inicial e no desenvolvimento profissional dos treinadores o modelo
mais utilizado corresponde à realização de cursos de formação com o objectivo de
treinar o treinador para o domínio de competências previamente estabelecidas e
ensinadas por especialistas. Algumas das críticas a este modelo referem-se ao seu
pendor demasiado teórico, à pouca flexibilidade no momento de adaptar os
conteúdos aos participantes e ao facto de ignorar o saber-fazer do treinador.
Importa, portanto, que outros modelos possam ser adoptados na formação de
treinadores.
Marcelo (1995) distingue quatro modelos de formação e desenvolvimento
profissional: o desenvolvimento autónomo, o desenvolvimento profissional baseado

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na observação e supervisão, o modelo do desenvolvimento curricular e
organizacional e o modelo da investigação-acção. O modelo do desenvolvimento
profissional autónomo corresponde a uma concepção segundo a qual os treinadores
são sujeitos capazes de auto-aprendizagem, que decidem iniciar e dirigir por si
próprios os processos de formação. A falta de hábitos de reflexão e de
fundamentação teórica dos treinadores (que limita o aprofundamento de temas mais
complexos) e a dependência da vontade de alguém que assume a coordenação do
grupo, são alguns aspectos negativos associados a esta modalidade de formação
que deve ser vista de forma complementar a modelos mais organizados de
formação. Por outro lado, o desenvolvimento profissional baseado na observação e
supervisão usa a reflexão como estratégia para a formação. O seu objectivo é
desenvolver uma maior auto-consciência pessoal e profissional. As estratégias
usadas neste modelo dividem-se em dois grupos: as que usam a observação e a
análise do treino e as que procuram elevar a capacidade de reflexão do treinador,
através da análise da sua linguagem, dos seus constructos pessoais e do seu auto-
conhecimento. Integram o primeiro grupo as modalidades de apoio profissional
mútuo: o coaching, o mentoring, o counseling e, mais genericamente, a supervisão.
A redacção e análise de casos, a análise de biografias profissionais, a análise dos
constructos pessoais e teorias implícitas, a análise do pensamento através das
metáforas e a análise do conhecimento didáctico do conteúdo através de árvores
ordenadas são estratégias que pertencem ao segundo grupo.
O modelo do desenvolvimento profissional através do desenvolvimento curricular e
organizacional inclui, potencialmente, actividades em que os treinadores
desenvolvem ou adaptam um currículo, desenvolvem um programa ou se envolvem
em processos de melhoria de aspectos organizacionais específicos. Um outro
modelo refere-se ao desenvolvimento profissional através da investigação-acção,
que propõe um tipo de pesquisa em que os problemas surgem a partir da própria
prática do treinador. A investigação-acção surge com o objectivo de melhorar a
profissionalidade do treinador, através de um aprofundamento da sua capacidade de
análise crítica das condições em que desenvolve o seu trabalho com os atletas, com
os outros treinadores assim como das pressões e limitações que as estruturas
sociais e institucionais exercem na sua actividade profissional (Marcelo, 1995).
Nesta inventariação de modelos de formação refira-se, ainda, por analogia com
práticas instaladas na formação contínua de professores, actividades como:
estágios, oficinas de formação, projectos, círculos de estudos, seminários e cursos
modelares, entre outras.

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Estas modalidades podem ser agrupadas em torno de dois modelos gerais de
formação: um modelo de formação centrada nos conteúdos (“Curso”, “Módulos de
Formação” e “Seminário”) e um modelo de formação centrada nos contextos, que se
pode subdividir em formação centrada na mudança organizacional (Círculos de
Estudos e Projectos) e no exercício profissional (Oficina e Estágios).
No que se refere às modalidades de formação centrada nos conteúdos os “Cursos”
e os “Módulos de Formação” são acções que se podem destinar com facilidade à
aquisição de conhecimentos e competências profissionais. A diferença entre estes
dois modelos de formação reside na sequencialidade dos “Módulos de Formação”,
sendo que os Seminários acrescentam a estes uma característica de estudo
avançado e de trabalho científico mais exigente. A sua metodologia caracteriza-se
por estudo autónomo, relatos ao grupo e elaboração de ensaios críticos ou relatos
científicos de investigação-acção. Quanto às modalidades centradas nos contextos
profissionais, o Círculo de Estudos e o Projecto podem possibilitar que os
treinadores sejam proponentes das acções de formação. No Círculo de Estudos, um
grupo de treinadores pode estudar, em conjunto, uma problemática comum. O
Projecto acrescenta-lhe uma dimensão de investigação-acção. Por último, a Oficina
pretende potenciar a experimentação e a melhoraria dos meios materiais de acção.
Já o Estágio tem como característica dominante a intervenção supervisionada dos
formandos no espaço profissional, ou seja, tem características de intervenção sobre
as práticas específicas da actividade profissional, alternando momentos de
aplicação/experimentação e de reflexão/melhoramento das práticas. No âmbito do
sistema de ensino (desportivo), alguns autores (Metzler,1990; Randall,1992;
Piéron,1996) referem o estágio como decisivo na capacidade profissional. Muitas
vezes, trata-se da experiência principal de ensino acompanhado, antes do fim da
formação e da entrada no mundo profissional. A reforçar esta ideia, outros
profissionais (professores e treinadores) consideram este momento de prática
pedagógica como a fase mais importante e mais significante da sua formação
profissional.
Na realidade, o contacto dos treinadores principiantes com treinadores experientes
têm vindo a revelar-se uma estratégia crítica para facilitar o processo reflexivo, eixo
central na aquisição de competências profissionais (Knowles, Borrie & Telfer, 2005;
Salmela, 1995, 1996). Entre diversas modalidades de formação sublinhamos a
possibilidade de um recurso mais sistemático à Supervisão Pedagógica, ao
Coaching, ao Mentoring e ao Counseling.
A supervisão pedagógica deverá corresponder a um momento fundamental na
formação profissional dos agentes desportivos. Para Metzler (1990) a supervisão

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deve proporcionar ajuda e cooperação aos treinadores, de modo a que estes se
tornem cada vez mais independentes na tentativa de melhorar as suas
competências profissionais. A supervisão surge, habitualmente, associada ao
estágio inicial de formação mas pode permanecer ao longo de períodos bem
maiores de indução profissional.
Outra importante modalidade de formação é o Coaching. Para Rego et al (2004), o
Coaching é um processo planeado e continuado de aperfeiçoamento e superação
profissional e pessoal, baseado especialmente na aprendizagem-acção e na
maiêutica. Um coach, no âmbito de um relacionamento de parceria e de influência
mútua, apoia o treinador na definição e concretização de objectivos profissionais e
pessoais, utilizando as actividades profissionais como situações de reflexão e
aprendizagem, com vista a melhorar a auto-eficácia, o desempenho, o
desenvolvimento, a auto-confiança e a realização pessoal, bem como o seu valor
para a organização.
A mentoria é outra valiosa estratégia de formação sendo apontada pelos treinadores
experts como a estratégia de formação que mais efeito produz na optimização das
capacidades do treinador (Irwin et al., 2005) permitindo fazer o elo entre o
conhecimento declarativo, o processual e o condicional, quando o formador
estabelece a relação entre o conhecimento dito teórico ou fundamental e o
conhecimento prático, emergente dos problemas concretos emergentes no processo
de treino. O Mentoring, como estratégia de formação, é concretizado pelas pessoas
que assumem o papel de mentor, sendo este entendido como a pessoa que
encaminha outra, exercendo sobre essa o papel de guia. Schembri (2003) afirma
que a mentoria é algo particularmente atractivo para aqueles que realizam a
formação de treinadores, dado que essa experiência é feita, muitas vezes, em
exercício, ou seja, proporciona uma oportunidade para reflectir sobre uma
experiência de trabalho efectivo. Os mentorados têm, assim, oportunidade de serem
formados numa situação real, de exercício das suas funções, reflectindo sobre a
experiência vivida e sendo guiados para um nível novo de intervenção com a
colaboração do mentor.
Também o Counseling, como estratégia de formação, deve ser entendido como a
solicitação de um aconselhamento a colegas experientes e/ou técnicos de outras
áreas. Muitos treinadores experientes, no papel de supervisores, de conselheiros e
de mentores, tanto implícita como explicitamente, têm vindo a influenciar
positivamente a carreira dos treinadores, não só, nos conhecimentos e
competências técnicas como também, e não menos importante, na partilha de
filosofias, crenças e valores (Jones et al., 2003). Neste sentido, apesar da sua pouca

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utilização, estas estratégias devem ser consideradas como meios de formação
holística, com preocupações que ultrapassam o domínio da competência técnica e
se centram na pessoa que mora no treinador pela implementação de dinâmicas
psicossociais.

Alargar o âmbito profissional para permitir a profissionalização efectiva


A profissionalidade como treinador exigirá, ainda, um movimento complementar. O
treinador não é, nem deve ser, importa sublinhar, um profissional que trabalha
exclusivamente com jovens. A sua actividade profissional dirige-se para todo o tipo
de praticantes, para todas as pessoas, de todas as idades, qualquer que seja a sua
condição. No âmbito de uma concepção plural de desporto, a sua profissionalidade
deve construir-se pela capacidade de intervir sobre públicos muito variados.
Concretiza-se, sublinhamos, ao longo da vida dos cidadãos, em diferentes contextos
educativos e sociais, correspondendo a uma actividade profissional que visa permitir
aceder ao grau mais elevado possível de excelência motora, entendendo-se esta
como a plenitude máxima na concretização das finalidades das diversas práticas
desportivas. Neste sentido, a actividade do treinador estende significativamente a
sua influência: dirige-se cada vez mais para novos públicos e para as mais diversas
faixas etárias: estende-se ao desporto para deficientes, ao desporto na 3ª idade, ao
mundo do lazer e do turismo, e não, apenas, ao desporto de rendimento e ao
desporto espectáculo.

CONCLUSÕES
A reflexão e a investigação sobre a formação de treinadores devem ser entendidas
como componentes fundamentais de qualificação da totalidade do sistema
desportivo. A necessidade de treinadores qualificados tem crescido de forma
exponencial na nossa sociedade, contrariando a crença geral de que qualquer um
pode ser treinador, desde que o deseje e que o seu passado desportivo o permita.
Se esta necessidade é, hoje, percebida como fundamental pela maioria dos agentes
desportivos, também é verdade que as ofertas de formação focam-se, no essencial,
na optimização da performance nos aspectos relativos aos conhecimentos e
competências circunscritos à planificação e organização do processo de treino e
competição. Trata-se de uma formação básica, muito curta, que deixa de fora muitas
das competências verdadeiramente decisivas da formação e do desempenho
profissional. De facto, a formação é muito reduzida no tempo e, na realidade, os
treinadores não recebem toda a formação que precisam para o desempenho da sua
actividade profissional. Modelos avançados de formação têm que ser desenhados

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de modo a garantir as necessidades de formação, ultrapassando as barreiras que
afectam o desenvolvimento profissional e a formação contínua e as suas atitudes e
crenças face à própria formação. Novos modelos de formação devem garantir,
também, mais oportunidades de experiências práticas de treino e mais
oportunidades de aprendizagem em regimes de coaching e mentoria. A pesquisa
nesta matéria é, naturalmente, fundamental e deve responder a questões sobre as
necessidades de formação de treinadores, nos seus diversos níveis e contextos
profissionais e sobre a eficácia das diversas estratégias de formação na promoção
destes profissionais.

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