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II

CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E
ESTRATÉGIAS DO PROJETO
DE FORMAÇÃO
',

l. Analisando diferentes concepções e práticas de


formação

No âmbito educativo, é hoje amplamente reconhecida a necessidade


de repensar a formação dos professores em todos os níveis de ensino e encon-
trar meios de viabilizá-la efedvamente. Tal necessidade se justifica sobretudo
pela evolução das ciências, pelas transformações das circunstâncias sociais,
culturais, económicas e tecnológicas que afetam as novas gerações, e também
pela própria natureza da ftinção docente, tal como se procura compreendê-la
contemporaneamente. Isto exige dos programas de formação inicial e perma-
nente a capacidade de se constituírem como instrumento constante de ino-
vaçao e melhoria da situação pessoal e coletiva dos professores. Significa for-
mar um professor que saiba lidar com novas exigências curriculares, com
novas competências e habilidades profissionais, para ser um membro atuante
de sua equipe escolar, autor de sua prática, investigador em sala de aula, capaz
de refletir constantemente sobre seu fazer pedagógico.
Para além dos sistemas educativos, muitas pesquisas e investigações5,
durante as últimas décadas, têm tomado a formação de professores como
particular objeto de estudo.
Denominamos formação permanente ou desenvolvimento profls-

5. Para conhecer um levantamento dos diferentes temas de pesquisa na área e principais


publicações, ver Imbernón, 1994, p.24-29.

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sional a formação pós-escolar derivada do trabalho profissional que impli- Na primeira perspectiva, sendo o ensino concebido como uma advida-
ca a aquisição de conhecimentos, atitudes, habilidades e condutas, intima- de arresanal, o aprendiz de seu novo oficio o aprenderia tal qual os antigos
mente relacionada ao campo profissional onde se atua (Imbernón,1994). artesãos. O conhecimento acerca da profissão é visto como sendo lentamente
Ao contrário, pode-se entender a formação permanente como uma
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acumulado ao longo do tempo por um processo de ensaio e erro, de uma
substituição da falta de aprendizagem durante a formação inicial, isto é, como sabedoria profissional que se transmitiria de geração em geração, mediante o
substitutiva de um ensino com baixo rendimento. Seria uma necessidade contato direto e prolongado com a prática. Este conhecimento que o docente
criada pelo sistema educativo para suprir suas próprias deficiências. Coeren- )redsaria para desenvolver sua prática em sala de aula seria gerado nos inter-
tes com essa posição, programas visando tal formação têm tido intuitos com- câmbios informais ou sistemáticos na própria escola. Isto é, a aprendizagem do
pensatórios e restaurativos postulados em objetivos como suprir ou sanar as conhecimento profissional supõe apenas, ou principalmente, um processo de
deficiências dos professores e a má qualidade da educação a eles oferecida no imersão na cultura da escola, mediante a qual o docente se socializaria dentro
sistema escolar. da instituição observando e imitando seus colegas mais próximos.
Acreditamos ser esta uma definição muito restrita e concordamos com Se por um lado este enfoque tem o mérito de admitir que o conheci-
uma outra definição, segundo a qual a formação profissional não se pode mento profissional pode vir da experiência de aprendizagem na escola e da
circunscrever aos anos escolares e nem tentar suprir uma formação inicial Ï observação e imitação dos colegas, por outro lado aprender só com a experi-
idealizadamente completa; antes, ela deve se constituir em uma experiência ''^ ência nos parece insuficiente, pois como diz Alarcâo (1996, p.157): não e
permanente que contribua para o crescimento constante das pessoas, um com a experiência que se aprende; mas com a. reflexão sistemática sobre a
processo que se estenda por toda a vida profissional. Assim, entendemos a experiência. Isto é, o conhecimento prático desarticulado de uma reflexão
formação como mudança intencional e partilhada, como desenvolvimento e organizada sobre suas diferentes implicações pode perder seu valor de busca,
transformação pessoal num contexto de socialização (Lesne &C Minville, 1990). criação e contraste crítico, e ser fonte de repetição e conservadorismo.
As concepções e os modelos dos projetos de formação de professores Outra crítica que podemos elaborar é a pouca autonomia que os
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em serviço estão diretamente relacionados com as diferentes formas de defi- professores desfrutam dentro deste enfoque, tendendo a reproduzir ativi-
nir a profissão docente. Cada um desses paradigmas responde a uma concep- dades e hábitos adquiridos e aceitar (e não questionar) o ponto de vista
cão filosófica determinada sobre o que é ser professor e, de acordo com ela, dominante do contexto escolar particular onde trabalham, sobrando pou-
define os fatores mais importantes a desenvolver e as diretrizes utilizadas nos co espaço para a inovação e a mudança. As iniciativas individuais de busca
seus processos de formação. de estudo e atualizaçâo dificilmente são incorporadas pela instituição, pois
Segundo Gómez (1995), pode-se distinguir três diferentes perspec- os contatos com novas ideias são vistos como fontes geradoras de contradi-
tivas dominantes no discurso teórico e no desenvolvimento prático da fun- coes ou conflitos que poderia.m desestabilizar a ordem das coisas.
cão docente que embasam diferentes modelos de formação de professores: A segunda perspectiva engloba tanto a formação técnica (centrada
uma perspectiva que concebe o ensino como uma arividade artesanal e o em modelos) como a academicista (centrada na teoria), pois, apesar das
docente um artesão; uma perspectiva técnica, que concebe o ensino como diferenças que existem entre elas, ambas coincidem nas suas explicações
uma ciência aplicada e o docente como um técnico; e uma terceira perspec- sobre o desenvolvimento do conhecimento de profissionais da Educação.
tiva, que concebe o ensino como uma atividade crítica e o docente como Isto é, tanto no enfoque técnico como no academicista se estabelece uma
um profissional autónomo que investiga refletindo sobre sua prática. nítida distipçao entre o conhecimento teórico e o conhecimento prático,
De cada uma dessas visões da profissão docente deriva um enfoque com uma clara subordinação do segundo ao primeiro. O segundo ponto
diferente para embasar e delinear propostas de formação contínua de pro- em conium é que o conhecimento do professor seria derivado diretamente
fessores. do conhecimento teórico elaborado por especialistas, que, em si mesmo,
<-,.
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seria indiferente à qualidade de sua aplicação prática (Gómez,1995, p.343). uma epistemologia da. prática que tenha como ponto de referência as com-
Na perspectiva académica, tampouco, o conhecimento especializa- petências que se encontram subjacentes à prática dos bons profissionais7.
do relacionado com a intervenção prática é ou deveria ser património do Schõn buscou explicitar a natureza prática da atividade docente e
docente. A ênfase na transmissão de conteúdos náo leva também em consi- diz que ela implica:
deraçâo a distinção entre "saber" e "saber fazer", deixando de lado, como • um conhecimento na açao, que é aquele que orienta a maior parte
veremos a seguir, um tipo de conhecimento imprescindível para a prática das ações do professor e é fruto de suas experiências práticas, seus conheci-
docente.
II O enfoque técnico-academicista, quase hegemónico, tem gerado grande
mentos teóricos ou espontâneos, suas convicções, mesmo que nao-consci-
entes — é seu saber fazer;
parte das estratégias de formação em serviço que, em função das concepções • a necessidade de reflexão na açao, que é o processo mediante o qual
e características anteriormente descritas, são geralmente emergenciais e en- o professor tem de refletir para saber como melhor intervir e, neste mo-
tendidas de forma estreita e instrumental como treinamentos (manejos de mento, confronta suas teorias com a necessidade de tomar decisões ajusta-
técnicas e métodos de ensino). Apesar deste enfoque reconhecer a importân- das às necessidades das crianças e das situações enquanto está aluando;
cia de bons modelos de atividades e também o papel ftindamental dos aportes • a reflexão sobre a açao e soíre a reflexão na açâo, que é o modo que os
teóricos, a forma como se desenvolve tal formação tem levado os professores professores aprendem a partir da análise e interpretação da sua própria aüvida-
a aplicarem planos de ensino desenvolvidos por outros profissionais, numa de, com maior sistematização e distanciamento e em um momento posterior à
atitude de subordinação aos especialistas e às teorias por eles apresentadas. O prática, com o objetivo de tematizá-la, toma-la como alguma coisa sobre a qual
professor perde, assim, sua capacidade de autonomia profissional. Com isso, se pode pensar de forma fiindamentada a partir de pressupostos que lhe pos-
há uma depreciação do saber que os professores construíram nas suas experi- sam servir de referência teórica, para melhor reconstruí-la. Justamente o que
ências e na reflexão sobre essas práticas. Tal enfoque tende a ocultar a comple- precisa ser realizado nos processos de formação de professores.
xidade da situação educativa, oferecendo de forma prescritiva orientações Dessa forma, Schõn destrincha a prática pedagógica em suas diferen-
que pouco ajudam os professores que a todo momento são colocados em tes exigências no que diz respeito às competências requeridas cie um profes-
situações que demandam tomadas de decisões.
sor e que, segundo Cardoso (1997, p.202), poderiam ser assim sintetizadas:
Na terceira perspectiva, a hermenêutico6-reflexiva, parte-se do su-
posto de que o ensino é uma atividade complexa que se desenvolve em
A função docente implica diferentes competências, como por exem-
cenários singulares, claramente determinada pelo contexto, com resultados
pio, o plano do saber (conhecer as diferentes teorias sobre os dife-
sempre em grande parte imprevisíveis, e carregada de conflitos de valor que rentes aspectos implicados no processo pedagógico); o plano do sa-
requerem opções éticas e políticas. Neste enfoque, o professor é visto como ber-fazer (transpor os conhecimentos teóricos para a prática e extra-
um profissional autónomo que desenvolve seu conhecimento no próprio ir da própria prática recomendações para a açâo); o plano do fazer
processo de construção e reconstrução de sua prática reflexiva. Em outras (saber configurar uma boa situação de aprendizagem e implementá-
palavras, o elemento fundamental na prática docente e a condição essencial la). Todas essas competências implicam ainda saber explicar e justi-
de seu aprimoramento é o desenvolvimento da reflexão.
Considerar esta perspectiva de formação de professores é ter em 7. Schõn propõe que se estude o que se passa em diversos ambientes de aprendizagem
Donald Schõn (1983, 1992) uma importante referência. O autor propõe profissional (de artistas, músicos, arquitetos, engenheiros, professores, desportistas etc.).
Nestas situações, constata que os profissionais aprendem a fazer fazendo e refletindo
sobre os problemas, vendo-os sobre diferentes pontos de vista, compartilhando ideias
6. O termo "hermenêutico" deriva do nome de Hermes, a divindade grega que enuncia com um orientador mais experiente, verificando a validade das soluções construídas e
e interpreta mensagens (Padel, 1992, p.7). suas implicações, pesquisando etc.
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ficar a açâo. Não podemos supor que ao desenvolver uma estamos, Podemos dizer que reflexão é, na atualidade, o conceito mais utiliza-
automaticamente, promovendo a outra.
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do por investigadores, formadores de professores e professores diversos para
se referirem às novas tendências da formação de professores. A palavra re-
Ao explicitar a natureza prática da atividade docente, Schõn defende Hexâo vem do verbo latino reflectere, que significa "fazer retroceder, desvi-
que a formação inclua forte componente de reflexão a partir de situações ando da direçao inicial; espelhar; revelar"9. É, portanto, repensar, retornar
didáticas reais. É esta, segundo ele, avia possível para um profissional apri- continuamente aos caminhos já percorridos, reconsiderar os dados dispo-
morar sua prática e desenvolver sua capacidade reflexiva, utilizando no con- níveis, reexaminar a prática pedagógica de forma crítica e criteriosa numa
texto da sala de aula os conhecimentos pedagógicos construídos nos en- busca constante de novos significados.
No entanto, como adverte Zeichner (1993), para que o termo reUe-
contros de formação.
Nesse processo, o autor valoriza a experiência prévia do professor, o xao não perca seu significado e se torne um daqueles conceitos aos quais
papel da teoria que constrói os alicerces da reflexão, bem como a imporrân- ninguém se opõe, disfarçando, na realidade, um número vasto de variações
cia de bons modelos de atividades para serem discutidos de forma quanto conceituais com implicações na forma de conceber os projetos de forma-
mais crítica melhor, articulando, assim, sua posição sobre a relação teoria e cão, é necessário:
prática com as várias tradições que ele critica e reinrerpreta. l. dar importância aos conhecimentos incorporados nas próprias
Uma formação que destaca o valor da prática como elemento de práticas dos professores, e nas de outros professores;
2. tratar a reflexão não como um fim em si mesma, mas atrelada aos
análise e reflexão do professor não o vê como um técnico que tem de obe-
decer às orientações dos especialistas, mas como um profissional crítico e objetivos educacionais mais amplos;
reflexivo. Ao tornar-se próxima dos problemas reais do professor, a forma- 3. favorecer a reflexão dos professores, deixando-os pensar por si
cão assume uma dimensão participativa e investigativa através do diálogo próprios sobre a prática, e as condições sociais e institucionais que influen-
ciam o seu trabalho;
com a própria açao, da discussão — momento de uma interlocuçâo 4. insistir na reflexão enquanto prática social através da qual grupos
questionadora — e do desejo de compartilhar a prática, de onde surge a
necessidade legítima das contribuições teóricas apresentadas pelo forma- de professores possam apoiar e sustentar o cresciçiento uns dos outros e
dor. Tudo isso mobiliza uma formação interativa e dialógica, que favorece conseguir influenciar coletivamente as condições de trabalho.
a capacidade de intervenção autónoma por parte do professor. Assim, torna-se importante a explicitaçao das teorias e práticas do
A definição de açâo reflexiva é retomada por defensores do paradigma professor para que sejam analisadas e, principalmente, discutidas critica-
mente no coletivo.
reflexive do filósofo John Dewey: Shulman (1987) também é um autor que se tornou essencial para
A açâo reflexiva é uma açâo que implica uma consideração ativa, esse debate, pois, nos finais dos anos 80, apropriou-se de algumas ideias de
persistente e cuidadosa daquilo em que se acredita ou que se pratica, Schõn e tentou definir o conhecimento em torno do qual se articulam as
à luz dos motivos que o justificam e das consequências a que se competências do professor enquanto profissional. Diz, o autor, que esse
conduz (...) a reflexão implica intuição, emoção e paixão; não é, saber não pode ser adquirido de forma transmissiva, já que é fruto de uma
portanto, nenhum conjunto de técnicas que possa ser empacotado e elaboração pessoal do professor, e que o mesmo só ganharia consistência e
ensinado aos professores8. (Zeichner,1993, p.18) se formalizaria no momento em que ele soubesse explicar o que faz, isto é,
esse saber precisaria poder ser compartilhado.
9. Segundo o Dicionário Etimológico de António Geraldo da Cunha. Ed. Nova Fron-
teira, 1982.
8. Todas as citações extraídas de publicações estrangeiras foram por nós traduzidas.

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Não podemos confundir os importantes momentos de divulgação 2. As várias dimensões do projeto


de teorias e novos conhecimentos científicos com um processo de forma-
cão que pretenda incidir na transformação da prática dos professores. Se
toda a formação é pautada em monólogos ao invés de diálogos, dificilmen- O projeto de formação que desenvolvemos procurou abranger qua-
te se fornecerão aos professores os meios de um pensamento autónomo, tro dimensões que são fundamentais em um projeto de formação de pro-
pois não há atitude crítica, não há confronto de ideias e de saberes, não há fessores, pois realçam a natureza social do processo educativo: a) a açao
trabalho cooperativo e nem interlocuçâo que tenha como ponto de partida pedagógica; b) a dimensão coletiva; c) a organização institucional; d) o
o que sabem e o que fazem na prática com as crianças. ^ desenvolvimento pessoal. Nas palavras de Nóvoa (notas de aula, FEUSP,
Um processo de formação deste tipo, pautado na transmissão, onde nov. 1996):
impera o monólogo de quem fala ao invés do diálogo e da interlocuçâo
com o grupo, corre o risco de adotar a máxima do "faça o que eu digo, não O esquecimento da pessoa provoca a ilusão da racionalidade técni-
faça o que eu faço", pois o próprio formador, paradoxalmente, não incor- ca, o esquecimento da história provoca a ilusão da moda reformadora,
porá em sua prática como educador os princípios pedagógicos que defen- o esquecimento da escola concreta provoca a ilusão de um idealismo
de. A reconstrução de sentidos, o enriquecimento ou o aperfeiçoamento de i pedagógico, o esquecimento da prática provoca a ilusão do saber
conhecimentos anteriores ficam dificultados, gerando sobreposições de co- teórico. É no trabalho com e de uma cultura pedagógica que pode-
nhecimenros e de práticas. mos consolidar algumas coisas que reforcem uma identidade profis-
sional e ampliem uma vivência cultural que os professores têm que
Uma proposta de formação deve salientar o valor da prática como ter, isso é essencial.
fonte de conliecimento através da experimentação e reflexão (diálogo com
a própria açâo) e da discussão (algum tipo de interlocuçâo e aceitação dos
desafios que esta coloca), de onde surge a iiecessidade dos aportes teóricos Vamos agora comentar as especificidades de cada uma dessas di-
e a função do formador de fornecer informações e apresentar teorias. Ne- mensões envolvidas no projeto de formação:
nhuma aprendizagem exclui o domínio de regras, fatos, conceitos e proce-
dimentos; a teoria é um dos conhecimentos que sustenta a reflexão. Sendo a) Ação pedagógica.
assim, a valorização de estratégias que proporcionem condições para o pro- Evidentemente esse é o âmbito fundamental de qualquer projeto de
fessor refletir tendo fundamentos para fazê-lo devem prevalecer sobre es- formação de professores em serviço. No projeto em questão, essa dimensão
tratégias exclusivamente traiismissivas. teve a ver com as funções que a professora teve de realizar dentro da sala
Portanto, um paradigma que interligue teoria e prática na formação com seu grupo de crianças, orientadas de modo a potencializar a relação
de professores incorpora o conhecimento teórico disponível e as experiências ensino e aprendizagem.
prévias individuais e coletivas não como prescrições inquestionáveis, mas
como ferramentas conceituais úteis e necessárias para esclarecer e enriquecer b) Dimensão coletivs
as interpretações dos acontecimentos da sala de aula. Desta forma, cada do- Consideramos que para que as professoras viessem a ter uma boa atua-
cente enfrenta necessariamente a tarefa de gerar novo conhecimento pedagó- cão com seu grupo elas precisariam contar com uma boa infra-estrutura e uma
gico para compreeiider as especificidades das situações, buscando compreen- equipe de trabalho que assegurasse o intercâmbio de ideias e espaços de plane-
der os processos que sustentam e condicionam a açâo pedagógica. jamento conjunto. É importante pensar na competência coletiva e não só nos
atributos profissionais individuais.
Formar professoras autónomas e autoras de suas práticas significava al-
ir

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terar as relações e expectativas até então existentes na hierarquia de funções da d) Desenvolvimento pessoal
creche (em geral rígida, muitas vezes autoritária e outras paternalista), o que I Uma boa parte da prática pedagógica é, sem dúvida, fruto da elabo-
também deveria ser uma dimensão da formação. ração pessoal de cada professor, sendo, portanto, influenciada pelo modo
f
Tal dimensão teve a ver, portanto, com as funções que a professora como pensa e age em diferentes situações de sua vida: as dimensões profis-
tinha de realizar como membro da equipe de sua instituição. Ouve-se mui- sional e pessoal são indissociáveis. O desenvolvimento profissional, em sen-
to esse tipo de discurso: "Eu fecho a porta da minha sala, faço o meu traba- tido amplo, pode-se constituir também em desenvolvimento pessoal, am-
lho com as crianças, e do resto eu não quero saber...". Essa é uma postura pliando as possibilidades de usufruir da cultura e da participação social e
IS
que, para o desenvolvimento de um trabalho reflexivo, precisa necessaria- política (MEC, 1997). Essa dimensão da formação envolveu a ampliação
mente ser alterada, pois é muito difícil para o professor refledr sozinho do universo cultural das professoras e também processos que visavam pro-
numa atitude individual. A intenção era formar nas creches uma cultura mover a autoformaçâo, a reconsideração de valores, a sua própria imagem
colaborativa e de compromisso com a reflexão enquanto prática social. como professora, de forma que encontrassem sentidos pessoais em seus
processos de construção de conhecimento.
c) Organização institucional
Essa dimensão teve a ver com as relações entre a prática pedagógica 3. Os princípios da formação
e as condições institucionais da creche como local de trabalho, isto é, com -*
os conflitos inerentes a cada instituição. Nesse sentido, a existência de um
projeto pedagógico compartilhado por roda a equipe foi uma referência O princípio com o qual trabalhamos no tratamento das estratégias
essencial para a formação contínua. As professoras eram chamadas a cola- formativas foi o da homologia dos processos. Isto equivale a dizer que a
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borar na elaboração das direrrizes pedagógicas, do plano anual, da resolu- ^
metodologia de formação procurou ser coerente com o mesmo paradigma
cão dos problemas e necessidade de reorganização das creches, uma vez que assumido para o trabalho com as crianças. Tentamos não abrir mão da
não bastava ocorrer mudanças com as professoras; era preciso que os con- hipótese de que as aprendizagens são processos ativos de construção de
textos em que elas intervinham também sofressem modificações. significados por meio dos quais as professoras iriam construir conheci-
Se durante a formação déssemos importância somente à dimensão mento, cabendo a elas nesse processo grande parcela de responsabilidade e
do trabalho com as crianças, poderíamos não estar preparando as professo- autonomia. Esta busca de coerência entre a posição assumida para o traba-
rãs para a série de responsabilidades que iriam desempenhar ante a institui- lho com as crianças e com as professoras é denominada por Niza (1993,
çáo e a comunidade. p.30) de princípio da homologia dos processos:
Tal investimento procurou assegurar algumas condições institucionais
para a mudança, como a flexibilizaçâo do tempo e dos espaços, horários Metodologia de formação que consiste em experienciar através de
todo o processo de formação, as atitudes, modelos didáticos, capaci-
destinados ao trabalho coletivo, reuniões com os pais, valorização de parceri- dades e modos de organização que se pretende que venham a ser
as com outras instituições etc. Foi preciso construir espaços de reflexão cole- desempenhados nas práticas pedagógicas com as crianças. Isto é,
tiva e de integração entre as diversas funções (cozinheiras, operacionais, en- •^ formam-se os professores a partir de um sistema inspirado nos mes-
fermeiras, professoras, coordenadoras e diretoras), investindo as próprias ins- mos conceitos e princípios que o professor em formação utilizará
tituições educativas como lugares de formação, de socialização profissional. mais tarde com os seus próprios alunos. O sistema transferido inte-
gra um conjunto complexo de conhecimentos, de saber-fazer, de
atitudes e de valores consonantes com a pedagogia a transferir.
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Dessa forma, o programa de formação procurou desenvolver uma ï;


Acreditamos na possibilidade de trabalhar com as professoras na
metodologia de trabalho coerente com o tipo de prática pedagógica que se I reelaboraçâo de suas práticas a partir do ponto onde se encontravam, valo-
pretendia promover com as crianças10. Isto é, buscou-se coerência entre o rizando seus conhecimentos prévios (práticos e teóricos), as diferentes opor-
currículo de formação (tanto em termos de didática, conteúdos, valores e tunidades para aprender que cada uma havia tido ao longo de sua vida.
atitudes) e o currículo que se desejava concretizar no trabalho com as crian- Assim, no processo de construção de conhecimentos pela professo-
cãs, quer dizer, entre o que as professoras aprenderam (e como o aprende- ra, a importância de partir de sua prática e dos conhecimentos prévios que
ram) e o que lhes propúnhamos que ensinassem (e como), uma vez que a ela traduzia estava relacionada a uma concepção de aprendizagem diferente
experiência vivida no processo de formação seria uma referência importan- de uma perspectiva de acumulação de conhecimentos. Utilizando um prin-
te na construção de possibilidades de intervenção como profissionais. cípio coerente com a concepção de aprendizagem assumida para o trabalho
Assim, do princípio da homologia dos processos derivaram alguns com as crianças, partimos da hipótese de que as aprendizagens são proces-
princípios didáticos que compareceram duplamente neste projeto: enquanto sos de construção de significados por meio dos quais adquirimos conheci-
norteadores na definição das estratégias formativas e enquanto objero de mentos e que elas ocorrem por reorganizações constantes e aproximações
estudo, já que sustentavam teoricamente a proposta pedagógica de traba- sucessivas com o objeto a conhecer.
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lho com as crianças. São eles: Se disséssemos a professora não sabe e por isso não pode vir a sa-
ber , estaríamos vendo o nao-saber como lacuna, como falta. Ao contrário,
a) Valorização dos conhecimentos prévios das professoras pensamos que uma prática reflexiva, tal como defendem os aurores a que
Partimos do princípio de que o processo de compreender e melho- nos temos referido, deveria vïlorizsr a experiência, pessoal, as convicções,
rar a prática deveria valorizar a reflexão sobre a própria experiência das os valores e diferentes saberes dos formandos, enquanto sujeitos com uma.
professoras, utilizando aquilo que já conheciam como ponto de partida individualidade própria, portadores de uma cultura que é importante
para as novas aprendizagens. conscientizar, preservar e alargar (Amïta[ et al., 1996, p.100).
Quando o aluno, seja ele criança ou adulto, enfrenta um novo con- v
reúdo a ser aprendido, o faz sempre armado de uma série de concepções, b) Aprender é construir
representações e conhecimentos adquiridos no decorrer de suas experiên- Partimos do princípio de que o professor constrói seu próprio co-
cias prévias. Utiliza essas referências como instrumento de leitura e inter- nhecimento e, como dizem Teberosky e Cardoso (1990, p.51, citando
pretaçâo das novas informações. As ideias prévias determinam, em grande Stenhouse, 1985), ainda que possa receber ajuda de determinadas leituras
medida, o processo de incorporação dos novos saberes, a forma de organizá- ou por meio dos cursos de ca.pscitaçSo, tmtï-se de uma construção pessoal,
los e as relações que são estabelecidas entre eles. elaborada. ïtra.vés dos recursos sodalmen te disponíveis, e não pode ser trans-
Num processo de formação de professores, a própria experiência escolar mitida por outro e para outro facilmente. Aprender implica uma elabora-
anterior tem um papel preponderante nas representações pessoais sobre a edu- cão pessoal, uma representação única do objeto de conhecimento. Neste
ca.çáo, a escola, os professores, os alunos, os conteúdos da aprendizagem etc. processo de reorganizaçâo/consrruçao de conhecimentos, o aluno, seja ele
adulto ou criança, seleciona e organiza as informações a que tem acesso,
10. Na homologia dos processos, é preciso distinguir as funções invariantes e as estrutu- por diferentes vias, estabelecendo relações entre elas. Neste sentido, foi de
rãs variáveis do desenvolvimento mental, para que não se corra o risco de infantilizar de
nenhum modo as professoras. Entre o trabalho com crianças e o trabalho com adultos
fundamental importância a arividade mental construtiva das professoras
há aspectos que se conservam, que são invariantes (princípios, atitudes, concepções na realização das diferentes atividades propostas, que eram concebidas como
etc.) e há elementos que se transformam em função das diferenças óbvias de capacida- uma ajuda para estas construções.
dês e estruturas cognitivas de cada momento do desenvolvimento humano. Dessa forma, as professoras foram colocadas em um contexto de

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aprendizagem e aprenderam a fazer fazendo: errando, acertando, tendo d) Autonomia e cooperação


problemas a resolver, discutindo, construindo hipóteses, observando, re- Cooperação entre professores, formador, coordenadores e comunida-
vendo, argumentando, tomando decisões, pesquisando. de viabiliza a realização de projetos e planejamentos apoiados em princípios
A principal dificuldade que encontramos para a implementação de pedagógicos onde as coordenadas para as ações se atualizam no momento em
uma proposta como essa é a necessidade de criação de estratégias didáticas que se realizam. As melhores soluções muitas vezes não aparecem a priori ou
próprias para a formação de professores, pois ainda sabemos muito pouco de forma imediata, elas precisam ser construídas. Assim, erro e acerto são
sobre como o professor aprende, o modo próprio que tem de processar formas de investigação que expressam as vicissitudes do processo pedagógico
informações e como modifica seus esquemas de açáo. Este tema requer quando este pode acontecer num contexto de autonomia e cooperação.
maiores investigações, embora no campo da pesquisa já existam alguns Em síntese, o conhecimento e a interpretação de como são produzi-
enfoques preocupados em superar esse problema. dos os processos de ensino e aprendizagem caracterizaram a proposta
Em todo o caso, se toda a formação vinha no sentido de questionar metodológica e o tipo de utilização das estratégias formativas. Vamos agora
a educação transmissiva, pautada na memorização e repetição, o mesmo discuti-las, tal como foram desenvolvidas no projeto de formação.
princípio deveria aplicar-se no âmbito do trabalho com as professoras. Se
assim não fosse, correríamos o risco de termos no processo de formação
uma ênfase na transmissão de muitos conteúdos, na apresentação de res- 4. Analisando as estratégias formativas
postas prontas e não em um trabalho capaz de desenvolver nas professoras T

as competências (saber e saber-fazer) hoje em dia consideradas essenciais O projeto de formação contou com estratégias formativas que fo-
no desempenho de seu papel na formação das crianças. ram sendo encontradas, construídas e redesenhadas à medida que refletía-
mos e reorganizávamos o trabalho — daí a transformação progressiva are
c) Aprendizagem significa.tiva chegarmos nesta formalização. Todas as estratégias escolhidas tomaram a
A aprendizagem significativa é definida em oposição à aprendiza- prática pedagógica como objeto de reflexão permanente no processo de
gem mecânica ou superficial. Ela ocorre quando o conteúdo a ser aprendi- formação. Cada uma delas implicou as outras; elas se complementavam e
do pode ser relacionado de modo substantivo aos conhecimentos prévios se enriqueciam mutuamente.
dos professores. Um outro fator preponderante para a significância da apren- As estratégias foram as seguintes: l. diagnóstico das necessidades
dizagem é a adoçâo, por parte do professor, de uma atitude favorável para a formativas; 2. reorganização das creches; 3. análise do registro individual
realização da tarefa, sendo capaz de atribuir significado ao conteúdo em diário; 4. acompanhamento de professoras de apoio; 5. temarizaçâo de si-
questão. Para estabelecer relações fecundas entre os conhecimentos prévios tuações práticas; 6. sistematização das diretrizes pedagógicas; 7. formação
e as novas informações, é necessário que haja disponibilidade pessoal e concomitante do coordenador pedagógico; 8. parcerias com outros centros
envolvimento no processo de ensino por parte do professor. Decorre daí de investigação, produção e divulgação de conhecimentos; 9. observação
que o conteúdo deve ser potencialmente significativo, do ponto de vista de de situações educativas.
sua estrutura e de sua apresentação, que deve ocorrer em contextos que É importante salientar que a utilização dessas estratégias, por si só,
envolvam a análise e a reflexão sobre a prática do professor. í não significa nada de especial, uma vez que outros programas de formação
de professores, com concepções muito diferentes, podem utilizá-las para
outros fins. A utilização dessas estratégias não leva automaticamente à re-
flexão, o mais importante foram os objetivos para os quais se dirigiram e a
qualidade específica da sua utilização.

LüL
48 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..."
I CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 49

a) 0 diagnóstico11 e as necessidades formativas: a. cultura, das sidades formativas de cada uma das creches através da recolha de dados
creches e os problemas identificados que possibilitassem a identificação dos elementos constitutivos de cada uma:
a
l - necessidades relativas às crianças: suas aprendizagens em cada uma
Não nos parece possível elaborar e desenvolver nenhum projeto de das áreas de conhecimento, tipos de cuidado que recebiam, ocupação dos
formação sem o conhecimento da realidade a que ele se refere, isto é, sem tempos livres, tratamento da diversidade, problemas de limites, seus interes-
conhecer o campo no qual se quer intervir. Essa ideia é corroborada por sés etc. (através da observação, entrevista com a coordenadora, questionários,
vários autores, quando afirmam a importância da definição clara das neces- gravação em vídeo, coleta e análise de diversas produções infantis);
sidades formativas dos professores. 2 - necessidades relativas ao currículo: planos curriculares, formas
Montero (1987) definiu necessidides fbrmativïs como o conjunto de avaliação, informações sobre os objetivos da instituição etc. (através da
de desejos, problemas e deficiências encontrados pêlos professores no de- análise de materiais e documentos, questionários e entrevistas);
senrolar do seu ensino. Detectar essas necessidades, não só as das professo- 3 - necessidades das próprias professoras: questões profissionais e
rãs mas as da instituição como um todo, tornou-se, então, o primeiro passo pessoais ligadas à satisfação no trabalho, principais dificuldades, rotina de
para o início do projeto de formação. trabalho, expectativas em relação às crianças etc. (através de observação,
? questionários, entrevistas);
Embora tivéssemos de antemão uma proposta de trabalho a ser de- ,."

senvolvida com as crianças, uma metodologia de formação com os princi- 4 - necessidades da creche: necessidades da instituição na sua
í:
pais conteúdos já definidos, elaboramos detalhado diagnóstico com a fina- globalidade, organização do espaço físico, formas de agrupamento das cri-
lidade de recolher informação para determinar a adequação das estratégias ancas, clima interno, forma de receber as crianças nos períodos de adapta-
e conteúdos às necessidades sentidas pelas profissionais envolvidas, que in- cão, tipo de relação que estabeleciam com os pais e a comunidade, índice
cluiu, além das visitas iniciais e filmagens em vídeo, questionários sobre de frequência, critério de admissão de crianças novas etc. (através da obser-
aspectos da relação educativa que foram distribuídos a todos os profissio- vaçáo do espaço físico, da distribuição do tempo e dos materiais, de ques-
nais e que possuíam dados gerais, perguntas em comum e específicas por donários, entrevistas, análise de documentos e fichas de matrícula).
função. Suas questões versavam sobre os objetivos do trabalho, o cotidiano Os dados referentes às crianças, às professoras, às creches e demais
profissional, os problemas encontrados, a formação profissional e as expec- eleinentos do meio construídos a partir de consulta a materiais e documen-
tativas em relação ao projeto. tos, de visitas às instalações das creches e às áreas em que elas se inserem, bem
No lugar do questionário, hoje acreditamos que a entrevista temática, como de análise dos questionários respondidos e das produções infantis, pos-
mas aberta, individual e/ou coletiva, seria preferível. No entanto, sabíamos sibilitaram uma primeira visão da realidade na qual íamos atuar, mas, por si
que os dados obtidos através de questionários teriam um valor relativo que só, não constituíam uma caracterização. Como diz Estrela (1994, p.244):
só se constituiriam em elementos de referência ao se complementarem com
os dados obtidos por outras vias. Então, na fase inicial do projeto de for- (...) eles correspondem apenas a elementos que se vão acumulando e
justapondo para uma posterior análise, conforme as necessidades
mação, procuramos abranger diferentes níveis no levantamento das neces- :'^'
ï>
que formos encontrando. Só se podem tornar, realmente, significa-
tivos se conduzirem a sínteses, isto é, se forem utilizados sob a pers-
11. Utilizamos o termo "diagnóstico" na acepção de um conjunto dinâmico de todas as pectiva da sobreposição em ordem à obtenção de interpretações da
características passíveis de serem observadas e analisadas, e não na forma como é empre- realidade.
gado na Medicina e que indica a verificação de um desvio em relação a uma norma. ï
•íl
Etimologicamente, a palavra vem de diagnoses, que significa "discernimento", "exame".
Dicionário Etimológico de António Geraldo'da Cunha. Ed. Nova Fronteira, 1982.
50 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 51

Como veremos a seguir, a preocupação fundamental foi de aprovei- tacão e burburinho hoje desejável enquanto característicos de qualquer es-
tar os dados para analisar elementos significativos que possibilitassem a paço onde estejam reunidas muitas crianças.
construção de interpretações das principais questões encontradas, a fim de Q^uase não se notava a presença das professoras, que não acompa-
tentar uma compreensão mais ampla e fundamentada da açao das professo- nhavam o desempenho das crianças e pareciam indiferentes ao que elas
rãs e crianças. O mais interessante é que a construção dessas sínteses faziam. Em todos os grupos, elas não eram vistas interagindo com as crian-
interpretativas possibilitou uma maior intencionalidade formativa, uma cãs, olhando para elas ou conversando com elas. Ofereciam atividades vari-
vez que já sinalizou as prioridades e a consequente definição dos conteúdos adas que mantinham as crianças ocupadas, como jogos, colagem de boli-
da formação, isto é, ajudou a fazer recortes em função das reais necessida- nhãs de papel crepom e desenhos mimeografados. Isto foi, para nós, moti-
dês encontradas, permitindo uma posterior avaliação da intervenção. vo de preocupação, uma vez que a eficácia da açâo educativa depende lar-
Segundo Estrela (1994), o acesso ao plano da interpretação permite gamente do vínculo interpessoal entre professores e crianças, do clima afetivo
passar de um plano que ele chama de radiográfico (ou manchas desorgani- e das modalidades de relação e de comunicação que prevalecem.
zadas de indícios) para um outro, de tipo radiológico, portanto de organi- Notamos que, em todas as salas de todas as creches, as atividades eram
zaçao funcional de elementos, base para uma explicação fundamentada dos sempre coletivas, isto é, as crianças estavam sempre ocupadas (quando esta-
problemas detectados. Este processo consiste, então, num remontar os da- vam) nas mesmas atividades ao mesmo tempo, sobrando pouco espaço para
dos anteriormente obtidos, selecionando-os e reestruturando-os com vistas as singularidades, as diferenças de ritmo e as escolhas individuais.
a uma síntese simultaneamente ampla e explicativa. Porém, o que mais nos chamou a atenção nessas primeiras visitas às
Outra vantagem desta forma de proceder é que a devolutiva dessas aná- creches foi o enorme tempo de espera a que eram submetidas as crianças.
lises às professoras possibilitou um recuo crítico do grupo sobre as suas pró- Muitas atividades pareciam ter como principal objetivo aprender a espe-
prias concepções e práticas, permitindo que as creches assumissem de forma rar", não como parte muitas vezes necessária de uma situação coletiva, mas
mais consciente e participativa a busca de alternativas para delinear as mudan- como principal finalidade. Isso não era nem mesmo produto da grande
cãs necessárias e o planejamento das ações de formação consonantes com elas. w
quantidade de crianças presentes. Nunes (1995, p.126) encontrou um cli-
ma como esse em escolas de educação infantil e o descreve:
Discutindo o diagnósúco: os problemas encontrados, ashipóte-
sés construídas A criança acabava tendo de ficar a maior parte do tempo "à espera":
esperava para poder ir para a classe, esperava enquanto ela [a professora]
As visitas às creches e a posterior análise das filmagens em vídeo que distribuía o material, esperava a hora de ir ao banheiro e de beber água,
nelas foram realizadas permiriram-nos uma primeira aproximação com o esperava para receber o lanche, esperava para poder comê-lo, esperava
processo de mediação do desenvolvimento e aprendizagem das crianças na ser autorizada a brincar no parque, ficava esperando sem brincar se
forma como ele acontecia, bem como o conhecimento do espaço físico fosse pivô de alguma briga e esperava dar a hora de ir embora.
(estrutura, organização, limpeza etc.), dos recursos materiais (tipo, aparên-
cia, qualidade, utilidade, acesso etc.), das atividades propostas às crianças Pareceu mais uma pedagogia da espera, e por isso lembrou-nos de
(coletivas, individuais, em subgrupos, tipos etc.) e da qualidade das determinados modos de socialização que têm nas instituições sociais analisa-
interações adulto-criança e criança-criança. das por Goffman12 (1969) exemplos emblemáticos. Poderíamos encontrar
Na análise das primeiras visitas às creches, chamou-nos a atenção um fio ideológico que ligasse todas essas instituições educativas sociais?
ver um espaço com crianças estabelecendo pouca ou nenhuma interaçâo
com os pares ou com os adultos. Mostravam-se quietas, alheias, passivas,
sem aquela saudável irreverência infantil que resulta em alegria, movimen- 12. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1969.
Ï

52 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 53

Perrenoud (1996) responde afirmativamente e diz que são, na grande parte ram colocadas ("como trabalhar?", "como fazer?", "como educar as crian-
das vezes, instituições paternalistas e autoritárias, que têm o objetivo de cãs?", "como trabalhar com as mães?" etc.) pareciam indicar uma ideia muito
integrar os sujeitos ou reintegrá-los na sociedade através da normalização difusa sobre o que especificamente poderia ajudá-las no trabalho com as
de suas atitudes e práticas, definindo de antemão um lugar social para seus crianças, que tipo de coisas resolveriam seus problemas e responderiam a
participantes. suas questões.
Em relação à análise dos questionários respondidos pelas professo- No período inicial de nosso projeto, a maioria das respostas centra-
rãs e coordenadoras, fizemos uma análise entre as creches e CJs quanto às lizava a dificuldade encontrada no trabalho nas interações adulto-criança,
expectativas iniciais a respeito do projeto de formação. Nas creches, segun- justificada por elas como sendo devida às características das próprias crian-
I'S
do disseram, a expectativa era aprender a realizar atividades que desenvol- cãs, especialmente no que se referia à agressividade, indisciplina, rebeldia e
vessem a criatividade das crianças, tais como teatro, trabalho com sucatas, carência das mesmas, consideradas muito sofridas. A indisciplina foi
dobraduras, colagem, música, e aprender também novos jogos e brincadei- explicada como uma decorrência das condições de vida das crianças e de
rãs. Também manifestaram, como forre expectativa, a necessidade de serem suas famílias. Assim, a falta de apoio dos pais, que — segundo elas —
instrumentalizadas para o trabalho com os pais. Segundo as professoras, os pensavam que a creche era um depósito de crianças, foi apontada como
pais não compreendiam e não ajudavam o trabalho desenvolvido nas cre- uma dificuldade, ao lado do trabalho com grupos heterogéneos e o mo-
ches. Outro bloco de expectativas foi aquele relacionado à dificuldade e mento de recreação no pátio. Além disso, a totalidade das respostas apon-
desejo de aprender a lidar com a agressividade e indisciplina das crianças. toa a falta de materiais, brinquedos e espaço como um fator de grande
Nos CJs, a expectativa mais presente era participar de oficinas de dificuldade no trabalho.
trabalhos manuais, como dobradura, pintura em vidros e em tecidos, mú- Na análise sobre quais os objetivos de trabalho das creches no perío-
sica, que desenvolvessem a criatividade das crianças, seguida pela aprendi- do inicial do projeto, observamos que o principal objedvo era preparar as
zagem de jogos e brincadeiras. As professoras dos CJs queriam também crianças para a vida e para a escola, para um futuro melhor, que faria,
conhecer mais sobre os jovens e aprender a lidar com as questões da sexua- inclusive, com que seus filhos não tivessem essa infância, considerada por
lidade, da agressividade e indisciplina dos mesmos, apontados como rebel- elas como muito sofrida. Outro objetivo era promover o desenvolvimento,
dês e revoltados com suas famílias. ensinar-lhes sobre higiene e dar-lhes amor, carinho e atenção, coisas que,
Das expectativas iniciais das coordenadoras em relação ao projeto, segundo elas, as crianças não recebiam em casa, em função do pouco tem-
uma análise entre as creches mostra maior expectativa sobre conteúdos como po que permaneciam com suas mães.
gerenciamento e administração e, em segundo lugar, sobre maiores conhe- Nos CJs, o principal objetivo das professoras era também auxiliar
cimentas acerca da função de coordenação. no desenvolvimento das crianças, preparando-as para o futuro, para ávida,
Em uma análise do conjunto das respostas, podemos dizer que a fazendo com que elas se tornassem adultos responsáveis, pessoas boas e de
maior expectativa das professoras em relação ao projeto era a de terem ins- bom coração, além de ajudar nas suas lições de casa e nos seus conhecimen-
trumenros de trabalho, entendidos como sugestões de trabalhos manuais tos escolares.
(que ocupam as crianças e têm como objetivo o desenvolvimento de habi- 0 rom e o conteúdo das respostas sugeriam o desejo das professoras
lidades motoras) e de jogos e brincadeiras. Com a mesma frequência, en- de emancipar as crianças para uma qualidade de vida futura diversa da de
contramos a expectativa de serem mais bem instrumentalizadas no que diz seus pais, inúmeras vezes descrita como sofrida, carente e difícil. Havia a
respeito ao relacionamento com as famílias e de serem orientadas para lidar intenção de oferecer uma educação que permitisse às crianças escaparem da
com a agressividade e indisciplina das crianças. Entretanto, a diversidade e pobreza quando crescessem. Ademais, esperava-se que as crianças levassem
abrangência das expectativas das professoras, e também a forma como fo- essa instrução para suas famílias, redimindo seus descendentes de uma situ-
CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 55
54 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..."

açâo de precariedade — uma visão da pobreza que a concebe menos como escolar — momento diário garantido para crianças e jovens fazerem suas
resultante de determinações socioestrururais e mais como originárias de lições escolares e um horário livre no pátio para jogos coledvos.
dificuldades pessoais.
Em uma análise entre as creches acerca das funções das coordenado- A demanda da. formação: quem a define? o que esperam?
rãs inicialmente apontadas, podemos dizer que estas sentiam como sendo É comum oferecer aos professores programas de formação elabora-
de sua responsabilidade fazer as matrículas das crianças na creche, conferir dos com a intenção de os preparar para a aquisição de novas competências,
os estoques e preencher os documentos exigidos pela Prefeitura e entregá- sem questionar se estas estão relacionadas com os interesses, as expectativas
If los na data certa. Com o mesmo índice de respostas, apareceu a responsabi- e a prática dos professores aos quais é dirigida esta formação. Mesmo que se
lidade de ajudar as ADIs, embora não tenham dito de que forma essa ajuda tenha investigado com eles suas necessidades, acabam prevalecendo as
se concretizava, não havendo mecanismos de acompanhamento das práti- necessidades das instâncias formadoras.
cãs das professoras. Segundo Colén (1995, p.72), isso ocorre porque essas necessidades
Na análise do cotidiano do trabalho nas creches, as professoras des- e interesses entram normalmente em conflito com as aspirações dos forma-
creveram sua rotina com as crianças tomando como eixo o trabalho com os dores e do projeto de intervenção; isto é, no discurso de planificação das
cuidados de alimentação, higiene e repouso: tomar café, lavar as mãos, etapas de formação até se prevê uma fase de diagnóstico das necessidades
brincar ou desenhar, almoçar, lavar as mãos, escovar os dentes, dormir, dos professores, mas no momento de estabelecer prioridades e decidir que
fazer uma atividade, tomar lanche e ir embora. Dessa forma, enfatizaram atividades serão trabalhadas geralmente sobrepõem-se às necessidades dos
mais as atividades com o cuidado das necessidades físicas e, em menor professores aquelas necessidades determinadas pela instância formadora,
número, as atividades pedagógicas realizadas com as crianças, organizadas porque se assume que os professores desconhecem determinados aspectos
e descritas em função dos diferentes espaços físicos utilizados (sala, quadra, I
importantes para sua açâo educativa, o que muitas vezes é verdadeiro.
refeitório), do que em termos de seus objetivos. As atividades resumiram- ::f De acordo com Torres (1995), o que justificaria tal atitude é o tipo
se, em geral, em exercícios preparatórios, como mostrar cores, números e de conhecimento demandado pêlos próprios professores que, antes de fa-
letras, ou em conhecidas atividades do repertório de trabalho com crianças :A vorecer a inovação, podem favorecer a reprodução do modelo educativo
pequenas, como cantar, contar histórias e fazer brincadeiras. vigente. Esta discordância entre o que se trata de trabalhar na formação e
Uma das creches programava um maior repertório de atividades no aquilo que os professores haviam apontado como suas necessidades, pode
dia-a-dia com as crianças, geralmente preparatórias e tidas como pedagógi- provocar neles uma sensação de incapacidade ou, pelo menos, situá-los em
cãs: noções de formas, cores, tempo, espaço, jogos pedagógicos, exercícios uma posição de insegurança, de onde parece que seus modos de atuar, es-
corporais, além de arividades como desenho livre, roda do bom-dia, colagem, trumras de pensamento, crenças e conhecimentos não têm nenhum valor,
brincadeiras livres no pátio e história, entremeadas com atividades de cui- havendo necessidade de começar tudo de novo. Evidentemente, isto gera
dado. As atividades citadas pareciam conferir grande atenção aos sentidos, uma atitude de inibição ante uma formação que propõe uma mudança não
sendo o conhecimento visto como resultante mais da observaçáo/percep- prevista e reconhecida como desejável, e uma resistência que dificilmente
cão do que da açao concebida de forma ampla. Sendo assim, no caso em se explicita abertamente, mas que certamente repercutirá no processo.
que havia orientação para o trabalho pedagógico, esse se organizava por Porém, para Colén, os dois tipos de necessidade são, ou deveriam
áreas do desenvolvimento, através de atividades com ênfase nos aspectos ser, indissociáveis. Não significa, portanto, que se tenha de deixar de plani-
perceptivo-motores. ficar o programa de forma.çâo que se pretende implementar, mas há de se
Nos CJs, as respostas descreveram o cotidiano com ênfase nas ativi- ï
ter em conta a situação inicial do contexto específico no qual se irá atuar,
dades de artesanato, também chamadas de trabalhos manuais, e de reforço partir do sistema de valores estabelecidos, mesmo que seja para os modifi-

:f
56 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 57

car em seguida, para avançar na explicitaçao e consecução dos objetivos melhorias salariais ou de condições de trabalho. Romper com a his-
que se estabelecem, até para que estes possam ser assumidos realmente por tórica dependência do magistério a respeito de um modelo educativo
todos os envolvidos no processo. e escolar altamente centralizado, vertical e autoritário, não pode es-
Colén observa que o professor crê que é objeto de formação porque perar-se que ocorra nem rápida nem facilmente. Por outra parte, as
tem problemas, dificuldades e carências, os quais as atividades sugeridas "vantagens" da dependência (receber tudo dado, desde as decisões
sobre a reforma até o conhecimento e a sequência das lições através
pelas instâncias dedicadas à formação tratam de compensar. Isto é, dificil- do livro de texto) se reforçam frente a escassa formação e a insegu-
mente a formação é vista como necessário desenvolvimento profissional rança profissional de muitos professores. Daí que a própria forma-
para todos. Com isso, a autora chama a atenção para os tipos de instru- cão docente deve ver-se como um espaço para refletir e construir
II mento diagnóstico utilizados, uma vez que alguns deles justamente refor-
cam essa noção. Como se vê, o próprio diagnóstico de necessidades con-
junto com os professores a profissionalização como uma necessida-
de e uma reivindicação. (Torres, 1995, p.36)
verte-se em um primeiro item segundo o qual os programas de formação
de professores podem ser avaliados. A participação das professoras em todas as fases da detecção de ne-
A partir dessa análise crítica da fase diagnostica, compreendemos cessidades e definição de objetivos foi indispensável, posto que permitiu
que o diagnóstico implica a capacidade de compilar dados, descrever situ- um conhecimento não só da situação que se tinha, mas da que se desejava
ações, processos e efeitos. Requer dados tanto objedvos como subjetivos ter, e de modo mais claro, compartilhado e com maior comprometimento
(valoraçâo, emissão de juízos, sentimentos, aferes). Após isso feito, é preci- das mesmas em seu desenvolvimento profissional. As próprias questões for-
so analisar os dados e, a partir deles, construir uma visão do todo que muladas e a observação da realidade que viviam formaram um quadro que
aponte caminhos para o planejamento da açâo, antecipando a sua implan- permitiu a visibilidade das concepções, crenças e teorias implícitas com-
tacão, relacionando a análise da prática com os fins e com os meios do partilhadas pelo grupo sobre os próprios objetivos da creche, sobre as ca-
I
projeto de formação. Parece-nos importante que o formador comunique e racterísticas das crianças, sobre as concepções de aprendizagem e as formas
partilhe a sua análise e as suas ideias com todos os outros participantes do de interaçao que orientavam a açâo educativa.
projero, sublinhando desde o início a importância da atividade de trabalho As demandas ou pedidos solicitados pelas professoras através dos ins-
conjunta e da discussão coletiva, uma vez que o diagnóstico é um período trumentos utilizados expressaram uma determinada concepção da formação
inicial de impregnação, de imersão dos formadores no mundo cultural e que orientou uma primeira reflexão conjunta no estabelecimento de um con-
cotidiano das creches, quando se pode começar a ter acesso aos modos de trato de trabalho, sempre no sentido de promover uma melhor compreensão
pensar das professoras e às suas práticas com as crianças. de seu papel, ampliando assim suas necessidades de formação.
Assim, um dos principais objerivos da fase diagnostica na formação Todavia, partir das necessidades formativas das professoras não signifi-
do professor seria o de ajudá-lo a explicitar os princípios que fundamen- cou de modo algum arer-se a elas, mas sim ultrapassá-las, pois nos pareceram
tam a sua prática e conduzi-lo à escolha e construção de uma prática coe- um tanto empobrecidas, e toma-las para nos atermos a ela não nos pareceu o
rente, com responsabilidade por sua autoformaçâo. Esta, contudo, não melhor caminho. Isso porque, via de regra, as professoras costumam pedir
parece ser uma tarefa fácil: aquilo que estão acostumadas a receber ou o que acham que podemos oferecer.
Portanto, pareceu-nos que não bastava atender às necessidades formativas ini-
Certamente, a autonomia profissional não necessariamente é uma ciais, mas que deveríamos ampliá-las e explicitar o porquê de julgarmos impor-
necessidade sentida e uma demanda expressa pêlos docentes. Auro-
nomia se associa (muitas vezes corretamente) com mais trabalho,
tante que outros aspectos fossem contemplados durante o processo.
mais responsabilidades, mais exigências, sem que a isso correspondam I A presença de expectativas marginais das professoras (no sentido de
que não eram as que nos pareciam centrais e prioritárias) muitas vezes pare-
58 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 59

céu indicar, também, uma certa ansiedade por admitirem que precisariam fissional, de maior compromisso e responsabilidade social.
saber sobre outras questões para as quais não se sentiam capazes ou por não Além desse, outro fator a ser trabalhado era a alegada dificuldade: as
acreditarem que o trabalho com estes temas fosse de suas responsabilidades. crianças. Muitos estudos já apontaram para o fato de que a atitude, assim
As professoras envolvidas no projeto vinham de uma experiência de como as expectativas dos professores a respeito das crianças, são
baixa escolaridade e de uma história escolar nem sempre favorável. Trazi- y determinantes sobre a aprendizagem das mesmas, nesse sentido:
am, consigo, uma ideia influenciada pelas experiências de seus processos
escolares, não se vendo como alunas bem-sucedidas e precisando agora re- Preconceitos e atitudes discriminatórias por parte dos professores,
encontrar-se com uma situação na qual seriam novamente estudantes. baseadas em raça, língua, género, condição socioeconômica ou qual-
Se essas questões iniciais permanecessem sem resposta para elas, acre- quer outro fator, incidem de maneira decisiva nos processos e resul-
ditávamos que seria muito difícil a integração das professoras no projeto, tados de aprendizagens das crianças. Estudos mostram que os mes-
mos professores se comportam de maneira diferente em escolas de
bem como o real envolvimento no processo e o cumprimento dos acordos. setores médios e em escolas de setores pobres, têm uma visão nega-
Para ilustrar como a capacidade das crianças é construída nas expe- tiva dos pobres, julgam seus alunos a partir de suas famílias e seu
riências e oportunidades de que dispõem e para deixar claro a que nos meio, esperam pouco deles e portanto lhes exigem menos, tudo o
estávamos contrapondo em relação ao trabalho pedagógico, levamos para que contribui a reproduzir o círculo vicioso da baixa autoesrima e o
elas uma série de produções infantis realizadas em escolas particulares a baixo rendimento escolar (Torres, 1995, p.49).
partir de propostas pedagógicas variadas. Muitas professoras gostaram das
modalidades de arividade apresentadas e logo se animaram a trabalhar com Em função disso, a autora conclui que resulta indispensável traba-
algumas delas. Outras questionaram o que consideraram altas expectativas Ihar com os professores a reconsideração de valores e de atitudes, dos pre-
nos objetivos das atividades apresentadas tendo em vista o nível das crian- conceitos e dos estereótipos que intervêm na relação com as crianças, com
cãs com que lidavam, achando que "aquelas" crianças haviam conseguido os pais e com a comunidade.
fazer tudo aquilo por serem ricas. J^ Tínhamos identificado que as professoras relacionavam o tema das
Foi preciso trabalhar com essa ansiedade das professoras, com uma dificuldades infantis com as suas características familiares e socioculturais.
proposta não só de mudança de suas práticas mas de redefinição de seus Essa, podemos lembrar, era uma concepção muito defendida na década de
papéis, deixando claro quais mudanças seriam possíveis, delimitando os 70, quando a preocupação com essa suposta defasagem observada em cri-
objetivos do projeto de formação, mostrando que expectativas eram ou ancas filhas de famílias de baixa renda gerou o que se denominou de "edu-
não reais, cuidando para não deixar ambiguidades no ar. A formação foi, cação compensatória", que pretendia proporcionar programas educacio-
dessa forma, iniciada a partir de um contrato progressivamente explicitado nais que corrigissem os "deficits" apresentados pela criança "culturalmente
e formalizado, a fim de garantir níveis elevados de participação. Nesse sen- carenciada" (São Paulo, 1992). Essa representação que as professoras ti-
tido, aceitar entrar no projero, mesmo depois de conhecer seus objerivos, nham das crianças e de suas famílias parece ser inversa à representação que
significou aceitar uma mudança no "contrato didático"'3 vigente na insti- as famílias costumam ter da escola (crença nas instituições educativas como
tuiçâo e começar a responsabilizar-se pela construção de outro perfil pro- socializadoras de conhecimentos e possibilidades) e de seus filhos, que por
elas são vistos como pessoas capazes e inteligentes.
13. O conceito de contrato didático utilizado por Brousseau (1986) refere-se aos prin- O que podemos observar é que, nos casos de insucesso de algumas
cípios e regras que regem as relações na instituição educativa, como os direitos e deveres crianças, a frustração das professoras por não conseguirem ajudá-las faz
de crianças e professoras em relação à situação de ensino e aprendizagem, as relações
que elas mantêm com o conhecimento, o tipo de interações sociais estabelecidas entre com que elas remetam diretamenre aos antecedentes familiares e seus con-
as crianças e destas com suas professoras etc. (Lerner, 1996). textos sociais todas as causas desse insucesso, desincumbindo a sociedade
60 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCfPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 61

do peso das desigualdades e a instituição educativa de não conseguir pro- das atividades pedagógicas origina problemas não só de rentabilidade no
porcionar a todas as crianças um ensino de qualidade, independentemente trabalho como de relação entre crianças e dessas com suas professoras. A
do background etnocu.huisl (Zeichner, 1993, p.78). reiterada queixa sobre o comportamento das crianças, na nossa avaliação,
Então, já na caracterização de um projeto educacional e da formação era um indicador que também denotava problemas em relação tanto às
para esse projeto, começamos com duas representações conflitantes. Embora atividades cotidianas que foram mencionadas como sendo trabalhadas com
as professoras fossem, aparentemente, mais identificadas com a realidade as crianças, quanto às que puderam ser observadas nas visitas e analisadas
circundante das creches onde amavam, às vezes fazendo parte dessa mesma através de produções recolhidas, consideradas pobres no que diz respeito
comunidade a que pertenciam as crianças, enfrentando condições de vida aos tipos de desafio que continham. Segundo Zeichner (1993, p.85), esta é
muito semelhantes às delas e desejando a mesma emancipação para os seus, outra maneira que os formadores de professores dispõem para combater o
elas continuavam paradoxalmente tendo a representação das crianças com as problema das baixas expectativas: comunicar a convicção que se tem de
quais trabalhavam como sendo desde sempre, e para sempre, fadadas ao que os alunos são capazes de aprender, da.ndo-lhes trabalhos escolares exi-
insucesso e à derrota. De início, esse paradoxo: aquelas crianças que mais gentes em vez de progmmïs curriculares fracos e mecânicos que são, tantas
precisavam de educação, e não de qualquer educação, mas de uma educação vezes, regia.
mais bem fundamentada e aprofiindada — dado que o acesso à cultura cha- Outra hipótese por nós levantada, sobre a agressividade e indisciplina
mada universal não viria por intermédio da família e das oportunidades soci- das crianças tantas vezes apontadas pelas professoras, é de que ela pode se
ais —, eram exatamenre as que seriam penalizadas por uma representação de originar de uma rigidez excessiva e da contenção do movimento e da pala-
que seria impossível destinar-lhes uma educação de boa qualidade, uma vez vra das crianças, tão presente nos muitos momentos de espera a que eram
que suas professoras não estavam convencidas de que todas elas poderiam frequentemente submetidas nas creches.
aprender; ao contrário, aceitavam como fato a teoria de que algumas crian- Da psicogenética deWallon (1979) emerge algo que tem certo valor
Bl^
cãs simplesmente não conseguiriam aprender por serem oriundas de um de- prescritivo: a afirmação de que os anos pré-escolares têm como principal
terminado meio sociocultural, o que acabava por dinamizar um processo tarefa o estabelecimento de um certo nível de diferenciação pessoal, o que
educativo de produção de desigualdades que não tem nada de casuístico. poderíamos chamar, abreviadamente, de construção do Eu. Estaria aí pos-
Foi preciso investir no questionamento da validade ética, moral e po- ta, implicitamente, uma tarefa ao professor de creche que não parece emer-
lítica dessas crenças e práticas porque, reconhecidamente ou não, estávamos gir facilmente do senso-comum.
tomando posições sobre esses problemas sociais nas nossas ações e através das É neste estágio que ocorre a superação da sociabilidade sincrética,
nossas palavras. Esse nível de reflexão englobou o desenvolvimento de uma característica da primeira forma de relação da criança com o ambiente.
consciência crítica das professoras sobre as limitações de ordem social, cultu- Neste momento processa-se a diferenciação do indivíduo daqueles que o
ral e ideológica do sistema educativo que nos impedem de mudar concepções cercam. Com a puberdade e adolescência, surge a terceira etapa da con-
e práticas muito enraizadas (Amaral et al., 1996, p.100). quista do Eu, que será resultado das conquistas cognitivas alcançadas. As-
Sabemos que embora as ações educacionais dos professores e forma- sim, se recorrermos às ideias de Wallon, veremos que as crianças de 2 a 6
dores de professores não possam resolver os problemas económicos e as anos enconrram-se na fase de personalismo, voltadas para a construção do
desigualdades sociais com que se deparam, elas podem amenizar seus efei- Eu, assim como os pré-adolescentes e adolescentes estão novamente em
tos no desenvolvimento intelectual, afetivo e comporramental dos indiví- uma fase centrípeta, voltados para a diferenciação eu-outro.
duos e grupos, e contribuir para a construção de sociedades mais decentes Muitas vezes, todavia, a interaçâo e os diálogos dos professores com
e mais justas. as crianças em creches e pré-escolas orientam-se mais para disciplinar o
Trabalhamos também com a hipótese de que a falta de organização grupo, instruí-lo sobre como trabalhar, do que para comentar significados
62 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 63

pessoais construídos pelas crianças ou assuntos trazidos intencionalmente Porém, essa capacidade não é inata, ela se constrói, desenvolve-se e baseia-
pelas professoras com o objetivo de alimentar suas ideias e imaginação. se em conhecimentos sobre o desenvolvimento e as necessidades da crian-
Se a diferenciação não pode ocorrer via diálogos, trabalhos coleti- ca, bem como sobre as condições sociais que o asseguram. Isto quer dizer
vos, vínculos afetivos e garantia de espaços para a subjetividade, ela só vai que, quanto maior for o conhecimento que uma professora tiver sobre a
acontecer disruptivamente, uma vez que há uma desconsideração das cri- forma de ser, de sentir e de pensar das crianças, maiores chances terá de se
ancas enquanto pessoas e pouco ou nenhum incentivo às interações crian- relacionar com elas e de atendê-las de forma afetiva, pautada no respeito
ças-crianças como fator de desenvolvimento e aprendizagem. mútuo e na igualdade de direitos. Como diz Dantas (1992, p.90), pensar
Para discutir a dificuldade de conter as crianças nos momentos de nesta direção leva a admitir que o ajuste fino da. demanda às competências,
recreação em pátio, vamos retomar o trabalho de Galvâo (1996), que dis- em educação, pode ser pensado como uma forma muito requintada de
cute a turbulência e a impulsividade motora das crianças na inter-relaçâo comunicação afetiva, uma vez que a professora busca mediar o mundo para
do modelo pedagógico adotado com a dinâmica das interações sociais que as crianças, mas a partir do sincretismo típico de seu desenvolvimento.
nele se estabelece. A aurora destaca que, se as crianças desta faixa etária são Como podemos constatar, ao contrário do que se pensa, as propostas
muito contidas em sala e levadas à imobilidade em posição sentada, se há assistencialistas têm uma proposta pedagógico-educacional aliás muito defi-
ausência de materiais, objetos ou propostas que possibilitem ações adequa- nida e facilmente identificável em grande parte das creches do país (Kuhlmann,
das, quando depois vão para o pátio apresentam movimentos disruptivos, 1990). Caracterizam-se por uma postura que compreende o atendimento
impulsividade corporal, para compensar de uma só vez a contenção a que institucional voltado para as camadas populares como possibilidade de
estavam submetidas. equacionar paliarivamente a pobreza e a delinquência e não como reconheci-
Entretanto, as professoras em nenhum momento pareciam questio- mento do direito à educação das crianças menores de sete anos.
nar sua prática educativa e suas normas de convívio em sala como possíveis Apesar de termos investigado três realidades distintas, poderíamos di-
desencadeado rés dessa indisciplina. O problema da interaçao adulto-crian- zer que a "cultura pedagógica" das mesmas era muito semelhante. Nos três
ca e criança-criança era visto pelas professoras como centrado nas próprias grupos vigorava a ideia de preparar a criança para o futuro, ou para a escola,
crianças e em suas famílias, daí a importância de se começar a pensar nos e a criança e sua família eram vistas como a maior dificuldade para o bom
empecilhos para o trabalho presentes no seio da própria realidade oferecida andamento dos trabalhos. Prevalecia a noção de criança carente, com deficits
a elas nas creches. Q^ual seria a violência desse contexto social do ponto de no desenvolvimento, devendo receber atividades muito estruturadas, quase
vista das crianças que aí viviam diariamente? No que se sentiam agredidas prontas, e o trabalho bastante centrado nos adultos. As expectativas em rela-
em suas necessidades e o que eram impedidas de exercer em termos de cão à formação diziam respeito a problemas de condutas e/ou habilidades
possibilidades? isoladas. O trabalho pedagógico existente derivava, ainda que com certa dis-
Dantas (1997, p.45), quando se refere à vinculação entre professoras tância, da ideia de prontidão, exercícios mimeografados, desenhos para colo-
e crianças, distingue o afeto "epidérmico", básico, primário, de uma forma rir, bolinhas de papel crepom para colar etc.
de amar que se confunde com conhecer, saber sobre cada uma delas, co- O desafio que encontramos foi justamente tentar romper com essa
nhecer os fatos essenciais da história de suas vidas, das suas condições de visão de criança e de educação, procurando, ao mesmo tempo, respeitar os
aprendizagem, de suas necessidades de afeto, respeito, interações, aprendi- conhecimentos prévios das professoras e construir conjuntamente novas
zagens e descobertas, de suas preferências e dificuldades. concepções quanto ao desenvolvimento e à aprendizagem infantil.
Acreditamos que a afetividade da professora, traduzida por sua ca-
pacidade de expressar interesse, dar aconchego e assegurar confiança, é uma
das condições essenciais para o desenvolvimento e a aprendizagem infantil.
64 "ERA ASSIM, AGORA NÃO...' CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 65

b) Reorganização das creches ritmo diferente para comer, e quem terminava primeiro tinha de esperar
todas as outras, para só então começarem a trabalhar. A nossa proposta foi
O primeiro âmbito da formação enfocado no projero foi o da di- que organizassem atividades diversificadas na sala e que as crianças pudes-
mensao organizativa, pois há determinados mecanismos de influência sem trabalhar à medida que fossem terminando o café. De modo geral, as
educativa que extrapolam o contato interpessoal direto entre professoras e rotinas nas creches foram alteradas para contar com a roda de conversa, as
crianças. Sabendo que a forma de organizar os espaços, distribuir os horá- atividades diversificadas, atividades coletivas, jogos e brincadeiras, hora da
rios, formar os grupos pode influir notavelmente no desenvolvimento do história e o self-service na hora das refeições.
trabalho pedagógico, investimos nas questões de estrutura e funcionamen- Retomamos questões relativas ao período de adaptação das crianças
to da creche com o objetivo de tomar a funcionalidade da prática educativa novas e antigas; da elaboração do plano anual; dos instrumentos de avaliação
consonante com os princípios conceituais definidos no projeto curricular. do desempenho das crianças; da organização de reuniões de pais; da alteração
Por isso trabalhamos com a reorganização das creches, procurando na forma de organização das salas e da elaboração de materiais (como crachás
produzir uma mudança qualitativa na utilização do tempo e do espaço em com os nomes das crianças, jogos de tabuleiro, calendário etc.).
suas rotinas, através de uma melhor organização do espaço físico e da dis- Assim, a partir das discussões, as muitas atividades cotidianas rela-
tribuiçâo do tempo, da seleçáo e utilização de diferentes tipos de materiais, cionadas ao cuidado pessoal, como alimentação, repouso e higiene, além
fazendo um levantamento dos já existentes e iniciando um processo de de reorganizadas com o objetivo de favorecer a autonomia das crianças,
aquisição ou manufarura de novos materiais. Discutimos com as proi-esso- foram agilizadas de forma a não ocuparem grande parte do tempo da roti-
rãs e as equipes técnicas sobre o uso de materiais no trabalho pedagógico, na da creche, na tentativa de diminuir (senão acabar) com os frequentes
pois, se por um lado os recursos mais importantes são os conceituais, por tempos de espera.
outro, a falta de materiais pedagógicos adequados pode-se constituir em Combinamos a organização e o funcionamento de espaços destina-
um obstáculo para a realização de um trabalho educativo de qualidade. dos à brincadeira de faz-de-conta das crianças e, para isso, pedimos aos pais
Esse envolve bons e diversificados tipos de livros, enciclopédias ou revistas vários utensílios, assim como roupas, sapatos, maquiagem, colares etc.
de ciências para pesquisa, assinatura de jornal, jogos, brinquedos, fitas ou
discos de música popular brasileira etc. c) Análise do registro individual diário das atívidades realizadas
De fato, constatamos que muitas das transformações que tentáva- com as crianças
mos pôr em prática esbarravam em questões da organização e estrutura da
própria instituição (horários, distribuição dos espaços, acesso a materiais, Desde o primeiro mês do projeto utilizamos a análise dos registros
como livros de literatura infantil, discos, enciclopédias, jogos, brinquedos, individuais diários elaborados pelas professoras como uma importante es-
tinta, pincéis etc.). Portanto, foi preciso um investimento nessas questões e tratégia formativa, que incidiu na dimensão da açao pedagógica que reali-
um processo de elencar prioridades comuns para reestruturar as creches e zavam com as crianças.
evitar o desânimo das professoras, que poderiam ver-se sem as condições Entendemos, como Miguel Zabalza (1994, p.195), pesquisador e
físicas e materiais necessárias para o desenvolvimento do projeto pedagógi- professor de Didática da Universidade de Santiago de Compostela, na
co com as crianças. Espanha, que o diário é uma narração subjetiva dos acontecimentos do dia,
11;
O objetivo central no nosso trabalho de reestruturaçao da rotina das realizada pela própria professora. O registro diário implica uma reflexão
creches foi a diminuição do tempo de espera das crianças que, entre uma interiorizada, pessoal, mediante a qual a professora reconsidera os seus pen-
arividade e outra, permaneciam sem fazer nada. O período posterior ao samenros e sentimentos numa perspectiva distanciada da arividade diária e
café da manha era um momento crítico, porque cada criança tinha um cotidiana. Através dele a professora poderá tornar-se pouco a pouco uma
I

66 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 67

observadora consciente da sua prática, desenvolvendo sua habilidade de coes e comentários variavam conforme os diferentes tipos de diários: al-
pesquisar o real e refletir sobre os caminhos do seu trabalho, compreenden- guns centravam-se na descrição da rotina; outros citavam de forma muito
do progressivamente a importância de se conhecer a participação das crian- esquemática as atividades sem mencionar como foram realizadas; outros,
cãs nesse processo. ainda, relatavam as atividades realizadas com as crianças de forma detalha-
A instrução ou o pedido que fizemos às professoras, desde o início do da e reflexiva. Claro que estes últimos permitiam entrar em discussões mais
projeto, foi de registrarem amplamente no diário tudo aquilo que pudessem, aprofundadas sobre as diversas estratégias didáticas utilizadas pelas profes-
isto é, que contassem o que aconteceu e lhes pareceu importante em um dia saras, bem como tratar de responder a suas dúvidas e incertezas, o que era
de trabalho com as crianças. Não explicitamos nem limitamos o assunto a mais satisfatório. Nos outros casos, intervinha com solicitações e recortes
expor. No início, ficou totalmente em aberto para que cada uma se confron- específicos que, colocando problemas, levassem à necessidade de refletir
tasse com a tarefa de fazer o diário de uma maneira pessoal, para que ele para buscar soluções ou respostas.
pudesse refletir a sua própria perspectiva do trabalho com as crianças. Analisando os diários em suas diferentes formas de escrita pelas pro-
As professoras começaram, então, a escrever diariamente os seus re- fessoras, podemos distingui-los em três tipos (Zabalza, 1994, p.110):
latos. Aconselhamos que esse registro fosse feito o mais cedo possível para 1-0 diário como organizador do trabalho: eram os diários que se
que pudessem recordar e reconstruir melhor o contexto e as experiências apresentavam como mera especificação do horário ou da sequência das
vividas, preferivelmente nos últimos dez minutos do dia. atividades. A professora especificava, posterior ou anteriormente, o traba-
Os cadernos nos quais escreviam diariamente os seus relatos eram lho naquele dia. Do ponto de vista do diário como instrumento de refle-
muito bem cuidados e a ideia era que mensalmente nos entregassem o diá- xâo, este tipo era pouco interessante, pois não cumpria sua função. Prova-
rio para nele fazermos comentários ou solicitações. Deixamos claro que os velmenre, respondia a uma concepção de diário como algo exigido a ser
diários não seriam "corrigidos", mas comentados em cima de questões como: inspecionado e realizado de forma quase burocrática.
a própria forma de realização do diário; o tipo de seleçao dos acontecimen- 2-0 diário como descrição das atividades: eram os diários em que
tos; os problemas que apresentavam; a dinâmica e os conteúdos rrabalha- o foco principal de atenção centrava-se nas atividades que professora e cri-
dos com as crianças e o modo como foram desenvolvidos; sugestões de ancas haviam realizado naquele dia. Podiam ser divididos em dois tipos:
atividades ou de continuidade de boas atividades já propostas; formulação uns simplesmente identificavam as atividades, sem citar os nomes das cri-
de pontos de reflexão etc. ancas, nem o que haviam falado, nem mesmo suas contribuições para o
Após a minha leitura dos registros, voltava novamente junto às pro- andamento das atividades; outros apresentavam e descreviam as tarefas de
fessoras para negociar com elas os resultados da análise e discutir aspectos forma muito detalhada, contando a forma de organização da sala, as inter-
que eventualmente não haviam sido percebidos. venções verbais mais relevantes da professora e das crianças, o tipo de con-
.s
Ç^uanto à análise do texto das narrativas, o processo seguido foi: em signa'4 dada, com comentários sobre as evoluções observadas no grupo,
primeiro lugar, realizava uma leitura de todos os episódios relatados naque- análise e crítica do que foi realizado, ideias de continuidade e, em alguns
lê mês para evitar comentários prematuros ou perguntas que seriam res- casos, também reflexões teóricas. Este tipo de diário permitia penetrar de
pendidas mais à frente. Depois, fazia uma segunda leitura de anotações à forma muito interessante na dinâmica das situações e das interações profes-
margem das folhas e também um comentário maior ao final dos relatos, sora-crianças e crianças-crianças.
que eram por mim redigidos com duas preocupações: com o trabalho rela-
tado e com a pessoa que o relatava, querendo dizer com isto que a relação
14. Colocação mediante a qual a professora informa às crianças o que vai ocorrer no
pessoal que manrirha com cada professora e o que dela conhecia (dificul- desenvolvimento da atividade conjunta, definindo a situa.çâo ou chamando a atenção
dades, preferências, jeitos pessoais etc.) eram considerados. Minhas anota- das crianças para alguns aspectos específicos.
11'

68 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 69

3-0 diário como expressão das características das crianças e das réu de forma satisfatória; explicitaçao detalhada de orientações didáticas
próprias professoras: eram os diários que centravam a sua atenção nos su- para o aprimoramento de determinadas atividades; sugestões para melhor
jeitos como protagonistas do processo. Mostravam uma atenção às caracte- organização dos momentos da rotina diária; bilhetes com a intenção de
rísticas das crianças, inclusive citando os seus nomes, o que cada uma delas valorizar as boas situações analisadas, pontuando o porquê de terem sido
havia feito e falado, como haviam progredido etc. Apareciam referências importantes; formulação de questões com o objetivo de fazer lembrar à
também à própria professora: como se sentia, como dera a consigna, que professora possibilidades não previstas por ela; exclamações de cumplicida-
interferências fizera, o que respondera à pergunta recebida erc. O fator de para comemorar conquistas alcançadas; e também a colaboração com
pessoal predominava e a professora surgia como uma pessoa extremamente materiais específicos que pudessem auxiliar nos trabalhos em andamento.
envolvida com sua tarefa de educar. Assim, quando escreviam em seus diários, as professoras reconstruí-
Esses três tipos de diário não se excluíam, a não ser no primeiro am sua atuação, explicitavam simultaneamente (umas vezes com maior cla-
caso. O importante era considerar que existia uma maior ou menor poren- reza que outras) quais eram as suas ações e qual a razão e o sentido que
cialidade formativa do diário que se desejou a longo prazo construir com as atribuíam a elas; podia-se alterar a natureza objetiva dos fatos, mas não o
professoras, para que mantivessem uma atitude reflexiva constante. Obser- pensamento e aversão deles sobre a suas próprias atuações em sala, que era
vamos que os diários muitas vezes também cumpriam a função de agenda o que mais importava. Em função disso, os diários permitiram-nos ter acesso
(anotação de compromissos combinados) e de espaço dedicado ao planeja- à objetividade da situação através da versão subjetiva das professoras.
mento semanal das atividades. Apesar de ser um documento pessoal da professora e muitas vezes con-
Fazer a análise dos registros diários, apesar de ter sido uma interven- ter grande carga subjetiva, ele é ao mesmo tempo uma atividade pessoal e soci-
cão rica, foi, porém, bastante trabalhosa, pois tinha que oferecer minha al. Zabalza (1994, p.191) percebe nesse fato quase que um paradoxo, pois
contribuição em cada um dos diários, através de intervenções variadas para acredita que, de todo o conjunto de instrumentos de que se dispõe atualmente
que a forma inicialmente descritiva dos relatos fosse se tornando cada vez na investigação didárica, o diário talvez seja aquele que menos força a intimida-
mais analítica e dialogada, bem como para que o conteúdo dos registros de dos professores e a sua privacidade, porque é o professor quem recolhe os
deixasse transparecer as transformações na qualidade do trabalho pedagó- dados, quem decide o que é que "entra" e o que "não entra", que tipo de coisas
gico realizado com as crianças, à medida que os comentários visavam aju- diz de si próprio e das crianças e que tipo de coisas não quer dizer.
dar as professora para que pudessem buscar novas respostas. O autor identifica no uso do diário pelo menos quatro dimensões que
A análise dos diários cada vez mais possibilitava a nossa troca de o convertem num recurso de grande potencialidade para o trabalho docente
conhecimentos. A partir do relato que a professora fazia, podia conhecer e, ao mesmo tempo, num recurso para conhecer o pensamento do professor.
como ela analisava a atividade, o que para ela era observável, o que priorizava A primeira dimensão vem do fato de ser o diário um recurso que
e o que não mencionava, enfim, a sua capacidade de observação e reflexão implica escrever, desenvolvendo, portanto, a capacidade de utilizar a lin-
sobre os processos implicados em sua açâo com as crianças. As intervenções guagem escrita como um poderoso instrumento do pensamento.
que realizava tinham como objetivo fornecer-lhes novas informações e cri- O segundo componente fundamental dos diários é que se trata de um
terias para que assim reavaliassem sua prática pedagógica, reinterpretando- recurso que implica refletir. O diário é um documento de reflexão pessoal do
a agora com novos referenciais. Elas podiam ser: intervenções que busca- professor, é um diálogo introspectivo que ele trava consigo mesmo acerca da
vam pontuar o valor da participação das crianças no processo de ensino e sua aruaçâo e que lhe permite maior grau de consciência sobre ela.
aprendizagem; ideias de replanejamento de alguma atividade descrita; crí- Uma terceira dimensão apontada vem do fato de nele se integrar o ex-
ticas contextualizadas em estudos já realizados; comentários que identifica- .'•:
pressivo e o referencial; isto é, uma reflexão sobre os aspectos mais objetivos da
vam e justificavam possíveis problemas de uma atividade que não transcor- condução do trabalho, como a descrição da rotina e das situações didáticas e
70 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 71

uma reflexão sobre si próprio e sobre as crianças como protagonistas dos fatos respeito às suas normas e regras, pediram-nos para corrigir os seus erros e
descritos, expondo intenções, desejos, emoções, dificuldades etc. discutir com elas aqueles de maior incidência, por considerarem ser esta
A quarta dimensão envolve o caráter histórico e longitudinal da nar- uma oportunidade para resolverem suas dúvidas ortográficas.
ração, isto é, uma das vantagens é que o diário se constitui numa memória É importante salientar que, dessa forma, o diário converteu-se, du-
do grupo, pois conserva a seqüência/evoluçâo do trabalho e, ao mesmo rante o processo de formação, num espaço de troca, de intercâmbio, de
tempo, a atualidade dos dados recolhidos. encontro — em algo que tínhamos de comum e nos aproximava. As pro-
A conversa com as professoras, desde o primeiro dia do projero de fessoras aproveitavam e davam importância à possibilidade de que alguém
formação, sobre a importância que o registro diário teria para o nosso tra- o lesse, comentasse e se preocupasse com que as coisas saíssem bem ou
balho mostrou claramente a nossa expectativa pela participação de todas melhor em sua sala.
do grupo. E isso de fato ocorreu, embora a princípio tenha sido muito Interessante foi perceber que, à medida que as professoras se davam
difícil para algumas professoras a proposta de escreverem seus próprios conta disso, elas começavam, em algumas passagens do diário, a colocar
pensamentos Procuramos estar sempre disponíveis no sentido de ajudá-las referências claras ao destinatário do seu relato, uma espécie de conversa
e prestar apoio e incentivo logo nas primeiras páginas que começaram a ser comigo: quando tratavam de explicar ou justificar o motivo pelo qual fize-
escritas. Para isso, escolhemos propositadamente, como primeiros textos ram daquela e não de outra forma, quando comemoravam a satisfação de
!ekura e discussâo com o grupo, relatos publicados de experiências e uma descoberta, quando se desculpavam pelo registro feito às pressas na-
atividades redigidos por professores. quele dia, quando faziam referência a algo que havíamos discutido ante-
Zabalza (1994) diz que, mesmo para professores com melhor nível riormente ou quando queriam dividir a alegria, de uma boa ocorrência.
de escolaridade, há de se acrescentar a dificuldade que gera a proposta de Em uma das nossas reuniões tomamos esse assunto como tema e pro-
escrita do diário pelo que implica de esforço na continuidade do discurso pusemos uma reflexão sobre o que significou para elas a experiência de escre-
narrativo e de tempo para escrevê-lo após um dia intenso de trabalho. ver um diário. Questionamos as qualidades dos diários como instrumento de
Algumas professoras o escreviam no final do dia, outras só consegui- desenvolvimento profissional e o modo como cada professora encarava a
am parar para escrever na hora do almoço e outras ainda quando as cnan- tarefa de escrevê-lo. As professoras exprimiram as seguintes opiniões:
cãs estavam dormindo. Para nós, também foi uma forma de favorecer a
escrita das professoras, à medida que a escrita é formalizadora e estruturante, O diário é muito importante para que a cada dia possamos melho-
e se constitui em uma poderosa ferramenta para a capacidade de pensar, i rar as atividades, porque escrevendo o que fazemos com as crianças,
organizar as próprias ideias, sistematizar e fazer avançar a prática ea pró- estamos também estudando e pensando... por que eu não preparei
pria capacidade de expressar-se por escrito, que, para elas — e em medidas ï
aquela atividade de um jeito mais interessante? É também uma fon-
diferentes para todos nós —, era uma dificuldade expressa. re de pesquisa. (Jane)
importante assinalar alguns cuidados que tivemos no trabalho com
os diários, principalmente em relação às questões ortográficas, que, em É importante escrever o diário, porque é a hora que você pára, pensa
função da dificuldade da grande maioria das professoras, eram muitas. Ini- e analisa como foi feita a atividade, como foi o desempenho das
cialmente, líamos os diários sem nos ater a tais questões e sim ao conteúdo crianças, quem teve mais dificuldade e quem não teve, e a partir daí
dos episódios narrados, pois a percepção de exigências iniciais muito altas, poder criar uma nova atividade ou aperfeiçoar a mesma. (Josefa)
no que diz respeito à correçâo, poderia levar a restrições da extensão dos
textos e até da expressividade das ideias. Com o tempo, conscientes da Através do diário podemos registrar nossos trabalhos e até mesmo
distância que suas escritas ficavam de uma escrita convencional, no que diz nos corrigir, pois só na hora em que escrevo o meu diário eu vejo
coisas que na hora da atividade não havia percebido. (Patrícia)

,;.;ii
72 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÏPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 73

Com esses e outros depoimentos, as professoras confirmaram a im- contam com esse profissional, que passou a ter o seu trabalho remunerado.
portância do registro diário como instrumento metodológico de trabalho, O papel específico da professora de apoio foi sendo construído len-
uma vez que lhes possibilitava saber mais sobre o desenvolvimento e a apren- tamente a partir de nossas análises sobre o alcance de sua atuaçao. Era uma
dizagem das crianças, analisar as dificuldades das mesmas para saber como profissional da área de Educação Infantil com larga experiência no traba-
ajudá-las, avaliar o trabalho e poder pensar em formas de replanejamenro, lho com crianças pequenas, que trabalhava em parceria com a professora
recriando constantemente as situações e, como disse a professo ra Jane, apren- da creche em uma periodicidade quinzenal.
der não só dos livros mas também pela observação dos processos infantis. A supervisão concrerizava-se através de um conjunto de atividades
Terminado o projeto de formação, as professoras sustentaram o pro- realizadas pela professora de apoio destinadas a apresentar modelos signifi-
pósito de escrever os seus diários, e estes foram incorporados como instru- cativos de ensino e aprendizagem, ajudar na reorganização do espaço e da
mento metodológico, passando a ser lidos e comentados pelas coordenado- rotina, e gerar processos dinâmicos de autoformaçâo. Para levar à frente
rãs das creches, fortalecendo uma parceria necessária. esses objedvos, a professora de apoio norteava sua açâo no sentido de:
Observamos, ainda, que a leitura constante dos diários criava a opor- * realizar uma entrevista inicial com a professora para favorecer a
tunidade de me tornar uma observadora do meu próprio trabalho, avalian- construção do vínculo e estabelecer os combinados da nova parceria;
do os processos que eu mesma havia desencadeado e refledndo criticamen- • atuar como observadora das atividades desenvolvidas pelas profes-
te sobre eles, a partir do impacto que haviam tido junto à prática das pro- soras com seu grupo de crianças, para conhecer como se dava essa dinâmica
fessoras. Assim, o acesso ao pensamento das professoras tal qual ele apare- e levantar necessidades que iriam balizar seu futuro projeto de trabalho;
cia nos diários constituiu-se em um importante lastro para o trabalho, dan- • elaborar projetos em uma ou mais áreas de conhecimento, junto
do pistas para o replanejamento de minhas propostas a partir dos proble- com a professora da sala, para que ela pudesse observar o processo de escre-
mas e necessidades comuns detectados nos relatos.
ver e planejar, promovendo a co-autoria e co-responsabilidade na execução
do mesmo;
d) Acompanhamento deprofessoras de apoio • preparar a professora da sala para a observação do seu trabalho
para que tivesse clareza das orientações didáticas que deveriam ser objeto
Como foi dito anteriormente, além dos encontros mensais intercreches, de observação e análise, elencando pontos de observação em função dos
realizávamos supervisões em cada uma das creches em separado, em dias de objetivos da advidade para posterior discussão;
funcionamento normal. Para viabilizar tais encontros de supervisão, encon- • discutir sua própria intervenção após a observação que a professora
tramas uma alternativa que acabou por se configurar em mais uma das esrra- da sala fazia de sua atuaçâo, momento em que confrontavam suas ideias e
tégias formativas do projeto: a professora de apoio, professoras que trabalha- avaliavam as produções realizadas pelas crianças. Nessa ocasião, a professora
vam com a mesma faixa etária em escolas particulares e que voluntariamente de apoio apresentava à professora da creche os elementos teóricos que esta-
passaram a acompanhar o trabalho de formação e começaram a desenvolver vam na base de suas próprias ações e das rotinas que havia criado em sala;
atividades direras junto a alguns grupos de crianças, na ausência das professo- • planejar conjuntamente outras situações de aprendizagem para se-
rãs das salas, enquanto essas estavam em supervisão.
rem desenvolvidas pelas professoras da sala e dar continuidade ao trabalho,
Os resultados do trabalho que desenvolviam em sala começaram a se
agora sem a sua presença;
refletir nas produções das crianças e logo tiveram um efeito formador para as
• organizar com a professora da sala um portfolio (trata-se de uma
professoras, que começaram a apreciá-los e repeti-los com o seu grupo, trans-
formando-se em mais uma estratégia de formação que, pêlos seus bons resul- pasta com produções de crianças, projetos, pesquisas, relatórios etc.) com a
coletânea dos trabalhos realizados em conjunto, o que possibilitava a docu-
tados, foi incorporada ao Projeto Capacitar. Atualmente, todos os projeros
74 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 75

mentaçao do processo, permitia observar a evolução de suas reflexões pes- muito eficiente e as relações entre professora de apoio e professora da cre-
soais, servindo como um instrumento de auto-avaliaçâo, sobretudo. che foram as mais amistosas possíveis, demonstrando ser esta uma modali-
Esta é uma estratégia que possibilitava à professora alternar a refle- dade de formação interessante sobre a qual precisamos investigar mais, bus-
xao sobre o vivido e a reflexão sobre o observado através de olhares de cando nos relatos de experiências similares existentes, principalmente na
-proximidade e distanciamento. A professora buscava compreender através América Latina15, maiores subsídios de análise e aperfeiçoamento.
do olhar sobre o outro — a professora de apoio, que era uma profissional Vamos citar aqui um interessante depoimento de uma das professo-
mais experiente — o que se passava em sua sala e como podia agir em rãs de apoio do projeto, que discute a diferença de seu papel em relação ao
relação a ela. da formadora e a vantagem disso decorrente:
Esta estratégia parte do princípio de que o modelo dos bons profes-
sores deve ser aproveitado para estimular a inovação do professorado, uma Em minha prática como professora de apoio no projeio, vejo que
vez que permite um questionamento recíproco (Teberosky & Cardoso, através da observação de um outro profissional mais experiente os
1990). Avaliamos no transcorrer deste trabalho como o diálogo e o modelo professores de creche ganham muito rapidamente uma autonomia de
de colaboração com colegas mais experientes mostra-se, de fato, enriquecedor trabalho, pelo menos no que se refere ao que estamos trabalhando em
conjunto. Por outro lado, pode também partilhar com este profissio-
e contribui para romper com o isolamento do professor. nal momentos produtivos de trabalho com as crianças e outros mais
No projeto, a professora de apoio desempenhava um papel que ti- difíceis: o que fazer quando todos falam ao mesmo tempo, quando
nhã duas facetas complementares: de formação da professora que ela acom- t
estão dispersos... Pelo que vi parece mesmo que a equipe sente um
panhava e o de professora propriamente dita, desenvolvendo junto às cri- discreto contentamento quando passamos por certas dificuldades en-
ancas atividades que possibilitassem a ampliação dos conhecimentos que já quanto professoras de apoio. Acho que o trabalho em sala desmistifica
possuíam. Mostrou-se, assim, uma estratégia que assegurou espaços hori- muito a ideia que estas professoras tem do professor de apoio: um
zontais de formação nos quais as professoras podiam compartilhar e anali- professor ideal, que nunca se altera, muito tranquilo com seu grupo,
l'; sar suas práticas, recebendo apoio pessoal e profissional em seu próprio que nunca precisa dar uma bronca, e por aí vai. Penso que quando
local de trabalho. trabalham com o formador às vezes se sentem cobrados, pois muitas
s';

Dessa forma, ao utilizarmos esta estratégia de formação no projero, vezes a discussão está no plano das ideias; o que é ideal se fazer em
sala, considerando menos as dificuldades, pois de certa forma estão
tínhamos dois blocos de objetivos: pensando atividades e não vivenciando-as. Acho que aí está a grande
l2 — O que dizia respeito à evolução daprofessora, enquanto sujeito do contribuição do professor de apoio: mostrar um modo real e possível
processo de observação e análise das práticas realizadas pela professora de apoio. de atuaçâo com as crianças. (Adriana Klisys)
Ill 2° — O que se referia ao grupo de crianças, enquanto fonte principal
da organização e implementação da açâo pedagógica individual e grupai Aperfeiçoamos os futuros projetos incluindo a participação das pro-
realizada pela professora de apoio com vistas à aprendizagem das mesmas. fessoras de apoio nos encontros de formação realizados pelas formadoras
Observamos no decorrer do projeto que o fato de a professora de em cada creche, o que contribuiu para uma maior integração entre as ações
apoio imprimir um tipo de relação mais horizontal ou mais vertical com a de ambas as profissionais.
professora da sala com quem trabalhava dava origem a desdobramentos
muito diferentes, tanto no grau de satisfação do trabalho de ambas, como
no cumprimento dos acordos e na disponibilidade da professora da sala em 15. Por suas enormes potencialidades, muitos projetos de formação propõem hoje a
receber e abrir espaço para a atuaçâo da professora de apoio. estratégia de parceria com colegas mais experientes. Sobre esta base operam os
llB
Microcentros como uma política nacional de formação docente na Colômbia e Chile.
f;1
Na grande maioria dos casos, essa estratégia de formação mostrou-se Também na Espanha e Bolívia enconira-se essa modalidade de formação docente.
li
"ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 77

e) Tematízaçao de situações práticas com crianças pequenas (gravados em vídeo ou não), situações simuladas ou
experiências que podiam ter tido a sua origem em resultados de investiga-
Os encontros de tematizaçâo de situações práticas tinham por obje-
coes com perspectiva exemplificativa capazes de fornecer material para re-
tivo criar nas professoras a disposição para refletirem criticamente sobre as flexão. Apresentávamos às professoras um ou vários casos , isto é, propos-
tas de atividade onde se descreviani pormenorizadamente as características
suas próprias atuações e as de outras professoras, buscando, nos problemas
que essas práticas apresentavam, suas próprias soluções. Isto é, eu orientava
da faixa etária, do contexto e da situação pedagógica para propiciar a refle-
a reflexão, ajudando as professoras a identificar problemas e pensar estraté- xao e o debate, ajudando-as a realizar inferências, identificar relações de-
gias de resolução dos mesmos.
senvolvendo destrezas de análise crítica, de resolução de probleinas e enca-
M minhamentos.
Através da tematizaçâo de situações práticas os professores desenvol-
2) Escolhia para ser tematizada uma ou várias situações didáricas ou
vem o pensamento prático-reflexivo e produzem conhecimento pedagógi-
produções das crianças apresentadas pelas professoras das creches, inclusi-
co quando investigam, vêem as coisas sob diferentes prismas, problematizam,
vê filmadas em vídeo, nesse úlcinio caso, se as professoras já estivessem
levantam hipóteses, identificam e nomeam as dificuldades para buscar al-
dispostas a analisar o que estavam fazendo no âmbito de suas salas com as
ternativas de açao, elaboram propostas de intervenção didática, refletem e
crianças, e também se já rivéssemos conseguido criar um clima propício à
discutem a adequação das mesmas etc. Em função disso, a análise de situa-
partilha de pontos de vista.
coes práticas é a estratégia de formação que melhor responde à necessidade
Nesses casos, a utilização de situações gravadas em vídeo era miüto
de tomar um professor capaz de utilizar no contexto da sala de aula os
conhecimentos pedagógicos construídos nos encontros de formação. interessante, pois permitia organizar a discussão a partir das imagens pre-
viamente selecionadas. Para além da linguagem verbal, a linguagem visual é
A discussão era entremeada de momentos de teorização para funda-
mentação de algum conteúdo ou confronto teórico. As leituras recomen- eloquente e muitas vezes diz por si só, mostrando-se muito adequada para
atender aos objetivos de temadzaçâo de situações práticas; mesmo que em
dadas estavam sempre atreladas a busca de informações específicas ou de um moinento inicial, ao olharem a situação, as professoras não vissem tudo ,
elaboração de questões que de alguma maneira estivessem relacionadas às
mas apenas o que podiam dela interpretar (assim co ;no não podemos ver
atividades que seriam tematizadas.
Isso porque os conteúdos da formação ganham em sentido quando
tudo o que um médico observa em uma radiografia cu em uma imagem de
ultra-som). A interpretação de qualquer situação é sempre feita a partir dos
se integram à análise da prática das professoras e contribuem para a produ-
referenciais de que dispomos e que nos pcrmirem significá-la; dessa forma,
cão de novos conhecimentos pedagógicos. Como diz Cardoso (1997, p.222):
nem tudo era num primeiro momento observável para as professoras. Se a
os professores se apropriam daquilo que está presente na teoria e que pode
ser transformado em a.tividïde. Assim é que tematizávamos as situações
capacidade de observação estava limitada, deste modo, pelas possibilidades
de interpretação, era fundamental que a desenvolvêssemos, uma vez que a
práticas, considerando que a teoria era indispensável na formação e no
intenção era ampliar os modos de investigação das professoras. Assim, o
desempenho efetivo das professoras, mas deveria estar em função da práti-
meu papel no trabalho com imagens de vídeo era justamente o de ajudar a
ca e não o inverso, porque os problemas reais das professoras surgem de
apurar o olhar e coiistruir significados, a partir do reconhecimento de que
suas práticas diárias e é a partir dessa realidade que necessitam aprimorar
seus conhecimentos.
(
a mesma situação podia gerar distintas formas de interpretá-la.
Tínhamos bons retornos por parte das professoras quando udlizáva-
No nosso caso, esta estratégia envolveu a utilização de diferentes
mos esse tipo de recurso. Diziani que as disciissões e as imagens se
recursos para trazer a experiência prática para a análise coletiva:
complementavam e que aiites cie "verein" a situação didática imaginavam
II l) Escolhia para análise relatos de experiências de professoras infan- n tudo mais complicado do que realmente era. Hoje sabemos que tão impor-
tis que não faziam parte do projeto, mas que realizavam um bom trabalho
"1
78 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 79

tante quanto uma boa bibliografia é a utilização de uma filmografia con- participantes do projeto ou, algumas vezes, um público mais amplo de
tendo bons modelos de atividades para utilizarmos nos cursos de formação profissionais da área da Educação.
de professores.
Nesses encontros de tematizaçâo da prática, havia a necessidade de I.!
A tomada de consciência.
cada professora comunicar o processo e os resultados de um ou vários tra- No início, notamos que era ainda muito difícil para as professoras
balhos às colegas. Conforme as professoras apresentavam os trabalhos de- relacionar o desempenho das crianças com suas orientações didáticas. Não
senvolvidos em sala, as dificuldades e os obstáculos encontrados na realiza- conseguiam por si mesmas incluírem-se nas avaliações das atividades, ava-
cão das atividades com as crianças, eu propiciava a reflexão e o debate. Na liavam as crianças em termos de "quem conseguiu, quem não conseguiu" e
análise que fazíamos, os dados inicialmeiite confusos e as dúvidas iam sen- demoravam a imaginar o que poderiam ter feito para que elas conseguis-
do esclarecidos, às vezes tinha que recolocar o problema negociando uma sem um melhor desempenho. Era difícil para as professoras analisar o pró-
nova maneira de vê-lo. Os comentários e as perguntas das professoras aju- prio trabalho e poucos eram os argumentos em defesa das práticas que
davam a estabelecer a relação da prática com a teoria; uma forma de com- vinham realizando rotineiramente, uma vez que aplicavam planejamentos
preender a realidade estudada e construir novos conhecimentos. prontos elaborados por terceiros.
Percebíamos que o modo como cada professora trabalhava e lidava Parece-nos elucidativa para a análise desse problema a distinção feita
com a complexidade das relações de ensino e aprendizagem dependiam da por Municio (1996) a respeito dos dois tipos de procedimentos inerentes
maneira como interpretava os acontecimentos vividos em sua sala com as às ações dos professores. Segundo o autor, dentre as ações do professor há
crianças. E essa forma de interpretá-los dependia por sua vez do seu percurso um fazer rotineiro para o qual bastará um comportamento semi-
profissional, das oportunidades de aprender que ela realmente havia tido, da automatizado; são hábitos que se mostram suficientes para aquilo que é
sua experiência, do que para ela constituía parâmetros para a açao e da ina- estável ou pré-estabelecido na situação pedagógica, mas há, também, um
neira como fora integrada em sua fuiiçâo. Mas espelhava, sobretudo, um fazer que supõe um compreender, um uso deliberado e planificado de pro-
determinado momento histórico na concepção do trabalho de educação in- cedimentos para obter determinadas metas. Este segundo tipo de procedi-
fantil, que não era, todavia, individualizado em cada professora ou produto mento é necessário naquelas situações cujas condições variam, em que as
de limitação pessoal; ao contrário, era a base para a açâo de todas elas. solicitações são incertas ou flexíveis, e então é preciso compreender guan-
A análise de atividades se constituía em um dos momentos mais do, como e por que intervir de um modo e não de outro, o que requerirá
ricos da formação, pois a reHexâo e a aprendizagem das professoras eram í uma reflexão consciente sobre os procedimentos empregados. Este implica
conrextualizadas em suas práticas; ao discuti-las, deixavam de ser somente um uso seletivo dos próprios recursos, requer conhecimento teórico para se
receptoras de informação, elas convertiam-se em participantes ativas, usan- interpretar as situações a partir dele, fazer inferências, investigar, tirar con-
do seus conheciinentos e experiências prévios, explicitando suas crenças e clusões, perguntar-se como se fez para poder fazer melhor.
valores pessoais. I Então, uma coisa é a aprendizagem de procedimentos cuja caracte-
Na grande maioria das vezes, esses encontros de tematizaçáo da práti- '? rística é a automatização. Mas, outra coisa, é aprender um tipo de procedi-
ca ocorriam com a equipe de cada creclie; outras vezes, com as três creches mento que jamais pode ser hábito, por sua própria natureza, pois estão
reunidas; e, mais esporadicamente, com um público mais amplo nos encon- ',' )
sempre tendo que ser atualizados.
tros denominados de "seminários de trocas de experiências" — sessões pro- A ideia defendida por Piaget (1978) é que este tipo de procedimento
gramadas de apresentação, análise, reflexão, fundamentação e avaliação das que implica compreender constitui um conhecimento (um saber-fazer) cuja
práticas pedagógicas experimentadas e desenvolvidas no cotidiano coin as concekuaçâo somente se efema por tomadas de consciência posteriores.
crianças. Eram convidadas as colegas da mesma creche, das outras creches Pois, inicialmente, as ações do professor estão voltadas totalmente para
80 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 81

seus objetivos e resultados, ficando o "como" e o por quê" da açâo, isto é, consciência dos procedimentos que são utilizados pelo professor em sala,
os meios que emprega e que são os aspectos centrais, até então, inconscien- no sentido de refletir sobre seu saber-fazer, incide no desenvolvimento da
tes. Assim, o processo de tomada de consciência orienta-se para o centro capacidade de antecipar, de estabelecer relações, de saber explicar o que fez,
das ações quando procura alcançar o mecanismo interno destas, reconhe- de fazer escolhas mais ativas, de selecionar uma dentre várias opções, de
cendo os meios empregados (que inicialmente permaneciam despercebi- encontrar os meios para corrigir a açao em caso de fracassos e de chegar a
dos) e analisando seus resultados. I conipreender a razão dos sucessos, não ficando mais limitado às regulações
.i

Em Piaget, o trabalho de reflexão, ou tomada de consciência, engloba automáticas e inconscientes realizadas por tentativa e erros, sem que ele
simultaneamente três direções. Um processo de exteriorização no sentido das consiga justificar sua açao. Dessa forma, "compreender" implica dominar
características, propriedades, explicações do objeto sobre o qual incidem nossas em pensamento as mesmas situações até resolver o problema por elas levan-
ações. Um processo de interiorizaçao no sentido da compreensão dessas ca- fados. A tomada de consciência significa transformação, pois a partir de
racterísdcas, e um terceiro processo, que é o da construção de modelos que um certo nível há influência resultante da conceituaçao sobre a açao, am-
sintetiza, de forma virtual, uma determinada forma de atuar. pliando suas possibilidades.
Para o professor, que tem uma tarefa prática, tomar consciência signi-
fica organizar a experiência em outro plano, em um outro momento. Nesse Está cerco, ou está errado?" - a pergunta. do professor e a atíru-
sentido, tomar consciência é se apropriar daquilo que está organizado no de do formador
plano das ações, das atitudes, das concepções, das ideologias etc., no plano Outra dificuldade que se apresentava às professoras, nesse tipo de es-
do pensamento. A tomada de consciência é um processo que consiste numa tratégia, era a tentativa de compreender o que delas era esperado em termos
passagem da assimilação prática a uma assimilação por meio de conceitos. de certo e errado. Acertar de imediato era uma expectativa sempre presente; a
Para Piaget (1978), a tomada de consciência é desencadeada quando Ï ideia de que uma hora eu chego lá e acerto tudo" denotava certa concepção
í[
as ações do sujeito não são mais suficientes para assegurar o resultado ade- s de aprendizagem que dificultava tanto o trabalho como professoras de crian-
I
quado e torna-se necessário, então, procurar novos meios mediante uma cãs, quanto o trabalho como alunas de um projeto de formação.
intervenção mais ativa (o que supõe a consciência) ou quando o professor Segundo Perrenoud (1996), algumas vezes a tomada de consciência
se propõe a alcançar um novo objetivo, quando ele deseja atingir no futuro pode ser mesmo difícil e dolorosa, já que passa por um trabalho sobre si e
um resultado melhor do que o do presente. Porém, adverte que quanto obriga a submeter resistências mais ou menos fortes. Diz que os limites
mais tempo uma açâo ficou automatizada e inconsciente, mais difícil será o individuais para a mudança estão diretamente relacionados com a capaci-
caminho da tomada de consciência. Isto é, quanto mais enraizado é um dade que cada professor tem de suportar as contradições e os conflitos
hábito, mais difícil é transformá-lo para um nível não automático. Talvez cognitivos provocados por novas concepções e ideias.
isso explique, em pane, a dificuldade que pode se apresentar aos professo- Essa dificuldade tem a ver também com o tipo de cultura profissio-
rés mais antigos na profissão e com práticas mais consolidadas as mudanças nal que se desenvolveu no seio do professorado: ainda é difícil para o pro-
propostas no interior dos projetos de formação. fessor incluir-se como parte na avaliação dos sucessos ou insucessos de seus
Porém, poderíamos nos perguntar: O que a tomada de consciência alunos e avaliar os seus processos de ensino. Enquanto outras profissões
comporta, de fato, em termos de progresso para a prática pedagógica? Por desenvolveram culturas profissionais mais avaliativas, com muita troca en-
que é desejável que o professor tome consciência dos mecanismos que en- tre seus pares, a cultura que o professorado desenvolveu foi muito indivi-
volvem sua própria açao? Porque, para Piaget (1978), o mecanismo da dual, muito solitária: o professor fechado em sua sala de aula. Sem contar
tomada de consciência implica construções novas que podem ter um efeito as relações fortemente hierarquizadas e autoritárias dentro da escola, que se
transformador sobre a prática. Valorizar no processo reflexivo a tomada de refletiam nas formas também autoritárias e estruturadas de avaliação e
^
CONCEPÇÃO, PMNCtPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 83
82 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..."

feedbacks para os professores; eram os inspetores, supervisores e outras pes- No caso de dúvidas, o meu papel de fazê-las construir uma resposta
soas que apareciam esporadicamente nas escolas para uma supervisão téc- era um processo gratificante e, para elas, vibrante, pois se descobriam co-
nica, fato que serviu para que os professores se fechassem ainda mais. nhecedoras de coisas que acreditavam não saber.
Tais fatos impõem a necessidade de algumas precauções no proces- Porém, trabalhar no sentido de favorecer a construção de conheci-
so, um método e uma ética que precisam ser construídos com o grupo, mentos pelas professoras exige do formador a capacidade de suportar o
com o intuito de criar um clima que permita às professoras a exposição de estado de dúvida e inipaciência perante a possível morosidade do processo,
suas práticas e de suas dúvidas sem caírem na intolerância ou na desaprova- ou seja, é preciso ter baixa compulsividade. Alarcao (1996) chama-nos aten-
çáo junto à equipe. Mesmo porque é preciso considerar que o professor é cão para o fato de o processo da homologia exigir uma extraordinária capa-
um profissional autónomo e a formação tem em sua prática uma inserção cidade de interpretação, de compreensão do outro e de questionamento. E
limitada. Daí a importância de sua adesão voluntária para o desenvolvi- pergunta: será que nós, formadores, temos essa competência?
mento desse processo. Sozinho, um formador não faz nada. Zeichner (1993, p.25) comenta que parece haver certa dificuldade
Neste tipo de encontro, minha atitude articulava o dizer com o es- por parte de muitos formadores em discutir questões controversas ou em
curar muito, e mantinha sempre subjacente a atitude de questionamento oferecer retornos críticos nos momentos de tematizaçâo da prática, com
como via para a decisão que as professoras precisavam tomar, cuidando medo de perturbar o vínculo com o professor. Neste caso, segundo ele,
para não ocupar o lugar daquela que tinha todas as respostas e que julgava pode acontecer de o formador assumir, então, uma posição condescenden-
pela professora o que era "certo" e o que era "errado". Procurava não falar e te e pouco crítica do saber dos professores, o que de forma alguma irá
pensar no lugar de minhas interlocutoras, embora inúmeras vezes fosse contribuir para a melhoria de sua reflexão e prática: em vez de aceitarmos
convidada a isso. Principalmente na fase inicial, havia certa tendência a sem críticas tudo o que um professor diz ou fa.z, s6 porque foi produzido
aceitar o meu ponto de vista de forma acrílica, considerando-o a priori por um professor, temos de nos debruçar mais sobre a natureza e qualidade
verdadeiro. Cardoso (1997) também observou que o conhecimento práti- dss reflexões dos professores e sobre o saber que produzem, diz o autor.
co das professoras parece ser, por elas, pouco valorizado frente a um repre- Também Smyth (cit. por Amaral et al., 1996, p. 103), quando dis-
sentante do conhecimento teórico. cute a rematizaçâo da prática, faz referência ao confronto como uma tarefa
I
Dessa forma, está certo ou está errado?" eram perguntas frequentes imprescindível do formador:
das professoras e havia o perigo de que não fossem, da forma como foram
formuladas, por mim rejeitadas. Sabia que era preciso tentar estabelecer Nesta fase o supervisor procura que o educador, através da conside-
ração de concepções e práticas alternativas, possa questionar a
uma relação propícia à aprendizagem e ao pensar reflexivo, e isso implicava legitimação das teorias subjacentes ao seu ensino. Começa a aperce-
ir contra uma atitude mental impositiva e dogmática, procurando não di- ber-se que elas não são uma construção individuaí, mas produto de
zer abertamente e o tempo todo o que devia ou não ser feito, mesmo que as normas culturais com raízes profundas de que não nos damos conta
professoras, muitas vezes, procurassem respostas nessa orientação linear e e que fazem do ensino a expressão histórica de cerros valores, mol-
direta. Fazia questão de ouvir o que as professoras tinham a dizer, e para isso dados de modo a veicular o que é importante acerca da natureza do
dava-lhes tempo, ajudando-as a formular seus pensamentos, manifestando ato educativo, (grifos meus)
respeito e interesse por suas ideias — mais do que isto: tendo muita vontade
de conhecê-las (como a professora compreende e explica o seu trabalho?) — Concordamos com o autor, quando diz que na maioria das vezes a
para que, assim, se sentissem confiantes e encorajadas a dizer o que elas real- concepção do professor não é só dele, mas é sustentada pelo movimento de
mente estavam pensando. Ou, como diz Perrenoud (1996), dando-lhes o ideias, teorias e questões vigentes em um dado momento histórico. A aná-
direito de existirem como pessoa dentro de uma relação profissional.
84 "ERA ASSIM, AGORA NÃO...' CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 85

lise de sua prática, nesta perspectiva de historicizá-la, possibilita aos profes- professores provém de um temor de expor seus problemas docentes, como
sores compreender sua génese e seu significado naqueles contextos, auxili- se isto fosse uma forma de aceitar sua inadequação ou ineficiência, alteran-
ando-os no momenta de ressignifica-la e fazer escolhas. do sua imagem perante os colegas. De fato, observamos que as professoras
Pensamos que a tarefa do confronto, somada à lembrança do quão demoraram a aceitar que estavam construindo conhecimentos; a tendência
social e historicamente são determinadas as concepções dos professores, é inicial era ver o náo-saber como algo que depunha contra elas. Havia pou-
fundamental, pois abre a possibilidade de os formadores lidarem de outra ca tolerância com o próprio processo de construção de conhecimentos.
forma com a questão, não precisando temê-la e dela se esquivar, podendo Em função disso, consideramos uma grande conquista a construção
entender que o confronto não tem nada de pessoal, não havendo necessida- de uma cultura colaborativa nas creches, onde a reflexão sobre o próprio
111 de de se sentirem tão ameaçados. trabalho era am de seus componentes. Falar de suas dificuldades perante as
O receio que os formadores têm do confronto nos parece ter origem colegas, trocar ideias e contar com um clima de colaboração e confiança
em dois motivos: por um lado há o temor de ferir suscetibilidades e estreme- fizeram as professoras se sentir menos isoladas, além de lhes apontar cami-
cer o vínculo com o professor; por outro lado, há a preocupação de não ter nhos para a mudança. A consolidação de espaços de reflexão é um fator que
fundamentos suficientemente consistentes para o embate de ideias e argu- consideramos de suma importância, pois, se queríamos formar professoras
mentos. De fato, o formador desempenha um papel fundamental na cons- reflexivas, tínhamos de criar condições institucionais (horários de reuni-
truçao dos alicerces desta estrutura de reflexão, da qual depende o nível e a ões, atitudes, espaços de interlocuçâo e trocas) para que essas reflexões pu-
qualidade das análises. Ele precisa conseguir antecipar as possíveis dúvidas e dessem ocorrer. Sabemos que essas não são condições existentes a priori
questões que têm os professores para melhor se preparar para a discussão de em grande parte das instituições educativas.
ideias e teorias. Nesse sentido, o formador conjuga, ao mesmo tempo, várias Assim, a análise de casos também teve esse importante objetivo, uma
atitudes: de pesquisador, questionador, intérprete e professor. vez que promovia a. criação de um ambiente de trabalho em grupo e de
I

colaboração entre os colegas, desenvolvendo estratégias de análise conjunta


Construindo uma cultura cohborativa de situações práticas.
Nos encontros de remarizaçâo de situações práticas buscávamos sem-
pre trabalhar com toda a equipe reunida, e não com supervisões individu- A imitação de modelos de ativida.des
ais, por considerarmos de suma importância o investimento na dimensão Além de analisar as atividades pedagógicas realizadas pelas próprias
coletiva do trabalho, e não só nas dificuldades de cada professora em sua professoras das creches, buscávamos propor-lhes e discutir com elas outras
sala. Essa opção sustentou-se no princípio de que as professoras tinham modalidades de atividade, de modo a tornar-lhes observável capacidades
problemas comuns e muitas vezes nem sabiam disso, e que o trabalho con- infantis muitas vezes escondidas por uma série de procedimentos pedagó-
junto, que permite trocas e socialização de ideias e novas formas de atua- gicos que sistematicamente as tinham subestimado (um exemplo muito
cão, incidiria na integração do grupo e na construção de uma cultura frequente foi o de preenchimento de espaços de desenhos mimeografados
colaborativa nas creches. ou colagem de bolinhas de papel crepom nos contornos dos mesmos). Em
A divulgação de práticas provenientes das professoras em formação realidade, as concepções da professora sobre a capacidade das crianças e
vinha normalmente daquelas mais participativas e confiantes, muito com- aquilo que delas era esperado influíam na forma como se relacionava com
prometidas com o trabalho. Outras ficavam inibidas ou talvez com receio elas e nos tipos de proposta que planejava.
de possíveis comentários críticos, o que as levava, num primeiro momento, Q^uando ampliávamos o repertório de atividades da professora e su-
a se justificar ou a assumir uma postura um pouco defensiva. geríamos situações significativas e desafiadoras para serem trabalhadas
Imbernón (1994) afirma que a dificuldade de comunicação entre os com as crianças e depois criticadas, suas concepções muitas vezes se dese-
CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 87
86 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..."

quilibravam e as novas descobertas a surpreendiam positivamente. Foi in- mento do conhecimento profissional da professora manifestavam-se fenô-
teressante observar como as atividades sugeridas eram prontamente imita- menos de assimilação e acomodação. No início, a realização na prática das
das pelas professoras, que se apropriavam dos novos procedimentos rea- sugestões oferecidas denotava alguns equívocos, pois podiam ser assimiladas
lizando-os com as crianças e ampliando seu repertório de ensino, ainda que de modo deformante. Segundo Piager (1978), a assimilação deformante é
inicialmente às custas de uma compreensão parcial, para depois tornar-se parte do processo de construção de conhecimentos e a açao do aprendiz
objeto de reflexão.
nesse processo comporta três situações: uma parte desse conhecimento que é
Donald Schõn tem uma posição clara a respeito da imitação, que negada, pois não há esquema interprerativo para reconhecê-lo como impor-
nos círculos educacionais teve por muito tempo má reputação. Para ele, tante; outra parte que é deformada; e uma que é adequadamente assimilada.
assumindo uma posição idêntica à de Vygotsky (1984), muito da aprendi- O problema é que a assimilação deformante pode virar deForma.çao
quando o meio não provê informação para observar a contradição e fazer
zagem de novas competências depende da imitação, que é mais do que uma continuar avançando. A prática do professor, por si só, pode não apontar
mímica mecânica; é também um processo dinâmico e criativo pois quando
imitï-se a apâo c/e alguém é preciso entender, interpretar o que há nela de essas contradições, e a assimilação deformante pode perpetuar-se em uma
essencial para ser interiorizada de forma própria. determinada prática, permanecendo como uma deformação. Daí a impor-
Trabalhar com bons modelos de atuaçâo não é o mesmo que dar tância da crítica constante sobre a prática. Concluímos, portanto, que, na
receitas prontas para serem executadas, pois muitos dos elementos essenci- formação, não bastava ampliar o repertório de advidades das professoras,
ais de uma açâo, mesmo que referida a um modelo, não estão dados: os uma prática não podia simplesmente ser substituída por outra. Havia a
aspectos principais e os secundários estão misturados; decorre daí a neces- necessidade de uma sólida reflexão teórica que permitisse um recuo crítico
sidade de uma estratégia pessoal para conceitualizar a sugestão do forma- sobre as concepções vigentes para que elas pudessem ser reelaboradas.
dor com consequências na qualidade do produto imitado. Como diz Estrela (1994, p.58), se os modelos de atividade constitu-
Também para Cardoso (1997), a imitação da prática de um colega, em pólos de referência indispensáveis em um processo de formação, é im-
ou das sugestões de atividades oferecidas pelo formador, parece ser o canal portante, contudo, a possibilidade de eles serem analisados, desmontados,
viabilizador da introdução de mudanças no trabalho pedagógico, podendo contrapostos às práticas vigentes e assumidos ou rejeitados pelo professor
criar condições para a incorporação de ideias e implementações futuras de de forma a mais consciente e crítica possível.
novas atividades.
A relação forma.dor-professor
O perigo da. de-formaçao Outra questão tem a ver com a natureza das relações interpessoais
Constatamos, porém, que a apresentação de sugestões de novas que se estabelecem entre o formador e o professor e que, como em qual-
modalidades de atividade para as professoras realizarem com as crianças quer outra situação, determinam as condições de aprendizagem. Segundo
Alarcâo (1996), no início de um trabalho de formação, as relações entre o
gerou, muitas vezes, uma transduçâo direta da prática para a prática. E que formador e o professor, em muitos casos, começam por ser relações de
a tematizaçâo teórica naquele espaço de tempo foi insuficiente para conse- defesa de parte a parte. Isto porque, inicialmente, o professor sente uma
ia
guir reformular o marco teórico vigente, o que nos fez ver que as transfor- grande confiisâo e o formador, por sua vez, encontra-se perante o dilema
mações da prática são muitas vezes parciais. Cada professora, a depender de ter de esperar que o professor confie nele, que se deixe guiar, mesmo que
de sua bagagem particular e do envolvimento com o processo, atribuía um não perceba as razões de ser de determinadas solicitações:
sentido possível aos conteúdos trabalhados, incorporando novas possibili-
ia dades à sua prática pedagógica de forma gradual e progressiva.
Tal como no desenvolvimento das crianças, também no desenvolvi-
88 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORtAAÇÃ.O 89

Perante esta situação o educador sente-se dependente do formador, dificuldades encontradas era começar uma atividade considerando que as
sujeito a ele, sente que tem de agir como este quer e esta situação crianças já sabiam algo a respeito do assunto, por mais superficiais e con-
provoca-lhe sentimentos de perda de liberdade e fere-o no seu senti- traditórias que pudessem ser suas ideias. Outra dificuldade sempre presen-
do de independência. A atitude de defesa manifestada pelo forman- te era saber de que forma uma atividade provocava questões para as crian-
do desencadeia geralmente uma atitude idêntica por parte do for-
mador, a qual se pode agudizar e transformar numa falta de diálogo cãs e que questões eram estas: pensar a intervenção pedagógica tendo por
sistemático se a perda de confiança não for analisada e conscienrizada base as possibilidades e as necessidades de aprendizagem das crianças pare-
em devido tempo. (Alarcâo, 1996, p.24) cia não ser uma coisa fácil.
Com o investimento que fizemos na discussão sobre projetos, a partir
II do segundo ano de trabalho constatamos um real avanço no entendimento
Daí a importância de as relações entre o formador e os professores
estarem pautadas num vínculo de confiança que vai sendo paulatinamente das professoras do que significava elaborar um projeto. Por exemplo, já sabi-
construído. Q^uando conseguimos um clima de confiança mútua para o am com clareza o que queriam trabalhar com as crianças. Entretanto, anteci-
trabalho, os problemas reais com que se defrontavam as professoras pude- par um desdobramento significativo de atividades era ainda um desafio para
raro emergir e encontrar espaços de discussão no próprio grupo. a maioria, conseguiam no máximo um levantamento de atividades significa-
Zeichner (1993, p.20) também alerta para o faro de que muitas ve- tivas, aquelas que havíamos fornecido como bons modelos.
ill
zes os professores podem aceitar determinadas orientações só porque o for-
mador lhes diz para fazê-las, sem estarem convencidos que aquele é o cami- f) Formação concomitante da coordenadora pedagógica
l.i nho que devem seguir; segundo o autor, o ideal é criar uma situação na
:il
qual os professores se sintam à vontade para discordar de seus formadores. Um cuidado que procuramos adorar na presente experiência foi pre-
parar as profissionais dos quadras de coordenação pedagógica como for-
Projetos didáticos* madoras das professoras e também como multiplicadoras da experiência,
No segundo ano do projeto de formação, investimos na possibilida- dando continuidade ao projeto após ele ter sido concluído formalmente.
de de as professoras conceberem seus próprios projetos de trabalho com as Assim, trabalhamos com a formação concomitante da coordenadora peda-
crianças. Elaborar um projeto significava assumir uma prática intencional gógica, que participava de todos os momentos e discussões com o grupo de
centrada em atividades significativas, sendo preciso saber antecipar as eta- professoras. Ela teve por objedvo principal resgatar a importância da fun-
pas do trabalho em função do que se pretendia atingir, do objedvo que se çáo e competência das coordenadoras, na questão pedagógica e não so-
mente na área administrativa, conio via de regra ocorria. Isso ocorreu
tinha, construindo assim uma hipótese de trabalho mais a longo prazo.
Estavam postas frente a um desafio novo que exigia um detalhamento e principalmente quando essas pessoas passaram a ter mais proximidade com
uma consciência clara do que queriam trabalhar com as crianças. o trabalho individual desenvolvido pelas professoras com as crianças em
Começamos, então, a discutir as dificuldades de elaboração dos pro- sala. A coordenadora precisava saber trabalhar com o grupo de professoras,
jetos para ajudá-las a identificar e pontuar suas próprias dúvidas. Uma das era responsável pela maior ou menor institucionalização das diretrizes do
projeto: dinamizar, avaliar, orientar, reelaborar eram as funções da coorde-
nadara, na busca de maior coerência entre o projeto pedagógico e o con-
* Alguns desses projetos estão publicados no livro Por Um Triz - Aúvidides e Projetos
Educa.tivos, Editora Paz eTerra, São Paulo, 1998. Além de projetos didáticos, o Por Um junto de elementos e ações que tal projeto envolvia.
Triz contém desenhos, falas, ideias das crianças, reflexões das educadoras e forma- Entretanto, constatamos que a prática da formação de coordenado-
doras participantes desse projeto de formação, e constituiu-se num elemento formativo rãs diferencia-se da prática de formação de professoras. Podemos avaliar
importante por possibilitar a circulação de ideias e práticas educativas. que:, embora as coordenadoras tenham participado de todos os encontros
90 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 91

de formação das professoras, nem por isso foram especificamente prepara- g) Sistematização dss diretrízespedagógico-educacionais
11; I
das para fazerem formação e continuarem o processo. Foi preciso alargar o
tempo de formação dessas profissionais, inicialmente fixado em dois anos, A sistematização das diretrizes pedagógicas, outra estratégia formativa,
por mais um ano, de modo a tomar o papel da coordenação como um aconteceu de forma articulada com o processo de construção de conheci-
objeto de reflexão em si. mentos e novas ideias para o trabalho, no transcorrer do projeto de forma-
Em todas as creches as coordenadoras construíram uma rotina de cão. Consideramos as professoras e a equipe técnica como co-autoras de
acompanhamento do trabalho das professoras. Entravam nas salas para um projeto coletivo de trabalho e as subsidiamos na construção de diretri-
observar as atividades realizadas com as crianças e havia um clima de troca zes pedagógico-educacionais documentadas para o trabalho com as crian-
lil:
e bom enrrosamento entre as equipes. As professoras solicitavam a ajuda cãs. Para tanto, foi necessário aceitar os conhecimentos provisórios das pro-
das coordenadoras nos casos seja de dificuldade de encaminhamento dos fessoras para trabalhar com elas a reelaboraçâo de suas práticas e de suas
trabalhos com as crianças, seja de algum pedido de material necessário. As concepções, através da leitura dos textos que escreviam e reescreviam a par-
coordenadoras, porém, ainda não se viam com muita autonomia e compe- tir de nossos comentários.
tência para dar sugestões (a não ser para as professoras novas) e fazer novos Isto quer dizer que as professoras e coordenadoras começaram a ser
encaminhamentos. Esta foi uma questão central no trabalho com as coor- instrumentalizadas para o registro das atividades realizadas e dos conteú-
denadoras no terceiro ano do projeto de formação, momento em que nos dos trabalhados durante o processo de formação, a fim de que a creche
Ï
foi possível melhor instrumentalizá-las para o trabalho com as professoras. tivesse documentadas as diretrizes e a fundamentação teórica que embasam
!!••
As coordenadoras incorporaram em suas funções a leitura semanal o trabalho pedagógico-educacional que ali começava a ser desenvolvido. A
dos registros individuais diários elaborados pelas professoras; a orientação ideia era de que essa documentação fosse sendo reunida ao longo dos dois
dos projetos elaborados para o trabalho com as crianças; o acompanha- anos de formação, a partir de sínteses dos encontros, redaçao de documen-
11;
mento da evolução de suas aprendizagens; a observação em sala das ativida- tos depois das reuniões de trabalho, oficinas e supervisões, com o meu
dês educativas; a organização das reuniões pedagógicas mensais com toda a acompanhamento.
equipe; a prática de reuniões individuais de orientação para as professoras. O projeto pedagógico-educacional deve reunir, portanto, tanto as
Então,, em nosso terceiro ano de trabalho, voltado somente ao desenvolvi- bases teóricas quanto as diretrizes práticas nelas fundamentadas (MEC,
mento profissional das coordenadoras, analisávamos as intervenções que 1996). Numa instituição de educação infantil deveria conter as respostas
faziam nos registros diários das professoras; víamos com elas a qualidade para as seguintes perguntas: O que entendemos por educação? Qual a nos-
dos projetos que estavam sendo realizados, pontuando possíveis equívocos; sá concepção de criança? Como ela aprende? Como organizamos o traba-
comentávamos os relatórios das reuniões pedagógicas que coordenavam; lho para que ele se viabilize da melhor maneira possível? O documento
criticávamos juntas os protocolos de observação que haviam elaborado a pode conter a caracterização geral da instituição, a sua história, a transfor-
partir do acompanhamento em sala; indicávamos bibliografia e sugeríamos mação das definições de suas funções; número de crianças atendidas; faixa
propostas de continuidade para os trabalhos, participação em cursos, assim etária; critério de seleçao e formas de agrupamento das crianças; procedi-
como visitas a outras creches. mento do período de adaptação; horários; calendário letivo etc. Explicitaria
também a concepção de criança e a de ensino-aprendizagem assumidas; a
organização do trabalho pedagógico e seus instrumentos metodológicos; o
^ trabalho nas áreas do conhecimento com seus objerivos, estratégias e orien-
I tacões didáricas; o papel do jogo e da brincadeira; a organização da rotina.
's
• 7'.: Outro aspecto do documento seria aquele relacionado a objetivos e perio-
I
92 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. a CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 93

dicidade das reuniões de equipe; as relações com os pais e a comunidade; .?s tudo aquilo que buscávamos implementar na prática pedagógica e que re-
festas; passeios etc. queria suporte para que de fato se efetivasse. Tivemos a forte preocupação
O projeto pedagógico-educacional vem a ser a carta de navegação de estimular as creches a construir esse documento apesar das dificuldades
que guia e justifica o trabalho de formação e nos ajuda a tomar decisões que isso envolvia. Entretanto, nem todas as creches o fizeram, sendo que os
acerca do que priorizar. É um projeto que coledvamente se encontra em casos em que conseguiram realizar a proposta deveram-se mais ao empe-
permanente processo de construção e revisão; como diz Gómez (1995), e nho das gerentes do que às condições concretas de sua realização, pois tal-
uma hipótese viva de cmbalho. Um projeto se elabora a longo prazo e tem vez tenha faltado oferecer melhores mecanismos para a sua viabilização,
de conter elementos que todos da equipe compartilhem. O importante não como incluí-la como uma das etapas nos encontros de formação e traba-
é o produto final (que nunca está pronto), mas o processo pelo qual ele é Ihar em sua reescrita. O que já vem acontecendo hoje nos novos projetos
construído colecivamenre pela equipe e se consegue refletir a prática que que estamos desenvolvendo.
estão realizando de fato.
Detectamos uma falta de oportunidade para os professores sistema- h) Parcerias com outros centros de investigação, produção e di-
rizarem os conhecimentos construídos nos programas de formação, nos vulga.çâo de conhecimentos
quais participam, em forma de diretrizes para o seu trabalho. Mas o profes-
sor, como qualquer profissional cujo desempenho deva contar com a reHe- Imbernón (1994, p.58) considera que o interesse pela cultura e o
ï
xáo sobre o que se faz e por que faz, necessita recorrer a determinados aperfeiçoamento da profissão docente deveriam estar intrinsecamente uni-
referenciais que guiem, fundamentem e justifiquem sua atuaçao. Embora dos, uma vez que existe uma. reJaçao entre cultura e procedimentos ou es-
não seja essa a maior parte das realidades que conhecemos, pois, na verda- tratégias de ensino. Concordamos com a ideia desse autor quando diz que
de, podemos dizer que até muito recentemente as instituições de educação quanto maior e mais diversificado for o repertório cultural do professor e
infantil se comportavam como comunidades ágrafas dentro de uma soci- quanta mais interessado estiver em seu entorno, mais fácil resultará para ele
edade lecrada. Não havia a preocupação de registrar os trabalhos ali desen- st
gerar sua própria autonomia de trabalho. Em função disso, consideramos
volvidos, nada era documentado, a pré-escola ou creche não tinham a his- que o projeto de formação precisava potencializar o interesse pela cultura e
tória de suas práticas, apenas a preocupação em recolher dados sobre saúde suas diversas manifestações e formas artísticas, através de parcerias e incen-
e relida familiar das crianças matriculadas. tivo a visitas, exposições, bienais e outros eventos de interesse para a área da
No presente projeto, o fato de terem de elaborar as diretrizes peda- Educação.
gógicas durante o traballio de formação levava as professoras a uma leitura Buscando enriquecer e diversificar o tipo e a qualidade dos materiais
dos textos necessariamente mais atenta, desenvolvendo nelas uma postura existentes nas creches, tratamos de fazer uma parceria com o jornal Folha
de estudantes. Ademais, estávamos convictos da necessidade e da impor- de S.Paulo, através de seu projeto Folha Educação. A partir desse convénio,
tância de se registrar e documentar por escrito o trabalho de formação as creches passaram a receber, semanalmente, jornais em número suficiente
realizado com as professoras em serviço. Uma vez as ideias registradas, po- % para o trabalho em todas as salas, e também cadernos de sugestões de ativi-
dia-se ir detectando as possíveis lacunas, aprofundando as questões, dades a partir das matérias, reportagens, manchetes e entrevistas do jornal.
complementando as ideias.
Para a sistematização das diretrizes pedagógico-educacionais traba-
? Essa parceria incidiu também na possibilidade de desenvolvimento pessoal
das professoras, uma vez que passaram a ser leitoras diárias de jornal, o que
Ihadas no processo de formação na forma de um projeto documentado, a não acontecia antes.
;•• capacitaçao dos gerences mostrou-se essencial, pois criou um apoio Outra parceria promovida pelo projeto foi realizada com o MAC
institucional que possibilitou uin eiiquadramento muito mais efetivo de (Museu de Arte Contemporânea de São Paulo), que ofereceu oficinas e tra-
94 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 95

balhos de apreciação artística para as professoras participantes do projeto. i) Observação do trabalho realizado pela professora, com as cri-
Uma terceira parceria foi com o Instituto Cultural Itaú. Esse institu- ancas, seguida de supervisão
to tem como objetivo central a divulgação da produção cultural brasileira,
através de um banco de dados informatizado acessível à consulta de forma
A formação incluiu a observação em sala das atividades realizadas
gratuita a todas as pessoas interessadas, organizado em módulos de Pintu- pelas professoras com as crianças como importante estratégia formativa do
ra. Fotografia, Literatura Brasileira/Poesias, além de biblioteca e videoteca. segundo ano do projeto. Fazia observações mensais em cada sala, e as coor-
As crianças e professoras participaram de eventos relacionados à literatura denadoras pedagógicas realizavam observações semanais, que eram poste-
brasileira, ouvindo contadores de histórias, assistindo a vídeos sobre escri-
riormente discutidas em conjunto^Por sua própria especificidade, a obser- ~^ ,-.,
tores brasileiros ilustres e visitando exposições cenográficas. vaçáo em sala é a. estratégia que mais dados nos fornece para a intervenção ( ïÇ
Além disso, o projeto de formação procurou incentivar e, algumas junto as professoras em processo de formação, pois nela não se verifica o
f

vezes, viabilizar a ida das crianças a peças de teatro e outros eventos cultu- desenvolvimento do trabalho exclusivamente no plano do discurso falado
rais, bem como a participação das professoras em congressos e simpósios ou escrito, mas essencialmente no plano das interações, atitudes, valores,
na área da Educação. Q^ueríamos que professoras e crianças tivessem o di- objetivos e intervenções, tendo, por isso, um papel fundamental no proces-
reito de participar cada vez mais de variados acontecimentos culturais para so de transformação das práticas (Estrela, 1994).
1!L que pudessem, em parte por isso, redimensionar as suas vivências educa- Para descrever as observações que realizava em sala, é importante
cionais na creche.
destacar que, nesse tipo de modalidade, considerava fundamental partir do
1111- Podemos dizer que a ampliação do universo cultural das professoras que a professora gostaria de realizar ou do que tínhamos combinado de
f incidiu na constituição de suas próprias subjetividades, na capacidade de comum acordo. Esta estratégia atendeu também ao objetivo de formação \
significarem e estabelecerem relações cada vez mais amplas com os assuntos da coordenadora pedagógica que, participando do processo, estava sendo > ";
trabalhados. Assim, além de utilizar os seus finais de semana de outras
preparada para assumir tal função. Ela também acompanhava a observa-,
formas, as professoras também passaram a comentar os acontecimentos cão, e ambas registravam tudo o que acontecia no transcorrer da atividad^ •s
vividos, relacionando-os aos trabalhos que desenvolviam com as crianças. em um protocolo de observação'6 previamente elaborado, com espaços para\ .
1,1 As visitas ao MASP e o trabalho realizado pelo MAC muito contribuíram a descrição da consigna dada pela professora, da forma de agrupamento .\
para o enriquecimento das produções das crianças e das práticas das profes- das crianças, das ações da professora e das crianças, assim como das interações l
II. soras. Vale dizer o quanto nos surpreendemos com a beleza dos trabalhos que estabeleciam, do tipo de perguntas que faziam, do tempo de duração
das crianças e jovens do CJ e com o envolvimento das professoras e das da atividade, da forma como ela transcorreu, da participação das crianças,
crianças nos trabalhos de apreciação e fazer artístico. dos tipos de intervenção realizados pela professora, e também com espaço j
iSlh
para análise, comentários e encaminhamentos.
É importante dizer que a observação em sala seguida de supervisão
rinha por objetivo não prescrever formas previamente determinadas de tra-
balho com as crianças, mas sim fornecer elementos paraa análise e reflexão
I1 sobr^a_gratica, para que gu^essem_faYQreçer uma maifir^compreënsaoclos
processos que nel^imejYem_e,_cotiseqüeíitemeii.te^clarear^os cnïen^^ue
El
l^í 16. Protocolo de observação é uma folha de anotação destinada a guiar e a sistematizar
a observação.
96 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 97

nos permitiamTeconhecer_qyandp uma atividade educativa era significati- significações que formulava do ato educativo, de sua própria atuaçao e das
va para as crianças. crianças com quem havia interagido. Ou seja, a forma como a professora
Após a observação, reuníamo-nos (professora, coordenadora peda- analisava a situação fazía-nos compreender melhor as bases a partir das quais
gógica e eu) e fazíamos uma análise conjunta da situação de ensino e apren- ela organizava seus pensamentos, sentimentos, expectativas e ações.
dizagem. Tal análise possibilitáva-nos sugerir, discutir e refletir com ela a
situação de sala e suas principais dificuldades, incertezas e contradições. A y Etapa: No segundo momento da supervisão, isto é, após ouvir o que a
primeira a colocar as suas impressões era a própria professora, dizia se havia professora tinha a dizer, fornecíamos a nossa perspectiva (tanto a da coor-
gostado, o que tinha achado da atividade realizada e, a partir de suas apre- denadora como a minha). As intenções e significações da professora eram,
ciações, a coordenadora e eu sugeríamos outras maneiras que talvez vies- então, confrontadas ou complementadas com as nossas significações e com
sem mais ao encontro das expectativas da professora, levando em conside- o que havíamos observado sobre os mesmos aspectos da situação. Discutí-
ração as anotações que havíamos realizado em nossos protocolos de obser- amos as diferenças de interpretação e verificávamos quais eram as concor-
vação. Então, num esforço comum, envolvíamo-nos na tentativa de resol- dâncias e as discordâncias entre as observadoras, deixando claro que se tra-
ver os problemas surgidos, interrogando-nos sobre o sentido da ação obser- tava de uma outra perspectiva, decorrente dos fundamentos e princípios
vada e .discutida. Fazíamos, também, como forma de encaminhamento, didáticos por nós utilizados. Tratava-se, portanto, não de insmuar-que a
uma síntese contendo as principais ideias e ^rientaçoesjobrej^tiyidade, perspectivada professora fosse inçorreta, mas de problematizar a situação, e.
levando em conta a atuaçáo das crianças, seus diferentes desempenhos e as 'fornecer outros parâmetros de reflexâp^>ara a organização da atividade^ue
orientações discutidas. gudessejresukai^m maior _potenualizaçao^la^ap^a£Ídade _d&,^
Resumindo, a concretização do exposto processava-se através das das crianças. Essa análise comparativa permitia uma interpretação mais
seguintes etapas'7: ampla da situação através do levantamento de hipóteses explicativas sobre
os problemas observados. Era o momento em que realizávamos, também,
Is Etapa: Fazíamos a observação propriamente dita, registrando detalhada uma análise conjunta das produções elaboradas pelas crianças no transcur-
e precisamente, no primeiro item do protocolo de observação — relativo à so da atividade.
descrição da atividade —, as situações observadas em sala. Eram descrições
não de caráter geral ou vago, mas predominantemente de dados observáveis. 41 Etapa: O último tópico düprotocolodeobservaçãç)— principais enca-
O segundo item — análise e comeQtários — favorecia ajiassagem do plano minhamentos e orientações — cofrespondia a uma síntesege^al, elaborada
mais descnuyo.j3ara_ointerpretarivo^isto é, a construção de interpretações a partir das discussões havidas, quando se explicitavam orientações e se
através do levan'camento de pistas para a determinação dos princípios didá- apresentavam encaminhamentos para os problemas surgidos. Dentro da
ticos subjacentes às ações observadas. perspectiva que seguimos, o objetivo final do processo de observação e
discussão de situações práticas correspondia ao levantamento de orienta-
2a Etapa: No encontro de supervisão realizado imediatamente após a obser- coes didáticas que pudessem ajudar na organização de outra situação
vaçao, a primeira preocupação era saber o que a professora pensava da situ- educativa similar.
açâo que havíamos observado: como situava o seu desempenho e o das I

crianças, e qual o grau de satisfação obtido na realização da atividade. Nesse 5a Etapa: Pedia-se à professora umai análise reflexiYaescriray a ser entregue
momento, ficávamos conhecendo as intenções que ela atribuía à situação e as em outra ocasiao,-a-finT-dê'veriïicara sua posição perante o feedback que
lhe havia sido fornecido e a sua possibilidade de "descentraçâo" em relação
17. Estas etapas não têm qualquer sentido normativo, a principal finalidade da sua t

apresentação é a de explicar como procedíamos. a aspectos com que anteriormente se identificava.


98 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO 99

Exemplo de uma observação em sala: Professora - Que legal!


D. - Ontem, minha mSe foi pra praia e tinha um peixe e eu tinha
Elma (coordenadora) foi comigo observar o grupo dajosefa: sala de uma caçamba e eu /uí lá e enchi de areia.
crianças de 3 anos que nunca havia feito uma roda de conversa, com Professora - Quem já foi para a praia?
a justificativa dada pela professora de que não fazia, roda. de conversa. Várias crianças - Eu, Eu, Eu...
porque as crianças não sabiam conversar. Daí termos combinado W. - Eu fui na Praïa Grande.
para hoje uma roda de conversa na sala da professora Josefa. Professora - -Ê bonita, a. Praia. Grande?
W. - E, é grande a praia. Eu fiquei com medo e daí eu fui pra praia
H Protocolo de Observação pequena e aí eu fui na água e não fíquei com medo. A água é salgadï.
Data: 2-3-95 Professora - A água do mar é salgada?
Sala: Maternal I (15 crianças presentes) Várias crianças - É, É, É!!!
Média de idade do grupo: 3 anos
Professora: Jose'fa A conversa manteve-se por mais alguns tópicos e depois as crianças
Atividade: Roda de Conversa foram tomar lanche. No momento da supervisão foi possível analisar, con-
A roda de conversa que passo a descrever teve a duração de 20 minu- juntamente com a professora, muitas das características das verbalizações
tos e iniciou-se com a seguinte pergunta da professora: infantis a partir do registro dessa roda de conversa, que para isso se prestou
Professora — Quem quer contar alguma coisa? como uma luva. A primeira a colocar as suas impressões foi a própria pro-
J. - Minha mãe vai comprar um gatinho pra mim! fessora, que conseguiu identificar as principais dificuldades das crianças
W. - Oh! Tia... minha mãe não consegue dormir porque tem um mas não conseguiu se incluir como parte importante do processo, pois
.1
cachorro que late e ela. fica. com medo. afinal é quem propõe, é quem conduz, é quem tem a intenção de trabalhar
'i L. - Eu durmo no berço. com as crianças do melhor jeito possível e, em função disso, tambérri^está
J. - A mãe da Gláucea teve um bebé. sujeita a análise e avaliação. Tornou-se observável de que forma as crianças
G. - Ele dorme de chupetinha. Ele tem duas chupetinhas. constróem suas verbalizações a partir dos enunciados dos colegas, embora
W. - 5aaafce... o DEIC pegou o meu tio e levou pra cadeia, pegou ele com ligações muitas vezes subjetivas e sempre ligadas a uma situação vivi-
e Zuuumm (gesto) pôs no carro. da ou imaginada. À primeira vista, pareceu à professora Josefa que cada
N. - Regiiiní... eu tenho uma calcinha da. Monies. uma das crianças falava uma coisa que não tinha nada a ver com o que as
J. - Eu vou no parque da Monica! outras crianças haviam falado. Então vimos que isso não era verdade, e
Professora - Pergunta pra. Ingrid se ela tem um bichinho na casa buscamos as prováveis conexões: do gato para o cachorro, do dorniir para o
dela. (para J.) berço, do berço para o nené que nasceu, do nené para a chupeta, até desem-
G. - Meu tio jogou aporta no rio, fava quebrada. bocar no assunto do tio, do carro, do passeio e finalmente da praia.
D. - A porca, do carro do meu pai nunca quebrou. Entretanto, a professora — como principal interlocutora da criança
Professora - Pergunta pro Isaque se o pai dele tem carro, (para D.) — tem um papel primordial no encaminhamento de uma roda de conver-
D. - Tem? sá, principalmente com crianças pequenas, e Josefa poderia ter interferido
I. - Não. muito mais para que as crianças ampliassem suas ideias e organizassem
W. - Eu fui de carro com o meu tio na casa da. Mariana. melhor as suas verbalizações. No momento de supervisão com Josefa, pude
J. - Eu, meu pai, minha, mie e minha, irma. foi na praïa. compreender melhor a dificuldade que é, para a professora, manter uma


r

100 "ERA ASSIM, AGORA NÃO..." CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO l O l

roda de conversa, uma vez que as crianças são pequenas e não conseguem No momento da supervisão, quando discutíamos sobre o que havia
mesmo responder a todas as expectativas que ela tem. Espera que as crian- ocorrido em sala, o mais comum era encontrar uma situação na qual for-
cãs se mantenham em postura sentada, sem movimentação, falando uma madora e professora não estavam de acordo e não compartilhavam das
de cada vez e ainda por cima sobre o mesmo tópico de conversa do início mesmas opiniões a respeito da adequação ou pertinência dos vários aspec-
are o fim. Se isso não é possível com crianças dessa idade, o que fazer? Q^aal tos envolvidos. De nosso ponto de vista, isto ocorria porque nem sempre
a dinâmica possível para uma roda de conversa com essa faixa etária? Uma falávamos apoiadas no mesmo referencial; ao contrário, alguns objetivos
coisa é certa: todos falam, conversam e querem dizer coisas, parece que almejados pela professora poderiam parecer-nos secundários, e aqueles que
falta de assunto não é. Então, como ser interlocutora dessas crianças? Como julgávamos importantes poderiam não ter sido nem mesmo objeto de sua
permitir que se expressem de acordo com suas reais possibilidades e que atenção. O primeiro passo para avançar na discussão era, justamente, iden-
avancem a partir delas? Esses foram os desafios colocados para reflexão e tificar estes elementos de discrepância.
transformação da prática de Josefa, com o objetivo de dar voz às crianças, No início da prática de acompanhamento em sala, observamos que
para que sejam sujeitos de suas enunciações, para que a partir da necessida- a professora conseguia identificar as principais dificuldades das crianças,
de de expressão possam melhor organizar seus pensamentos e ideias. A mas não conseguia se incluir como parte importante do processo; as inter-
partir dessa discussão, muitas questões que interferem diretamente no bom m venções da formadora buscavam tornar esse aspecto observável.
desenvolvimento da atividade puderam tornar-se observáveis para as pro- 0 feedback dïdo no momenta de supervisão era recebido com tran-
fessoras. Como por exemplo: a natureza sincrédca do pensamento infantil, I qüilidade na grande maioria dos casos. Estrela (1994, p.57) observa que
a noção de diálogo como vozes em oposição e não como sucessividade de 3 efeitos afetivos provocados pelo feedback do formador costumam ocorrer
vozes, a importância de se ter um real interesse pelas falas das crianças, sobretudo em professores com experiência, os que têm uma imagem pro-
outorgando-lhes sentido comunicativo desde as mais simples enunciações, fissional já formada, que poderá ser posta em causa ou ameaçada. Daí con-
e o importante papel da professora (que permanece oito horas por dia com siderarmos que, no caso de profissionais leigos ou com pouca experiência,
a criança) como parceira mais experiente que facilita e enriquece o diálogo. há maior flexibilidade e maior facilidade de aceitação de possíveis críticas e
(Diário de Campo, 1995) novas ideias, o que faz o trabalho avançar.
ï
O episódio acima descrito nos mostrou como, a partir de certo mo- Outro ponto a ser analisado diz respeito ao efeito da presença do
mento da tarefa de formação permanente, pode haver uma construção con- observador em sala. Minha presença acompanhando o trabalho em sala
junta de conhecimentos didáticos. Ante as necessidades e os problemas que era, em maior ou menor medida, um elemento perturbador para a profes-
as professoras me colocavam, produzia-se uma busca de soluções e, às ve- sora e, em alguma medida, para as crianças também, que me solicitavam a
zes, propostas que se validavam em função de seus resultados em sala, após participar do trabalho. Algumas vezes, acabava intervindo, mas sem deixar
a observação da prática, análise, pesquisa e discussão conjunta, que acaba- de lado o meu papel de observadora.
vam por criar novas possibilidades de intervenção didática. Isto também Além de certa inibição e insegurança da professora, minha presença
nos mostrou como a realidade sugeria novas experiências e novos proble- podia provocar desvios na sua atuaçâo. As mudanças de atitude provocadas
mas para os quais às vezes não tínhamos de imediato uma resposta, mas com frequência pela sensação de estar sendo observado ocorrem porque a
que podíamos buscá-la a partir de uma atitude de investigação na açâo e de
elaboração de novos conhecimentos que fazia o trabalho ir avançando: a
professora revendo suas concepções e eu aprendendo mais a respeito das
!• atenção que o indivíduo sente fixada sobre sua pessoa, o obriga. a observar-
se a si mesmo (Wallon, 1995), o que pode gerar inquietação e a necessidade
de um tempo para se adaptar à presença do outro. Observamos, por exem-
ideias subjacentes àquela prática, tentando criar estratégias para melhor pio, que muitas professoras, devido a minha presença em sala, mudavam
problemadzá-la. completamente suas práticas habituais e acabavam muitas vezes por com-
102 "ERA ASSIM, AGORA NÃO.. CONCEPÇÃO, PRINClnOS E ESTRATÉGIAS DO PROJETO DE FORMAÇÃO I 03

pronieter o bom andamento da atividade. Como uma vez em que a profes- problema.tizír, ou seja, interrogar a realidade e construir hipóteses
sora, que sempre trabalhava com as mesas agrupadas, resolveu naquele dia explicativas sobre ela (Estrela, 1994, p.26). É justamente a vivência deste
dispô-Ias em fileira para que as crianças não conversassem muito e não processo que a estratégia de observação de diversas situações educativas
atrapalhassem a atividade, já que eu estaria presente. oportuniza. Primeiramente em parceria com o formador e pouco a pouco
Notei ainda que todas as vezes que observava as salas, as professoras realizada de forma autónoma pela professora, que poderá tornar-se obser-
ficavam sem recursos para lidar com as questões de limites e indisciplina vadora (participante) de sua própria prática.
das crianças. Minha hipótese foi de que no trabalho do dia-a-dia utiliza- Esta estratégia demonstrava à professora a complexidade do proces-
vam estratégias questionáveis, como ameaças ou algum tipo de autoritarismo, so educativo e ciye.M.yma parte de imprevisto em toda açâo, mesmo que
que não se sentiam à vontade para repetir na minha presença. Sendo assim, planejada; os'impi^i^tós^oconstitui^ntesda relação de ensino^e^
ficavam sem açâo perante qualquer comportamento disruptivo das crian- zagem. Mostrava que a prática também .e un^ campo de experimentaçaQ,-
onde cada decisão tomada altera o rumo dos acontecimentos, às vezes de
cãs. Essa reflexão apontou para a necessidade de um trabalho com esse
tema em especial. Foi preciso trabalhar com a construção da moralidade forma radical, não sendo possível portanto prever e controlar totalmente as
infantil, com a relação que as crianças mantêm com as regras sociais e com ações planejadas, pois nem todos os processos de gensâmeiito.^as.cuanças
os vários tipos de sanção colocados pêlos adultos. e suas interações são possíveis de antecipar. Ha.a&gectosdainterac'ao^ye
são criados no jogo da própria, interaçao. Por outro lado, permitia passar de
um nível de atuaçâo intuitivo ou rotinizado.para um nível de reflexão crí-
A construção de observáveis tica, ajudando a criar uma atitude investiga.tíva) pela problematizaçâq^dp
E importante, no entanto, especificar um pouco mais a qualidade real e construção de bipótesesi^pliçatj.y.is-que-clesseni.conta das çontradi-
da observação aqui defendida como estratégia formativa. A observação não coes no encaminhamento das atividades. Isco pôde ser observado, por exem-
supõe apenas ver, ouvir, perceber, descrever o que está ocorrendo. Talvez pio, em um dia que a professora propunha uma atividade de escrita de uma
por isso Piaget (1977) não diga oíservaçáo, mas construção de observáveis, '* lista de bichos para crianças de 6 anos, mas ela mesma escrevia o nome das
que ultrapassa o dado percebido explicitamente e compreende sempre uma crianças em suas folhas. Isto é, algiimas vezes considerava as crianças escri-
conceitualizaçao já encaminhada na direçáo da interpretação, o que inclui toras", outras não.
refletir, inferir, levantar hipóteses, discutir, confrontar pontos de vista, ar- A observação em sala tornou-se também um importante momento
gumentar. Isto significa que uma observação nunca é independente dos de avaliação do alcance do processo de formação, dado que nos possibilita-
instrumentos de assimilação de que dispomos e que estes instrumentos não va fazer uma leitura das possíveis transformações já ocorridas, ou não, na
são apenas perceptivos, mas condicionados por nossas coordenações ante- prática até aquele momento e tainbém coiihecer a evolução individual so-
riores (conhecimentos prévios, concepções, valores etc.). frida pelas professoras no período da formação.
Trabalhar dessa forma supõe que o formador tenha um domínio,
mais ou menos complexo, de estratégias que favoreçam, na prática, a cons-
rruçâo de relações novas que ultrapassam a fronteira do que era observável
num primeiro momento (tanto em relação ao processo de construção de
conhecimentos pelas crianças, quanto às próprias ações), e que são perma-
nentemenre ameaçadas por contradições.
A ampliação do espectro de observáveis para o professor através do
olhar do formador é de fundamental importância, pois para que ele possa
intervir no real de modo fundamentado terá de saber observax e

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