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A produção de conhecimento aplicado como foco dos mestrados profissionais

Bernardo Jefferson de Oliveira


Samira Zaidan

Introdução
Muito se tem falado da relevância dos mestrados profissionais, justamente
porque neles se poderia aliar a pesquisa e a produção de conhecimento com aplicação
prática, considerando a realidade educacional e os desafios da profissão. Os resultados,
com produção de recursos educacionais, retornariam à realidade que originou a questão
de estudo, reforçando a instituição educativa e implicando avanço e/ou superação
desafios da prática. Este delineamento aparece na Portaria Normativa do Ministério da
Educação (MEC) de 2009, como "empenho por uma formação de profissionais que
qualifique a prática profissional no compromisso com a apropriação e a aplicação de
conhecimentos por meio de rigor metodológico e científico (BRASIL, 2009, p. 2.) A
portaria assina ainda que "tal qualificação voltada às práticas docentes, já existentes, se
refere a articular experiências vividas nas escolas a estudos, investigação e pesquisa,
fazendo destes últimos instrumentos de mudança dessa realidade, quando dão vazão às
potencialidades, criatividades, possibilidades instrumentais, lutas diárias enfrentadas."
(BRASIL, 2009, p. 2.)
Entretanto, há diferentes entendimentos sobre qual ou quais deveriam ser as
ênfases dessa modalidade de pós-graduação: Formação continuada? Formação como
pesquisador (preparação para doutorado)? Produção de conhecimento aplicado? Em
nosso entendimento, estas ênfases não são excludentes e podem se combinar, sendo que
cada uma delas tem sua importância e suas justificativas. Todas elas convergem na idéia
do professor-pesquisador, que já se encontra bem estabelecida (Ludke, 2001), mas a
vinculação da docência com a pesquisa é vaga quanto ao tipo de pesquisa que deve ser
desenvolvida no MP, sendo que cada um desses tipos de pesquisa visam objetivos
diferentes e demandam metodologias próprias.
Nosso foco aqui se situa nos desafios do MP como local de produção de
conhecimento aplicado, a partir de nossa experiência do Promestre, Mestrado
Profissional Educação e Docência, da Faculdade de Educação da UFMG. Esta ênfase
nos parece ser a que encontra maiores dificuldades e resistências. Procuraremos
evidenciar aqui algumas delas e ponderar sobre os desafios para sua superação. No

1
entanto, antes disso, para podermos estabelecer o contraponto que ajude a situar nossa
perspectiva, convém delinear essas três ênfases.

Diferentes ênfases dos mestrados profissionais em educação


A primeira ênfase que se encontra em programas de pós-graduação é na
formação continuada como um aprimoramento profissional dos educadores. Os
programas que foram priorizados pela Capes na área de ensino apresentam como foco
este objetivo. Eles (PROFMAT, PROFIS, PROFLETRAS, PROFARTES,
PROFHISTORIA, PROFBIO, etc.) foram estruturados em rede com polos em várias
universidades e são os únicos programas apoiados financeiramente pela CAPES.1
Alguns desses programas – como o PROFMAT e o PROFIS – tratam a formação
docente como complemento e aprofundamento de conteúdos, abordados do ponto de
vista formal, e não do ensino, e não contemplam disciplinas ou estudos sobre a
educação.
Há, contudo, vários outros mestrados profissionais em educação com visões
diferenciadas sobre a formação continuada, visando o aprimoramento profissional a
partir da reflexão crítica sobre sua prática docente, com pesquisas que debruçam sobre
seus locais e experiências de atuação. Esses programas tomam como seus principais
objetivos o desenvolvimento da capacidade de reflexividade, de autonomia, de
elucidação da própria experiência e as possíveis intervenções nos contextos
profissionais dos seus mestrandos. Um bom exemplo é a pesquisa-ensino, que a partir
da perspectiva da pesquisa-ação, vem sendo desenvolvida como “intervenções
investigativas” do próprio pesquisador no seu contexto profissional, de modo que o
espaço educativo é visto também como espaço investigativo. Como nos mostram
Penteado e Garrido, esse tipo de pesquisa
é denominado “pesquisa-ensino”. Ela produz mudanças nos
alunos, qualificando seus processos de aprendizagem, e também
no docente pesquisador, em sua prática de ensino, tornando-o
mais autoconfiante, autônomo e compromissado com o que faz.
Produz, ainda, conhecimentos sobre a docência. (PENTEADO e
GARRIDO, 2010, p. 11/12)

1
Os programas PROF-MAT, PROF-FIS, PROF-LETRAS, PROF-ARTES, PROF-HISTORIA, PROF-
BIO, e congêneres são mestrados profissionais à distância, articulados em rede pela Capes-MEC e
sociedades cientificas específicas de cada área, que oferecem em seus distintos polos centenas de vagas e
bolsas de estudo para os mestrandos.

2
A segunda ênfase, que denominamos formação para pesquisador, é aquela que
predomina em mestrados acadêmicos, mas que foi incorporada também em alguns
mestrados profissionais. O principal argumento para essa vertente é sua potencial
contribuição para o avanço da área de conhecimento, com investigações que melhorem
a compreensão dos diversos aspectos do fenômeno educacional. Há muito que se
reconhece a refutação das teorias explicativas vigentes como uma das formas dessa
contribuição. Ao apontar contra-exemplos, falhas nas análises ou novas chaves
interpretativas, essas pesquisas trazem, de alguma forma, avanços para a área de
conhecimento. A justificativa mais recorrente das pesquisas desse grupo é a lacunar, ou
seja, a falta de estudos suficientes sobre um determinado aspecto.

Uma das razões para a escolha dessa ênfase é a importância da inserção dos
profissionais na prática da pesquisa científica (conhecimento operacional das bases de
dados, revisão bibliográfica, recorte do problema de pesquisa, rigor metodológico) e em
seus procedimentos de circulação (eventos, publicação). Mesmo quando é concreto o
problema abordado, objetiva-se averiguar hipóteses, rever teorias, de forma a poder
subsidiar novas abordagens no ensino ou em políticas educacionais num sentido amplo.
Ainda que não tenham aplicações ou desdobramentos concretos, são pesquisas
importantes na medida em que podem contribuir na compreensão de fenômenos
educacionais ou alguns de seus aspectos. Nesse sentido, boa parte das pesquisas em
educação podem ser consideradas como pesquisa básica, que há muito se encontra
legitimada, como alicerce do desenvolvimento social e econômico.

Outro aspecto importante nas defesas dessa ênfase é a preparação dos


mestrandos para o doutorado, e de forma correlata, para o ingresso na carreira de ensino
superior. É sintomática a importância que se dá no discurso dos professores e alunos à
passagem para o doutorado como um indicador de boa formação dos egressos. Um
indicador dessa ênfase está no valor que se dá à produção científica dos mestrandos nas
avaliações dos programas de pós graduação realizadas pela Capes. Nas fichas de
avaliação dos programas, por exemplo, não há quesito sobre a produção técnica ou
inovação tecnológica, como acontece com a produção científica.

A terceira ênfase, que nomeamos como produção de conhecimento aplicado, é a


que têm o foco no desenvolvimento de processos ou produtos de natureza educacional
que se constitua em material que possa ser utilizado por outros profissionais para
melhoria da educação. Muitos profissionais, sobretudo após anos de experiência em

3
salas de aula, na gestão ou em processos educativos não escolares, criam
procedimentos, desenvolvem atividades, metodologias de ensino e avaliação, estratégias
de envolvimento das famílias, materiais e situações de aprendizagem que ficam sem
registro ou raramente chegam a ser compartilhados ou replicados. Em A invenção do
cotidiano, Michel de Certeau mostra como, sob a aparente repetição dos objetos de que
a cultura se serve, há uma criatividade inesgotável que é difícil apreciar e reconhecer,
até mesmo porque nossa sensibilidade foi direcionada para outros setores2. Seus
criadores não se valem de uma sistematização (discussão dos pressupostos
teóricos, categorias, registros) nem de avaliação criteriosa sobre seu alcance e
limitações. Muitas vezes enfrentam desafios práticos e reconhecem lacunas nas suas
ações que o conhecimento científico e as experiências existentes não ajudam a
responder. Programas de pós graduação acadêmicos dificilmente têm condições de
acolher esse tipo de pesquisa, mas é fundamental que os mestrados profissionais
tenham.

Situação exemplar é a de professores aposentados, que já não estão


mais investindo numa formação profissional e para quem o mestrado sequer
representará progressão na carreira. Tendo muito o que repassar, podem se beneficiar do
programa de pós-graduação para sistematizar suas bagagens, assim como para
compartilhar experiências. Mas não só eles.

Também jovens educadores, ainda que com pouca experiência docente, têm suas
ideias, propostas ousadas e projetos inovadores que podem ser desenvolvidos, testados,
avaliados e aprimorados como objeto de pesquisa ao longo do mestrado profissional.
Podem desenvolver projetos que não se baseiam em sua prática docente, mas em sua
vivência, seja como aluno ou como cidadão. Um bom exemplo é o da criação de jogos.
Há pessoas que adoram jogos e que sabem o que funciona para tornar um assunto
envolvente e o que poderia ter bom uso como situação de aprendizagem. O mestrado
profissional em educação pode ser o ambiente ideal para desenvolvimento e avaliação
de protótipos.

2
“Do ‘saber-fazer’ não discursivo, essencialmente sem escritura (é o discurso do método que é ao mesmo
tempo escritura e ciência), qual será o estatuto? É feito de operatividades múltiplas, mas selvagens ... essa
proliferação não obedece à lei do discurso... Pede uma conquista, não como de práticas desprezíveis, mas,
ao contrário, de saberes, engenhos, complexos e operativos” (Certeau,1994, 136-7).

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Outra situação exemplar é o desenvolvimento de soluções para problemas
percebidos na experiência educacional extra-classe ou em espaços escolares
diferenciados: como a elaboração de material instrucional para os pais; cursos ou
materiais específicos para professores; sistemática de comunicação; estratégias
colaborativas tutoriais para preparação de visita mais proveitosas a museus, parques e
exposições; estratégias de colaboração e inserção de jovens professores (mentoria), ou
kits de apoio a professores substitutos. Esses são alguns exemplos de busca de soluções
e criação de estratégias, processos e aparatos que não estão primordialmente
direcionados ao aprimoramento profissional dos mestrando nem à preparação para o
doutorado, como às ênfases um e dois aqui delineadas.

Ideias, experiência, inovações são bagagens que todos esses profissionais podem
sistematizar e transformar em contribuições concretas, que merecem ser lapidadas,
retrabalhadas, debatidas, desenvolvidas, criticadas, registradas e reajustadas ao longo do
mestrado. Essa é justamente a contribuição que a universidade pode propiciar para esse
tipo de produção de conhecimento. Situações de sistematização e socialização que a lida
na rotina da escola ou em outros espaço formativo não facilitam, e que podem ser
desenvolvidas nos mestrados profissionais. Como incubadoras de inovações, esses
programas de pós-graduação devem propiciar ambientes de discussão teórica e
metodológica, parcerias ou consultoria de design gráfico, engenharia de sistemas,
edição de imagens, desenvolvimentos de jogos e aplicativos, entre outros, visando a
elaboração e experimentação de produtos educacionais.

Dependendo dessas três ênfases do programas delineadas, os processos de


seleção dos mestrandos deveriam priorizar diferentes características e perfis. Se a
prioridade for a melhoria da prática de ensino, parece razoável que a primazia seja dada
aos professores que têm mais dificuldades, que atuam em regiões com menos
condições, e que estejam em momento inicial ou intermediário da carreira, ainda longe
da aposentadoria. Se a ênfase for formação de pesquisadores/carreira científica, o
natural é que se valorize o experiência e o potencial, como o domínio teórico do campo,
uma prévia iniciação científica e/ou participação equipe de pesquisa, tendo a
internacionalização no horizonte e, talvez, a atuação no ensino superior. Por fim, se a
ênfase for a inovação de processos/produtos educacionais, um critério suficiente para a
seleção seria apresentar uma ótima ideia de uma ação/material relevante e realizável.
Assim, de acordo com essa diferenciação, o currículo ou o memorial seriam o mais

5
importante para o processo seletivo do primeiro caso; uma prova escrita para verificar o
domínio teórico e capacidade de formulação de argumentos seriam o mais importante
para o segundo; e, para o terceiro, o mais importante seria o projeto de um produto a ser
elaborado e as condições do proponente em desenvolvê-lo, que poderia ser discutido em
uma entrevista.

Nos três casos, contudo, o aspecto formativo do pesquisador estará presente. Isto
porque, no convívio em ambiente acadêmicos de estudos e discussões, mesmo com
focos diferenciados, os processos podem proporcionar ampliação de conhecimentos e
desenvolvimento do pesquisador, seja pelo acesso a informações e ações culturais, pelo
compartilhamento de ideias, pelo estudo para desenvolvimento das etapas construção do
próprio produto educacional, pela reflexão de experiências e práticas, pela trabalho de
registro, elaboração e outras formas.

Cada uma das três ênfases se apóia em um tipo de relevância social, pois a
bandeira da “melhoria da educação” é muito ampla e cobre uma enorme gama de
perspectivas e alvos. O aprimoramento da prática profissional dos mestrandos, a
melhoria da compreensão dos problemas educacionais e a inovação de procedimentos
ou produtos educacionais são três estratégias diferentes que, embora convirjam na
mesma direção, mobilizam diferentes esforços e circunscrevem táticas concorrentes. A
indagação sobre o alcance, a escala ou o impacto efetivo ou potencial de cada uma
dessas estratégias é algo que estamos longe de conseguir avaliar, mas que não deveria
ser desconsiderado na discussão sobre as diferentes ênfases.

Há, contudo, entendimentos diferenciados e resistências quanto aos mestrados


profissionais com ênfase na produção de conhecimento aplicado, o que trataremos a
seguir.

Resistências à ênfase na produção do conhecimento aplicado.


São várias as resistências à ênfase de programas de pós graduação de educação
como produção de conhecimento aplicado, arraigadas em nossa tradição acadêmica.
Elas podem ser caracterizadas como resistências epistemológicas, institucionais e
políticas, que apresentaremos aqui de forma sintética.
A primeira está vinculada ao padrão cognitivo ou matriz discursiva
preponderante na história da racionalidade ocidental, que sempre valorizou a abstração e
a teorização (das essências ou leis universais, demonstráveis racionalmente) em
detrimento dos conhecimentos práticos. Ainda que a ciência moderna incorpore valores
6
e características cognitivas das artes e ofícios (poesis e tecnê), prevaleceu o pressuposto
que o progresso técnico ou tecnológico advém do avanço do conhecimento teórico,
como se tecnologia fosse uma mera aplicação da ciência. (Oliveira, 2002; Stokes, 2005;
Bensaude-Vincent, 2013) A história da relação entre ciência e técnica é controversa,
mas aquele pressuposto têm sido contestado a partir de algumas constatações gerais,
como a de que o desenvolvimento técnico tem uma dinâmica própria; que a
inventividade não segue a lógica da racionalidade científica; e que o domínio teórico
nem sempre possibilita realização prática (Prince, 1977, Kransberg,1989).
Diversas reconstruções históricas têm revelado a importância de conhecimentos
tácitos e habilidades independentes do domínio explicativo, que a pesquisa tecnológica
está menos interessada com leis gerais e demonstrações do que em soluções eficazes
para contextos particulares (Colins e Pinch, 2010), ou que a importância da difusão de
uma invenção possivelmente ultrapassa a importância da invenção original. (Diamond,
2001).
Todavia, a metodologia de pesquisa que geralmente se ensina nos programas de
pós graduação em educação é guiada pela perspectiva científica tradicional e a falta de
uma metodologia para a investigação e inovação de produtos e processos educacionais
é um grande dificultador, sobre o qual vamos retomar mais à frente. Antes disso,
retomamos nossa síntese, delineando o segundo tipo de resistência: a institucional.

Do ponto de vista institucional, os parâmetros das estruturas de pesquisa praticamente


inviabilizam a contribuição de orientadores que, embora tenham notável experiência
profissional, não têm uma produção científica substancial. A princípio, a portaria de
implantação dos mestrados profissionais reconhecia a importância de participação no
corpo docente de profissionais com experiência profissional não acadêmica; O
documento de orientação para criação de novos mestrados profissionais - "Requisitos
para a Apresentação de Propostas de Cursos Novos (APCN)" na área de Educação -
orienta no item (a) a admissão na composição do Corpo Docente, de "até 10% de
profissionais e técnicos com experiência em pesquisa aplicada ao desenvolvimento e à
inovação" e no item (c), que 20% dos docentes do corpo permanente não precisaram
ter produção bibliográfica, de pesquisa ou técnica, diretamente relacionada com a área
de Educação, bastando "comprovar produção técnica especificamente relacionada com a
área de atuação do MP proposto (...), de modo a evidenciar inserção e domínio na
temática do curso." (Capes, 2016,p.12).

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A possibilidade de acolher orientadores com notável experiência e produção
técnica educacional permitiria a inserção de profissionais que, mesmo sem diplomas de
doutor, se destacam na criação de materiais didáticos e pela excelência na atuação em
políticas públicas. Pessoas com experiências fundamentais para orientação e avaliação
de produtos (produção de conhecimento aplicado). Entretanto, na prática, há uma
grande dificuldade para absorver esse perfil de profissional, pois não se encaixam bem
na lógica do sistema de pós-graduação. Por exemplo, quando da criação do Promestre
em 2013, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFMG não aceitou a inclusão de
professores da Faculdade de Educação que não tivessem produção acadêmica desejada
(considerada à época como igual ou superior às exigidas de programa acadêmico com
nota 4) sem levar em consideração a produção técnica como a elaboração de livros
didáticos. Consultado, o Reitor, que depois se tornou Ministro da Ciência e Tecnologia,
se colocou contra a proposta de mestrado profissional que incluísse muitos professores,
de forma a atender centenas de alunos, argumentando que isto significaria uma
“banalização da pós graduação”. Também surgiram algumas reações no programa de
Pós-Graduação em Educação acadêmico da Faculdade, argumentando que o mestrado
profissional poderia enfraquecer o PPG acadêmico uma vez dividiria a atenção e o
esforço de vários professores que passariam a se “contentar com um nível mais baixo de
exigência acadêmica". Essas e outras alegações equivalentes, ou implícitas nos
parâmetros e métricas de avaliação, têm suas razões mais complexas. As evocamos
aqui apenas para mostrar que as resistências se dão em diversas instâncias.
Por fim, mas não menos importante, estão as resistências políticas dentro da
comunidade de pesquisadores em educação, que questionam o próprio uso do termo
“produto” ao tratar da pesquisa e trabalho desenvolvidos no mestrado, considerando-o
como sinal de tendências tecnicista e/ou produtivista e/ou mercantilista contemporâneas,
que dispensam a formação crítica e a preocupação com a transformação da realidade.
De acordo com essa perspectiva, as tendências mundiais de uma “educação submissa às
exigências da economia do saber” (LESSARD & CARPENTIER, 2016), levam à busca
de resultados pautados na eficiência e eficácia, com o ideal de competência o mais
perto possível do campo práticos, ou na qualidade dos serviços criados.
Essas resistências epistemológicas, institucionais e políticas se fazem presentes
como argumentos conjugados ou não. Seja como for, ainda quando aparecem
isoladamente, ou subliminarmente como hábitos acadêmicos, eles têm servido como

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dificultadores para a ênfase na produção de conhecimento aplicado nos mestrados
profissionais em educação.

Metodologias de pesquisa e seus produtos


É importante retomar aqui a discussão sobre diferentes perspectivas
metodológicas e explicitar o que havíamos apontado como falta de uma metodologia
consolidada para a investigação e inovação de produtos e processos educacionais.
Geralmente, a metodologia de pesquisa em educação, assim como no conjunto
das ciências humanas, busca de início encontrar as referências teóricas para sustentar a
problematização, justificativa, objetivos e desenvolvimento. Trata-se de dialogar com a
produção acadêmica (teses, dissertações, monografias, livros, artigos científicos) do
campo sobre a temática investigada; desenvolver uma análise consistente dos dados e
argumentos sobre os resultados encontrados. Ou seja, a consistência de uma
investigação é entendida como saber problematizar uma questão-desafio relacionando
com teorias já existentes, saber recortar e justificar metodologicamente para, ao final,
elaborar uma escrita acadêmica como conhecimento novo (mesmo que seja em aspectos
muito particulares). Esses procedimentos se adéquam bem para os MPs com ênfase do
segundo tipo, mas não quando as ênfases adotadas são a primeira ou a terceira.
Quando o mestrado profissional enfatiza a formação profissional, o
distanciamento do pesquisador do objeto de pesquisa, isto é, seu não envolvimento
pessoal com o objeto de pesquisa, tão recomendado numa pesquisa tradicional, deixa de
fazer sentido. Se o objetivo da investigação é a reflexão e transformação da própria
prática docente, as observações, levantamento de dados e outros trabalhos de campo
implicam no desenvolvimento de ações pelo próprio pesquisador em seu contexto de
trabalho. Em algumas situações, como na pesquisa-ensino, o professor-pesquisador é
incentivado a se distanciar temporariamente de sua prática, trazendo suas questões e
desafios para o estudo, para a ela retornar desenvolvendo uma proposta, testando e
analisando suas possibilidades, podendo com isto amadurecer e ampliar seus
conhecimentos, para avançar nas suas ações e reflexões. Ao longo do mestrado diversos
elementos formativos serão agregados ao processo, pois o profissional pesquisador,
diante da questão de pesquisa que apresenta, amplia sua reflexão, conhece outras
experiências, tem possibilidade de troca com colegas que também estão nesse processo,
estuda teorias que darão suporte a dissertação reflexiva que elaborará ao final e às

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transformações de sua prática. Tudo isso proporciona a elaboração de materiais que
serão disponibilizados a outros profissionais como produto educacional.
Já quando a ênfase é na produção de conhecimento aplicado, a metodologia de
pesquisa se aproxima bastante da investigação em design, na qual se busca configurar
ideias, isto é, dar forma a uma concepção, uma estratégia, um dispositivo, um
procedimento ou solução concreta para um problema diagnosticado, ou a parte dele.
Constitui-se, portanto, numa investigação com características próprias e diferentes da
pesquisa acadêmica convencional. Em especial, no que se refere à sua forma concreta e
funcionalidade, é uma atividade multidisciplinar, pois interage com outras áreas do
conhecimento, é complexa, pois envolve aspectos funcionais, sociais, simbólicos,
econômicos, políticos e culturais. Por esta razão não pode ser vista como linha de
montagem, pois o desenvolvimento (inovação, aprimoramento, experimentação) de
processos, procedimentos, produtos, intervenções, é artesanal e não fabril. Nesse
sentido, se conjuga melhor com um atelier. É assim que procuramos encarar a
experiência que temos tido de mestrandos professores de todos os níveis da educação
básica, profissionais que atuam em diversos espaços sociais formativos (museus,
centros culturais, bibliotecas, etc.) assim como gestores e técnicos administrativos de
diversas instituições de ensino.
O Promestre, MP da Faculdade de Educação da UFMG, propõe a elaboração de
um produto educacional e uma dissertação, a serem aprendas ao final de vinte e quatro
meses. O produto, voltado para resolver/atuar na prática com problemas reais, inclui
uma enorme variedade de possibilidades: material didático (sequência de ensino, jogos,
recursos concretos diversos visando situações específicas de ensino e aprendizagem,
texto formativo, sugestões de atividades, kits, folheto, livro), tutorial, metodologias de
ensino, de gestão, de avaliação ou de intervenção, peça teatral, cartilhas, criação de
cursos, etc. Tudo isso em diversos formatos, adequados a públicos específicos. Aqui, a
forma (estilo, linguagem, veículo) interessa muito, pois pode fazer toda a diferença na
relevância do produto ou processo desenvolvido. Ou seja, a nosso ver, a consideração
da relevância social não pode ser reduzida à temática ou ao problema, mas há que
abranger o alcance, a utilidade ou impacto da solução encontrada.
Quanto à dissertação, espera-se uma contextualização, descrição e
análise do processo, estado da arte das pesquisas no tema, pressupostos e discussões
sobre conceitos/categorias centrais, avaliação do produto, discussão sobre seus usos,
limitações e potencialidades. Tudo isso é organizado em formato acadêmico já

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estabelecido pela ABNT, com linguagem para público leitor de trabalhos científicos em
educação. A dissertação deve cumprir requisitos de um trabalho acadêmico mas eximir-
se da necessidade de encontrar uma forma acessível a um público não acadêmico, e
utilizável por alunos, pais, professores ou gestores.
Isso não quer dizer que estes dois trabalhos - o produto educacional e a
dissertação - tratem de pesquisas diferentes, mas sim obras com formatos, objetivos e
exigências diferentes. Essa diferenciação tampouco implica em uma determinada ordem
cronológica. São elaborações paralelas. Uma distinção largamente adotada no âmbito da
epistemologia - entre contexto de descoberta e contexto de justificação - pode nos
ajudar a perceber suas particularidades, sobretudo se a ela acrescentamos como
contraponto o contexto da efetividade. Enquanto o contexto da descoberta se
relacionaria com fatores "não científicos", como os fatores psicológicos ou
socioculturais que podem ter influenciado na investigação, o contexto da justificação
relaciona-se com o a argumentação, isto é, com o exame dos dados, raciocínios e
enunciados apresentados.3 Vale aqui contrapor à reconstrução racional desenvolvida no
contexto de justificação o conjunto de suas implicações, que pode ser considerado
como contexto da efetividade: suas repercussões, acessíveis, alcançáveis,
compartilháveis, ou mesmo inspiradoras.

A dissertação, entendida como “contexto de justificação”, não se ocupa da


melhor solução para o produto. Ela deve retratar o processo, abordar as discussões
conceituais e teóricas que fizeram parte da elaboração do produto, justificar as escolhas
realizadas, avaliar criticamente seus resultados. Tratar do produto como objeto de
estudo da dissertação já implica numa significativa inversão de nossa tradição
acadêmica na área de educação.

O mais comum, sobretudo em programas com a ênfase na formação continuada


ou na pesquisa básica, é desenvolver o trabalho de pesquisa pensando-se na dissertação.
Somente depois de concluída ou perto de sua conclusão é que se coloca a questão de

3
Um dos principais formuladores da distinção entre os contextos de descoberta e justificação,
Reichenbach, defende o interesse da ciência no justificação como uma reconstrução racional "que
corresponde à forma pela qual os processos do pensamento são comunicados para outras pessoas ao invés
da forma pela qual eles são subjetivamente formados. (REICHENBACH, 1970, p. 6). O “Contexto da
Justificação”, ou a forma escrita do raciocínio científico, deveria suprimir os traços da motivação
subjetiva do qual eles partiram.

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sua utilidade ou desdobramentos, que muitas vezes é encarado apenas como
disponibilização dos resultados. Um exemplo comum é a publicação como livro
eletrônico de uma versão simplificada da dissertação. Isso vem sendo facilitado com a
possibilidade de disponibilizar em plataformas digitais com amplo alcance potencial.
Até grande empresas, como a Amazon.com, organizam a venda e distribuição (on line)
de qualquer texto, com um título de livro, mesmo que o “livro” não tenha registro
formal (ISBN) e que não passe de poucas páginas sem qualquer trato editorial ou
revisão. Isso pode até conferir um status de produção bibliográfica, mas,
independentemente de sua qualidade, revela a concepção, bastante arraigada, de que
para contribuir na melhoria da educação bastaria disponibilizar os resultados de uma
investigação, sem ter que pensar na sua real utilidade e cuidar da adequação a seu
público alvo e seus propósitos específicos.

Considerações finais

A criação dos mestrados profissionais não foi facilmente aceita na área de


educação. A portaria que instituiu essa modalidade na pós-graduação brasileira foi
muito bem acolhida em algumas áreas do conhecimento, como engenharia,
administração e saúde. Mas, até 2012, a comunidade de pesquisadores em educação -
representada na comissão de área da educação na Capes e a principal associação de
pesquisadores em educação - a ANPED -, relutou em aprovar a criação de cursos de
pós-graduação em educação na modalidade profissional. As razões e as transformações
que ocorreram e continuam ocorrendo, ainda que mereçam ser estudadas e debatidas,
estão muito além do nosso escopo.

Como anunciado no início, nossa intenção neste texto era apresentar uma defesa
da ênfase no mestrado profissional como local de produção de conhecimento aplicado.
Para tanto, procuramos contrastar essa ênfase com outras duas - aprimoramento
profissional e formação para pesquisa - que têm predominado nos mestrados
profissionais na área de educação.

Conforme argumentamos, estas três ênfases não são excludentes e cada uma
delas tem sua relativa importância. Entretanto, as resistências e dificuldades para seu
desenvolvimento são bastante díspares. Em nossa tradição acadêmica predomina uma
perspectiva que vê o conhecimento aplicado e a busca de soluções práticas, expressos na

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elaboração de produtos ou processos, como forma de conhecimento menos legítima,
porque menos amparada nos cânones da metodologia científica, mais simples ( como se
a transposição para a realidade concreta não fosse problemática)4, ou ainda como
politicamente questionável, conquanto descuidaria da formação reflexiva do
profissional e da transformação de sua prática docente e da realidade educacional do
país.

Embora tenhamos aqui advogado sobre o valor do mestrado profissional em


educação enfatizar a produção de conhecimento aplicado, não podemos deixar de
considerar tampouco as limitações e desafios no contexto acadêmico atual. Há ainda
várias resistências a vencer, algumas delas incorporadas nas estruturas de gestão ou
mesmo em hábitos acadêmicos, como a ausência de uma metodologia de pesquisa para
inovação em educação.

Entretanto, parece-nos que o maior desafio a ser enfrentado é o efetivo alcance


dos produtos e processos educativos que a serem elaborados ou aprimorados nos
mestrados profissionais. Em que medida esses produtos poderão ser desenvolvidos e
disponibilizados de forma que outros profissionais de educação se interessem em
utilizá-los? Os repositórios digitais dos produtos educativos das universidades, das
secretarias de educação e de organismos federais, como EduCapes, ainda são sofríveis,
como também é ínfima a procura por eles. As vantagens das inovações criadas nos
mestrados profissionais precisam ser evidentes e acessíveis aos educadores para que
eles possam apreciá-las e incentivá-las. A questão assinalada acima não pode, a nosso
ver, ser eludida sob pena dos mestrado profissionais não alcançarem o devido
reconhecimento como local de produção de conhecimento relevante.

Referências:

BRASIL, Portaria Normativa do MEC n.° 017 de 29 de dezembro de 2009.

4
Em O que conta como pesquisa Menga Ludke et alli (2009) explora essas indefinições da pesquisa de
professores da educação básica nos mecanismos de validação consolidados na academia, chamando
atenção para seus efeitos restritivos e simplificadores. "Na educação, como um campo de confluência de
varias disciplinas e de saberes de múltiplas naturezas, efetivados pela prática de um profissional que
reflete criticamente sobre seu trabalho, não poderia deixar de surgir um tipo de pesquisa complexo e
desafiador de classificações" (2009, p. 189.

13
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Sobre os autores:

Bernardo Jefferson de Oliveira é professor titular da Faculdade de Educação da UFMG,


onde leciona Filosofia da Educação. Formado em geografia, tem mestrado e doutorado
em Filosofia e pós doutorado em História da Ciência. Foi coordenador dos programas
de pós graduação acadêmico e do profissional. email: bjo@ufmg.br

Samira Zaidan é professora associada da Faculdade de Educação da UFMG, da qual já


foi diretora e onde atua nos cursos de licenciatura, Pedagogia e no Mestrado
Profissional. Se graduou em Matemática, com mestrado (1993), doutorado (2001) e
pós doutorado em Educação. email: samira@fae.ufmg.br

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