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Marilena Chauí - Convite à Filosofia pg 80-84

A razão discursiva: dedução, indução e abdução


A intuição pode ser o ponto de chegada, a conclusão de um processo de
conhecimento, e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo.
O processo de conhecimento, seja o que chega a uma intuição, seja o que parte dela,
constitui a razão discursiva ou o raciocínio.
Ao contrário da intuição, o raciocínio é o conhecimento que exige provas e
demonstrações e se realiza igualmente por meio de provas e demonstrações das
verdades que estão sendo conhecidas ou investigadas. Não é um ato intelectual, mas
são vários atos intelectuais internamente ligados ou conectados, formando um
processo de conhecimento.
Um caçador sai pela manhã em busca da caça. Entra no mato e vê rastros: choveu na
véspera e há pegadas no chão; pequenos galhos rasteiros estão quebrados; o capim
está amassado em vários pontos; a carcaça de um bicho está à mostra, indicando que
foi devorado há poucas horas; há um grande silêncio no ar, não há canto de pássaros,
não há ruídos de pequenos animais.
O caçador supõe que haja uma onça por perto. Ele pode, então, tomar duas
atitudes. Se, por todas as experiências anteriores, tiver certeza de que a onça está nas
imediações, pode preparar-se para enfrentá-la: sabe que caminhos evitar, se não
estiver em condições de caçá-la; sabe que armadilhas armar, se estiver pronto para
capturá-la; sabe como atraí-la, se quiser conservá-la viva e preservar a espécie.
O caçador pode ainda estar sem muita certeza se há ou não uma onça nos
arredores e, nesse caso, tomará uma série de atitudes para verificar a presença ou
ausência do felino: pode percorrer trilhas que sabem serem próprias de onças; pode
examinar melhor as pegadas e o tipo de animal que foi devorado; pode comparar, em
sua memória, outras situações nas quais esteve presente uma onça, etc.
Assim, partindo de indícios, o caçador raciocina para chegar a uma conclusão e tomar
uma decisão. Temos aí um exercício de raciocínio empírico e prático (isto é, um
pensamento que visa a uma ação) e que se assemelha à intuição sensível ou empírica,
isto é, caracteriza-se pela singularidade ou individualidade do sujeito e do objeto do
conhecimento.
Quando, porém, um raciocínio se realiza em condições tais que a individualidade
psicológica do sujeito e a singularidade do objeto são substituídas por critérios de
generalidade e universalidade, temos a dedução, a indução e a abdução.

A dedução
Dedução e indução são procedimentos racionais que nos levam do já conhecido ao
ainda não conhecido, isto é, permitem que adquiramos conhecimentos novos graças a
conhecimentos já adquiridos. Por isso, se costuma dizer que, no raciocínio, o intelecto
opera seguindo cadeias de razões ou os nexos e conexões internos e necessários entre
as idéias ou entre os fatos.
A dedução consiste em partir de uma verdade já conhecida (seja por intuição, seja por
uma demonstração anterior) e que funciona como um princípio geral ao qual se
subordinam todos os casos que serão demonstrados a partir dela. Em outras palavras,
na dedução parte-se de uma verdade já conhecida para demonstrar que ela se aplica a
todos os casos particulares iguais. Por isso também se diz que a dedução vai do geral
ao particular ou do universal ao individual. O ponto de partida de uma dedução é ou
uma idéia verdadeira ou uma teoria verdadeira.
Por exemplo, se definirmos o triângulo como uma figura geométrica cujos lados
somados são iguais à soma de dois ângulos retos, dela deduziremos todas as
propriedades de todos os triângulos possíveis. Se tomarmos como ponto de partida as
definições geométricas do ponto, da linha, da superfície e da figura, deduziremos
todas as figuras geométricas possíveis.
No caso de uma teoria, a dedução permitirá que cada caso particular encontrado seja
conhecido, demonstrando que a ele se aplicam todas as leis, regras e verdades da
teoria. Por exemplo, estabelecida a verdade da teoria física de Newton, sabemos que:
1) as leis da física são relações dinâmicas de tipo mecânico, isto é, se referem à
relações de força (ação e reação) entre corpos dotados de figura, massa e grandeza; 2)
os fenômenos físicos ocorrem no espaço e no tempo; 3) conhecidas as leis iniciais de
um conjunto ou de um sistema de fenômenos, poderemos prever os atos que
ocorrerão nesse conjunto e nesse sistema.
Assim, se eu quiser conhecer um ato físico particular - por exemplo, o que
acontecerá com o corpo lançado no espaço por uma nave espacial, ou qual a
velocidade de um projétil lançado de um submarino para atingir um alvo num tempo
determinado, ou qual é o tempo e a velocidade para um certo astro realizar um
movimento de rotação em torno de seu eixo -, aplicarei a esses casos particulares as
leis gerais da física newtoniana e saberei com certeza a resposta verdadeira.
A dedução é um procedimento pelo qual um fato ou objeto particulares s ão
conhecidos por inclusão numa teoria geral.
Costuma-se representar a dedução pela seguinte fórmula:
Todos os x são y (definição ou teoria geral);
A é x (caso particular);
Portanto, A é y (dedução).
Exemplos: 1. Todos os homens (x) são mortais (y);
Sócrates (A) é homem (x);
Portanto, Sócrates (A) é mortal (y).
2. Todos os metais (x) são bons condutores de eletricidade (y);
O mercúrio (A) é um metal (x);
Portanto, o mercúrio (A) é bom condutor de eletricidade (y).
A razão oferece regras especiais para realizar uma dedução e, se tais regras não forem
respeitadas, a dedução será considerada falsa.

A indução
A indução realiza um caminho exatamente contrário ao da dedução. Com a
indução, partimos de casos particulares iguais ou semelhantes e procuramos a lei
geral, a definição geral ou a teoria geral que explica e subordina todos esses casos
particulares. A definição ou a teoria são obtidas no ponto final do percurso.
E a razão também oferece um conjunto de regras precisas para guiar a indução;
se tais regras não forem respeitadas, a indução será considerada falsa.
Por exemplo, colocamos água no fogo e observamos que ela ferve e se
transforma em vapor; colocamos leite no fogo e vemos também que ele se
transforma em vapor; colocamos vários tipos de líquidos no fogo e vemos
sempre sua transformação em vapor. Induzimos desses casos particulares que o
fogo possui uma propriedade que produz a evaporação dos líquidos. Essa
propriedade é o calor.
Verificamos, porém, que os diferentes líquidos não evaporam sempre na mesma
velocidade; cada um deles, portanto, deve ter propriedades específicas que os
fazem evaporar em velocidades diferentes. Descobrimos, porém, que a
velocidade da evaporação não é o fato a ser observado e sim quanto de calor cada
líquido precisa para começar a evaporar. Se considerarmos a água nosso padrão
de medida, diremos que ela ferve e começa a evaporar a partir de uma certa
quantidade de calor e que é essa quantidade de calor que precisa ser conhecida.
Podemos, a seguir, verificar um fenômeno diferente. Vemos que água e outros
líquidos, colocados num refrigerador, endurecem e se congelam, mas que, como
no caso do vapor, cada líquido se congela ou se solidifica em velocidades
diferentes. Procuramos, novamente, a causa dessa diferença de velocidade e
descobrimos que depende tanto de certas propriedades de cada líquido quanto da
quantidade de frio que há no refrigerador. Percebemos, finalmente, que é essa
quantidade que devemos procurar.
Com essas duas séries de fatos (vapor e congelamento), descobrimos que os
estados dos líquidos variam (evaporação e solidificação) em decorrência da
temperatura ambiente (calor e frio) e que cada líquido atinge o ponto de
evaporação ou de solidificação em temperaturas diferentes. Com esses dados
podemos formular uma teoria da relação entre os estados da matéria - sólido,
líquido e gasoso - e as variações de temperatura, estabelecendo uma relação
necessária entre o estado de um corpo e a temperatura ambiente. Chegamos, por
indução, a uma teoria.
A dedução e a indução são conhecidas com o nome de inferência, isto é, concluir
alguma coisa a partir de outra já conhecida. Na dedução, dado X, infiro (concluo)
a, b, c, d. Na indução, dados a, b, c, d, infiro (concluo) X.

A abdução
O filósofo inglês Peirce considera que, além da dedução e da indução, a razão
discursiva ou raciocínio também se realiza numa terceira modalidade de
inferência, embora esta não seja propriamente demonstrativa. Essa terceira
modalidade é chamada por ele de abdução.
A abdução é uma espécie de intuição, mas que não se dá de uma só vez, indo
passo a passo para chegar a uma conclusão. A abdução é a busca de uma
conclusão pela interpretação racional de sinais, de indícios, de signos. O exemplo
mais simples oferecido por Peirce para explicar o que seja a abdução são os
contos policiais, o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais e
formando uma teoria para o caso que investigam.
Segundo Peirce, a abdução é a forma que a razão possui quando inicia o estudo
de um novo campo científico que ainda não havia sido abordado. Ela se aproxima
da intuição do artista e da adivinhação do detetive, que, antes de iniciarem seus
trabalhos, só contam com alguns sinais que indicam pistas a seguir. Os
historiadores costumam usar a abdução.
De modo geral, diz-se que a indução e a abdução são procedimentos racionais
que empregamos para a aquisição de conhecimentos, enquanto a dedução é o
procedimento racional que empregamos para verificar ou comprovar a verdade
de um conhecimento já adquirido.

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