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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

FACULDADE DE FILOSOFIA
FILOSOFIA DA CIÊNCIA I

QUAL É A TAREFA DA CIÊNCIA?

A tarefa da ciência é em parte teórica - explicação - e em parte prática - predição e aplicação


técnica. Tentarei mostrar que estes dois alvos são, de certo modo, dois aspectos diferentes da
mesmíssima atividade. .
Examinarei primeiro a idéia de uma explicação.
Ouve-se dizer muitas vezes que uma explicação é a redução do desconhecido ao conhecido;
mas raramente nos é dito como isto se faz. De qualquer modo, esta noção de explicação não é a que
tem sido usada na prática efetiva da explicação em ciência. Se olharmos a história da ciência a fim
de ver que tipos de explicação foram usados e aceitos como satisfatórios num ou noutro tempo,
então encontramos uma noção muito diferente da explicação em uso prático. (...)
No curso do desenvolvimento histórico da ciência muitos métodos e tipos diferentes de
explicação têm sido encarados como aceitáveis; mas têm todos um aspecto em comum: os vários
métodos de explicação consistem todos- de uma dedução lógica; uma dedução cuia conclusão é o
explicandum - uma asserção da coisa a ser explicada- e cuja premissa consiste do explicans- uma
asserção das leis e condições explicativas.(...)
Assim, uma explicação é sempre a dedução do explicandum feita de certas premissas que se
chamarão o explicans.
Eis um exemplo algo desagradável, só para fins de ilustração.
Foi descoberto um rato morto e quereremos saber o que lhe aconteceu. O explicandum pode
ser dito assim: "Este rato aqui morreu recentemente". Este explicandum nos é conhecido
definidamente - o fato está diante de nós em crua realidade. Se quisermos explicá-lo, devemos
tentar algumas explicações conjecturais ou hipotéticas (como fazem os autores de histórias de
detetive); isto é, explicações que introduzem alguma coisa desconhecida, ou de qualquer modo que
conhecemos muito menos. Uma hipótese tal pode ser que, por exemplo, o rato morreu em razão de
uma grande dose de veneno para ratos. Isto é útil como uma hipótese até onde, primeiramente, nos
ajuda a formular um explicans do qual possa ser deduzido o explicandum; e depois, nos sugere
certo número de testes independentes - testes do explicans que_são inteiramente independentes de
ser verdadeiros ou não o explicandum.
Ora, o explicans - que é nossa hipótese – não consiste só da sentença “Este rato comeu uma
isca contendo grande dose de veneno para ratos", pois não se pode deduzir validamente o
explicandum só desta sentença. Antes, teremos de usar, como explicans, duas espécies diferentes de
premissas - leis universais e condições iniciais. Em nosso caso, a lei universal poderia ser
enunciada assim: "Se um rato come pelo menos oito grãos de veneno para ratos, morrerá dentro de
cinco minutos".A condição inicial singular) (que é uma asserção singular) poderia ser: "Este rato
comeu pelo menos dezoito grãos de veneno para ratos há mais de cinco minutos". Destas duas
premissas juntas podemos agora, realmente, deduzir que esse rato morreu recentemente (isto é,
nosso explicandum).
Ora, tudo isto pode parecer um tanto óbvio. Mas considere-se uma de minhas teses - a saber,
a tese de que aquilo que chamei "condições iniciais" (as condições pertencentes ao caso individual)
nunca bastam, por si mesmas, como uma explicação, precisando nós sempre, também, de uma lei
geral. E esta tese não é absolutamente óbvia; ao contrário, sua verdade muitas vezes não é admitida.
Suspeito mesmo que muitos de vós estariam inclinados a aceitar a observação de que "este rato
comeu veneno para ratos" como inteiramente suficiente para explicar sua morte, mesmo que não se
acrescenta qualquer afirmação explícita da lei referente aos efeitos do veneno para ratos. Mas
suponhamos por um momento que estamos vivendo num mundo em que todos (e também qualquer
rato) que comerem uma porção daquele produto químico chamado "veneno para ratos" sentir-se-ão
especialmente bem e felizes por uma semana vindoura e mais lépidos do que nunca antes. Se uma
lei universal como esta fosse válida, poderia a sentença "Este rato comeu veneno para ratos” ser
ainda aceitável como uma explicação da morte? Obviamente não.
Chegamos assim ao resultado importante, muitas vezes desprezado, de que qualquer
explicação que utilize somente condições iniciais singulares será incompleta e de que, além disso, é
necessária pelo menos uma lei universal, mesmo que esta lei, em certos casos, seja tão
bem_conhecida que é omitida como se fosse redundante.
Para sumarizar este ponto: verificamos que uma explicação é uma dedução da seguinte
espécie:

U (Lei universal) premissas que constituem o explicans


(condições iniciais) →

E (Explicandum) → conclusão

A tarefa da ciência não se limita a procurar explicações puramente teóricas; tem também
seus lados práticos: feitura de predições assim como aplicações técnicas. Ambas podem ser
analisadas por meio do mesmo esquema lógico que apresentamos para analisar a explicação.

(1) A derivação de predições. Enquanto, na busca de uma explicação, o explicandum é dado


- ou conhecido - e tem de ser encontrado um explicans conveniente, a derivação de predições
procede em direção oposta. Aqui a teoria é dada, ou se admite ser conhecida (talvez de
compêndios) e assim o são as condições iniciais específicas (são conhecidas, ou admitidas como
tais, por observação). O que resta encontrar são as conseqüências lógicas: certas conclusões lógicas
que ainda não nos são conhecidas por observação. Estas são as predições. Neste caso, a predição
“P” toma o lugar do explicandum “E” em nosso esquema lógico.
(2) Aplicação técnica. Considere-se a tarefa de construir uma ponte que tem de
corresponder a certos requisitos práticos expostos numa lista de especificações. O que nos é dado
são as especificações, “S”, que descrevem certo estado de coisas requerido - a ponte a ser
construída. (“S” são as especificações do cliente, que são dadas antes das especificações do
arquiteto e são distintas destas. São-nos dadas, ainda as teorias físicas re1evantes (inclusive certas
regras empíricas). O que temos de encontrar são certas condições iniciais que possam ser realizadas
tecnicamente e que sejam de natureza tal que as especificações possam ser deduzidas juntamente
com a teoria. Assim, neste caso, “S” toma o lugar de “E” m nosso esquema lógico. Isto torna claro
como, de um ponto de vista lógico, tanto a derivação de predições como a aplicação técnica de
teorias científicas podem ser encaradas como meras inversões do esquema básico de explicação
científica.

Texto extraído de POPPER, K. Conhecimento Objetivo: Uma abordagem evolucionária, Belo


Horizonte, Ed. Itatiaia, 1975, p. 321 a 323 e 324/325

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