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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

FACULDADE DE FILOSOFIA
DISCIPLINA: FILOSOFIA DA CIÊNCIA II

A OBJETIVIDADE CIENTÍFICA PARA COMTE

1. A NECESSIDADE DA SEPARAÇÃO E DISTANCIAMENTO ENTRE SUJEITO E OBJETO

“O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, na existência constatada de uma


ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é, ao mesmo
tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado
e ao sujeito contemplador. [...] Toda fé positiva assenta, pois, nesta dupla harmonia entre o
objeto e o sujeito”. (COMTE,A. Catecismo positivista, 1973, p.127-128)

“Com efeito, o homem pode observar aquilo que lhe é exterior; ele pode observar certas
funções de seus órgãos além do órgão pensante. Pode mesmo, até certo ponto, observar-se no
que diz respeito às várias paixões que experimenta, porque os órgãos cerebrais dos quais
dependem são distintos do órgão observador propriamente dito, e novamente isso supõe que o
estado de paixão é muito pouco pronunciado. Mas é obviamente impossível para ele observar a
si mesmo em seus próprios atos intelectuais, porque o órgão observador e o órgão observado
sendo, neste caso, idênticos, por quem seriam feitas as observações ? A ilusão dos psicólogos a
esse respeito é análoga à dos físicos antigos, que pensavam explicar a visão dizendo que os raios
de luz traçavam imagens de objetos externos na retina. Fisiólogos sabiamente indicaram a eles
que, se impressões luminosas agem como imagens na retina, outro olho seria necessário para
observá-las. O mesmo ocorre com a chamada observação interior da inteligência. Seria
necessário, para que fosse possível, que o indivíduo pudesse se dividir em dois, um dos quais
pensaria, e o outro, neste tempo, o veria pensar. Assim, o homem não pode observar
diretamente suas operações intelectuais; ele pode apenas observar os órgãos e os resultados.”
(COMTE, A. Opuscules de philosophie sociale (1819-1828). Paris: Ernest Leroux
éditeur, 1883).

“Crê-se muitas vezes que os fenômenos sociais devem ser muito fáceis de observar,
porque são muito comuns, além de que o próprio observador, quase sempre, deles
participa mais ou menos. Mas, são precisamente esta vulgaridade e esta personalidade
que devem necessariamente concorrer, com uma complicação superior, a tornar mais
difícil esta espécie de observação, afastando diretamente o observador das disposições
intelectuais conveniente a uma exploração verdadeiramente científica . Só se observa
bem, em geral, colocando-se de fora [...]”.(COMTE apud MORAES FILHO, 1978, p.88).

A IMPARCIALIDADE DO OBSERVADOR:
“Que ciência poderia sair do estado nascente, que verdadeira divisão do trabalho intelectual
poderia organizar-se, mesmo diminuindo a extensão das especulações próprias, se cada um só
quisesse empregar suas observações pessoais?” (COMTE apud MORAES FILHO, 1978, p.88).

“A admiração e a censura dos fenômenos devem ser banidas com igual severidade de toda a
ciência positiva, porque cada preocupação deste gênero tem por efeito direto e inevitável
impedir ou alterar o exame”. (COMTE,A. Reorganizar a sociedade, 1977, p.157-158).

Os astrônomos, os físicos, os químicos e os biologistas não elogiam nem vituperam os


respectivos fenômenos; observam; o que não quer dizer que tais fenômenos não possam nem
devam dar matéria imensa para considerações opostas e contraditórias, de que poderíamos citar
muitos exemplos. (COMTE, A. Reorganizar a sociedade, 1977, p.158)

A DIFICULDADE DA OBJETIDADE NAS CÊNCIAS HUMANAS (A SITUAÇÃO DA PSICOLOGIA)


“A preponderância da filosofia positiva se afirmou como tal desde Bacon. Ganhou hoje
indiretamente tão grande ascendência sobre os espíritos — até mesmo aqueles que
permaneceram mais estranhos a seu imenso desenvolvimento — que os metafísicos, entregues
ao estudo de nossa inteligência, não podem esperar frear a decadência de sua pretensa ciência, a
não ser mudando de opinião. Devem apresentar suas doutrinas como também fundando-se na
observação dos fatos. Para este fim, imaginaram, nos últimos tempos, distinguir, graças a uma
sutileza singular, duas espécies de observações de igual importância, uma exterior, outra
interior, a última unicamente destinada ao estudo dos fenômenos intelectuais. Não é aqui o lugar
de entrar na discussão especial desse sofisma, fundamental. Devo limitar-me a indicar a
consideração principal que prova claramente que essa pretensa contemplação direta do espírito
por si mesmo é pura ilusão.
Há muito pouco tempo atrás, acreditava-se explicar a visão dizendo que a ação luminosa dos
corpos determina na retina quadros representativos das formas e das cores exteriores. A isto
os fisiologistas objetaram, com razão, que, se as impressões luminosas agissem como imagens,
seria mister outro olho para enxergá-las. Não acontece o mesmo, de modo ainda mais forte, no
caso presente?
É perceptível que, por uma necessidade invencível, o espírito humano pode observar
diretamente todos os fenômenos, exceto os seus próprios. Pois quem faria a observação?
Concebe-se, quanto aos fenômenos morais, que o homem possa observar a si próprio no que
concerne às paixões que o animam, por esta razão anatômica: que os órgãos, em que residem,
são distintos daqueles destinados às funções observadoras. Ainda que cada um tivesse a ocasião
de fazer sobre si tais observações, estas, evidentemente, nunca poderiam ter grande importância
científica. Constitui o melhor meio de conhecer as paixões sempre observá-las de fora.
Porquanto todo estado de paixão muito pronunciado, a saber, precisamente aquele que será mais
essencial examinar, necessariamente é incompatível com o estado de observação. No entanto,
quanto a observar da mesma maneira os fenômenos intelectuais durante seu exercício, há uma
impossibilidade manifesta. O indivíduo pensante não poderia dividir-se em dois, um
raciocinando enquanto o outro o visse raciocinar. O órgão observado e o órgão observador
sendo, neste caso, idênticos, como poderia ter lugar a observação?
Este pretenso método psicológico é, pois, radicalmente nulo em seu princípio. Do mesmo modo,
consideremos a que processos profundamente contraditórios conduz de imediato. De um lado,
recomenda-se que vós vos isoleis, tanto quanto possível, de toda sensação exterior; é preciso,
então, impedir-vos todo trabalho intelectual; pois, se vós vos ocupásseis unicamente em fazer o
cálculo mais simples, no que se converteria a observação interior? De outro lado, depois de ter,
enfim, à força de precauções, atingido este estado perfeito de sono intelectual, vós devíeis vos
ocupar em contemplar as operações que se executariam em vosso espírito, quando aí nada mais
se passasse. Nossos descendentes verão sem dúvida, um dia, encenadas tais pretensões.
Os resultados duma maneira tão estranha de proceder são perfeitamente conformes ao princípio.
Há dois mil anos que os metafísicos cultivam assim a psicologia, e não puderam até agora
concordar com uma única proposição inteligível e solidamente firmada. Estão até hoje divididos
numa multidão de escolas que disputam incessantemente sobre os primeiros elementos de suas
doutrinas. A observação interior engendra quase tantas opiniões divergentes quantos indivíduos
há que acreditam a ela se entregar.” (COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva, 1973, p. 13-14)

Trechos extraídos das seguintes obras:


COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
(Coleção Os Pensadores).
COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva, São Paulo: Abril Cultural, 1973(Coleção Os
Pensadores).
COMTE,A. Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os
Pensadores).
COMTE, A. Reorganizar a sociedade. Lisboa: Guimarães & C. Editoras, 1977.
COMTE, A. Sociologia. Organizador: Evaristo de Morais Filho. São Paulo: Ática,
1978.
COMTE, A. Opuscules de philosophie sociale (1819-1828). Paris: Ernest Leroux
éditeur, 1883

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