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Olá, seja bem-vinda ou bem-vindo à disciplina de Introdução à Linguística!

Veremos aqui, ao longo dessas 14 semanas, algumas ideias e conceitos fundamentais da Linguística atual -
a disciplina científica que estuda a língua humana em todas as suas manifestações.

Aqui você encontrará uma descrição dos temas de cada semana e uma lista com as leituras e demais
materiais que usaremos ao longo do curso. Lembrando que para cada semana há duas aulas presenciais
(uma na segunda-feira e uma na quarta-feira).
As atividades da disciplina também serão feitas nesta plataforma, por isso é bom se familiarizarem com ela
o quanto antes.

No vídeo abaixo, falo bem rapidamente do curso. Dá uma olhada! Em cada semana, nos "Objetivos", haverá
um breve vídeo meu sobre os conteúdos daquela semana - peço desculpas pelo áudio ruim... mas sugiro
que vocês assistam.

E agora que você já sabe um pouco mais sobre a estrutura do curso, pode passar para o tópico "Semana 1",
para começar a desvendar o que é e o que faz a Linguística.

Que tenhamos todas e todos um ótimo curso!

Nestas duas primeiras semanas, nossos objetivos serão:

- definir minimamente a disciplina da Linguística e suas tarefas e objetivos;


- conceituar o fazer científico desvinculando-o de noções de "certo" e "errado";
- pensar sobre os conceitos de "gramática" e sobre descrição linguística.

Ao final, você deve ter uma ideia do que é um fenômeno linguístico, de como funciona a descrição
linguística e de algumas concepções de gramática.

Se você está fazendo uma graduação em Letras, provavelmente já tem alguma intuição ou expectativa
sobre o vem a ser a Linguística e sobre o que essa disciplina estuda, mas é sempre uma boa ideia
começarmos por aqui.
Uma definição curta do que vem a ser Linguística pode ser: o estudo científico e sistemático das línguas
humanas.
Mas, não se engane, essa curta definição esconde inúmeras complexidades e controvérsias.

Para começarmos, vamos olhar para os adjetivos "científico" e "sistemático". O que eles querem dizer?

Definir ciência é uma tarefa gigantesca, e nem vamos tentar fazer isso aqui. Contudo, há algumas
características fundamentais dos estudos científicos que devemos mencionar - uma conclusão científica
deve ser objetiva e embasada numa teoria. Ou seja, um conhecimento científico não pode resultar do gosto
subjetivo de ninguém - o que uma pessoa gosta ou deixa de gostar, o que ela acha bonito ou feio não pode
ser uma conclusão de pesquisa científica. Não é porque João acha que todos os planetas orbitam a Terra
que é verdade que todos os planetas orbitam a Terra, e não é porque Maria acha que o Sol é a maior estrela
do Sistema Solar que é verdade que o Sol é o maior planeta do Sistema Solar. Sabemos que o "achismo" do
João é falso e que o "achismo" da Maria é verdadeiro, e sabemos isso porque analisamos com ferramentas
específicas, que não dependem da opinião de ninguém, se esses "achismos" descrevem adequadamente a
natureza.
Por exemplo, ao observar o movimento e o comportamento dos planetas e demais corpos celestes visíveis a
partir da Terra, primeiramente a olho nu e depois com o uso de lunetas e telescópios, nós descobrimos que
a ideia de João estava errada e da Maria estava correta - claro, essa descoberta levou muito, muito tempo,
mas hoje sabemos que é o caso que o Sol é a maior estrela do Sistema Solar e que os planetas não orbitam
a Terra.
Do mesmo modo, hoje sabemos que os seres vivos têm uma origem comum e que evoluem por meio de um
mecanismo adaptativo, calcado na interação de uma espécie com seu ambiente e nas variações que geram
mais descendentes. Uma conclusão muito distante de qualquer "achismo"!
Muitas vezes, é comum confundirmos "ciência" com "tecnologia", mas é importante manter as coisas
separadas. Muitas descobertas científicas geram resultados tecnológicas, assim como novas tecnologias
geram novas descobertas científicas. Mas esse nem sempre é o caso, por isso, entre outras razões, pense
na ciência como uma estratégia ou método para avaliar enunciados ou conclusões sobre como a natureza é
ou se comporta.

A ideia de "sistematicidade" que aparece em nossa breve definição tem a ver com a aplicação da
metodologia científica de modo a capturar todos os fatos relevantes, e de maneira semelhante. Por exemplo,
ao avaliar o "achismo" do João, não podemos, por exemplo, escolher apenas os planetas que nos
interessam, mas sim a tudo aquilo que é definido como um planeta. O conhecimento científico não pode ser
feito somente com base em casos que consideramos adequados e em situações que se conformam ao que
esperamos, mas a tudo o que cabe na definição dos conceitos trabalhados.

Uma outra característica do conhecimento científico, justamente por (i) ser objetivo, (ii) se dar dentro de
alguma teoria e (iii) não ser, portanto, subjetivo, é que várias qualificações que usamos corriqueiramente em
nosso dia-a-dia simplesmente não cabem na descrição de um fenômeno científico - esse ponto é, como
veremos, particularmente importante ao lidarmos com a investigação linguística.

Mencionamos a palavra "teoria" algumas vezes, e trata-se de uma palavra com um grande peso que merece
algumas considerações. Quando falamos em "teoria" aqui, remetemos a um corpo coeso de conhecimento
que serve para testarmos afirmações e mesmo para fazermos novas afirmações que serão testadas. Por
exemplo, considere a seguinte teoria:

(a) todos os animais ou (i) andam, ou (ii) nadam, ou (iii) voam.


(b) todos os animais ou (1) são mamíferos ou (2) não são mamíferos.
(c) se um animal é mamífero, então ele não voa.

Veja só quais previsões podemos fazer. Podemos, por exemplo, concluir que se um animal é (1), então ele
pode ser (i) ou (ii), mas não (iii), e se um animal é (iii), então ele é (2). Mas, pense um pouco, e você verá
que esta teoria está errada. Ora, morcegos voam e são mamíferos, ou seja, eles são (1) e (iii)!
A sistematicidade não permite excluir os morcegos da nossa consideração e a não-subjetividade não
permite dizer que, porque fulano não gosta de morcegos, é melhor deixar eles de fora, até porque, segundo
fulano, eles são feios, né... Nada disso! Se um animal voa, então ele deve ser investigado segundo as
previsões da teoria!

Em resumo, podemos dizer que a Linguística então investiga ou estuda, de modo objetivo, dentro de um
quadro teórico, e livre de preconceitos e julgamentos subjetivos, todos os fenômenos linguísticos.
Essa discussão é certamente complexa e difícil, mas ela é fundamental para você saber o que é
conhecimento científico, sua importância e também evitar misturar suas inclinações pessoais com o fazer
científico.
Recomendo agora a leitura do capítulo 8 do livro de "Estudos gramaticais" e do capítulo 2 do livro "Filosofia
da Linguística", que está no tópico "Materiais". São leituras que esclarecem e exemplificam alguns dos
conceitos que vimos aqui, além de aprofundar e trazer também novas ideias. Recomendo fortemente que
também escutem o seguinte podcast, que discute muito do que vimos até
aqui: https://open.spotify.com/episode/11EykDOxpz1EnqqdzfXL0v

Na palestra que ministrei para a cerimônia de abertura da Escola de Linguística de Outono (ELO) 2018, eu
falo bastante sobre a imagem de língua que surge quando lançamos sobre ela um olhar
científico: https://www.youtube.com/watch?v=cXRCnrFICiY&t=5s

Na sequência, vamos falar sobre tipos de gramática e o certo e o errado na Linguística.

Arquitetada como uma ciência, a Linguística investiga o que podemos chamar de "fenômenos linguísticos".
E o que seria isso?
Novamente, vamos falar de maneira simplificada, desviando de problemas complicados que posteriormente,
em sua formação como professor de letras, você certamente vai encarar.
Um fenômeno linguístico é toda manifestação que envolve a linguagem humana, desde sua origem, até seu
uso, sua perda, sua estrutura, sua história e seus efeitos.
Assim, a Linguística estuda, por exemplo, a origem da linguagem humana, a diferença entre a língua
humana e a de outros animais, patologias ligadas às línguas naturais, o processamento da língua pelo
cérebro, a língua usada em interações sociais dos mais variados tipos, a manifestação de ideologias e
formações histórico-sociais por meio da língua e suas estruturas e também a gramática de uma língua, ou
seja, a estrutura da língua, seja de uma língua em particular, seja da capacidade linguística humana. Como
você pode imaginar, a Linguística estabelece então várias interfaces com outras disciplinas científicas, indo
desde a Biologia e a Sociologia, passando pela Psicologia, Filosofia e Matemática. Tudo isso mostra como a
Linguística é uma área abrangente e como a língua humana - em suas mais variadas manifestações - é
parte fundamental da existência e da vivência humanas.
Vamos ter chance de discutir um pouco mais as diversas interfaces da Linguística com outras áreas do
conhecimento, mas, por ora, é interessante ilustrarmos também o que a Linguística NÃO faz. Acredito que o
mais interessante aqui seja focar na dicotomia (ou divisão) entre certo e errado. Dito de modo direto, os
conceitos de "certo" e "errado" simplesmente não fazem parte do vocabulário científico - ou seja, fenômenos
não podem ser certos ou errados. Isso fica claro ao pensarmos em outras ciências.
Suponha que um biólogo "compre" a teoria de que mamíferos não botam ovos, e então ele se depara com
um ornitorrinco. Para seu grande espanto, ornitorrincos não só produzem e se alimentam de leite, como
botam ovos! É bastante improvável que nosso biólogo diga que ornitorrincos estão errados e sua teoria está
certa, você não acha? Provavelmente, ele investigará mais a fundo a situação, seja questionando a sua
própria observação (será que o ele viu mesmo foi um ovo? será que ele tem certeza que ornitorrincos
produzem leite?), seja reformulando a teoria, afinal, pode ser que alguns mamíferos botem ovos... mas ele
não dirá que o problema está com o ornitorrinco, e sim com sua observação ou com a teoria.
Imagine agora um físico que defendesse a teoria de que a luz segue sempre em linha reta, sem nunca ser
deformada. Ora, ao observar o que acontece com a luz quando ela interage com corpos muito massivos,
como certas estrelas, nosso físico percebe que a luz sofre uma deformação em seu percurso. Novamente,
será que ele dirá que a luz está "errada"? Não... e foram observações assim que validaram a Teoria da
Relatividade!
Mas o que tudo isso tem a ver com a Linguística, afinal? Bom, você mesma/o já deve ter tido alguma
experiência do "fala certo" versus o "fala errado" - ou já ouvi coisas como "Fulano fala errado porque é
burro". Essa reação que as pessoas têm a certos tipos de fala é tema do preconceito linguístico,
infelizmente muito comum e disseminado, e que será nosso tema na terceira semana do curso. Por ora,
vamos entender porque para a Linguística os adjetivos "certo" e "errado" fazem tão pouco sentido aplicados
à fala de alguém quanto quando aplicados a ornitorrincos ou à luz.
O objeto da Linguística são os fenômenos linguísticos que não são "certos" nem "errados"; assim como a luz
ou o ornitorrinco, eles simplesmente são, e nossa tarefa é descrevê-los e entendê-los segundo uma certa
teoria. Para um linguista não existe "falar certo" ou "falar errado" - o que ele estuda são fenômenos
linguísticos, e, mais uma vez, eles simplesmente são e, por isso, devem ser explicados. Vou apresentar um
exemplo que talvez torna as coisas mais claras.
Pense na frase abaixo e também na sua reação sobre ela:

(1) No parque tinha menas gente do que eu imaginei.

Provavelmente, seu primeiro pensamento deve ter sido algo como: “isso tá/é errado!" ou “quem fala (ou
escreve) assim é gente que não sabe falar português direito”.
Note que é justamente o preconceito linguístico que leva algumas pessoas a pensarem que (1) é coisa de
gente burra, ignorante, sem educação, sem estudo, que não conhece ou não fala português direito, etc. O
preconceito se revela, entre outras maneiras, em identificar a capacidade intelectual do falante com a
gramática que ele usa, ou em rotular a capacidade intelectual de uma pessoa com base no valor social que
damos à variedade linguística que ele usa.
Um profissional de letras terá uma abordagem diferente. Ele se perguntará por que (1) é possível, e ele se
interessará em saber por que os falantes do português brasileiro produzem frases como (1). E, afinal, por
que será?
Se você pensar um pouco, verá que ‘menas’ é, na verdade, um caso de concordância de gênero onde não
esperamos que isso ocorra – em (1), ‘menas’ concorda com ‘gente’, que é um substantivo feminino. Isso
ocorre provavelmente porque ‘menos’ faz parte de uma família de itens na qual praticamente todos os
membros fazem concordância. O que parece com ‘menos’? Podemos pensar em ‘muito/a/s’ ou em
‘pouco/a/s’ – viu como esses itens fazem concordância? Você pode também pensar em ‘mais’, e argumentar
que ‘mais’ não tem concordância – isso é bem verdade, mas a razão para tanto é que ‘mais’ tem como vogal
final (simplificando as coisas) <i>, que não relacionamos aos gêneros gramaticais feminino ou masculino
(pense no adjetivo ‘forte’, por exemplo, que também serve para os dois gêneros).
Nessa perspectiva, veja que, na verdade, é até esperado que ‘menos’ apresente concordância... alguém que
conhece um pouco mais sobre tradição gramatical pode argumentar que ‘menos’ é um advérbio, e advérbios
não fazem concordância. Bem, mas quem disse isso? Será que todos os advérbios foram devidamente,
oficialmente, informados que eles não devem fazer concordância? E se ‘menos’ decidir que não é mais um
advérbio? Brincadeiras à parte, ser ou não ser um advérbio é uma postulação teórica – as palavras não
nascem assim ou assado, somos nós que as classificamos como tal, e assim não é uma lei divina que
advérbios não fazem concordância, é um modo que temos para descrever os fatos linguísticos, que pode,
como toda teoria, se revelar equivocado frente a evidências (qualquer semelhança com mamíferos que não
botam ovos não é mera coincidência...).
A conclusão inescapável é que ‘menas gente’ não é um erro, mas sim uma regra gramatical diferente, que
considera que ‘menos’ apresenta concordância, assim como ‘muito’ em ‘muita água’ e ‘muito vinho’. Sem
falar de "certo" e "errado", conseguimos explicar um fenômeno linguístico do português contemporâneo! Isso
é fazer linguística com argumentação e dados científicos. Bem legal, né?
Se você quiser um exemplo do que seria um erro, pensa na frase abaixo:

(2) *Na garagem tinha menas carro do que eu pensei.

Eu aposto que você já ouviu alguma coisa parecida com (1), e aposto também que você nunca ouviu nada
parecido com (2). Certo? Note que o fato de o exemplo (2) não poder ser falado no português é marcado
com um asterisco (*), conforme você irá observar ao longo do curso, essa é uma notação corrente em
linguística para indicar uma estrutura que não pode ser produzida em uma dada língua. Mas por que, então,
(2) não pode ser produzido? Nessa sentença, temos um desvio de concordância, ‘menas’ (no feminino)
modificando um substantivo masculino, ‘carro’ – e isso nós, como falantes, não aceitamos (busque no
Google as opções “menas gente” e “menas carro”, entre aspas, e compare o número de resultados para
cada caso; o que você achou?). Note que a estranheza de (2) deve ser provavelmente pela mesma razão
que algumas pessoas têm uma gramática em que ‘menos’ apresenta concordância: para elas ‘menos gente’
deve soar tão esquisito quanto ‘menas carro’, justamente porque falta concordância de gênero entre ‘menos’
e o substantivo. Para encerrar o exemplo, vamos olhar para o quadro comparativo abaixo, no qual
identificamos a regra tradicional, a regra inovadora e o que chamamos de “desvio” simplesmente porque não
acontece:

regra tradicional                           regra inovadora                               “desvio” 


menos carro / muito carro  menos carro / muito carro             *menas carro / *muita carro
menos gente / muita gente menas gente / muita gente           menos gente / *muito gente 

Se você parar para pensar, a regra inovadora é muito mais coerente que a tradicional, não? Afinal, ela
simplesmente distribui de modo homogêneo a concordância, ao passo que a regra tradicional envolve uma
exceção - "menos" não varia. Nossa mente sempre procura ordem! É por isso que a regra inovadora é
comum e o "desvio" nunca acontece.
Ainda vamos falar muito sobre "certo" e "errado" e o julgamento que as pessoas fazem disso. Mas, como eu
disse, por ora, vamos parar por aqui e apenas entender porque essas noções não fazem parte das
ferramentas da linguística. Finalmente, sugiro a leitura do seção 10.3 do livro "Estudos gramaticais" para
você se aprofundar um pouco mais nessa discussão.
Precisamos agora passar para um outro tema, que é o conceito de gramática.

Continuamos a discutir alguns conceitos fundamentais para o pensamento linguístico, retomando a


discussão sobre "certo" e "errado" falando sobre diferentes conceitos de gramática.
Provavelmente, seu contato com a ideia de "gramática" foi com uma espécie de manual de correção, de
compêndio de regras já devidamente estabelecidas que devem ser seguidas, mas que, por alguma razão
inefável, todos insistem em não seguir, basta lembrarmos do exemplo "menas gente" ou então pensar no uso do
subjuntivo em uma sentença como "você quer que eu faço?"... bem, de fato, essa é UMA concepção de gramática
- chamada de "gramática prescritiva", porque prescreve regras do que deve ser escrito e falado -, mas não é a
única acepção possível de gramática.
Aliás, por trás da gramática prescritiva, muitas vezes, fica a ideia de que não há nada o que fazer, afinal, basta
seguir a gramática, né... mas não é assim que um linguista/profissional de letras pensa. Um linguista não
prescreve, dita regras do que DEVE ser dito, mas sim analisa o que É efetivamente dito; para um linguista não
interessa o que as pessoas devem dizer, mas sim o que elas dizem (você já parou para pensar quem é que tem
essa autoridade quase divina para dizer o que deve ou não ser dito? Estranho, não é? Você consegue imaginar
um químico dizendo para as moléculas como elas devem (ou não) se comportar?).
Um linguista, fundamentalmente, descreve a língua, e com essa descrição ele pode propor explicações para o
fenômeno em questão (como no nosso exemplo com "menas") ou ele pode investigar os efeitos que uma certa
fala tem numa certa época (pensa em quem fala, por exemplo, "as pessoas em situação de rua ocuparam um
imóvel abandonado" e em quem fala "as pessoas em situação de rua invadiram uma casa" - essas duas pessoas
descrevem o mesmo fato, mas a fala de cada uma revela muito de sua inclinação político-ideológica).
Por isso, ao falar em gramática um linguista tem em mente coisas muito diferentes da gramática que você usou
na escola. A gramática de uma língua é o conjunto de regras que descreve suas estruturas e que explica seu
funcionamento. Voltando ao exemplo do "menas", sem querer-querendo, descobrimos uma regra gramatical do
português brasileiro que provavelmente não está em nenhuma gramática que você consultou, porque essa regra
descreve a língua e não serve para prescrever nada.
Note ainda que o que é "certo" e "errado" muda ao longo do tempo, tornando as gramáticas prescritivas vítimas
de sua própria autoridade. Mas, não se trata de dizer que esse tipo de gramática não tem função alguma - longe
disso, ela tem sim! Por exemplo, ao ensinar a variedade escrita do português, é preciso tomar certas decisões
que terão alcance nacional, e aqui podemos recorrer à gramática prescritiva. Contudo, esse tipo de gramática não
pode ser tomado como um objeto sagrado e imutável e não deve extrapolar suas funções.
Para saber um pouco mais sobre os conceitos de gramática, sugiro a leitura do capítulo 9 do livro "Estudos
gramaticais".
Veja também as informações históricas contidas no arquivo "Gramáticas".

gramaticas.pdf
PDF

Ao final destas duas semanas, você deverá ter entendido um pouco melhor o que faz a Linguística, e como
o conhecimento linguístico acadêmico se caracteriza como científico, frente a outras considerações sobre as
línguas humanas e seu funcionamento. Deverá também ter entendido porque os linguistas não falam em
"certo" e "errado" e porque tais conceitos não fazem parte do ferramental de análise de um cientista.
Finalmente, você deve saber que existe mais de um conceito de gramática e que a tarefa básica do linguista
é descrever fenômenos linguísticos em suas mais variadas manifestações.

Nesta semana, vamos voltar nossa atenção para duas questões principais:

1) a origem da linguagem humana e o que (e como) podemos saber sobre ela;


2) a origem da escrita e seus desenvolvimentos;

Veremos que nosso conhecimento sobre a origem das línguas avançou muito nas últimas décadas e que há
interessantes hipóteses sobre esse tema. Falaremos brevemente sobre a origem da escrita e notaremos
padrões interessantes em sua história.

Quando pensamos em fenômenos da natureza, sabemos que os físicos, os geólogos e os biólogos, por exemplo,
se preocupam com a origem do que estudam. Dado que as línguas humanas são, também, um fenômeno natural,
o linguista deve se preocupar com sua origem? A resposta é, evidentemente, sim! O problema com o qual nos
deparamos nessa empreitada é o fato de haver pouca evidência concreta sobre como as línguas surgiram. Os
geólogos e os biólogos encontram fósseis milenares que facilitam seu acesso à informação para criação de uma
teoria sobre a origem e evolução dos fenômenos de sua área, os linguistas, por outro lado, contam apenas com a
escrita como um artefato concreto (que surgiu há um piscar de olhos do ponto de vista evolutivo, conforme
veremos), por isso, baseiam-se em evidências indiretas, como a estrutura do trato vocal, a constituição do
sistema nervoso, a capacidade simbólica humana relacionada à criação e ao uso de ferramentas e adornos e o
desenvolvimento de rituais. Isso, no entanto, não deve impedir o linguista de fazer perguntas sobre a origem, a
evolução e a constituição da linguagem, bem como buscar respostas para esses problemas. Você deve estar se
perguntando, mas quais são essas perguntas? Vejamos, então, algumas delas.

A primeira (e possivelmente a mais complicada de se responder, por conta da ausência de artefatos) é: como as
línguas humanas começaram? Será que começou com os Homo Sapiens Sapiens (nós), ou será que os
Neandertais tinham língua também
(https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/04/080417_neandertal_voz_mv.shtml )?
Será que começou de uma vez só? Será que um dado grupo de hominídeos, num belo dia, começou a falar entre
si, e depois se separou, se dividiu, dando origem, milênios depois, às quase 7 mil línguas que temos no planeta?
Ou será que a língua humana começou em grupos de hominídeos diferentes, e por isso há tanta diversidade?
Aliás, qual a origem dessa diversidade? Quais são seus limites?

Como podemos saber disso? Conforme destacamos, é muito difícil conseguir um quadro completo para
responder a essa questão, afinal, qual é o tipo de evidência que uma língua ágrafa deixa em sua história?
Sabemos que humanos deixam artefatos muito preciosos aos arqueólogos – cerâmicas, ferramentas, túmulos,
etc. –, mas o que resta de uma língua? Seja ela falada ou gestual, assim que é usada, desaparece... como saber,
então, se uma comunidade de Homo Sapiens que viveu há 100.000 anos tinha ou não língua? Que tipo de
evidência um arqueólogo poderia “desencavar”? Algum palpite?

Nos vídeos indicados a seguir, você verá algumas dessas perguntas e algumas tentativas de resposta. Mesmo
que ainda não tenhamos respostas definitivas para tudo, é impressionante contemplar o que já sabemos!
Veja os vídeos na ordem indicada - os vídeos 2) e 3) podem ser vistos com legendas em português,
selecionando-as nas configurações do Youtube, o vídeo 1) segue com a legenda em português.

1) Como a língua começou?


2) Como as línguas evoluem?
3) How language began? (Como a língua começou?)

Aproveite e leia o pequeno resumo que o famoso linguista David Crystal fez sobre a problemática da origem da
linguagem humana no texto "origem_crystal" que se encontra neste tópico.

How languages evolve - Alex Gendler


Vídeo do YouTube   4 minutos

How language began | Dan Everett | TEDxSanFrancisco


Vídeo do YouTube   17 minutos

How Did Language Begin.webm


Vídeo

How Did Language Begin.srt


Arquivo binário
origem_crystal.pdf
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A escrita tem uma origem bem mais recente do que a língua falada (ou gestual), e podemos estudá-la pelos
vestígios que nos deixam.
Costuma-se dividir a escrita em dois tipos: a proto-escrita e a escrita propriamente dita.
Sobre a escrita propriamente dita, ela começou na Idade do Bronze, cerca de 3.000 anos a.E.C. (antes da Era
Comum). Sabemos também que não houve apenas uma gênese da escrita, e que ela nasceu de modo
independente na Mesopotâmia (e depois foi levada para a Europa), na China e na América, provavelmente no
território do atual México.
Há muitas informações relevantes, interessantes e importantes sobre a história da escrita. Sabemos, por
exemplo, que, seja qual for o sistema de escrita em questão, ele percorreu um percurso que ia de ser mais
pictográfica (uma representação, ou um desenho), para algo mais ideográfico (um desenho mais abstrato, mas
dependente de convenções sociais), para, então, algo abstrato, que representa alguma unidade linguística, que
pode ser um único som (alfabetos), uma sílaba (silabários) ou uma palavra inteira (logográfico).
Um exemplo: quando desenhamos uma casa para representar uma casa temos algo pictográfico com um
desenho que representa com algum detalhe o objeto a ser referido. Se desenhamos algo mais estilizado, por
exemplo, dois traços paralelos que representam a parede e dois traços inclinados acima dele para representarem
o telhado, temos uma representação mais ideográfica da casa, sem tantos detalhes. Agora, se representarmos
unidades linguísticas, estamos diante de um último nível de abstração. Na escrita de <casa>, por exemplo, cada
símbolo representa um som da língua, e nenhum deles têm a ver com o objeto referido. Você verá essas e mais
informações no arquivo em anexo, mas é interessante mencionar agora que o símbolo <A> nosso "a maiúsculo",
na sua origem, se referia a um boi, pois era o desenho de cara de um boi - imagine <A> de cabeça para baixo, os
traços que agora estão para cima representavam os chifres do boi. Depois de milênios, <A> representa apenas
um som.
Nos arquivos abaixo, você encontrará algumas informações sobre a história da escrita e sobre a história da
ortografia portuguesa.

escrita_historia.pdf
PDF

orto_pb.pdf
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Nosso tema desta semana é a diversidade linguística do planeta, ou seja, quantas línguas existem, como contá-
las, como elas podem agrupadas e como se diferenciam.

Nos deteremos sobre como lidar e como entender a grande diversidade linguística com a qual nos deparamos
atualmente, bem como com sua enorme diminuição nos últimos séculos.

Quantas línguas existem hoje? Quais são as regiões do planeta que têm mais línguas? Como podemos agrupar
as línguas humanas? Como as línguas humanas se diferenciam umas das outras?
Essas são algumas das principais questões abarcadas por quem estuda a diversidade linguística. Porém, há
outras questões também muito importantes, ainda mais nos dias de hoje: a diversidade e variedade de línguas
está diminuindo? As línguas estão desaparecendo?
Apesar de haver hoje cerca de 7 mil línguas no mundo, agrupadas em famílias porque (i) compartilham
características estruturais e (ii) ancestrais comuns, é provável que nunca tenhamos visto um desaparecimento tão
rápido de línguas minoritárias, ou seja, línguas faladas por populações pequenas e vulneráveis, cujos hábitos e
línguas são exterminados por civilizações com maior poder econômico e militar. Segundo algumas estimativas,
perde-se uma língua a cada duas semanas... O desaparecimento de línguas, ou a extinção de línguas, faz um
triste e assustador paralelo com a extinção de espécie promovida pela humanidade...
Uma das tarefas do linguista é descrever e ajudar na preservação de línguas minoritárias, fazendo uso das
ferramentas de descrição e análise linguística que possui. Para você entender um pouco mais sobre a
diversidade linguística, recomento que visite os sites do Ethnologue e do WALS (The World Atlas of Language
Structures), listados respectivamente abaixo:

https://www.ethnologue.com/
https://wals.info/

Você pode também estudar o arquivo abaixo para entender um pouco mais sobre essas questões.

diversidade_ling.pptx
PowerPoint

Ao fim das semanas 3 e 4, você terá visto algumas das principais questões e tentativas de resposta para um
pergunta muito antiga: qual é a origem da linguagem humana? Terá visto também algumas propostas
teóricas e considerações sobre o que serve de evidência científica nesse tipo de investigação. Verá também
um pouco do que sabemos sobre a origem da escrita e seu desenvolvimento em diferentes partes do
planeta. Finalmente, terá conhecido um pouco da diversidade linguística atual, a distribuição de línguas por
falantes e sobre a importância de termos essa diversidade e de preservá-la.

Portugues_AquisicaodaLinguagem_avea (1).pdf
PDF

Livro-texto-Estudos-gramaticais_UFSC.pdf
PDF

Filosofia_da_Linguistica.pdf
PDF

Livro-texto-Norma-Linguistica_UFSC.pdf
PDF
Livro-Texto_Fonetica_Fonologia_PB_UFSC.pdf
PDF

Portugues_AquisicaodaLinguagem_avea (1).pdf
PDF

A aquisição de língua materna.pdf

Aquisição da linguagem_delta.pdf
PDF

Livro-texto_Construindo_Gramaticas_na_Escola.pdf
PDF

Livro-Texto_Analise-do-Discurso_UFSC

Livro-Texto-_Sociolinguística_UFSC.pdf

Livro-Texto_Morfologia_UFSC.pdf
1997_LinguisticaCognitiva.pdf

LinguisticaCognitiva_2009.pdf
PDF

Nesta semana, os objetivos são:

1) reconhecer e identificar a variação linguística;


2) identificar e evitar o preconceito linguístico.

Nosso foco será o português brasileiro, e é dessa língua que virão os exemplos trabalhados, mas você verá
conceitos teóricos gerais, que podem ser aplicados a qualquer língua.

Há uma realidade sobre as línguas que vemos todos os dias, impossível de esconder, impossível de evitar,
mas, ainda assim, muitos teimam em não enxergar. Essa realidade é a seguinte: as línguas variam, as
línguas mudam.
Pronto, simples assim!
Porém, mais do que isso, é importante reconhecer que a variação e a mudança - já veremos mais sobre
esses conceitos - são constitutivos das línguas naturais, ou seja, é uma característica intrínseca das línguas
naturais o fato de serem variáveis e mudarem. Como lembram os linguistas, as únicas línguas que não
variam são as línguas mortas.
Reconhecer esse fato fundamental das línguas naturais abre nossos olhos para uma série de fenômenos
que provavelmente ignorávamos até então - por que as línguas variam? como? - e nos permite também
interpretar de um modo novo vários outros fenômenos - lembra do "menas" que vimos na primeira aula?
Pois é, é um fenômeno de variação.
E o que vem a ser variação linguística? Posto de modo simplificado, a variação é a possibilidade de dizer a
mesma coisa - o mesmo conteúdo linguístico - de formas ou modos diferentes. Vamos ver alguns exemplos:

1) A macaxeira (ou a mandioca, ou o aipim) fica uma delícia no vapor.


2) As crianças chegaram.
3) As criança chegô tudo.

Em 1), temos um exemplo de variação com relação a como chamamos, no Brasil, um certo vegetal. Eu falo
“mandioca”, mas sabemos que os outros dois nomes (“macaxeira” e “aipim”) se referem à mesma realidade.
Essa variação é chamada de “variação lexical” – “léxico” é o termo técnico que os linguistas usam para se
referir ao vocabulário que compõe uma língua. Assim, variação lexical remete à variação nas palavras
usadas para nomear uma certa realidade.
Os exemplos em 2) e 3) ilustram um fenômeno interessante. Deixe de lado qualquer preconceito linguístico
porventura relacionado à sentença 3) e pense: qual é a diferença, em termos de informação linguística,
entre as frases 2) e 3)? Ora, nenhuma! As duas frases veiculam a mesma informação – as crianças
chegaram. Há variação aqui na forma como a informação de plural é veiculada. Há duas regras: a) o artigo
(“a”) e o substantivo (“criança”) concordam em plural e b) somente o artigo traz marca de plural. Note ainda
que o “tudo” também é uma marca de plural em 3) – o plural é marcado por uma outra palavra na frase! Bem
legal, né!
Para você ver que b) é de fato uma regra gramatical, compare 4) e 5):

4) As criança chegô.
5) * A crianças chegô.

(o asterisco marca uma frase agramatical, ou seja, uma frase que nenhum falante produz, e que não é
reconhecida como parte da língua.)
5) simplesmente não é uma frase aceitável no português brasileiro – por isso é chamada de agramatical.
Ou seja, há duas regras de marcação de plural: ou todos os elementos concordam em plural (as crianças)
ou somente o artigo (as criança). Mas não há uma regra como: somente o substantivo marca o plural (*a
crianças). Obviamente, este é só um exemplo simplificado, mas serve para ilustrar o que queremos dizer
com variação. Veja mais estes exemplos:

6) Tu chegaste cedo hoje.


7) Tu chegou cedo hoje.
8) Você chegou cedo hoje.
9) * Você chegaste cedo hoje.

6), 7) e 8) ilustram as variações possíveis entre as formas de pronome de segunda pessoa do singular (“tu”
ou “você”) e 9) ilustra uma forma impossível. Veja o seguinte:

10) Nós chegamos cedo hoje.


11) A gente chegou cedo hoje.
12) A gente chegamos cedo hoje.
13) Nós chegou cedo hoje.

Mais uma vez, deixando qualquer preconceito de lado, você já deve ter ouvido essas quatro possibilidades,
não? Logo, elas existem e devem ser explicadas.
A variação linguística acontece nas palavras usadas, nas estruturas usadas, e também na pronúncia: pense
em quantas maneiras diferentes é possível realizar o som representado por <r> – os símbolos <> indicam
que estamos falando de uma letra – na palavra “porta”. Várias!
Porém, a língua muda também com relação à faixa etária dos falantes (uma pessoa muito mais velha que
você certamente fala diferente de você) e também ao nível de renda (no Brasil, o acesso à educação,
infelizmente, ainda é mais garantido para as classes mais abastadas). E – isso é importante – todas essas
variações acontecem ao mesmo tempo. Sempre ouvimos formas variadas e, literalmente, com a exceção de
gravações, nunca escutamos a mesma coisa. Mas não pense que você vai se safar dessa, porque nós
também nunca produzimos a mesma fala, nunca usamos a mesma língua – o modo como você falava há 10
anos não é o modo como você fala agora e nem será o modo como você falará daqui há 10 anos. Não tem
para onde correr – a língua sempre está em variação!
Algumas dessas variações podem ser relacionadas a fatores não linguísticos, e aí coisa toda fica
interessante, tão interessante que deu até origem a uma disciplina da Linguística: a Sociolinguística.
Essa disciplina, entre outras coisas, se pergunta: quais pessoas falam a variedade X e quais falam a
variedade Y?
Por exemplo, quais pessoas falam “tu” e quais falam “você” no Brasil? A resposta a essas perguntas podem
ser encontradas na geografia – quem nasce em um dado lugar, fala de um dado jeito – , mas também, como
falamos, no nível social dos falantes, em sua idade e em vários fatores sociais que, em princípio, não são
linguísticos. Veja que interessante: usamos critérios sociais – classe, idade, local de nascimento etc. – para
explicar uma ou outra forma de falar.
Para você se familiarizar mais com a disciplina da Sociolinguística e com a variação linguística, recomendo
que você leia a Introdução e o capítulo 1 do livro "Sociolinguística", que está no tópico "Materiais" - talvez
você encontre alguns conceitos complexos, mas não se assuste! Além disso, sempre que surgir dúvidas,
podemos discuti-las no fórum. Sugiro também que você veja a entrevista do professor Ronald Beline
Mendes, no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=rOABjVh0EjA&t=5s

O preconceito linguístico é algo que todo linguista - na verdade, todas as pessoas - deveriam combater, mas
é um mal que está, infelizmente, bastante enraizado nas sociedades.
De modo simplificado, o preconceito linguístico se faz sobre uma certa pronúncia, escolha de vocabulário,
regra de concordância, regra sintática ou qualquer outra forma linguística que pode variar. Basicamente,
diante da variação linguística julgamos uma possibilidade como melhor e outra como pior, e associamos
uma série de visões preconceituosas com quem emprega aquela possibilidade considerada pior. Vejamos o
passo a passo de como isso se dá, e você concluirá, ao final, que o preconceito linguístico é, na verdade,
um preconceito social.
Em primeiro lugar, lembre-se de que as regras linguísticas são, pela própria natureza das línguas naturais,
variáveis. Assim, vamos tomar um exemplo que envolve concordância de número:

1) Os menino pescô os peixe tudo.


2) Os meninos pescaram os peixes.

Mais uma vez, como já vimos, não há diferença entre 1) e 2) com relação à informação linguística que
estamos estudando: a expressão do plural. As duas frases dizem que meninos (no plural) pescaram (no
plural) peixes (no plural). Objetivamente falando, não há diferença no valor dessa informação linguística -
plural nos dois casos.
Se não há diferença no conteúdo, há diferença na forma, pois 1) emprega a regra de marcar o plural apenas
no artigo e 2) emprega a regra de marcar o plural em todos os elementos.
O preconceito linguístico acontece porque damos às diferentes regras possíveis valores sociais também
distintos. Ou seja, se (i) de um ponto de vista estritamente linguístico, 1) e 2) dizem a mesma coisa e só
diferem em relação à regra de marcação de plural em jogo, e nenhum é melhor do que o outro, são
simplesmente diferentes, (ii) do ponto de vista social, julgamos, avaliamos cada uma dessas regras
atribuindo valores sociais a elas. Por razões que não têm nada de linguístico, objetivo ou científico achamos
que uma regra é melhor do que a outra, e imediatamente associamos coisas ruins a quem usa a regra que é
desvalorizada. E, claro, essas pessoas passam a ser alvo de preconceito linguístico. Como não há nada de
objetivo na valoração dessas regras, o que fazemos, na verdade, é exercemos preconceito sobre certas
pessoas, desta vez identificando em sua fala traços distintivos que usamos justamente como fonte de nosso
preconceito.
Pense um pouco: qual camada da população fala frases como as abaixo:

3) A pessoa que eu moro com ela chega tarde em casa.


4) A gente sabemos bem o que vai acontecer.
5) Eu comprei menas coisas dessa vez.

Você certamente consegue pensar em vários outros exemplos, e notará uma uniformidade entre eles:
representam a fala de pessoas pobres, com pouco acesso à educação e, em várias sentidos, socialmente
marginalizadas. Por isso, o preconceito linguístico no Brasil está claramente associado ao nível de renda
das pessoas, que, por sua vez, está, infelizmente, associado ao acesso à educação. É uma triste realidade,
que dura séculos... Portanto, deve ser uma tarefa do linguista entender e desfazer o preconceito linguístico,
combatendo-o com todas as ferramentas possíveis.
Apenas para reforçar que estamos diante de regras variáveis e não de erros, vamos analisar (4) com mais
calma.
Em primeiro lugar, por que uma forma como "a gente sabemos" existe? Não podemos simplesmente dizer
que é um erro, e isso por dois motivos: (i) ocorre frequentemente em diversas partes do Brasil – seria ao
menos um milagre que um mesmo e idêntico erro acontecesse em todo o território nacional – e (ii) sempre
ocorre igual, ou seja, não temos “a gente comi” ou “a gente como”, ou ainda “a gente comeram”, mas sim “a
gente come” ou “a gente comemos”. Note então que as formas que se combinam com “a gente” são a
terceira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural. E por quê? Ora, uma das opções é a canônica
(“come”) e a outra opção, se você parar para pensar, é mais do que natural, não? Afinal, “a gente” não é
justamente uma forma que significa primeira pessoa do plural? Se sim, por que não combinar a forma verbal
da primeira pessoa do plural com a forma pronominal que expressa primeira pessoa do plural? Se
deixarmos nossos preconceitos de lado, veremos que isso faz muito sentido – se “a gente” substitui “nós”,
pode muito bem herdar suas formas verbais. Isso explicaria porque (i) o mesmo “erro” acontece em todo
Brasil, (ii) porque somente as formas de primeira pessoa do plural e terceira do singular se combinam com
“a gente”, e a conclusão é (iii) que não estamos diante de um “erro”, mas sim de outra possibilidade
linguística perfeitamente razoável.
Para saber mais sobre preconceito linguístico, você pode ser capítulo 2.3 do livro "Sociolinguística". Vale a
pena também ver os seguintes vídeos:

Preconceito Linguístico - 20 anos depois - https://www.youtube.com/watch?v=UN_-nPdQfm8


Respeito Linguístico: contribuições da Sociolinguística Variacionista - https://www.youtube.com/watch?
v=W4XqhsiB9I0

Nesta semana, você terá lidado com questões sobre variação linguística, seu funcionamento, como
podemos perceber essa variação e as reações que as pessoas têm a tal fenômeno. Outro tópico com o qual
você terá trabalho é o preconceito linguístico, uma forma de preconceito social que se manifesta na
valoração social que certas regras gramaticais recebem num determinado período da história.

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