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Editora Insular

Noyo Manual de Sintaxe


A

© Carlos Mioto, Maria Cristina Figueiredo Silva,


Ruth Elisabeth Vasconcellos Lopes

Editor:
Nelson Rolim de Moura

Capa:
Mauro Ferreira

Planejamento Gráfico e Supervisáo Editorial:


Carlos Serrao

Ficha Catalográfica
Elaborada pela Bibliotecária Beatriz Costa Ribeiro - CRB l4-001/99-PR

M669m Mioto, Carlos


Novo manual de sintaxe / Carlos Mioto, Maria Cristina
Figueiredo Silva, Ruth Elisabeth Vasconcellos
Lopes. Florianópolis : Insular, 2a ed., 2005.
280p. : il.

ISBN 85-7474-199-x

l. Ciencia da Linguagem. 2. Língüística. 3. Sintaxe.


r. Silva, Maria Cristina Figueiredo. Ir. Lopes, Ruth
Elisabeth Vasconcellos. III. Título.

CDU 801.56(035)

Editora Insular
Rua Júlio Moura, 71
Florianópolis - 88020-150 - Santa Catarina - Brasil
FoneLfa.x:0**4 223 3428
1

,
O ESTUDO DA GRAMATICA

1. Introduc;ao: o que é fazer ciencia da linguagem?

Talvez ninguém duvide de que a física ou a química sejam


ciencias; já a afirrnacáo de que a sociologia ou a lingüística sáo cien-
cias nao goza de tamanha unanimidade e sempre exige alguma estra-
tégia de convencimento. É provável que essa questáo nao tenha nada
a ver com a física ou a lingüística, mas com o que imaginamos ser a
investigacáo científica. Se este for o caso, a cornparacáo com a físi-
ca, urna disciplina bém as sentada como ciencia, pode elucidar e mui-
to a nossa discussáo. Nosso objetivo .aqui nao é discutir os inúmeros
problemas que o próprio conceito de ciencia coloca para a epistemo-
logia, mas antes, ancorados no modelo clássico de ciencia (também cha-
mado nomológico-dedutivo), procurar mostrar como um programa de
investigacáo da linguagem pode se caracterizar como científico. Eviden-
temente, a abordagem apresentada aqui nao precisa ser exaustiva, já que
es se nao é o tópico central deste Manual.
Se nao é nada simples responder a pergunta do título, existe
urna outra pergunta que pode ser rnais confortável de responder e nos
levar a cornpreender rnelhor o que é o fazer científico. A pergunta
que ternos ern mente é: o que é que urn físico faz?
Ern prirneiro lugar, o fisico - ou qualquer outro pesquisador=-
precisa de urn objeto de estudo, isto é, de algurna coisa para estudar.
Urna teoria se justifica na relacáo que tern corn o objeto de estudo
~ .
objeto e é necessário que se faca aí urna delimitacáo muito mais pre- bemos o que eles querem dizer: o próprio físico nao pode ter um
cisa. ataque de pánico quando estiver observando os trovñes e os raios,
Digamos que o físico se ocupa de fenómenos do mundo natu- poi s isso introduziria elementos alheios ao fenómeno no estudo que
ral. Claramente, ele nao pode se ocupar de todos os fenómenos do ele está tentando fazer. Também é esperado que o físico nao deixe
mundo natural, mesmo porque nem todos os fenómenos do mundo que interfiram em suas observacñes urna série de idéias que fazem
natural tém a ver com a física. E, ainda que esteja em causa um fenó- parte do senso comum - é pouco provável que o físico. chegue a
meno típico da física, nem todos os aspectos envolvidos nesse fenó- urna explicacáo razoável do que sáo trovñes se ele se deixar levar
meno sáo relevantes; por exemplo, um físico que está estudando os pela crenca de que Sáo Pedro está lavando o céu e deixou cair um
raios e os trovñes nao está comprometido corn a explicacáo do ata- grande balde cheio de água ...
que de pánico que a vizinha tem toda vez que corneca a chover, por Também na lingüística esperamos ser capazes de fazer obser-
mais que o ataque da vizinha pareca ser desencadeado pelos raios e vacñes atentas e acuradas de maneira tño objetiva e imparcial quanto
trovñes. Portanto, ele deve delimitar seu objeto. E isso deve aconte- possível. Talvez seja um pouco cedo para tentar explicar o que exata-
cer mesmo dentro da física. Assim, encontramos físicos que traba- mente quer dizer tudo isso, mas pelo menos um ponto já pode ficar
lham com os fenómenos mecánicos, outros que estudam os fenóme- claro: se estamos querendo construir urna teoria científica da organi-
nos elétricos, outros que preferem os magnéticos etc. E todos esses zacáo sintática das sentencas, devemos antes de mais nada observar
fenómenos seráo estudados dentro de limites que devem estar clara- as que efetivamente sáo próprias da língua sem ignorar nenhuma de-
mente formulados. las. E, assim, nao se pode ser parcial e ignorar as sentencas ditas
Com a lingüística ocorre coisa semelhante: a quantidade de "feias"! A importáncia dessa observacáo será avaliada com mais va-
fenómenos que o termo linguagem abarca é muito grande - como o gar na próxima secáo, quando discutiremos um pouco a Gramática
termo mundo natural da física - e será necessário restringir drasti- Tradicional (doravante, GT).
camente o seu objeto de estudo. Esse ponto deve ficar mais claro no Porém, a observacáo cuidadosa dos fenómenos nao basta,
decorrer do Manual, urna vez que estaremos trabalhando especifica- porque parece inútil (e mesmo impossível, porque há raios e trovñes
mente com urna das facetas da linguagem, a saber, a constituicáo sin- que ainda nao aconteceram) descrever com muitos detalhes todos os
tática das sentencas das línguas naturais. (Por isso, nao deve causar raios e trovñes do mundo se o físico náo se perguntar por que eles
espanto que nesta secáo nao tenhamos a preocupacáo de distinguir sáo como sáo, por que el es acontecem dessa maneira e nao de outra.
lingüística de sintaxe). Por agora, o que podemos dizer é que estamos O que estamos querendo dizer é que os raios e os trovóes que exis-
interessados em explicar a estruturacáo sintática de urna sentenca como tem efetivamente nao sáo exatamente o objeto de estudo dos físicos;
"vocé sabe que horas sáo?". O fato interessante de ela poder signifi- é a realizacáo de fenómenos abstratos que é o foco da atencáo deles.
car urna repreensáo ao aluno que entro u atrasado na aula representa Repare que nao é só urna questáo de retirar dos fenómenos particula-
para o sintaticista o mesmo que o ataque de pánico da vizinha para o res o que el es tém de cornum; muito mais do que isso, é necessário
físico: nao faz parte do objeto de estudo delimitado. que o físico relegue certas características dos fenómenos concretos
Mas voltemos ao físico. Suponhamos que ele esteja querendo para poder formular princípios que estáo na base desses mesmos fe- .
explicar o que sáo os raios e os trovñes, fenómenos físicos do mundo nórnenos, princípios estes responsáveis pela explicacáo do que eles
natural. Parece claro que o físico deve observar atenta e acuradamente sáo. SÓ observando os trovñes, o físico nao será capaz de prever
esses fenómenos, nao urna única vez, mas diversas vezes. E deve pro- inteiramente o que acontecerá no próximo trováo.
curar observá-Ios da mane ira mais objetiva e imparcial possível. Es- O lingüista defronta-se com o mesmo tipo de problema: ape-
ses nao sáo conceitos muito fáceis de definir , mas intuitivamente sa- nas observando as sentencas que efetivamente existem na língua, ele

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nao será capaz de prever o formato da próxima sentenca que vai lhe núcleo positivo, muito pequeno (onde ficaram grudados os poucos
aparecer pela frente. É necessário passar por cima de urna série de elétrons), e que os elétrons giram em volta desse núcleo de tal modo
características das sentencas que existem para poder formular um que existe urna enorme regiáo vazia entre eles (por onde passaram os
padráo para elas, que deve ser necessariamente abstrato. E esse é
elétrons que foram se instalar no anteparo).
padráo que deve ser explicado, porque só assim chegaremos a prever Do mesmo modo que o físico postula a existencia de entida-
o formato que as sentencas podem ou nao ter. Dito de outro modo, des que nao sáo diretamente perceptíveis nos fenómenos que ele está
os lingüistas estáo interessados na formulacáo-de princípios que este- estudando, é legítimo que o lingüista se utilize de categorias e con-
jam na base de todo fenómeno sintático existente. ceitos que nao aparecem diretamente na producáo lingüística, mas
Para que a forrnulacáo des se s princípios seja possível, sabe- cuja existencia pode explicar por que a producáo lingüística se dá de
mos que muitas vezes o fisico tem que supor a existencia de entidades urna maneira e nao de outra. Evidentemente, o lingüista também vai
que nao sáo diretamente perceptíveis nos fenómenos que ele está es- ter que rever um postulado cada vez que os dados das línguas natu-
tudando. Por exemplo, o físico lida com conceitos como átomo e rais mostrarem que ele nao adequado nem para a descricáo nem
é

elétron, que nao sáo visíveis a olho nu; no entanto, supondo que tais para a explicacáo de um certo fenómeno.
entidades existem na natureza, o físico chega a explicar fenómenos Observe que os físicos adotam urna linguagem com termos
presentes no cotidiano de qualquer um, como a eletricidade, os raios bastante especializados para enunciar os princípios gerais que eles
e os trovóes. A esse conjunto de postulacñes básicas e de afirmacñes alcancaram; muitas vezes, o que el es dizem incompreensível para
é

conseqüentes chamamos um modelo teórico. nós que nao estudamos fisica. Adicionalmente, eles se utilizam de
Claro que os físicos devem ser cuidadosos no que postulam
é
urna linguagem artificial, a matemática, que parece capaz de garantir
como base para a sua teoria. Sobretudo, el es devem estar sempre que um determinado resultado seja interpretado de maneira inequívo-
dispostos a mudar um postulado se este for contrariado por algum ca. Nao se sustentaria urna física que dissesse coisas que podem ser
fato do mundo natural. Um bom exemplo disso um dos primeiros
é
entendidas dessa ou daquela maneira, porque urna das razñes para a
modelos do átomo, proposto por Lord Kelvin no início do século, o formulacáo desses princípios gerais é a predicáo de novos fenómenos
tal do "pudim com passas": o átomo era urna massa carregada positi- e o poder de predicáo de urna física formulada de modo impreciso
vamente (os prótons) com pequenos "graos" negativos (os elétrons) estaria seriamente comprometido.
grudados nela. Ora, um modelo de átomo desse tipo faz a previsáo de Também o lingüista deve ter a disposicáo urna metalinguagem
que, se com urna pistola fossem disparados elétrons sobre um átomo suficientemente acurada - nao necessariamente matemática, mas igual-
e houvesse um anteparo atrás, muitos elétrons disparados ficariam mente rigorosa - para poder garantir que os princípios formulados
grudados na massa positiva, alguns voltariam (quando esses elétrons sejam interpretados de mane ira inequívoca. Seria facilmente rejeitada
disparados encontrassem os elétrons do "pudim") e poucos seriam ~ demolida urna teoria lingüística que dissesse coisas que podem ser
encontrados no anteparo colocado atrás do átomo. Entretanto, o que Interpretadas dessa ou daquela maneira: como os físicos, os lingüis-
efetivamente se observou foi que inúmeros elétrons foram encontra- tas estáo igualmente interessados no poder de predicáo de suas gene-
dos no anteparo, que pouquíssimos grudaram no que se supunha fos- r~1iza<;:oesque, se estiverem formuladas de modo vago, impossibilita-
se o "pudim" e que alguns de fato voltaram. Assim, esse modelo se rao que se extraia delas as predicñes pretendidas.
mostrou inadequado para descrever e explicar os fato s do mundo. A Será que os lingüistas, no estudo da linguagem, podem ter
saída, implementada por um dos discípulos de Lord Kelvin, um ci- Uma postura semelhante a que os físicos tém ao estudar o mundo
entista chamado Thomson, foi o abandono dessa postulacáo e a ado- natural? Este Manual responde afirmativamente a pergunta, apresen-
cáo de um outro modelo, aquele que supñe que o átomo possui um tando um modelo teórico conhecido como gramática gerativa, que
se dispñe a fazer um percurso sem~lhante ao dos físicos no seu fazer lar em termos abstratos dos fenómenos que ela quer estudar. A GT
científico. Para tanto, propomos urna série de reflexóes que devem nao é excecáo: preposiciio, sujeito, hipérbato e tantos outros sáo
nos levar a conclusáo de que um tal tipo de postura é nao só possível usados como termos técnicos, e como tal deveriam ter definicáo preci-
e desejável como altamente instigador. sa. O leitor já deve ter comprovado nos seus anos de estudo de portu-
gués na escola que nem sempre é este o caso. Adicionalmente, as
defini<;oes normalmente sáo inadequadas nao se aplicando a todos os
casos a que em princípio deveriam se aplicar. Para ilustrar o que esta-
2. Conceito de gramática
mos querendo dizer, tomemos como um dos inúmeros exemplos a
defini<;ao de advérbio dada por Celso Cunha em sua Gramática do
Para alcancar os objetivos deste capítulo precisamos estabele-
Portugues Contemporáneo: "estas palavras que se juntam a verbos
cer o conceito de gramática com que vamos trabalhar. Normalmen-
para exprimir circunstancias em que se desenvolve o processo verbal,
te, o termo gramática nos leva a pensar em um livro grosso e pouco
e a adjetivos, para intensificar urna qualidade, chamam-se advérbios."
confiável, cheio de regras que jamais conseguimos decorar e que, na
Na secáo dedicada a classificacáo dos advérbios, encontramos prova- •.
melhor das hipóteses, tem urna conexáo distante com a língua que
velmente classificado como "advérbio de dúvida". Esperamos assim
falamos. Gramática pode ser entendida, nesse sentido, como o con-
que provavelmente seja encontrado junto a verbos e a adjetivos, espe-
junto das regras "do bem falar e do bem escrever". Repare que, nesta
rando igualmente encontrá-Io somente nestes contextos sintáticos.
acepcáo, apenas urna variedade da língua está emjogo: a norma cul-
Observemos entáo o seguinte conjunto de sentencas:
ta ou padráo; e é es se "padráo" que guiará os julgamentos do que é
"certo" ou "errado" na língua. Conseqüentemente, se urna sentenca
se conforma ao padráo, ela é considerada "certa", caso contrário é (1) a. [Provavelmente o Joáo] doou os jornais para a biblioteca.
"errada". Isso implica conceitos quase estéticos: se a estrutura está (nao a Maria)
"certa", é considerada "bonita", se nao é "feia".
A GT pode ser entendida, entáo, como o grande exemplo des- b. O Joáo [provavelmente doou] os jornais para a biblioteca.
sa definicáo de gramática, o que explica inclusive o seu caráter (nao vendeu)
prescritivo: nao fale/escreva assim, porque é errado ... Observe que a c. O Joáo doou [provavelmente os jornais] para a biblioteca.
exemplificacáo das regras da GT é sempre feita com base em textos (nao as revistas)
literários, em grande parte antigos, que figuram como o padráo de
"correcáo", de "beleza", que nós deveríamos seguir mesmo no falar d. O Joáo doou os jornais [provavelmente para a biblioteca].
espontáneo. Se nao o fazemos, além de estarmos falando errado, (nao para o bar)
estamos "empobrecendo a língua", "maltratando o idioma", "fazendo
doer o ouvido" ... Note que a GT trabalhará com as nocñes de certo e Notemos em primeiro lugar que estamos falando de sentencas
errado segundo as construcñes se conformem ou nao a esse ideal de absolutamente bem construídas em portugués. É claro que provavel-
correcño lingüística: é um receituário de um pretenso bem falar/es- mente pode aparecer em diferentes lugares da sentenca, com a espe-
crever. rada alteracáo do seu significado. O que é crucial, no entanto, é a
Contudo, mesmo como receituário, ou seja, enquanto descri- possibilidade de este advérbio "modificar" constituintes diversos, nao
cáo de urna norma dita padráo, a GT tem a deficiencia de nao ser somente o verbo ou o adjetivo. O uso dos colchetes nas sentencas de
explícita. Qualquer teoria, quer ela reivindique ou nao para si o estatuto (1) serve para deixar claro o que o advérbio focaliza: a o Joiio em
de teoria, implementa urna metalinguagem para que seja possível fa- (1 a), a doou em (1b), a os jornais em (1e) e a para a biblioteca em
(1 d). A definicáo de Celso Cunha, portanto, nao dá conta de todas as Dizer que as línguas naturais estáo relacionadas estreitamente
sentencas em (1) e, na verdade, implica que provavelmente nao sem-
é com a racionalidade humana equivale a dizer que nós nao falamos
pre advérbio ou que advérbio nao aquilo que a definicáo enuncia. A
é combinando elementos quaisquer de mane ira aleatória, chamando a
conclusáo que queremos tirar é simples: a GT, ao contrário do que isso de sentenca. Ao contrário do que quer nos fazer crer a gramática
nos fizeram crer na escola, nao se constitui em um corpo coeso de normativa, quando falamos, mesmo que nao estejamos obedecendo
conhecimentos; e ampliando a crítica: o conjunto de observacñes que as regras dadas como as únicas possíveis, estamos fazendo uso de
a GT faz nao dá conta da riqueza da língua, nem mesmo do registro regras que sáo, em última instancia, ditadas pela racionalidade huma-
que ela se propñe a descrever. na.
Neste Manual, ternos em mente urna outra definicáo de gra- Um exemplo pode ajudar a esclarecer o que estamos queren-
mática, nao determinada por um padráo de correcáo. Com base na do dizer aqui. A GT nao reconhece a forma pronominal vocé como
discussáo da secáo anterior, vamos colocar o lingüista na mesma po- pronome de segunda pessoa do singular de vários dialetos do portu-
sicáo do físico: este, para entender os fenómenos meteorológicos, gués brasileiro; no máximo, esta forma recebe alguma nota de rodapé
precisa primeiramente separar o que fenómeno meteorológico do
é nos livros de gramática. É claro que para 'cé, que a forma reduzida
é

que nao é; do mesmo modo, o lingüista/sintaticista cornecará sepa- de vocé, nao existe nem mesmo urna mísera mencáo, No entanto,
rando o que fenómeno sintático do que nao é. Depois, o físico deve
é qualquer falante nativo do portugués brasileiro (isto é, qualquer pes-
observar com rigor as ocorréncias do fenómeno em estudo para des- soa que aprendeu o portugués brasileiro na infancia) écapaz de reco-
crever acuradamente o que está acontecendo; nosso sintaticista fará nhecer as sentencas em (2) abaixo como sentencas pertencentes a
o mesmo: descreverá apuradamente o fenómeno sintático que está esta língua:
sendo observado. Finalmente, o físico. desenvolve urna hipótese
explicativa para o fenómeno; faremos o mesmo: desenvolveremos urna (2) a. 'Cé viu a Maria saindo.
hipótese que explique o fenómeno lingüístico que está em estudo. a'. Vocé viu a Maria saindo.
Vamos comecar construindo nossa definicáo de gramática ob-
servando um fato que bastante banal até, mas que tem implicacñes
é
b. Quem que 'cé viu saindo?
imediatas para o que estamos discutindo: do que se sabe até hoje dos b'. Quem que vocé viu saindo?
reinos animal, vegetal e mineral, só os seres humanos falam. Nao es-
tamos dizendo que outros seres nao disponham de sistemas até bastante c. A Maria disse que 'cé foi viajar.
sofisticados de comunicacáo, mas afirmando que só os seres huma- c'. A Maria disse que vocé foi viajar.
nos falam de urna certa maneira. SÓ os seres humanos sáo capazes de
combinar itens de um conjunto de elementos segundo certos princípi- Por outro lado, mesmo os falantes que nao utilizam essas for-
os básicos, que sáo em número finito, de modo a gerar um número mas sabem que as sentencas em (3a,b,c) sáo claramente estranhas
infinito de sentencas novas: isto corresponde ao que chamamos de nessa língua e nenhum de nós teria qualquer dúvida em dizer que elas
"aspecto criativo da linguagem" dentro do programa de estudos que nao pertencem ao portugués do Brasil (o que será representado por
desenvolveremos aqui. E mais: a parte verdadeiras excecóes, isto é, meio de um asterisco na frente das sentencas):
casos de distúrbios neurológicos graves, todos e apenas os seres hu-
manos falam urna língua natural, o que quer dizer que as línguas natu- (3) a. * A Maria vai ver 'cé.
rais térn urna ligacáo estreita com o que é definidor da natureza hu- a'. A Maria vai ver voceo
mana: chamemos a esse dote da espécie "racionalidade humana".
b. * A Maria comprou o livro pra 'ceo pode ser realizado por um pronome oblíquo átono, como em (4b) - ;
b'. A Maria comprou o livro pra voceo no entanto, esta sentenca gramatical, isto é, faz parte das estruturas
é

possíveis no portugués brasileiro. E por isso deve ser descrita e ana-


c. * A Maria e 'cé váo comprar o livro. lisada.
e'. A Maria e vocé váo comprar o livro. O que permite ao falante decidir, entáo, se urna sentenca é

gramatical ou nao, o conhecimento que ele tem e que tem o no~e


é

Porque os falantes sabem que a situacáo apresentada em (2) é técnico de competencia. Quando o falante pñe em uso a competen-
própria do portugués brasileiro sem que ninguém lhes tenha ensinado cia para produzir as sentencas que ele fala, o resultado o que chama-
é

isso, dizemos que eles dispñem de urna gramática internalizada, mos tecnicamente de performance (ou desempenho). O papel da
isto é, de um conjunto de regras que rege a distribuicáo de formas nossa teoria, tal qual a concebemos, descrever e explicar a competen-
é
, A A

como ce e voceo cia lingüística do falante, explicitando os mecanismos gramaticais que


Introduzindo um pouco da linguagem técnica que usaremos subjazem a ela. Logicamente, a performance tem o seu papel nesse
neste Manual, as sentencas em (2) sáo gramaticais, pois elas sáo nosso estudo: como o físico deve observar os raios e trovñes, o lingüis-
formadas segundo a gramática do portugués brasileiro, enquanto as ta tem que observar as sentencas produzidas. Mas, sem dúvida, nao
sentencas (3a,b,c) sáo agramaticais. Evidentemente, estamos aban- pode se ater a elas. A nossa teoria deve ser capaz de lidar também
donando a palavra gramática na acepcáo da GT, pois esta certamente com sentencas que ainda nao foram produzidas e, muito mais, com
baniria algumas sentencas de (2) que nao queremos nem podemos seqüéncias de palavras (náo-sentencas) que nunca ocorrerño, isto é,
banir. Estamos pensando naquela outra definicáo de gramática, que com a evidencia negativa que discutiremos na próxima secáo. Estu-
tem a ver com o conhecimento que o falante tem de sua língua mater- dando só a performance, nossa teoria lingüística seria deficiente pois
na, independentemente de ter tido aulas de portugués na escola ou de jamais alcancaria o nível de predicáo que urna teoria deve alcancar.
conhecer a Nomenclatura Gramatical Brasileira. Nesta concepcáo de Para exemplificar esse ponto, consideremos urna propriedade
gramática, como conhecimento inconsciente, entáo, nao há lugar para das línguas naturais que a recursividade. O que recursividade
é é

os conceitos de "certo" e "errado", baseados exclusivamente em urna fica claro se tomamos como exemplo a coordenacáo de constituintes.
norma que, particularmente no caso do portugués do Brasil, até po- Sabemos que para fazer urna coordenacáo devemos combinar consti-
demos questionar que seja ainda utilizada por algum falante; há táo tuintes da mesma natureza em vários aspectos, como mostra (5):
somente os conceitos de gramaticalidade e agramaticalidade, ou
seja, sentencas que pertencem ou nao a urna dada língua. Quem sabe (5) a. O Paulo e a Maria váo sair.
decidir se urna sentenca pertence ou nao a urna dada língua o falan-
é
b. O Paulo, a Maria e a Joana váo sair.
te nativo daquela língua, escolarizado ou nao. Portanto, os conceitos c. O Paulo, a Maria, a Joana e a Ana váo sair.
de gramaticalidade/agramaticalidade nao recobrem de forma alguma d. O Paulo, a Maria, a Joana, a Ana e o Pedro váo sair.
os conceitos de certo/errado da GT. Senáo vejamos:
Notamos que os elementos coordenados sáo todos da mesma
(4) a. O José viu ele no cinema. natureza no exemplo dado, ou seja, elementos nominais. Usando este
b. O José viu-o no cinema. processo podem-se construir sentencas curtas como (5a) e muito mais
longas do que (5d), por meio de aplicacñes recursivas do mesmo
De acordo com a GT, a sentenca em (4a) estaria errada, pois processo. Como deveria reagir o lingüista frente a urna longa senten-
nao pertence a norma culta - segundo a norma, o objeto direto só ya com 254 elementos nominais coordenados de modo adequado?
Que a sentenca monstruosa apavore o falante é a expectativa. mente como a substancia física do cérebro produz a percepcáo de
Que se considere que urna tal sentenca é urna criacáo artificial de um formas ou cores, por exemplo, parece claro que a mente humana lida
lingüista que pode acabar incomodando um outro colega lingüista é com essas informacóes de maneira extremamente ágil e eficiente. O
admitido muitas vezes. Mas que é urna sentenca que deve ser subme- mesmo se pode dizer entáo sobre a linguagem: al2..esarde nao saber-
tida ao crivo de urna teoria nao se pode negar. A nossa sentenca mons- mos muito sobre a relacáo entre o funcionamento físico do cérebro e
truosa certamente é gramatical, pois é formada de acordo com os as sentenc;as que produzimos, é plausível supor que algo tem realida-
princípios que regem a coordenacáo. O falante sabe disso irnplicita- de ali de tal modo que a mente humana é capaz de processar um
mente por causa do conhecimento que tem da sua língua. Que ele nao sistema complexo e sofisticado como urna língua natural.
produza urna sentenca como essa é questáo de performance. Para a Essa nossa hipótese inicial pode ir mais longe: sabemos que o
nossa teoria nao resta outra saída a nao ser explicar o que acontece. corpo humano é composto por órgáos diferentes que desempenham
No nível da competencia a nossa sentenca monstruosa é possível. No diferentes funcóes, cada um deles com funcionamento específico
nível da performance a chance de ela ocorrer é mínima, pois neste _ ou seja, o coracáo bate para fazer circular o sangue, mas os rins
momento interferem questñes como limitacáo de memória, atencáo e nao batem para executar sua funcáo de filtro; adicionalmente, o tipo
outros fatores de ordem nao lingüística. A competencia lingüística é de tecido que compóe o fígado é muito diferente do tipo de tecido
a capacidade humana que torna fundamentalmente possível que todo que compñe o estómago, por exemplo. Baseando-nos nesta conheci-
ser humano seja capaz de interiorizar um ou vários sistemas lin- da estrutura do corpo humano, podemos postular que a mente/o cére-
güísticos, isto é, urna ou várias gramáticas. bro também é modular, isto é, é composta por "módulos" ou "ór-
gáos" responsáveis por diferentes atividades, o que equivale a dizer
que a parte do cérebro/da mente que lida com a língua tem especi-
3. O programa gerativista ficidades frente áquela que lida, digamos, com a música. Estamos
afirmando assim que a faculdade da linguagem nao é parte da inteli-
Acabamos de notar que as línguas naturais sáo um dote do ser gencia como um todo, mas é específica, com urna arquitetura espe-
humano, e apenas dele. Nenhum animal fala como nós falamos. Pare- cial para lidar com os elementos presentes nas línguas naturais e nao
ce bastante plausível supor que a capacidade de falar urna língua te- ern outros sistemas quaisquer.
nha conexáo di reta com o aparato genético da espécie humana e que Ir mais longe ainda nesta hipótese inicial será postular que,
é isso que a distingue de todas as outras espécies. mesmo dentro da faculdade da linguagem, ternos módulos diferencia-
Vamos supor que isso é verdade, isto é, vamos postular que o dos para lidar com diferentes tipos de inforrnacáo lingüística: da mes-
ser humano possui em seu aparato genético alguma coisa como urna ma maneira que o ventrículo direito e a aurícula do coracáo realizam
faculdade da linguagem, alocada no cérebro humano, urna hipótese diferentes tarefas no fenómeno geral do batimento cardíaco, o módulo
plausível que se presta a marcar a diferenca fundamental entre a espé- que lida, por exemplo, com a determinacáo da referencia para os pro-
cie humana e todos os outros seres do planeta. nomes (ternos um exemplo de como um pronome pode ter o mesmo
Observe que nao é possível verificar diretamente essa hipóte- referente do nome em (6a) logo abaixo) é diferente do módulo que
se inicial, visto que nao se pode abrir a cabeca de alguém e ver o que lida corn a estruturacáo das sentencas das línguas. Alguns módulos
acontece ali quando esse alguém fala. Também nao é muito claro que serao desenvolvidos em forma de subteorias em cada um dos próxi-
de fato poderíamos ver alguma coisa, porque as neurociéncias ainda mos capítulos.
nao sabem muito sobre a relacáo entre o funcionamento neurológico Até aqui, tudo o que afirmamos nos levaria a crer que as lín-
e as habilidades cognitivas humanas. Mas mesmo nao sabendo ex ata- guas do mundo sáo todas idénticas: todas sáo fruto do código gené-
tico humano que é basicamente o mesmo para toda a espécie. No que nao pronunciemos nada, supomos a realizacáo de um elemento
entanto, sabemos que as línguas apresentam diferencas. E nao é só a pronominal.
respeito de diferencas do léxico que estamos falando, isto é, o pro- Se traduzirmos (6a) e (7) para o italiano ternos (6'a) e (7'):
blema nao será só de saber ou nao o que significam as palavras em
diferentes línguas, mas de saber também como as palavras se organi- (6') a. *Paolo. , ha detto che lui., viaggerá.
zam na sentenca, que é a verdadeira questáo da sintaxe. A pergunta (7') Paolo, ha detto che - ¡viaggerá.
em todo o caso é esta: como explicar entáo a diversidade das línguas
Com entonacáo contínua, isto é, se nao estamos colocando
se estamos calcando o nosso modelo no aparato genético humano?
nenhum tipo de énfase ou foco sobre o sujeito da oracáo subordina-
Nosso modelo tem urna solucáo para este aparente paradoxo,
articulada a partir de duas nocóes: Princípios e Parámetros. A fa- da, apenas a segunda scntenca se presta a expressar a co-referéncia
culdade da linguagem é composta por princípios que sáo leis gerais pretendida. A presenca do pronome em (6'a) implica referencia
válidas para todas as línguas naturais; e por parámetros que sáo pro- disjunta, isto é, que Paolo e lui térn pessoas diferentes como referen-
priedades que urna língua pode ou nao exibir e que sáo responsáveis tes. Se traduzirmos ainda (6a) e (7) para o ingles, ternos (6"a) e (7"):
pela diferenca entre as línguas. Urna sentenca que viola um princípio
nao é tolerada em nenhuma língua natural provavelmente porque tem (6") a. Paul. , has said that he., will travel.
a ver com a forma como o cérebro/a mente da espécie funciona; urna (7") * Paul. , has said that -. , will travel.
sentenca que nao atende a urna propriedade paramétrica pode ser gra-
matical em urna língua e agramatical em outra. Agora, só (6"a) é admitida para expressar a co-referéncia entre os
Observemos (6), onde interessa considerar so mente a possibi- dois sujeitos, já que (7") resultaria em urna seqüéncia de palavras
lidade de ele e o Paulo serem co-referenciais (o índice i subscrito que nao constitui urna sentenca do ingles.
representa que o referente das duas expressñes é o mesmo): Para as línguas que serviram de exemplo, está em jogo um
(6) a. O Paulo disse que ele¡ vai viajar. parámetro que diz respeito ao fato de o sujeito poder ou nao ser nulo
nas sentencas finitas, isto é, estar sintaticamente presente, ainda que
b. "Ele, disse que o Paulo vai viajar.
foneticamente vazio - nao-pronunciado. Para o parámetro sáo consi-
A sentenca (6b) é impossível no portugués; e também continuará im- derados dois valores: o ingles apresenta o valor negativo do parámetro
possível se traduzida em qualquer língua natural. Isto nos leva a crer (nao apresenta sujeito nulo) e as outras línguas o valor positivo (apre-
que esta é a situacáo porque está sendo violado um princípio, a ser sentam sujeito nulo). A sentenca em (7") é agramatical porque os-
enunciado, que estabelece as condicóes em que um nome pode ou tenta o valor positivo do parámetro do sujeito nulo em desacordo
nao ser co-referencial com um pronome. com o valor do parámetro escolhido pelo ingles.
Por outro lado, a sentenca em (6a) é possível no portugués Veremos no decorrer dos capítulos como o modelo, cujos pres-
brasileiro. Também é possível (7), onde ternos um vazio no lugar do supostos estamos cornecando a esbocar, explica estes fatos. Por ora
pronome ele: basta frisar que urna língua é regulada por condicñes de duas nature-
zas: (6b) exemplifica urna situacáo em que um princípio é violado, o
(7) O Paulo disse que - ¡ vai viajar. que torna a sentenca impossível para qualquer língua natural; (6a) e
(7) exemplificam urna situacáo em que está em jogo um parámetro e
Por enquanto, marcaremos o tal "vazio do sujeito" por meio a gramaticalidade dessas sentencas dependerá das propriedades que
de um travessáo, querendo dizer com isso que, neste espaco, ainda sao constitutivas das línguas particulares.
Introduzimos aqui o conceito de gramática universal (DO, O que SS? SS urna representacáo sintática da sentenca que
é é

do ingles Universal Grammar) que o estágio inicial de um falante


é vai ser interpretada fonologicamente por PF, isto é, PF vai dizer como
que está adquirindo urna língua. A DO se constitui dos princípios e aquela estrutura pronunciada; e vai ser interpretada semanticamen-
é

dos parámetros, estes sem valores fixados. A medida que os parámetros te por LF, isto é, LF vai dizer qual o sentido da estrutura.
é

váo sendo fixados, váo se constituindo as gramáticas das Iínguas, Para entender que a relacáo entre PF e LF nao direta, vamos
é

como veremos com mais vagar na secáo sobre aquisicáo da lingua- considerar urna sentenca ambígua como a em (9):
gem. Exemplificando: existe um princípio que enuncia que todas as
sentenyas finitas térn sujeito (o Princípio da Projecáo Estendida, abre- (9) Eu comprei este carro novo.
viado como EPP). Associado ao EPP existe o Parámetro do Sujeito
Nulo exemplificado com as sentencas de (6) a (7). Para certas línguas A sentenca é ambígua porque engloba duas estruturas sintáticas dis-
como o ingles, este sujeito tem que ser pronunciado sempre; para ou- tintas: urna em que novo tem a ver com este carro, para a qual o
tras como o portugués nem sempre o sujeito pronunciado. O ingles
é sentido grosso modo pode ser parafraseado por [Este carro novo foi
apresenta o valor negativo; o portugués o valor positivo. No estágio comprado por mim]; a outra em que este carro novo nao constitui um
inicial da DO, porém, nenhum dos dois valores do Parámetro do Su- elemento indivisível de modo que novo e um carro sáo elementos
jeito Nulo estava fixado. Voltaremos a este assunto na secáo 5 deixan- distintos, caso em que a paráfrase grosseira seria [Quando eu com-
do claro que a intencáo aqui apenas a de introduzir alguns conceitos.
é prei este carro, ele era novo]. A ambigüidade se forma porque PF
interpreta duas estruturas da mesma maneira. Mas os dois sentidos se
mantém porque LF interpreta duas SSs distintas. Seria no mínimo
4. O formato do modelo
complicado sustentar que LF interpreta urna única PF de duas ma-
A esta altura devemos pensar no formato que toma a teoria neiras diferentes.
para analisar as sentencas das línguas naturais. Para tanto, vamos O outro nível nao discutido ainda DS (Estrutura Profunda,
é

considerar, bastante ingenuamente, que urna sentenca urna seqüén-


é do ingles Deep-structure). Este um nível de representacáo postula-
é

cia de sons - cuja representacáo abstrata PF (Forma Fonética, do


é do para dar conta de fenómenos como o que observamos em (10):
ingles Phonetic Form) - e que, além da representacáo fonética, ela
tem um determinado sentido estrutural- cuja representacáo abstrata (lO) a. O Joáo comprou o que?
é LF (Forma Lógica, do ingles Logical Form). Entáo, a tarefa míni- b. O que o Joáo comprou?
ma do nosso modelo (como de qualquer modelo lingüístico) mos-
é

trar a relacáo existente entre o som de urna sentenca, PF, e o seu Nas duas sentencas, o que interrogado
é o objeto do verbo
é

sentido, LF. Nosso modelo defende que a relacáo entre PF e LF nao comprar. Entretanto, a expressáo interrogativa aparece a direita do
é direta, mas mediada pela estrutura sintática SS (Estrutura Superfi- verbo em (10a) e no início da sentenca em (1 Ob). Como dar conta do
cial, do ingles Surface-structurey, como representado em (8): fato de que o que sempre o objeto do verbo? Postulando que o que
é

no nível de representacáo DS está a direita do verbo para as duas


(8) DS senten9as. Mas no nível SS ele pode permanecer in situ (isto é, no
I seu lugar de objeto de verbo) e, neste caso, PF vai pronunciar a SS
SS como (lOa); ou pode ser movido para o início da sentenca e, neste
/ \ caso, PF vai pronunciar a SS como (lOb). Esta é urna característica
PF LF de todas as línguas naturais, como veremos ao longo do Manual:
pronunciamos determinados elementos em um lugar da sentenca e os nao só para a ciencia da linguagem corno um todo, mas pode nos
interpretamos em outro, corno em (1 Ob). O objeto direto do verbo ajudar a compreender melhor a própria organizacao das diferentes
está na posicáo inicial da sentenca, mas todos sabemos que se trata línguas.
do objeto de comprar. A forma corno o modelo implementa a repre-
sentacáo de um tal fenómeno nas línguas naturais ficará mais clara 5. Aquisic;ao da linguagem
no decorrer dos próximos capítulos.
O importante agora é perceber que há níveis distintos de re- Raras vezes nos perguntamos corno urna crianca pequena ad-
presentacáo de urna sentenca e que, corno veremos, eles estáo sujei- quire sua língua materna, corno ela "aprende a falar". Trata-se de um
tos a determinados princípios que neles atuaráo. É importante tam- daqueles processos táo naturais que merecem do leigo pouca aten-
bém lembrar que determinados elementos podem se mover de sua cáo: urna crianca normal andará pouco antes de um ano de vida, em
posicáo original para urna outra posicáo onde seráo pronunciados média, e cornecará a falar um pouco mais tarde. O mais fantástico
por PF e, ainda, que nenhuma informacáo de natureza sintática ou sobre esse processo é que, salvo seríssimos problemas patológicos,
semántica se perde nesse processo. ele é universal.
O que queremos do nosso modelo sintático organizado desta Há alguns fato s irrefutáveis sobre a aquisicáo da linguagem:
maneira é que ele de conta do fato de que, para construirmos urna toda crianca adquire (ao menos) urna língua quando pequena e qual-
sentenca, devemos recorrer ao léxico da língua (isto é, ao nosso "di- quer crianca pode adquirir qualquer língua - nao há línguas mais fá-
cionário mental", o conjunto de palavras pertencentes él nossa língua) ceis ou difíceis da perspectiva da aquisicáo - bastando para tanto que
e, fazendo uso das informacñes aí presentes, construir urna primeira esteja exposta a urna dada língua. Sem que passem por qualquer tipo
estrutura, DS. Na passagem de DS para SS, podemos movimentar de treinamento especial ou sem que sejam expostas a urna seqüéncia
constituintes, de tal modo que entáo poderemos ter o objeto direto cuidadosa de dados lingüísticos, as criancas desenvolveráo sistemas
do verbo na posicáo inicial da sentenca, corno em (1 Ob). É a repre- gramaticais equivalentes aos dos demais membros de sua comunida-
sentacáo da sentenca em SS que será enviada para PF para ser pro- de lingüística, a despeito das consideráveis diferencas de sua experien-
nunciada; é também essa representacáo que será enviada para LF para cia no mundo, quer de ordem intelectual, quer afetiva etc. O mais
ser interpretada semanticamente. espantoso é que es se processo se dá de forma muito rápida e, univer-
Corno vimos discutindo ao longo deste capítulo, nosso mode- salmente, na mesma fase de desenvolvimento da crianca.
lo teórico postula que o ser humano possua urna Faculdade da Quando se pensa em aquisicáo da linguagem, devem ser con-
Linguagem, inata, isto é, codificada geneticamente e estruturada de sideradas as capacidades envolvidas no processo, bem corno a natu-
forma modular, que independe de mecanismos gerais de inteligencia e reza de um tal conhecimento. Em outras palavras, o problema é pre-
aprendizagem, sendo, portanto, específica él linguagem. Vimos ainda cisar exatamente o que se vem a saber quando se adquire urna dada
que o funcionamento sintático das línguas naturais pode ser reduzido língua, ou mais do que urna, no caso de criancas bilíngües. É este tipo
a Princípios gerais e abstratos que se aplicam a toda e qualquer língua de questáo que o lingüista tem que abordar se quiser entender melhor
e a Parámetros que, ainda que restritos, dáo conta da diversidade a Faculdade da Linguagem, que mencionamos anteriormente.
entre as línguas. De posse de tal arsenal, nosso modelo descreve as Mas corno um bebe, acabado de nascer - ou mesmo antes do
línguas, mas também pretende explicar seu funcionamento. E nascimento, tal vez -, consegue, em meio a tamanho caos, "saber" o
exatamente porque se dispñe a ser explicativo, deve ter algo de rele- que linguagem? Corno o bebe consegue extrair inforrnacáo lingüís-
é

vante a dizer sobre o processo de aquisicáo da linguagem, porque tica do mundo de tantos outros sons que o rodeia, a fim de adquirir
entender corno as criancas adquirem su as línguas maternas essencial
é
urna língua?
Imagine que seja por observacáo. Pobre crianca! A crianca é (11) Crianca: carro meu. (H., 2 anos e 4 meses)
exposta a dados da língua como qualquer outro interlocutor. Sáo es- Adulto: SEU carro?
truturas de toda natureza, truncadas, entremeadas e que nao necessa- Crianca: carro seu.
riamente incluem todos os tipos de dados disponíveis na Iíngua. Se
fosse por observacáo, entáo o processo nao poderia ser universal, já Bm (11), H., urna crianca entáo com dois anos e quatro meses, usa o
que necessariamente haveria criancas mais ou menos expostas a da- pronome possessivo (meu) depois do substantivo .(c~rro), urna forma
dos lingüísticos; sobretudo, nunca poderíamos garantir que as crian- pouco natural em nossa língua. A máe tenta corrigi-lo e em sua fala
cas fossem expostas aos dados necessários para a aquisicáo de sua enfatiza o pronome na posicáo esperada na gramática adulta - antes
Iíngua. Lembre-se de que os adultos ao redor de um bebe nao se do substantivo. A crianca, entretanto, agarrada a seu carrinho como
preocupam em ensinar-lhe a língua ou em graduar a dificuldade estru- que para garantir a posse, repete o pronome utilizado pela máe, mas
tural daquilo que falam com o bebe ou ao seu redor. Nao há tal preo- nao o tira da posicáo em que estava originalmente. Para além da ques-
cupacáo por parte do adulto porque sabemos que a crianca vai natu- táo que estamos discutindo - criancas nao reagem a correcñes -, há
ralmente adquirir urna língua. outro ponto muito interessante aqui: a crianca está produzindo urna
Urna das cornparacñes mais interessantes é que as criancas forma que pouco ou nunca ouve na língua.
sáo capazes de compreender e produzir a quase totalidad e do siste- De qualquer modo, casos como (11) sáo raros; normalmente
ma gramatical de sua língua muito antes de serem capazes de dar um os pais se preocupam com o conteúdo daquilo que a crianca fala e
simples laco no sapato. Seria de imaginar que aprender a dar um laco ignoram a forma:
envolva urna capacidade cognitiva menos refinada do que aquela en-
volvida no conhecimento do sistema gramatical de urna Iíngua; contu- (12) Adulto: Cadé aquele pedacáo de papel que eu te dei ontern?'
do, ainda assim, tal conhecimento se desenvolve mais rapidamente Crianca: Ah, eu tinha escrivido nele ...
do que a habilidade de amarrar o tenis sozinha ou fechar o zíper do Adulto: Assim nao dá, nao há papel que chegue!
casaco.
Ora, se o processo é universal no que tange ao desenvolvi- Em (12) o adulto absolutamente ignora a forma agramatical que a
mento infantil, se as criancas nunca fracassam nessa tarefa - como crianca utilizou no verbo, pois está preocupado com o fato de a crianca
podem fracassar na de aprender a dar lacos - e se os dados língüísticos gastar papel demais.
a que estáo expostas sáo caóticos, irregulares, truncados etc, há que Resumindo, pois, a nossa discussáo até aqui, vimos que os
se imaginar que exista alguma coisa que guia a crianca nesse proces- dados lingüísticos que a crianca en contra ao seu redor sáo truncados,
so, urna vez que sem esforco algum as criancas conseguem dominar desordenados, desorganizados, e que nao há correcáo efetiva e siste-
um sistema rico e complexo que as capacita a compreender e produ- mática dos desvios cometidos pela crianca em relacáo a gramática
zir urna Iíngua antes mesmo de chegarem a escola. adulta. Porém, apesar de tudo isso e, sobretudo, apesar da diversida-
Além de os dados lingüísticos a que a crianca tem acesso co- de das experiencias que as criancas tém com a língua e com os adul-
locarem um suposto problema para a aquisicáo, ao menos um proble- tos que as cercam, todas adquirem a língua a que estáo expostas, sem
ma lógico, as criancas pequenas raramente sáo corrigidas quanto a nenhum esforco aparente.
forma do que falam. Os adultos tendem a corrigir o conteúdo daquilo Esse fenómeno é conhecido como pobreza de estímulo - ou
que a crianca fala, mas normalmente ignoram a estrutura. E quando Problema de Platáo -, mas ternos que ser cuidadosos com o termo
corrigem a estrutura, a crianca se mostra "surda" a tal correcáo. Ve-
jamos um exemplo: I Adaptado de Uriagereka (2000).
"pobreza" aqui. Isso nada tem a ver com a variedade usada por aqueles ser adquiridos, poi s j estáo, de alguma forma que a ciencia ainda nao
á

que cercam a crianca - se norma culta ou nao - ou com a "qualidade" da sabe explicar, geneticamente codificados.
interacáo em urna perspectiva afetiva e/ou cognitiva. A grande pergunta O processo de aquisicáo de linguagem, entáo, é tido como a
é: como, em contato com um mundo táo fragmentado e de forma táo "formata9ao" da Faculdade da Linguagem através da fixacáo dos va-
rápida, adquirimos conhecimento lingüístico? lores dos parámetros previstos na UG. Como dissemos acima, a UG
Nosso modelo postulará (e há amplas evidencias que susten- é, nesse sentido, um quadro do estágio inicial da aquisicáo (conheci-
tam tal hipótese) que parte do processo seja inato - dá-se através da do como So) e o seu produto seria o estágio final da aquisicáo, isto é,
dotacáo genética que nos capacita a adquirir urna língua e usá-la, o estágio em que a crianca atinge a gramática adulta de sua língua
salvo sérias cornplicacóes patológicas. A nao ser que seja delibera- (S) (do ingles stable stage). Em termos lingüísticos é bastante com-
damente negado acesso da crianca ao input (isto é, os dados lin- plicado falar em produto ou estágio final do conhecimento. Assim, é
güísticos de urna dada língua particular) no período da infancia, ela mais plausível admitir-se que a gramática atinja um estágio de estabi-
vai adquirir urna língua, in dependen temen te de sua condicáo social lizacáo que seria considerado, entáo, como o estágio em que a crian-
ou da qualidade afetiva e intelectual da interacáo com o adulto, e, ea apresenta urna gramática próxima a dos adultos ao seu redor.
para além disso, esse processo vai se dar aproximadamente no mes- Teríamos, entáo:
mo período de tempo para todas as criancas, um fato que já ressalta-
mos. (13) input ~ UG ~ urna língua
Esse é um dos nortes do modelo: como podem as criancas
J, J,
adquirir urna língua de forma táo rápida e homogénea mesmo que
expostas a um input táo imperfeito? O argumento da "pobreza de
estímulo" é entáo o ponto de partida para se estabelecer urna funcáo O que ocorre, entáo , no processo de aquisicao é urna
direta (mas contrária a visáo do senso comum) entre a experiencia "filtragem" do input através da UG. Essa "filtragem" serve para
lingüística que a crianca recebe e sua capacidade de adquirir a gramá- "formatá-la" através da marcacáo de um determinado valor para cada
tica de um falante adulto: quanto mais pobre e degenerada a experien- parámetro previsto em UG. Estando todos os valores paramétricos
cia, maior a capacidade inata a se prever. Dito de outro modo, é ex a- marcados, tem-se urna determinada gramática. Certamente essa mar-
tamente porque a experiencia lingüística da crianca no mundo é cacao nao é aleatória, mas determinada pelas evidencias - bastante
desordenada e incompleta que se deve pensar que o ser humano pos- indiretas - do input e, obviamente, dependente da própria estrutura
sui urna capacidade genética que lhe permite de algum modo 'organi- interna da UG.
zar' e 'completar' as informacóes necessárias para aprender a falar Os parámetros sáo tidos como binários, possuindo os valores
urna língua natural. positivo ou negativo; assim, ao acionar um determinado parámetro, a
A teoria desse estágio inicial da crianca é a UG - urna previ- crianca estará imprimindo a ele um dos dois valores, através das evi-
sáo daquilo que é comum a todas as possíveis línguas naturais (pro- dencias positivas que receba no input. Como vimos na secño 2, há
priedades descritas no modelo através dos princípios), além da varia- línguas que permitem que a posícáo de sujeito fique vazia (como o
cáo que pode ser encontrada entre elas (os parámetros). A associa- italiano, o portugués) e línguas que nao permitem isso, ou seja, lín-
cáo dos princípios da UG com certos valores paramétricos gera um guas de sujeito obrigatório (como o ingles). No caso das últimas,
sistema gramatical particular, ou seja, urna dada língua. Tem-se que a todas as sentencas teráo um sujeito realizado foneticamente, ou seja,
UG deve refletir de maneira universal a estrutura ou organiza9ao da mesmo em sentencas que nao térn sujeito com valor sernántico, have-
mente humana. Se os princípios sáo universais, entáo nao precisam rá um elemento expletivo (um "sujeito sintático"). Por exemplo, ver-
bos metereológicos nessas línguas viráo precedidos de um pronome Nao existe urna terceira alternativa. Tomemos outro exemplo: a ordem
expletivo: de palavras em urna sentenca. Ela nunca é aleatória, em nenhuma língua
natural. Alguns elementos nucleares na sentenca seráo precedidos ou se-
(14) a. It rains guidos por outros elementos. Senáo vejamos:
Chove
b. * rains (16) a. Kato compra doce. (Portugués)
b. Kato okashi kau. (lapones)
Ternos, entáo, variacáo entre línguas; portanto, algo da ordem dos 'Kato doce comprar'
parámetros. Como já vimos, este é o Parámetro do Sujeito Nulo.
Caberia a crianca decidir qual dos dois valores se aplica a sua Vemos em (16) que em portugués o objeto segue o verbo, enquanto
língua. Podemos esquematizar esse parámetro como (15): que, ern japonés, ele o precede. Podemos esquematizar esse parámetro
como o Parámetro da Ordem, tomando o verbo como núcleo. Em
(15) a. sujeito nulo -7 valor [+] para o parámetro (16a) o núcleo é inicial, ou seja, o verbo será seguido de seu comple-
b. sujeito obrigatório -7 valor [- ] para o parámetro mento; em (16b), o núcleo é final, isto é, o verbo será precedido de
seu complemento. Isso ficará mais claro no próximo capítulo, mas
Se a crianca estiver exposta ao ingles, vai ter várias evidencias no por enquanto vejamos como seria a marcacáo de um tal parámetro:
input de que sua língua se encaixa em (15b), dado que vai estar ex-
posta a estruturas com elementos expletivos como a exemplificada (17) a. núcleo inicial -7 valor [+] para o parámetro
em (14a). Se a crianca estiver exposta ao portugués, por outro lado b. núcleo final -7 valor [- ] para o parámetro
terá evidencias na direcáo oposta e marcará o valor do parámetro
como em (15a) acima.? Urna crianca adquirindo japonés acionaria o valor do Parámetro de
. 9bviamente, a ~rian<;a nao é vista como um "lingüista em mi- Ordem como negativo; por outro lado, urna adquirindo portugués o
niatura , que fica anahsando os dados de sua língua antes de tomar acionaria com o valor positivo, através das evidencias do input, que,
urna decisáo. Esse processo é natural e inconsciente. Seria mais urna neste caso, sáo bastante robustas, ainda que jamais conclusivas.
ecomodacao ~o .si.stema aos dados do que qualquer outra coisa, já Tomando esses dois parámetros (15) e (17), como seria a re-
que o sistema InICIal (a UG) é capaz de dar conta de todo e qualquer presentacáo dos valores marcados pela gramática do ingles e do por-
dado pertencente as línguas naturais. tugués? Vamos esquematizá-la em (18):
, . Vamos explorar um pouco mais a questáo da marcacáo para-
m~t:Ica. O número de parámetros possíveis é restrito, pois, ao con- (18) Portugués Ingles
trano do ,que as aparéncias poderiam sugerir, a distincáo sintática Sujeito I Ordem Sujeito I Ordem
entre as hnguas naturais é restrita, é superficial. Voltemos ao exem- + I + - I +

~lo do Parárnetro do Sujeito Nulo. Há duas possibilidades para as


lInguas.naturais: por exemplo, no contexto de verbos metereológicos, Há inúmeros outros exemplos, mas nao infinitos exemplos,
ou reahzam sempre o sujeito foneticamente, ou ele pode ser vazio. porque os parárnetros sáo em número reduzido, já que a diversidade
sintática entre as línguas é, igualmente, restrita, conforme apontamos
2 A discu~sa? sobre os parámetros é bastante mais complexa, mas foge completamen- acima. Os parámetros estáo previstos na Faculdade da Linguagem,
te aos objetivos deste Manual. O leitor deve se remeter as leituras indicadas para mas, diferentemente dos Princípios, que sáo universais, carecem de
aprofundamento na questáo.
um valor que depende do input que a crianca recebe.
Urna metáfora bastante usada para explicar o processo é a de 6. Bibliografia adicional
um quadro de forca, ou seja, de urna seqüéncia de chavetas a serem
ligadas ou desligadas conforme os dados exteriores. A cada chave a Este capítulo foi escrito com base em alguns livros que vale a
crianca atribuirá um valor, positivo ou negativo, a depender da língua ena o leitor conhecer: se ler em ingles é urna opcáo, o manual de
a que está exposta. Quando o valor para cada urna delas tiver sido fntroduc;:ao de Liliane Haegeman, intitulado Introduction to
escolhido, entáo a crianca terá convergido para urna gramática próxi- Go vernment & Binding Theory pode ser urna excelente escolha. Ian
C .
ma áquela dos adultos ao seu redor. Roberts também tém um manual introdutório, chamad~ ompa:atl~e
Retornando o que discutimos até aqui, podemos assumir, en- Syntax, que é também muito bom. Se a leitura de um livro em inglés
táo, que o processo de aquisicáo da linguagem seja inato, guiado pela nao é urna opcáo, o leitor pode consultar o manual de Eduardo Rapo-
Faculdade da Linguagem que possui urna UO - urna gramática uni- so chamado Teoria da Gramática: a faculdade da linguagem, no-
versal-, composta de Princípios e Parámetros. Como os princípios se tando que a exernplificacáo se aplica ao portugués europeu. Por en-
aplicam a todas as línguas naturais, nao teriam que ser adquiridos. Os quanto, o mais interessante seria o primeiro capítulo do l!v~o de Ra-
parámetros, ainda que em número reduzido, estáo igualmente previs- poso, que é muito elucidativo. Há também ?~ livros de LUCl~~ob~to
tos pela un, porém térn seus valores abertos a serem marcados de (Sintaxe Gerativa do Portugués) ou o de Mma~ Lemle ~A~alzse Sin-
acordo com a língua (ou as línguas) que a crianca ouve ao seu redor. tática: teoria sintática e descriciio do Portugues). Estes últimos abor-
Urna vez filtrados os dados do input e marcados os valores adequa- dam também a passagem de um modelo anterior ao de Regencia .e
dos dos parámetros, supñe-se que a crianca tenha adquirido o siste- Vinculacáo. Seria interessante que o leitor consultasse esses manuais
ma gramatical (estável) de sua língua. concomitantemente ao estudo deste livro, para complementar seu
Voltamos ao laco do sapato. Um bebe é capaz de extrair in- conhecimento e ver problemas discutidos em outras línguas.
formacáo abstrata acerca do sistema lingüístico a que está exposto, Se quiser obter mais informacao sobre alguns pontos especí~-
conquanto nao saiba fazer um laco. Por forca deve entáo haver algo cos discutidos, o leitor pode consultar as seguintes obras mais
além do simples tratamento dos dados e, como vimos, o que o mode- especializadas:
lo apresentado aqui preve é que grande parte da tarefajá esteja previa-
1) sobre o "fazer ciencia" e como se estruturam modelos científicos,
mente codificada na espécie.
Introduciio a Teoria da Ciencia, de Luiz Henrique Dutra, é urna
O processo de aquisicáo é também tido como o lugar da mu-
excelente opcáo;
danca lingüística nas diversas línguas naturais. As línguas mudam e
isso nao é sinal, como profetizam os paladinos da OT, de pauperacáo 2) sobre o embate OT/Lingüística, o leitor encontrará farto material
lingüística. Ao contrário, as línguas, naturalmente, evoluem. As ex- em Lyons, tanto em Introduciio a Teoria Lingüística, quanto em
plicacñes sobre os processos de mudanca sáo vários, mas, em nosso Língua(gem) e Lingüística. Aliás, ainda sobre problemas com a
caso, dizem respeito ao acionamento paramétrico, ou seja, ao valor OT, há um excelente livro de Rosa Virgínia Mattos e Silva, intitulado
que as criancas atribuem a um determinado parámetro. Se os dados Tradiciio gramatical e Gramática Tradicional;
do input por algum motivo se tornam ambíguos, a crianca poderá
3) sobre inatismo, há um livro para leigos (portanto, de fácilleitura)
atribuir ao parámetro relevante um valor distinto daquele da gramáti-
de Pinker, chamado Language Instinct, já traduzido para o portu-
ca adulta, provocando urna mudanca na língua. Discutir essa questáo
gués; em portugués, ternos um livro de Chomsky intitulado Lin-
está além dos obj~tivos deste Manual e, portanto, nao vamos nos es-
güística Cartesiana, de leitura mais dificil e só aconselhado a quem
tender no assunto, mas convidamos o leitor a consultar a bibliografia
já tem alguma formacáo em filosofía;
indicada abaixo.
4) sobre o argumento da Pobreza de Estímulo, os capítulos iniciais rianópolis. Leia-o com atencáo e depois responda as questñes pro-
em Uriagereka (2000) sáo urna excelente opcáo. O livro é estrutu- postas. Os grifos sáo nossos:
rado na forma de diálogo e há fartos exemplos, porém está em
ingles; "A Gramática é a disciplina que orienta e regula o uso da lín-
5) sobre Faculdade da Linguagem e recursividade, há um excelente gua, estabelecendo um padráo de escrita e de fala baseado em diver-
artigo de Hauser, Chomsky & Fitch (2003), publicado na Science sos critérios: o exemplo de bons escritores, a lógica, a tradicáo ou o
bom senso. A matéria-prima dessa disciplina é o sistema de normas
~ue ~is?ute ~ t?pic.o da pe~s~ectiva evolutiva. Embora esteja e~
inglés, e de fácil leitura pOISe um artigo de divulgacño; 9..ue dá estrutura a urna língua. Sáo essas normas que definem a língua
padrao, também chamada Iíngua culta ou norma culta. Assim, para
6) sobre aquisicáo de linguagem no quadro de Princípios & Parámetros falar e escrever corretamente é preciso estudar a Gramática. A tarefa
há ~timas introduc;?es em artigos de Galves (1995), Kato (1995): nao é das mais simples: as regras sáo muitas e nem sempre precisas.
Meisel (1997) e MIOtO (1995), todos em portugués. Desses o de Sendo um organismo vivo, a língua está sempre evoluindo, o que
~ei~el traz,~ma discussáo bastante aprofundada sobre a no~ao de muitas vezes resulta num distanciamento entre o que se usa efetiva-
para~etr_o. Os seg_undo e terceiro capítulos de Lopes (1999) mente e o que fixam as normas. Isso nao justifica, porém, o descaso
tambem sao urna opcao em portugués, mas demandam maior co- com a Gramática. Imprecisa ou nao, existe uma norma culta e toda
nhecimento teórico; pessoa deve conhecé-Ia e dorniná-Ia, mesmo que seja para propor
7) sobre o processo de aquisicáo como o lugar da mudanca lingüísti- modificacóes, Quem desconhece a norma culta tem um acesso limita-
ca, o leitor deve consultar Lightfoot (1991), (1994) e (no prelo); do as obras literárias, artigos de jornal, discursos políticos, obras
teóricas e científicas, enfim, a todo um patrimonio cultural acumula-
8) sobre mudanca no Portugués do Brasil, consultar Roberts & Kato do durante séculos pela humanidade." (In: Help! Lingua Portugue-
(1993).
sa, DC, 1999, p. 62)
9) fin~l~ente, para urna visáo geral simplificada do modelo, dada pelo
propno Chomsky, consulte Language and Problems o/ Knowledge. a. De acordo com o que foi discutido neste capítulo, é plausível afir-
The Managua Lectures, mas este está em ingles. mar que é "o sistema de normas que dá estrutura a urna língua"? Jus-
tifique a resposta com os conceitos apresentados.

7. Exercícios b. Há vários trechos no excerto acima em que o autor confunde, equi-


vocadamente, "norma culta" com a metalinguagem utilizada pela GT
l. Na.s primeiras secñes deste capítulo, utilizamos a palavra para descrevé-la. Aponte esses trechos.
m~t~lznguaf5.er:z' De exemplos da metalinguagem utilizada pela Gra-
matIca TradIcIOnal. EIa é adequada? Isto é, ela é inequívoca suficien- c. Qual a concepcáo de linguagem que se depreende do trecho acima?
temente precisa para q ., ' Por que esse tipo de concepcáo pode ser preconceituosa?
ue possamos associá-Ia a um fazer científico
como definido na secao - 1 d este capítulo?
'. AplIque seus exemplos a'
sentenc;as do portugués para fazer a verificacño. 3. Embora este Manual se ocupe exclusivamente de sintaxe, os dados
~ a seguir trazem exemplos de morfologia derivacional, que além de
2. A. se~uir o leitor encontrará um trecho publicado em um encarte fazer interface com a sintaxe também apresenta processos restritos
colecIOnavel sobre Língua Portuguesa, do Diário Catarinense de Flo, por princípios e mecanismos bastante similares aos da sintaxe. Foram
produzidos por urna crianca pequena, adquirindo o portugués, Ob-
serve-os atentamente. Considerando que nao existem no input que a
crianca recebe, como ela os produz? Lembre-se de contrastes como
"apareceu" vs. "desapareceu", por exemplo, e lembre-se ainda de que
tais processos envolvem regras abstratas. Discuta o que está emjogo
nos dados. Como esses dados podem reforcar a hipótese inatista?

C = crianca; A = adulto?

(C vai tomar leite, que está muito quente)


A = Tá quente!
C = Entáo diquenta. (3 anos e 11 meses)

(A máe fecha urna caixa de brinquedos; decepcionada, C diz:)


C = Cé disabriu! (4 anos e 1 mes)

(A máe abaixa o zíper do vestido de C, querendo brincar com ela)


C = Ah! (irritada) Nao! Cé tá dezipando. (4 anos e 1 mes)

4. Definimos recursño neste capítulo. Vários estudos recentes tém


mostrado que o processo de recursáo específico as línguas naturais,
é

nao sendo encontrado em sistemas de comunicacáo animal, por exem-


plo." Busque exemplos de estruturas recursivas. Considere os exem-
plos a seguir, lembrando que criancas muito pequenas (em torno dos
sete meses de vida) já conseguem lidar com tais estruturas abstratas.
Comente esta afirmacáo.

"O cachorro pegou o gato que comeu o rato que comeu o queijo que
(brincadeira infantil)
oo."

"Pedro que amava Lia que amava que nao amava ninguém." (Carlos
oo.

Drummond) .

3Dados de Rosa Attié, Unicamp.


4Cf Artigo publicado na Fa/ha de Sdo Pauta, em 16 dejaneiro de 2004, sob o título:
"Macacos entendem frase simples, mas tropecam em mais complexa".

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