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Ensaio de Psicanálise e ciência: nascimento e desenvolvimentos

Quando nasceu a psicanálise? Essa é uma pergunta que frequentemente divide os


psicanalistas: alguns dizem que com a publicação da Interpretação dos Sonhos, outros, que
ela já estava lá desde o Projeto, e até mesmo que ela já havia nascido desde o uso
intencional e sistemático da Associação Livre na clínica. Talvez haveria menos discordância
se a pergunta fosse colocada assim: "Quando nasceu ~essa parte~ da psicanálise?".
Assim, poderíamos concordar que a prática clínica nasceu com a associação livre, que a
teoria nasceu com a interpretação, etc. Então, vou propor que a CIÊNCIA psicanalítica
nasceu por último, com a publicação dos Três Ensaios. Mais a frente diferenciar o que estou
chamando de nascimento da teoria do nascimento da ciência.

Nosso problema começa então pela tentativa de definir o que seria uma ciência. Faremos
uma primeira aproximação, de caráter mitológico. Para a mitologia grega, havia duas
grandes figuras que governavam o universo de maneira bastante distinta. De um lado, havia
o Caos, a forma original de toda a existência, soberano supremo, representa
fundamentalmente a desordem, ou para colocar em termos melhores, a ~indeterminação~.
Do outro lado há a Necessidade, representante da ordem, da ~determinação~, mãe do
destino. Em sua dança, Caos e Necessidade conduzem a formação daquilo que chamamos
realidade. Se uma folha se desprende da árvore, ela certamente cairá no chão, mas quão
longe irá? Ou ainda, se planto uma semente de laranjeira, necessariamente nascerá um pé
de laranja, mas terá quantos galhos, produzirá laranjas doces ou azedas, será grande ou
pequeno, tantas outras questões ficarão a cargo no aCaoso. Pois bem, podemos dizer
momentaneamente que uma Ciência é o conhecimento que se esforça por fazer a
Necessidade reinar sobre o Caos. Dito de outra forma, é o conhecimento que tenta explicar
os fenômenos a partir de suas determinações. A Física, por exemplo, determina que duas
cargas elétricas opostas se atraem. Isso significa que seu comportamento é determinado,
que diante do encontro de duas cargas elétricas com sinais opostas elas
~necessariamente~ se atraem, não há espaço para acaso.

Bom, munidos dessa primeira perspectiva do que seria uma ciência, voltemos à questão do
nascimento da ciência psicanalítica. Argumentei que essa ciência nasce com os Três
Ensaios, mas por que seria assim? De fato, esse esforço científico de explicar o Caos pela
Necessidade já estava presente desde os primórdios, desde as primeiras obras de Freud.
Acontece que ainda faltava um último passo, que foi dado nos Três Ensaios. Bom, aqui
podemos fazer a diferença entre o nascimento teórico da psicanálise e o nascimento
científico. Digo que antes havia apenas teoria porque ainda não existia nenhuma forma de
~sistema~ que encaixasse os elementos num ~todo~ maior. É claro que já a Interpretação
aponta para (se é que não podemos mesmo dizer que toca) um sistema psíquico, mas
ocorre que Freud ainda está vendo a coisa "já pronta", um aparelho psíquico já formado.
Nos Três Ensaios é dado o passo que faltava, que é a criação desse ~todo~, do sistema; e
isso se associa ao fato que aqui o sistema psíquico não é visto já pronto, mas em processo
de formação. É claro que esse primeiro ~todo~ ainda é cheio de lacunas e obscuridades,
mas aqui as ~partes~ já começam a ocupar o lugar espacial e temporal.

Somos obrigados a fazer outra pequena incursão, saindo do campo da psicanálise para
buscarmos ferramentas que nos ajudarão em nosso retorno. Vamos compreender então o
par de ideias "Abstrato & Concreto". Comecemos por dizer que ambos se tratam de
qualidades de ideias, que representam certos "movimentos" do pensamento. Ou seja, NÃO
significa que "abstrato = ideia/pensamento" e "concreto = realidade". O correto seria dizer
que uma ideia é mais concreta ou mais abstrata. Vamos tomar um exemplo: tanto a palavra
"planta" quanto a palavra "árvore" são ideias, e, portanto, são abstratas. Mas "arvore" é
mais concreto que "planta" (ou, de forma inversa, "planta" é mais abstrato que "árvore");
todas as árvores são plantas, mas nem todas as plantas são árvores; de fato, árvores é um
subconjunto dentro das plantas. Assim, todas as determinações que as plantas têm (por
exemplo, precisam de água e luz para sobreviver) também se aplicam às árvores, mas as
árvores têm características específicas (ex: produzem lenha) que não valem para todas as
plantas (ex: os musgos são plantas e não produzem lenha). Abstrair pode ser entendido
como sendo "extrair algo de", no sentido que diante de um fenômeno, o pensamento
humano é capaz de extrair apenas uma parte da coisa toda. Imaginemos um cachorro. Se
digo que ele é cor de caramelo, é como se diante de um cachorro cheio de características
(filhote, agitado, gordo, alegre, cor de caramelo, cheiroso, etc) meu pensamento ignorasse
quase todas elas e extraísse apenas a cor. Se digo que o cachorro é caramelo, eu (ab)extrai
dele apenas a cor. Podemos notar uma certa relação aqui: quanto mais abstrata uma ideia,
menos determinações (características) ela possui, e consequentemente mais "elementos"
cabem dentro dessa ideia. No outro sentido, podemos ver que quanto mais concreta uma
ideia, mais determinações ela possui, o que faz com que menos elementos caibam dentro
dessa ideia. Uma ideia concreta é como uma sobreposição de várias ideias abstratas, ou,
como gostamos de dizer, o concreto é a síntese de múltiplas determinações. Tomemos um
último exemplo: se pensamos em um Vectra Preto 2 portas com ar condicionado.
Observemos que nosso objeto, bastante concreto, é a síntese de vários elementos. Em
primeiro lugar, é um Vectra, o que o torna igual a todos os outros Vectras, azuis, amarelos,
pretos, cinzas, etc; e diferente de tudo aquilo que não é um Vectra. Ele também é preto, o
que o torna igual a um urubu, carvão ou jabuticabas, e diferente de um morango. Ele
também tem duas portas, o que o torna diferente de um Vectra 4 portas, mas igual a um
ônibus. Quando sobrepomos todos esses pares de oposições (determinações abstratas)
encontramos nosso objeto concreto, o Vectra Preto 2 portas com ar condicionado.

Agora que temos essa compreensão de abstrato e concreto em nossas mentes, podemos
dar um passo a mais em nossa compreensão do que é ciência. A ciência é um
conhecimento que tenta explicar o mundo pela Necessidade, ou seja, a partir da ordem, de
leis, determinações. Como vimos, quanto mais avançamos na compreensão das
determinações dos fenômenos, mais avançamos no terreno do abstrato. E isso não é
nenhum problema, é o próprio movimento do pensamento. Ocorre então que a ciência é um
conhecimento com uma predisposição ao abstrato, justamente porque tenta captar as
determinações dos fenômenos. Se quero compreender como funciona uma bola de
borracha, preciso compreender como funcionam as bolas e como funciona a borracha, para
depois compreender como essas duas determinações se afetam mutuamente. Ora, se sei
que a borracha, ao ser esticada, tende a voltar ao estado original, e que as bolas, enquanto
estruturas esféricas, tendem a distribuir uniformemente uma força sobre elas aplicada,
posso compreender porque a bola de borracha quica quando arremessada sobre uma
superfície, e porque o faz em determinado ângulo, etc.

Esse movimento do concreto ao abstrato (e vice-versa) é algo frequente nos textos de


Freud, mas isso não é explicitado ao leitor, o que causa certo grau de dificuldade na
compreensão de algumas obras. De antemão, podemos dizer o seguinte: por óbvio, os
textos mais concretos da obra são os casos clínicos, e por isso não apresentam tantas
dificuldades (estranheza?) para serem compreendidos. Já os textos mais abstratos
costumam ser alguns daqueles que frequentemente são tidos como difíceis,
nomeadamente: Narcisismo, Pulsões, O Eu e o Isso, É bom relembrar, poucas obras
poderiam ser consideradas "puramente" concretas ou abstratas, se é que poderiam, mas
podemos dizer de uma certa tendência nelas. O Eu e o Isso, por exemplo, é uma obra de
caráter altamente abstrato, e justamente por isso contém a cientificidade da psicanálise.
Voltaremos a essa obra mais a frente.

Vamos agora retomar o nascimento da ciência psicanalítica e compreender o que se deu


nos Três Ensaios que inaugurou essa ciência. Fundamentalmente, o que se deu foi a
inauguração daquilo que poderemos chamar de Economia Pulsional. E isso se dará em dois
movimentos: em primeiro lugar, Freud demonstra que a sexualidade humana não é
determinada pela reprodução, mas pela obtenção de prazer. Isso nos permite perceber qual
a verdadeira natureza do fenômeno. A determinação fundamental (até então) é a questão
do prazer. O passo seguinte é distinguir no prazer as suas determinações próprias, o que se
dá nas chamadas fases de desenvolvimento da libido. Ao traçar esse sistema de prazer até
sua pré-história, Freud descobre um ~desenvolvimento~, ou seja, um sistema que não
nasce pronto, mas que torna-se o que é ao atravessar uma série de transformações. Ou
seja, há um processo dialético em jogo, o próprio desenvolvimento do sistema. Aqui a
diferença que pontuamos anteriormente com a Interpretação: lá, o sistema é visto já pronto,
aqui (nos Três Ensaios) podemos vê-lo surgir, da semente à árvore, da tendência ao ser. O
aparelho psíquico ganha uma dimensão histórica, que será muito cara à psicanálise desde
então. E nessa dimensão histórica Freud depreende que há diferentes lógicas trabalhando
em conjunto no adulto, mas que na criança podem ser [mais facilmente] diferenciadas
(abstraídas). As fases do desenvolvimento da libido correspondem entao a diferentes
logicas ligadas a obtenção de prazer, como a lógica do incorporar própria da pulsão oral, ou
a lógica do expelir, propria da pulsão anal. É claro que não são uma série de rupturas, mas
de transformações qualitativas que se acumulam. Ou seja, a lógica da pulsão anal se
sustenta, se forma, a partir da logica da pulsao oral, mas ela é algo qualitativamente
diferente. Ocorre que no adulto, todas as diferentes organizações lógicas da pulsão podem
estar trabalhando ao mesmo tempo, sintetizadas e organizadas sob a pulsão genital. Ao
encontrar as determinações específicas das diferentes organizações do prazer, Freud nos
oferece as bases abstratas, as determinações, desse sistema que chamaremos de
economia pulsional. Ou seja, partindo dos fenômenos concretos, Freud avança para as
determinações da sexualidade, que é o prazer, e para as determinações do prazer, que são
suas diferentes lógicas que no adulto se apresentam sintetizadas. É por esse movimento
que constitui a base de um sistema abstrato, a economia pulsional, que julgo que a ciência
psicanalítica nasce nos Três Ensaios.

Ora, o sistema de determinações que a psicanálise constitui como um todo pode ser
chamado de Economia Pulsional. Em um outro momento devemos debater a questão da
relação entre a Metapsicologia enquanto tríade e sua relação com a parte chamada
Econômica, mas por um momento vamos dizer apenas o seguinte: a peça fundamental da
Metapsicologia é a economia, a tanto a Dinâmica quanto a Tópica se dão como
desenvolvimentos econômicos. Em suma, os fenômenos metapsicológicos sempre são
reduzidos ao nível econômico. Ou seja, qualquer fenômeno descrito metapsicologicamente
também pode ser descrito economicamente. Essa discussão ficará para outro momento, e
devemos nos ater apenas a essa conclusão por hora. Isso não significa que não há ganhos
teóricos na descrição Metapsicológica nem que se deva sempre buscar a redução
econômica dos fenômenos (sua descrição em termos econômicos), apenas que isso
sempre pode ser feito. Por hora, usaremos Economia e Metapsicologia de maneira
intercambiável. Disso tudo depreendemos a conclusão que a Economia é sempre abstrata,
e justamente por isso constitui o núcleo da cientificidade da psicanálise. Se buscarmos na
realidade a "satisfação a pulsão oral" nunca a encontraremos. Existem, isso sim, bebês
mamando, chupando seus bicos, pessoas fumando, beijos, etc. A "pulsão oral" existe da
mesma forma que a "planta" existe: enquanto uma abstração que engloba vários
fenômenos distintos. "O sintoma" é sempre abstrato, "este sintoma" é concreto. Mas ocorre
que, mesmo diante de toda a variedade que os sintomas psicológicos podem apresentar
(ansiedades, dores, paralisias, surtos, pensamentos, etc), Freud consegue encontrar
determinações que estão presentes em todos eles, a partir do momento em que os remete
ao sistema metapsicológico. Se pensarmos na laranjeira, poderemos descrever uma série
muito grande de características (determinações) que descrevem todas elas: precisam de
água, luz, solo, produzem frutas, produzem madeira, altura determinada etc. No entanto, se
tento pensar em características de plantas, já não posso incluir a necessidade de solo
(existem plantas aquáticas), nem todas elas produzem madeira, nem frutas, as alturas
variam de milímetros a dezenas de metros, etc. Ou seja, para descrever "o sintoma" no
geral, as características comuns serão poucas, talvez até vagas. Se falamos de sintomas
histéricos, aí já conseguimos descrever uma série de outras características, mas o número
de fenômenos cobertos diminui. Eis que a Economia Pulsional se apresenta para nós como
o grau máximo de abstração, fenomenologia irredutível do psíquico, o sistema abstrato
dentro do qual todos os fenômenos psíquicos podem ser descritos. É o todo que dá lugar a
todas as partes (O Eu, a pulsão, o sintoma, a realidade, os princípios do funcionamento
mental, etc).

Aproveito o momento para refutar brevemente uma crítica feita a Freud, porque sua
refutação é exemplar e serve como jurisprudência argumentativa contra críticas similares.
Penso aqui em Byung-Chul Han; cujo cerne da crítica a Freud consiste no argumento que
não mais vivemos em uma sociedade da repressão, e como (segundo ele), a psicanálise
teria como objeto uma psicologia formada nessa atmosfera, seus saberes estariam
ultrapassados. Essa tese, além de aberrante, demonstra a pouca profundidade que esses
supostos críticos têm da teoria. Ainda que pudéssemos conceder que estivesse correto, que
não mais se tratasse de uma sociedade repressiva, em que isso refutaria a Economia
Pulsional? No máximo, seria necessário compreender quais são as novas regras em
funcionamento a nível da Dinâmica, mas em que isso refutaria a economia? O próprio Freud
nos Três Ensaios já anunciava que as regras que a sexualidade segue podem facilmente se
transformar diante de pressões sociais. Mesmo se vivêssemos na sociedade que a
propaganda imperialista nos quer fazer crer que vivemos, como crê o inocente crítico da
psicanálise, mudaria o fato que o aparelho psíquico funciona sobre uma base econômica?
Havia uma economia que dita que não pode, agora há uma economia que dita que pode.
Mudou o fato de haver economia? Não me parece. Ora, o que extraímos desse exemplo é
que as muitas tentativas de refutação da psicanálise naufragam por não conhecerem as
águas em que navegam. Para refutar a Psicanálise seria necessário atacar a economia,
destruí-la em todos os seus aspectos e constituir um novo todo que não seja formado com
seus pedaços. E tal crítica ainda está por ser feita, e acredito que assim continuará ad
eternum.
Podemos fazer uma breve comparação com a física. Newton, ao postular suas 3 leis, cria
um sistema sobre o qual é possível construir o conhecimento para explicar a maior parte
dos fenômenos físicos observados. É claro que o estudo de fenômenos particulares permite
estabelecer leis específicas desses fenômenos, mas as leis gerais continuam sendo
aquelas que Newton postulou. De fato, descobriu-se que o famoso "F = m * a" deve ser
corrigido por um coeficiente, e que há ainda um fator que relaciona essa equação com a
velocidade da luz para determinar as diferenças de seu funcionamento em velocidades
muito altas. Mas que é que tiramos disso? Que o "F = m * a" segue lá no cerne da equação,
ainda que multiplicado por novos coeficientes que o refinam. Ou seja, ainda que Newton
não tenha sido ultra preciso nos detalhes, a equação capta o sentido geral da coisa. Da
mesma forma, podemos dizer sobre a Economia. Ainda que tenhamos que corrigir as regras
sobre as quais as pulsões funcionam, ainda que tenhamos de admitir mais trocentas novas
pulsões, ainda que surja uma nova instância psíquica e desapareça outra, o enquadre geral
sempre será metapsicológico. Ainda que se aprofunde o conhecimento dos campos
metapsicológicos, como fez brilhantemente Lacan, não se supera Freud no sentido geral da
constituição da ciência psicanalítica.

Agora que avançamos sobre esses problemas, podemos debater um pouco a questão das
obras abstratas. Nós podemos ver "a planta" que há em cada planta que olhamos, mas se
formos procurar por "A planta", não a encontraremos, mas sim rosas, musgos, pinheiros,
laranjeiras. Assim ocorre também com "A pulsão". Em cada bebe amamentando, em cada
pessoa comendo uma refeição apetitosa, em cada fumante tragando seu cigarro, em cada
beijo, podemos ver em tudo isso a pulsão. Mas se procurarmos pela "pura pulsão", não a
encontraremos, "A pulsão" é abstrata. Entremos nessa obra. Quando Freud descreve a
pulsão, ele nos dá uma ideia um tanto quanto "vaga", nos oferecendo apenas 4
componentes. Ora, mas é exatamente isso: a pulsão, por ser abstrata, tem poucas
determinações. E de fato, nos desejos particulares que aparecem surgem uma infinidade de
outras características. Ocorre que, mesmo nessa multiplicidade, aquilo que é constante e
invariável são as 4 componentes que Freud descreve; em qualquer manifestação do desejo,
faz se ver sempre as 4 determinantes da pulsão (vamos dar um desconto para a pulsão de
morte por enquanto, Freud ainda não chegou lá). Daí uma das dificuldades da obra:
procurar no mundo "A pulsão", sem compreender que ela é sempre abstrata; na realidade o
fenômeno é sempre mais concreto. Mas justamente por fazer uma descrição abstrata das
pulsões é possível captar suas determinações e compreender como funciona,
cientificamente, o aparelho psíquico. Outra obra que faz série com As Pulsões nesse
sentido é o Narcisismo. Num certo sentido, ele faz um movimento parecido com os Três
Ensaios: parte do concreto e avança para o abstrato. Mas aqui o movimento é muito mais
sofisticado, Freud já havia fermentado muita psicanálise. O narcisismo parte do caso
concreto das pessoas que são então chamadas de narcísicas, cuja característica consiste
num encontro peculiar de prazer com o próprio corpo. Desse fenômeno concreto, Freud
avança para uma descrição econômica, de um fenômeno econômico que chamará
Narcisismo por suas similaridades lógicas-econômicas com o fenômeno concreto descrito
anteriormente. Ao passar para a segunda parte, o texto torna-se rigorosamente econômico,
passando a descrever percursos pulsionais, que são por natureza abstratos. Para quem
quiser uma versão concreta da coisa, vale a leitura do Shrebber. Freud faz um movimento
do concreto ao abstrato, adquire uma determinação (o próprio Narcisismo, compreendido
economicamente) e retorna com ela [a determinação, o narcisismo] aos fenômenos para
reencontrá-la em lugares inesperados, como no amor irracional que os pais sentem pelos
filhos. Existe todo um movimento dialético no texto, que parte do fenômeno, vai para o
abstrato, tira um ganho desse percurso, retorna ao fenômeno com esse ganho e daí volta
mais uma vez ao abstrato, fortalecido pelo último movimento. É uma obra de altíssima
sofisticação científica.

Caminhando para o último percurso de nossa discussão, encontramos uma pedra no meio
do caminho. E essa pedra na verdade é um abismo, chamado "Além do princípio do
prazer". Desse abismo sai um demônio teórico chamado Pulsão de Morte. Esse abismo
marca a ruptura de uma caminhada, uma nova direção a seguir, que seria, num certo
sentido, para baixo. Não mais se caminha no plano, mas despenca-se para as profundezas.
Essa obra, além de um percurso muito bem construído que passa por uma série de
fenômenos, para deles abstrair a pulsão de morte, tenciona todos os limites da psicanálise
até então, seus limites com a biologia, a psicologia, a mitologia, a filosofia, a ciência no
geral e, no específico, próprio sistema científico da psicanálise até então. A pulsão de morte
inaugura uma série de problemas: o funcionamento novo da pulsão, aparentemente avesso
a tudo aquilo que a psicanálise tinha concebido até então; as mudanças nas determinações
das pulsões em geral que essa nova lógica específica nos mostra; a relação pulsão-objeto;
e fundamentalmente, a repetição e seu funcionamento independente do princípio do prazer.
As bases do sistema econômico foram dinamitadas, não por nenhum pretenso crítico
externo, mas por seu próprio criador. Que resta fazer senão começar a reconstruir a teoria
com esses novos ganhos.

Entramos então no "Eu e o Isso". Temos aqui outra obra de caráter altamente abstrato, e
aqui Freud não se importa tanto com as incursões no concreto. Isso porque essa discussão
se dá na esteira de todas as outras que trouxemos até aqui, entre outras que omitimos por
falta de espaçotempo. As incursões no concreto foram feitas em obras anteriores, aqui se
trata de organizar as conclusões abstratas. E nesse sentido essa obra pode ser vista como
(um)a consolidação da tendência que surgia nos três ensaios: constituir um sistema
metapsicológico mais ou menos "total". Isso não quer dizer que Freud chegou lá, que não
há problemas na obra, mesmo nas discussões econômicas (vide a acertada crítica de
Lacan a confusão que Freud produz entre Consciência, Eu e Sujeito), mas aqui o sistema já
pode ser visto como um ser imperfeito, e não apenas uma tendência (como nos Três
Ensaios). Se dissemos que a ciência psicanalítica nasceu nos Três Ensaios, podemos dizer
que no Eu e o Isso ela atinge sua maturidade. Essa obra, de caráter altamente
metapsicológico, lança as bases desse novo sistema, a chamada "Segunda Tópica". Ela
será ainda complementada por outras obras menores (Dissolução do complexo de Édipo,
Consequências Psíquicas, A negação, A perda da realidade, etc) e maiores
(nomeadamente, Inibição Sintoma e Angústia, ou ISA), mas aqui estão dadas as bases
abstratas que constituem o novo núcleo de cientificidade da psicanálise. Resta ainda fazer
um comentário sobre ISA. Esse complemento maior a metapsicologia novamente realiza o
movimento do concreto (os fenômenos da Inibição e da Angústia) para a compreensão
abstrata de uma série de questões econômicas, inclusive servindo para a reformulação de
pontos postulados anteriormente (vide a questão da decomposição dos afetos em angústia).
Talvez o ponto mais importante dessa obra seja justamente esse movimento aplicado à
questão do Desamparo, o que irá desvelar toda uma série de questões econômicas até
então insolucionáveis. Notadamente, os efeitos disso se dão sobre a compreensão das
diferentes formas que a angústia progressivamente se organiza.
Chegamos ao final de nosso percurso. Construímos então uma ideia do que seria uma
ciência, vimos porque e como a psicanálise é uma ciência, vimos como o núcleo dessa
ciência se dá na Economia Pulsional/Metapsicologia, que é a descrição abstrata do
funcionamento psíquico. Vimos que toda descrição que tenta captar as determinações do
fenômeno se aproxima do abstrato, e que a ciência é por natureza abstrata.
Compreendemos então que para refutar a cientificidade da psicanálise seria necessário
refutar a Metapsicologia como um todo, e não as diferentes configurações que ela pode
assumir (suas formas historicamente concretas). Com o percurso realizado, esperamos ter
ganho na compreensão do que é o caráter científico da psicanálise e sua natureza.

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