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O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO

ANÁLISE SEMIÓTICA DE UMA CHARGE

Erasmo Borges de Souza Filho1


FAV.ICA/IEMCI/UFPa

RESUMO
A charge é uma crítica humorística de um fato ou conhecimento específico, por meio da reprodução
gráfica de uma notícia já conhecida do público, segundo a ótica do desenhista, associando imagem e
texto, ou apenas imagem. Este texto se volta para uma análise semiótica, tendo como procedimento
metodológico o Percurso Gerativo de Sentido, e este, por sua vez, é um modelo que simula a produção
e a interpretação do significado de um texto, do seu conteúdo, auxiliando na sua leitura e interpretação
de forma efetiva. Para se entender o percurso gerativo de sentido e os aspectos a ele relacionados, é
apresentada a análise semiótica de uma charge criada por Glauco, e publicada na Folha de São Paulo,
no dia 24 de setembro de 2004. Essa charge trata do horário político, no caso televisivo, da disputa
entre os dois principais candidatos à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, do Partido dos
Trabalhadores, e José Serra, candidato pelo PSDB.
Palavras chaves: Semiótica, percurso gerativo de sentido, análise do discurso.

1. A CHARGE

1 Prof. Adjunto II da Universidade Federal do Pará e Doutor em Comunicação e Semiótica


A charge acima foi criada por Glauco, e publicada na Folha de São Paulo, no caderno Opinião,
folha A2, do 1º Caderno, no dia 24 de setembro de 2004, a faz uma figurativização do horário político
gratuito, no caso televisivo, do período de antecedeu a eleição municipal no Estado de São Paulo, da
disputa entre os dois principais candidatos à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, do Partido dos
Trabalhadores, na época Prefeita de São Paulo, e José Serra, candidato pelo PSDB, partido de oposição
na disputa, e hoje o atual prefeito.

2. PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO

A Semiótica Discursiva, segundo o seu principal teórico Aljirdas Julien Greimas (1917-1992), é
uma teoria da significação que busca explicitar as condições de produção e apreensão de sentido de um
texto2, sendo este, qualquer coisa que gere significado. Nesse sentido um texto pode se apresentar na
sua forma visual ou em mais de uma linguagem, a exemplo do vídeo (texto sincrético). Sob essa
perspectiva, para que se proceda a análise semiótica, se faz necessário compreender os níveis de
análise que compõe o percurso gerativo de sentido, assim como os aspectos pertinentes ao texto visual,
a exemplo da sua topologia, cromatismo e formas (eidético), enquanto uma proposição metodológica
da Semiótica Discursiva. O percurso gerativo é compreendido metodologicamente de três níveis de
análise, o nível fundamental, o nível narrativo, e o discursivo. Cada um, com suas próprias
características e facilitadores da leitura e compreensão de um texto, coexistem no texto de forma
articulada e estruturada, sendo os constituintes principais da narrativa e materialização do dircurso, eja
ele de que natureza for. É o que veremos a seguir.

2.1. NÍVEL FUNDAMENTAL

No nível das estruturas fundamentais é preciso determinar a oposição (ou oposições semânticas)
e/ou as categorias semânticas que estão na base de construção do texto a partir das quais se constrói o
sentido do texto. Na charge criada por Glauco, observa-se que a categoria semântica no nível
fundamental pode ser estabelecida da seguinte forma:

ORDEM vs. DESORDEM

(Seriedade, respeito, obediência) (Comédia, encenação, agressão, espetáculo)

2 Por definição semiótica um texto são tecituras de relações que se entrelaçam dando origem às significações.
Essa oposição se manifesta de formas diversas no texto por meio da “torta na cara” entre os
candidatos, reiterada pela onomatopéia “PLÓFT!” e pela forma de como os candidatos estão
posicionados frente a frente e “saindo da televisão” para se agredirem. O conteúdo mínimo
fundamental é dado pela negação da seriedade do horário político, e a afirmação do conflito, da
agressão, portanto uma disforia em relação ao que deveria ser o uso desse espaço político.

2. NÍVEL NARRATIVO

No nível das estruturas narrativas, os elementos da oposição semântica são assumidos como valores
pelos sujeitos (Marta e Serra) que circulam entre sujeitos (TRE e Público). A charge mostra o processo
de transformação de uma ética política em uma outra ética de caráter pessoal. O que charge nos mostra
é a forma de como o horário político, determinado pelo TRE em período eleitoral, deveria ser utilizado
pelos candidatos para exporem suas propostas políticas e a forma de como essas propostas seriam
viabilizadas. No entanto, o que ocorre na prática é a manipulação do expectador a partir da provocação
que cada candidato procura exercer no outro, tornando esse momento precioso em um grande
espetáculo tipo “pastelão”, ou seja, como uma comédia na qual a movimentação dos atores é intensa e
vivamente cômica, e em que há brincadeiras pesadas, como se atirarem mutuamente pastelões e tortas,
pancadaria e perseguições, provocando no espectador um sentimento de revolta, descrença e não
veridicção. Ao mesmo tempo, cada candidato procura desqualificar o seu opositor tentando convencer
o eleitor de que é a melhor opção. Nesse propósito, temos a sedução enquanto um mecanismo de
manipulação que acaba provocando um efeito contrário - a indecisão – uma vez que os candidatos são
colocados no mesmo nível pelo sujeito da enunciação. Os sujeitos parecem querer cumprir o determina
o TRE, mas na prática, o que ocorre é o contrário uma vez esgotado as possibilidades de uma
campanha “limpa”, gerando um desdobramento polêmico pela oposição de valores. Observa-se na
narrativa proposta que os discursos políticos trazem no seu bojo interesses dissimulados. Ocorre um
processo de transformação dos sujeitos de um estado de euforia para o de disforia, ou seja, de
“seriedade” para o de “não seriedade”, portanto de “agressão”, “comédia”, sujeita a sanção negativa
por parte do eleitor, a de não mais perder o seu tempo assistindo o horário político. Esse é o
mecanismo de manipulação proposto pelo sujeito da enunciação ao criar uma imagem negativa dos
candidatos, e ao mesmo tempo positivando a imagem do eleitor, seduzindo-o para a situação anterior.

3. NÍVEL DISCURSIVO
O nível das estruturas discursivas estabelece a relação entre a produção e a comunicação do discurso e
o texto enunciado. Na charge, o enunciador utiliza recursos discursivos variados ao produzir a ilusão
de verdade que se concretiza no texto, por meio de escolhas de pessoa (Marta e Serra), espaço (São
Paulo) e tempo (segundo turno da eleição municipal). O narrador em “eu” (Glauco) projeta um efeito
de subjetividade. Ao mesmo tempo, o discurso em terceira pessoa “ele” (Glauco) em relação a “nós”
na narrativa, cria um efeito de sentido de veridicção, de verdade ao mostrar para que serve realmente o
horário político, criando uma ilusão de realidade. Topologicamente o texto apresenta um equilíbrio de
formas e disposição dos elementos. Ao dividirmos o texto simetricamente no sentido vertical e
horizontal, observa-se que o foco principal da narrativa está na agressão entre os candidatos, reiterando
a oposição exposta no nível fundamental. Ao enfatizar o foco principal, o enunciador utiliza o recurso
cromático dado pelo contraste entre o cinza e o branco, para criar a ilusão de que há um holofote
dirigido aos dois sujeitos (Marta e Serra). O caráter de seriedade do horário político aparece
figurativizado pela placa no canto superior esquerdo, acentuada pelo contraste das letras de cor
amarela no fundo preto. Observe que o preto é a “cor” característica do sistema jurídico, uma vez que
o preto acentua marcadamente o caráter de respeito, seriedade, inteireza de caráter, retidão. Já o
conflito, a agressão e a comédia pastelão, aparecem marcados pela forma como os sujeitos (Marta e
Serra) voltam as televisões para si mesmos, e parecem “sair” de “cena” para se agredirem mutuamente
com “tortas na cara”. A cena caracteriza o espetáculo, que aparece marcado pela luz do holofote e o
efeito de profundidade dado pela perspectiva, criando a ilusão de um palco. Os sujeitos são
identificados pelos traços e cores utilizados, marcando a opção política de cada um. A intenção do
enunciador em mostrar a contradição que ocorre no horário político, aparece proposto pela tarja
“horário político” e as televisões, que ao invés de estarem de frente para o público, na verdade
aparecem frente a frente. Isso sugere um movimento de rotação ocorrido uma vez que elas são
providas de rodinhas nos pés.

Ainda no nível discursivo, as oposições fundamentais, assumidas como valores narrativos, sugerem
outras tematizações a partir da concretização das figuras que aparecem no texto. Entre elas:

a) o tema da modernidade em oposição a tradição, sugerida pelo desenho das televisões e enfatizado
pela cor e espessura dos aparelhos, que figurativizam o discurso ético político de cada partido (PT e
PSDB);

b) a questão do gênero marcada pela disputa política entre Marta e Serra, portando homem e mulher;
um desqualificando o outro, acentuado pela diferença no tamanho do fundo das televisões, que
parecem “incorporar” os candidatos;

As leituras abstratas temáticas aparecem concretizadas por diferentes figuras, caracterizando as


oposições e separam a ordem da desordem, no texto.
Traço Ordem Desordem

Espacial interno (na tv) externo (fora da tv)

Visual luz (foco) penumbra (sombra)

Temporal permanência (situação) mudança (oposição)

Tátil virtual (in tv) material (out tv)

Tátil frente (tv) lado (tv)

Olfativo cheiroso (torta) mal cheiroso


(torta na cara)

Gustativo gostoso (torta) ruim (torta na cara)

Esses traços são os responsáveis pela organização das figuras nas diferentes leituras temáticas. O traço
espacial por exemplo manifesta-se pela relação entre a imagem transmitida, televisiva, virtualizada, e
que ao mesmo tempo se materializa de forma sinestésica; já os traços de visualidade são manifestados
pelo jogo de luz e sombra, materilizados pelo cromatismo no texto.

Esse é um exemplo simplificado que mostra o papel do Percurso Gerativo de Sentido na análise
semiótica do sentido, da significação de um texto a partir dos seus três níveis de análise e dos aspectos
característicos da leitura da imagem: o topológico, o eidético e o cromático.

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