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O sujeito contemporâneo no encontro com as éticas ocidentais ∗


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Contardo Calligaris∗∗

Vou tentar resumir o que eu ia trazer para vocês hoje que é um discurso aparentemente pouco
empolgante. Eu estava fumando um cigarro e na cabine tinha um folderzinho do Lula; fiquei lendo e
pensei que se eu fosse um conselheiro da campanha do Lula certamente teria achado esse folder ex-
tremamente infeliz. Extremamente infeliz porque ele começa assim: “Eleição para presidente divide no-
vamente o país em dois lados: ao lado do povo Lula, ao lado das elites dirigentes, Fernando Henrique.”
Eu tinha pensado em trazer outros exemplos, mas esta primeira frase do ponto de vista que vou tentar
defender com vocês é uma frase catastrófica. Uma frase catastrófica pela seguinte razão: numa cultura
individualista realizada como a nossa, ninguém se identifica com o povo, sobretudo não “o povo”, e nin-
guém está a fim de se identificar com o povo. Então infelizmente, embora nós possamos pensar que
existem direitos do povo que precisam ser defendidos, é muito difícil pensar que uma frase desse tipo
possa, numa cultura individualista realizada, se transformar em um slogan político eficaz. Quanto mais
na língua “brasileira”. Na língua inglesa, por exemplo, seria muito diferente: o campo de conotação de
uma palavra como people é muito diferente do campo de conotação da palavra povo. A palavra povo, no
Brasil, tem uma conotação, como vocês sabem, classista fundamentalmente: povo-povão; a palavra
people na língua inglesa tem ao contrário uma conotação muito mais nobre, pois é o sujeito suposto do
Direito constitucional, the american people. Então, a palavra people em inglês conota na opinião pública
o ato da autonomia coletiva, se é que dá para falar assim, e então, a fonte da autoridade da lei é certa-
mente a palavra povo. A versão brasileira da língua lusitana não conota isso.
O que isso tem de ético, estas considerações, que podem parecer considerações de marketing?
A tese que vou tentar demonstrar para vocês é que a ética contemporânea é um marketing. Digo isso
sem ironia e sem crítica. É que a autoridade ética no mundo contemporâneo é a opinião pública. Para
chegar a esta conclusão, que evidentemente é um pouco forte, eu vou de maneira abreviada tentar sinte-
tizar o que a meu ver, e não só a meu ver, na verdade leva necessariamente a uma tal conclusão.
Nós vivemos em uma cultura individualista. Vou tentar explicar o que esta frase significa, ela
tem uma significação bem estabelecida culturalmente, mas antes de mais nada é preciso apontar para
um problema desta frase, de sua própria formulação, de sua forma, ou mais propriamente, um vício de
sua forma que é o seguinte: dizermos uma frase desse tipo evidentemente não é incorreto. Ela por si só,
por sua própria forma sintática e gramatical nos deixa acreditar que o sujeito desta frase preexista à cul-
tura na qual ele vive; essa frase nos induz a crer que exista uma entidade subjetiva seja qual for o seu
estatuto - como se diz em Filosofia - ontológico, ou seja, o seu ser, mas enfim nos induz a pensar que
existiria uma espécie de substrato ontológico do sujeito que prexistiria à cultura na qual ele vive. Acon-
tece que essa mesma idéia de que exista um fundamento ontológico qualquer da subjetividade, qualquer
coisa que nós seriamos enquanto... como dizia o filósofo, “bípede sem penas”, ou seja humanos, ou


Esta conferência foi editada a partir da transcrição de fitas K7, ainda não revisada pelo autor, e fez parte do semi-
nário O Mal-estar do corpo no encontro com o trabalho, realizado na ENSP/FIOCURZ, setembro de 1994, coorde-
nado por Clarice Gatto.
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Psicanalista italiano, atualmente morando em Nova York.
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como dizia Lacan, “seres falantes”... Então essa idéia de que exista um fundamento ontológico da subje-
tividade independentemente da cultura na qual ela se realiza, essa idéia é uma idéia especificamente
cultural, é uma idéia de nossa cultura. Portanto, vamos ver porque esta é uma idéia da nossa cultura.
Na verdade, a formulação dessa mesma constatação para que nos induza um pouco menos em engano
poderia ser: nós somos os efeitos de uma cultura individualista; o que corrige um pouquinho. O que isso
quer dizer “que somos os efeitos de uma cultura individualista”? Vejam bem, essa frase não pretende ter
nenhum tipo de alcance psicológico, não quer dizer que seríamos egoístas ou pensássemos só em nós,
não se trata disso. Quando se diz que a cultura ocidental globalmente é uma cultura individualista, quer
dizer que ela se distingue pelo fato seguinte: o valor dominante nessa cultura é o indivíduo, e não a tota-
lidade social. Existem culturas, na verdade praticamente todas as outras, ou seja, tanto as culturas pri-
mitivas quanto as culturas ditas tradicionais para as quais a totalidade social é o valor dominante. Na
nossa cultura grosso modo desde, digamos assim, a universalização da cultura romana pela injeção
cristã na nossa cultura, ao contrário, o indivíduo é o valor dominante.
Rapidamente, vocês sabem de onde vem essas constatações banais hoje em antropologia cultu-
ral... Elas vêm fundamentalmente do ensino do maior antropólogo francês desse século que é Louis
Dummont. Talvez ele seja o único antropólogo que tenha abordado o problema da sociedade complexa
contemporânea moderna; não se contentou em estudar alguns índios que segundo Hélio Jaguaribe não
vão existir mais daqui a pouco tempo; aliás já não existem mais, porque não dá para dizer que o cama-
rada Paiacã seja um índio primitivo.
Louis Dummont - cujos ensaios sobre individualismo estão traduzidos em português - evidente-
mente inventou o que se chama uma antropologia do valor, ou seja, afirmou que é completamente im-
possível descrever uma sociedade sem levar em conta como fator dominante a hierarquia de valores
nessa sociedade. Foi o que lhe permitiu fazer essa distinção que é praticamente incontestável no campo
antropológico contemporâneo. Ou seja, existe uma cultura individualista, uma só, que é para a cultura
ocidental a que se distingue porque ela valoriza o indivíduo como valor. Isso não é uma realidade psico-
lógica, eu insisto, é uma realidade antropológica; ou seja o valor socialmente dominante para nós é o
indivíduo, se vocês quiserem em sua autonomia, no sentido etimológico dessa palavra, a capacidade de
se outorgar suas próprias regras. Nas sociedades escravistas primitivas, ao contrário, a totalidade é
social, por isso é que Dummont chama essas sociedades de holísticas; ele opõe individualismo a holis-
mo, que vem do grego e significa todo, são sociedades onde a totalidade prevalece. Os traços essenci-
ais dessa oposição que devem ser lembrados para nós podermos avançar um pouco e ver quais são as
conseqüências dessa constatação, - porque não se trata de uma teoria, mas propriamente de uma cons-
tatação - é que evidentemente nessa mesma linha de oposição, do lado do individualismo o que é valori-
zado é a autonomia, do lado do holismo se trata de sociedades heterônomas, palavra construída segun-
do a mesma origem etimológica, onde a origem da lei não está em nós mesmos. Não é “auto-nomia”
mas “heteros-nomia”; está fora de nós, no outro. Poderíamos continuar... Por exemplo, do lado do indi-
vidualismo, colocar liberdade. Pouco importa que ela seja fictícia ou não, liberdade pelo menos como
uma expressão fundamental da idéia que o indivíduo tem de si mesmo. E do outro lado, a tradição. É
evidente que um quadro holístico-individualista são tipos ideais no sentido weberiano dessa expressão;
evidente que cada sociedade contém alguns traços de holismo e alguns traços de individualismo, mas é
também verdade que nós podemos considerar sem muita margem de erro que a nossa cultura contem-
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porânea seja fundamentalmente uma sociedade não só individualista mas bem perto de sua realização,
ou seja bem perto da abolição de seus restos holísticos e tradicionais. Para que isso não fique tão abs-
trato assim pensem, por exemplo, no que aconteceria... Se você tivesse nascido na Índia, ainda na Índia
hodierna, sobretudo se não for no seu quadro digamos urbano, onde evidentemente o peso, a invasão
da cultura ocidental é muito forte... O lugar onde você vai nascer, quer dizer, o tipo de família, a casta,
por exemplo, à qual você pertence constitui um destino que é absolutamente indiscutível. Opor-se ao
destino que seu nascimento social te reserva - o que pode acontecer eventualmente, inclusive na Índia,
se você assiste a televisão, se você se expõe aos efeitos de uma cultura individualista - bom, se você
renunciar a isto, você vai ser expulso da cultura tradicional à qual você pertence, você cai fora de alguma
forma, você cai fora do campo do humano, ou do campo que essa cultura reconhece como humano,
você vira bicho!
Numa cultura individualista, evidentemente existe uma série de dificuldades que reconhecemos
como dificuldades sociais de classe, de raça e companhia, mas não é por isso que essas dificuldades se
constituem como uma forma de destino; ao contrário, a nossa sociedade enquanto sociedade individua-
lista, é uma sociedade que de alguma forma espera que cada um consiga desmentir os dados sociais
reais que em princípio determinariam o destino de sua vida. É isso que se espera normalmente da soci-
edade individualista. É uma situação muito paradoxal e muito curiosa, mas é uma cultura extremamente
paradoxal. Por que? Pela razão seguinte: não dá para dizer que seja uma cultura, vamos dizer assim,
sem tradição mas ela tem como valor fundamental de sua tradição, ou seja valor fundamental transmitido
de geração a geração um imperativo de autonomia, um imperativo de liberdade, uma valorização do
indivíduo. Vocês vejam como isso é contraditório e problemático, inclusive com conseqüências psicoló-
gicas, porque isto significa que em última ou em primeira instância o sujeito de nossa cultura como nós
todos, o que ele recebe como mandato fundamental das relações precedentes é um mandato de deso-
bediência, isto é, seja livre! (Que como vocês sabem é um exemplo típico segundo a escola de Palo
Alto, do que se chama um “duplo vínculo” ou seja um double bind!) E por outro lado é também uma cul-
tura de alguma forma aparentemente suicida, porque é uma cultura que é construída ao redor da idéia
de que ela se afirma à medida que cada indivíduo se liberta da tradição que lhe é transmitida.
Outros dois traços de uma cultura individualista que temos que mencionar muito rapidamente pa-
ra entender quais são as conseqüências para a questão que nos interessa hoje, é que para que exista
uma cultura individualista, precisa-se socialmente de duas coisas: primeiro, acreditar na igualdade formal
- pelo menos formal; e o segundo traço, que aliás decorre do primeiro, é que inevitavelmente uma cultura
individualista é uma cultura universal. Por quê? Porque ela acredita que dá para valorizar um indivíduo
independentemente de qualquer determinante tradicional, então, em última instância também de qual-
quer determinante cultural, quer dizer que ela acredita numa definição abstrata do homem. Ou seja,
produz inevitavelmente uma extensão do que nós chamamos a humanidade, a dimensão da espécie.
Vocês sabem que isso também é uma grandíssima novidade: nas culturas tanto tradicionais quanto pri-
mitivas, a humanidade pára nos limites da cultura; os gregos que efetivamente não tinham nada a ver
conosco, coisa que se reconhece evidentemente imediatamente no fato seguinte de que quem não era
grego não era humano, era bárbaro e ponto final...
[...] final da 1a. fita.
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[...] contra a cultura que o produz, pois o mandato essencial que ele recebe é um mandato de
autonomia, portanto de uma certa forma de desobediência, é evidente que ele devia reconhecer a exten-
são da humanidade como coincidindo por exemplo com a extensão da espécie ou da definição biológica
da espécie, sua máxima extensão. Nós somos certamente a única cultura a partir da mensagem cristã,
fundamentalmente, que consideramos essa extravagância: que qualquer membro da nossa espécie é
humano. Pelo menos a gente tem que considerar e deve levar em conta que esta é uma posição estri-
tamente cultural, não tem nada de natural nisso. O que não quer dizer que a gente tenha que divergir,
mas é uma posição cultural; não tem nada de natural no fato de reconhecer todos os membros de nossa
espécie e outras culturas como sendo humanos. Isso coloca uma série de dificuldades gravíssimas em
nossa cultura que vamos, eventualmente ter tempo de analisar depois, porque evidentemente é uma
cultura que tem uma enorme dificuldade em reconhecer a diferença cultural. Por essas razões é que lida
muito mal com a diferença cultural. Então ela define o seu campo de pertinência, digamos assim para o
real da espécie, e por isso também evidentemente é uma cultura que triunfa, é a única cultura propria-
mente em expansão, cultura que conquistou o mundo inteiro e no processo de conquista do mundo intei-
ro profundamente destrutiva para qualquer outra cultura que ela encontra, não só no sentido de uma
conquista material - mata e estraçalha - mas porque a sua força cultural é muito grande porque é a única
cultura que se apresenta como podendo ser a do outro (Outro?). Então evidentemente, ela só pode ga-
nhar uma partida contra uma série de culturas as quais só pretendem valer para os seus filhos, e isso
aliás se constata facilmente. Hoje em dia quase não existem mais culturas tradicionais ou primitivas que
não estejam já num processo avançado de contaminação e de contradição pelo impacto da expansão da
cultura individualista. Como dizia o meu amigo, a solução para o Iraque e o Irã seria abrir um Mac Do-
nald’s em Bagdá. Não estou tão certo assim, porque justamente a cultura islâmica poderia até resistir a
Mac Donald’s e a Bennetton.
Mas eu vou passar por cima de uma série de considerações que talvez não fosse esperada de
um analista... Sobre os traços psicológicos que correspondem a esses traços antropológicos próprios de
nossa cultura, só para mencionar, eles são muito numerosos. É absolutamente infeliz que os psicanalis-
tas em geral, sejam tão medíocres antropólogos, porque ajudaria bastante que eles pudessem entender
quais são as conseqüências psicológicas das grandes determinantes antropológicas.
Para mencionar coisas mínimas por exemplo, mas que todo mundo conhece, é só numa cultura
individualista que se verifica um certo tipo de amor pelas crianças, que é um amor que nós normalmente
consideramos como sendo a posição natural paterna e materna, é só numa cultura individualista que é
imaginável algo como o complexo de Édipo, porque evidentemente numa cultura tradicional não teria
nenhum complexo, poderia até ter interdito do incesto, mas isso não engendra nenhum tipo de complexi-
dade psicológica como pode ser o complexo de Édipo, por exemplo... Poderíamos ir longe nesta dire-
ção, mas deixa para lá, e vamos chegar então à questão ética.
Eu vou tentar tratar o tema de hoje “O sujeito contemporâneo no encontro com as éticas ociden-
tais”. O sujeito contemporâneo e éticas... se é que o sujeito contemporâneo tem éticas. Pelo menos em
que sentido tem ética: é isso que se trata de precisar. Se a partir desse esboço muito rápido, se eu con-
seguir de uma maneira muito sumária lembrar quais são os fundamentos antropológicos culturais da
subjetividade ocidental, e se vocês quiserem admitir, talvez a coisa pareça mais clara com o que vou
expor agora. Mas se vocês quiserem admitir ou aceitar que o próprio da nossa contemporaneidade ou
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pelo menos da modernidade realizada (eu chamaria de modernidade realizada os últimos duzentos anos
da nossa história e a contemporaneidade, os últimos trinta) é que o sujeito contemporâneo se aproxima
da realização efetiva de uma sociedade individualista então, nesse quadro, como é que se apresenta a
idéia de uma problemática ética?
Primeiro ponto é o seguinte: “a questão ética” como questão é uma questão exclusiva também
de uma cultura individualista. Por que? Porque certamente uma cultura holística ou tradicional tem, sem
dúvida nenhuma, um cânone comportamental; evidentemente que é estabelecido pela tradição mas não
há propriamente “questão” ética, o sujeito é efeito de uma regra simbólica. Se vocês considerarem uma
definição que eu diria simples, do que é uma ética, - não a ética como ciência, disciplina - mas uma ética
em seu funcionamento, em princípio é um conjunto de valores e obrigações geralmente recíprocas que
dirigem, orientam nossas vidas.
Certamente uma sociedade holística não só tem uma tradição vigente, mas um conjunto de valo-
res e obrigações recíprocas que decidem das condutas. Isso existe, mas o que não existe é uma “ques-
tão ética”. A questão ética só aparece a partir do momento em que a cultura individualista surge, ou
seja, é uma interrogação de um sujeito que pretende agir autonomamente e não heteronomamente, não
deixando a tradição decidir do seu agir, mas acreditando na possibilidade de ele mesmo se auto-
regular... De fato, numa cultura individualista, a decisão do que é o bem, se é que dá para dizer assim,
provisoriamente, cabe ao indivíduo... Vocês vão me dizer: não, mas afinal de contas, numa cultura indi-
vidualista também há leis, tanto a lei positiva, quanto leis que poderíamos chamar leis simbólicas, que
parecem regrar a nossa vida social sem mesmo a necessidade da sanção que a lei positiva propõe.
Justamente. Não tem nada a ver pela razão seguinte...
Porque mesmo o que nós reconheçamos numa cultura individualista como sendo a lei é sempre
subordinado à aprovação individual, é subordinado ao consenso. E numa cultura individualista, mesmo
o que aparece como heterônomo, a lei, por exemplo, está no outro... Afinal de contas ninguém aqui é
autor do Código Penal, do Código Civil e nem da Constituição... Mas embora ninguém seja o autor dis-
so, a autoridade que é fonte dessa lei, e numa cultura individualista, somos nós. A prova disso é que
numa cultura individualista existe uma oposição evidente para cada um de nós entre o que é justo e o
que é legal.
Vocês se lembram da frase de Lula sobre esta história que produziu muita indignação, mas que
é muito interessante; é uma frase perfeitamente individualista. É só numa cultura individualista que dá
para dizer que o que é justo pode ser diferente do que é legal. Por que? Porque o que é legal, a lei,
está de qualquer jeito subordinado ao meu consenso. Para entender uma posição completamente opos-
ta, pensem em Sócrates, ou na morte de Sócrates contada por Platão, pois justamente ele vai tomar o
veneno e morrer tranqüilamente porque embora considerasse que a razão pela qual ele foi condenado
não correspondesse ao que ele fez, a legalidade e a justiça coincidem holisticamente de maneira perfei-
ta. Então a lei - e vamos voltar a isso de novo, de maneira mais precisa - numa sociedade individualista
está subordinada ao consenso subjetivo, à nossa aprovação. Portanto, em princípio, não existe, numa
sociedade individualista, uma ética no sentido que eu disse antes, ou seja, um conjunto de valores e
obrigações recíprocos que possam dirigir nossa conduta; o que existe é uma “questão ética do sujeito”
justamente porque não existe uma heteronomia ética. Ao contrário, a recusa de uma tal heteronomia é o
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traço cultural dominante do individualismo, pois decorre imediatamente da valorização do indivíduo como
valor social dominante.
Agora o que é interessante é ver que essa aporia do sujeito ocidental, essa dificuldade que é
muito grande, é do ponto de vista patológico (ou ontológico?), assim se poderia falar grandemente, e
longamente... Porque vocês entendem qual é a dificuldade subjetiva de cada um de nós, entendem isso
subjetivamente. Inclusive em termos mais próximos do que um analista escuta, a autoridade, por exem-
plo de seus pais, ela, em última instância, se sustenta em seu consenso. Isso produz uma carga subjeti-
va da qual o sujeito, perfeitamente isento, produz uma dificuldade subjetiva e de subjetivação muito
grande. É exatamente para essa dificuldade que apontam os complexos psicológicos fundamentais
apontados por Freud.
Sem levar em conta essa dificuldade, o fato de que a autoridade paterna que depende do seu
consenso - e esse consenso é de uma certa forma impossível - porque só se consente à autoridade pa-
terna desobedecendo. Ou seja, afirmando sua liberdade contra a tradição transmitida nesta espécie de
"double bind" que a transmissão da tradição propôs ao ocidental. É só a partir disso que dá para enten-
der qual é a dramaticidade da constituição do indivíduo ocidental, e a solução do ponto de vista antropo-
lógico-cultural, a solução dessa aporia, ou seja, a falta radical de um ética como referência heterônoma e
ao mesmo tempo a questão ética... A partir disso, quais são as referências da minha autonomia... Foi a
partir disso que a cultura ocidental, sobretudo em sua reflexão ética, em seu questionamento ético, ten-
tando encontrar uma referência buscou uma série de caminhos. Todos esses caminhos consistem em
afirmar, em procurar, de uma maneira ou de outra, quais seriam esses nós de que a gente falava antes.
Ou seja, qual seria o substrato ontológico do sujeito, o que seria o sujeito independentemente da cultura
na qual ele está. Se não soubéssemos o que fosse o sujeito, independentemente da cultura na qual ele
está, nós pudéssemos deduzir dessas algumas propriedades do sujeito “extra”, “trans” e “supraculturais”
nós poderíamos deduzir o quê? Um código ético que nos falta, um código ético heterônomo externo à
nossa própria cultura, um código ético que pudesse funcionar como referência, e que portanto, nos aju-
dasse a decidir o que é justo e o que não é justo, o que é para fazer e o que não é para fazer.
Agora evidentemente se trata de determinar uma forma de natureza humana... Os caminhos
não só possíveis, que efetivamente a razão ocidental tentou perseguir para encontrar algum tipo de refe-
rência heterônoma, são pouco numerosos...
O primeiro caminho, não muito rápido, é um caminho especificamente imaginário para reinstau-
rar a heteronomia, e o protótipo é evidentemente um caminho, vamos dizer assim, axiológico-religioso.
Isso aí é uma coisa muito simples, mas extremamente complexa nas suas conseqüências culturais: isto
significa, dito em termos freudianos, substituir a falha de uma pai simbólico, substituir essa falha por uma
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potência paterna imaginária . Então, vamos colocar um Deus todo poderoso, se vocês quiserem, um Pai
da horda primitiva no lugar de uma autoridade da tradição que por definição nós temos que desmentir,
justamente para respeitar, ou seja, para sermos livres. Isso eventualmente poderia nos proporcionar um
código heterônomo, por exemplo, religioso.
Essa tentativa poderia ser perfeitamente o caminho. Por que não? Acontece que ela fracassa
na sua própria intenção, pela razão seguinte: se você instaura uma instância divina e imaginária - não
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porque ela seja transmitida pela tradição que você respeita como acontece no quadro holístico - mas se
você instaura essa instância em um quadro individualista para que ela possa regular (regrar?) a sua vida,
inevitavelmente numa sociedade individualista, o que vai acontecer é que progressivamente e ineluta-
velmente o Deus que você vai criar não será mais o garante de uma heteronomia, mas só o garante da
autorização de sua autonomia, ou melhor ainda, o garante do seu próprio narcisismo. A relação moder-
na com Deus, em qualquer religião que seja praticada, e num quadro individualista é, como vocês sa-
bem, uma relação de intimidade onde o que é suposto a Deus é a sua capacidade de “me amar assim
como eu sou”, ou seja, algo que é inventando como sendo a possível fonte de autoridade do que eu que-
ria. Ou seja, uma heteronomia que me regrasse, na verdade se transforma inevitavelmente nas religiões
modernas, nessa tal personagem da qual eu digo: não, tudo bem! Eu sei que efetivamente a religião
proíbe de beber, fumar maconha, ser homossexual, usar preservativo... Mas Deus em sua infinita bon-
dade saberá admitir que eu pelo menos me esforcei... Esta relação narcísica propriamente com Deus,
qualquer religião aparentemente chega a ela. E na nossa sociedade individualista chega progressiva-
mente à organização do que se poderia chamar um Deus “sob medida”, e é por esse caminho que apa-
rentemente a referência divina fracassa.
A outra tentativa, da qual Roland já falou de alguma forma, é a de tentar estabelecer um tipo
qualquer de natureza subjetiva, que estaria acima das determinantes culturais, ou seja, a partir desse
sujeito deduzir algumas regras que funcionassem como heterônomas. Isso seria uma solução muito
interessante, ela é fascinante porque na verdade respeitaria o individualismo - afinal de contas a fonte da
verdade estaria no sujeito, mas, ao mesmo tempo sendo algo no sujeito, acima de sua organização cul-
tural - e também funcionaria como uma forma de heteronomia, seria verdadeiramente um achado!
A filosofia ocidental que só me interessa à medida que ela expressa - sem recorrer aqui à “teoria
da maior consciência possível” lukácsiana - de um ponto de vista da antropologia cultural o que é o pen-
samento, a história das idéias... A filosofia ocidental se distingue por esse tipo de tentativa: - numa linha
que vai de Descartes a Kant, de Husserl a Heidegger com uma certa continuidade - a de ontologizar de
qualquer forma que seja, ou numa dimensão transcendental, e não autoconsciente, mas, enfim, de en-
contrar algum tipo de ser do sujeito aquém de suas determinantes culturais, o qual poderia fundamentar
a nossa idéia de um universal humano, e que pudesse ser uma referência heterônoma, e portanto a fon-
te de uma referência ética tranqüila. Por esse lado, - vocês vão me desculpar por fazer uma crítica bas-
tante declarada a problemática Bioética em geral, e sobretudo no seu sentido restrito uma crítica episto-
mológica - pelo lado dessa ambição, eu queria dizer que o pensamento contemporâneo encontra duas
soluções fundamentalmente.
A primeira é dizer: muito bem, encontramos - discurso circular, aliás - o que nós queríamos, ou
seja, uma fundamentação possível universal própria à espécie humana enquanto tal (é o que a gente
queria mesmo, porque é nisso que acredita a nossa cultura), uma fudamentação possível ética e heterô-
noma. Onde a encontramos? Bem, é a resposta Bioética, fundamentalmente, apesar dos esforços do
Roland para dizer que vai muito além disso, nós a encontramos no real. No real biológico. A humanida-
de é a espécie, o real biológico pode ser pensado como fundamento de valores simbólicos que nos fal-
tam. Então vamos deduzir uma heteronomia ética a partir do real biológico; isso dá o que dá, dá o nosso

2
Na transcrição estava “substituir a essa falha uma potência paterna e imaginária”. O verbo substituir tem dupla
regência tanto em português quanto em francês, porém de forma diversa; em português a preposição rege o termo
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mundo contemporâneo, ou seja, fundamentalmente o fato de que a única política da qual o mundo oci-
dental parece ser capaz é a política do esparadrapo, da aspirina. Ninguém se interessa em saber quem
tem razão ou quem não tem, só jogam de pára-quedas alguns cobertores, se for inverno, e que se ma-
tem... O importante é que nós preservamos as vidas, mandam esparadrapos, aspirinas e alguns “médi-
cos sem fronteiras”, que vão fazer o que podem, e nós estamos preservando a vida. A questão de saber
quem tem ou não tem razão é uma questão ética, esta questão é completamente evadida, uma ética do
real é exatamente isso nas suas consequências.
Há um problema suplementar numa escolha desse tipo, ou seja - não quero resumir a Bioética
só a isso - na escolha em encontrar esse fundamento no lado do real biológico. Há um pequeno proble-
ma fundamental: é que, evidentemente, o nosso tecido social se fragmenta a partir de distinções reais.
Porque, se o real é o fundamento do sujeito, quer dizer o real biológico o corpo em seu funcionamento
biológico, se ele é o fundamento da subjetividade, se a ele pedimos para ser a fonte inspiradora de nos-
sa heteronomia ética, é evidente que em torno disso é que nós vamos começar a pensar que então de-
veríamos organizar nossas oposições sociais em termos reais. Ou então, segundo a diferença sexual,
ou segundo a diferença da cor da pele, coisa que efetivamente acontece na sociedade contemporânea,
como vocês sabem. Poderíamos acrescentar outras coisas sobre isso, mas poderíamos também fazer
uma alusão à política do esparadrapo, mas também poderíamos grosso modo resumir essa posição em
sua pobreza conclusiva na seguinte idéia: a única heteronomia ética que nós encontraríamos por esse
caminho, é que a vida é uma coisa boa. Isto é engraçado, por que se existe algo que sempre distinguiu
a espécie humana de qualquer outra espécie animal é que justamente a vida não é valor nenhum; se
existe algo que define o ser humano globalmente é que ele é capaz de suicídio, como o ato perfeitamen-
te legítimo e logrado, que é capaz de sacrificar sua vida real por valores simbólicos, às vezes estúpidos,
às vezes ótimos, pouco importa, por qualquer besteira. Então, depois de dois mil anos de cultura indivi-
dualista, que nós cheguemos a pensar que o que fundamenta nossa ética é a preservação da vida é no
minimo engraçado!
O segundo caminho pelo qual tentaria seguir, ou pelo menos a nossa cultura parece tentar en-
contrar um fundamento evidentemente não é real, é social. Vou me explicar imediatamente, porque
aqui, existe uma coalescência inclusive cronológica temporal entre as grandes tentativas de pensar uma
dimensão da subjetividade, digamos assim, transcultural, supracultural, extracultural, que nos permite
então, uma vez mais, colocar uma heteronomia ética nesta bagunça individualista. Vocês sabem que
estas grandes tentativas são evidentemente coevas, e às vezes emanam das mesmas pessoas, aliás, da
Declaração ou da “descoberta” ou da “invenção” dos Direitos humanos, ou seja, da idéia dos direitos
sociais próprios à espécie, e não à cultura, e portanto que estariam acima, além das determinantes cultu-
3
rais .
Agora, o problema é o seguinte: é que para sustentar que existiria algo que a gente possa cha-
mar de Direitos humanos só há duas possibilidades. Ou você tenta defender a heteronomia dos direitos
humanos do lado de um real... do direito à vida... (Numa entrevista recente ao jornal Le Monde, Umberto
Eco ia exatamente por esse lado, e ele interrogava “se afinal de contas deve haver forma de considerar
que os direitos fundamentais do homem são direitos do corpo, cada um deve ter, ele dizia expressamen-

que vai substituir; em francês a preposição rege o termo que vai ser substituído.
3
Aqui você falava fora do microfone enquanto escrevia no quadro: foi muito difícil escutá-lo.
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te, deve ter o direito de ficar em pé, sentado, deitado, ou de defecar e fazer amor”; ele chegava ao ab-
surdo de confundir o “direito de expressão” com o “direito de falar” no sentido da fonação). Não tem
nada a ver, quer dizer, é uma extrapolação, mas da qual se entende a razão. Como fundar os ditos Di-
reitos humanos? Ou você encontra um fundamento real, ou então, para fundá-los, precisa realizá-los. É
evidente, precisa realizá-los numa comunidade, precisa fazê-los funcionar. E é evidente que isso vai ser
um trabalho de todo o século XIX, o de tentar mostrar ou perseguir o sonho de que os direitos humanos
possam ser realizados, essa própria realização sendo a confirmação do seu bom fundamento.
Vejam bem, se vocês pegarem o século XVIII ou o século XIX, esses dois séculos chaves no de-
senvolvimento, digamos assim da preparação de nossa contemporaneidade, vocês vão ver que o século
XVIII em particular é completamente atravessado pelo esforço de pensar o que seria um quadro de vida
coletiva, de vida social, quando se acaba de abandonar a idéia de uma referência heterônoma na tradi-
ção, a idéia de uma referêcia heterenôma em Deus. O problema é como pensar num quadro de vida
coletiva e social que por sua própria consistência, por seu próprio funcionamento possa garantir a exis-
tência de uma ordem simbólica, ou seja, garantir a existência de uma ordem ética. É nesse sentido que
o século XVIII é, e certamente o fim do século XVII também, a época na qual mais se teorizou a teoria
contratualista, ou seja, a teoria ao redor do fato de que a origem da sociedade humana seria um contrato
inicial.
A teoria contratualista é propriamente individualista, porque a sociedade só pode se originar no
consenso dos indivíduos. Mas vejam bem, este esforço dos iluministas do século XVIII para pensar en-
tão como é que poderia ser uma sociedade que pelo seu próprio funcionamento constituísse de uma
certa forma a realização de uma heteronomia ética que ao mesmo tempo surgisse do consenso dos indi-
víduos, ele culmina num conceito que geralmente é atribuido a Rousseau, mas na verdade é retomado
por Rousseau de Diderot, que é o conceito de vontade geral. O conceito de vontade geral é o seguinte,
na definição de Diderot no verbete Direito Natural da Enciclopédia: “a vontade geral é um ato puro do
intelecto isento de paixões que reflete sobre o que pode ou não pode ser exigido do semelhante e o que
pode ou não pode o semelhante exigir de nós.” Então ..., é um recurso a algo de universal no sujeito,
uma espécie de intelecto puro. Kant também vai falar da vontade geral evidentemente uma espécie de
dimensão transcultural, intracultural do sujeito, mas cujo interesse evidentemente está voltado para o
lado coletivo. O que sobra para nós do conceito de vontade geral é sobretudo não tanto o que diz Dide-
rot, mas o que Rousseau faz com ele. Rousseau é ótimo, porque ele faz a distinção entre a vontade de
todos e a vontade geral.
Ele diz que “a vontade geral é essa tal coisa que nunca erra, porque é aquela parte de cada su-
jeito é que está acima de qualquer determinate cultural, que necessariamente tem como alvo o interesse
comum. A vontade geral pode não ser a vontade de todos, porque pode haver, evidentemente, cachor-
ros que pensam nos seus interesses particulares, e então fogem da vontade geral. Pode até existir uma
vontade coletiva que seja de todos e que contradiga a vontade geral; a vontade de todos pode errar, a
vontade de muitos pode errar, mas a vontade geral nunca erra.” Com essa teoria simpática, cujas con-
sequências vocês imaginam e que dá um friozinho nas costas, porque vocês vêem onde essa história vai
dar, a herança que essa problemática iluminista deixa ao século XIX, é o quê? É que se trata de realizar
quadros sociais que sejam expressões da vontade geral, vontade geral essa que ninguém sabe o que é,
por que afinal de contas, é um pressuposto ontológico do sujeito que deveria servir para nos garantir
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uma heteronomia ética. Por esse lado evidentemente dispenso comentário sobre a idéia hegeliana de
moralidade encarnada, o Estado de Direito, a idéia marxista da sociedade sem classes, e é evidente
que isso lança no século XIX uma espécie de esperança de realização concreta de uma sociedade fun-
dada na vontade geral; e se eu conseguir explicar o que é a vontade geral em sua definição inicial, vocês
entenderão que a única verdadeira definição de uma sociedade fundada na vontade geral é que nenhu-
ma oposição será tolerada. Porque qualquer oposição seria contrária a vontade geral, então fundamen-
talmente louca ou errada. A idéia de realizar uma sociedade acima da vontade geral, ou seja, de um
pressuposto ontológico do sujeito, esse pressuposto seja historizado ou não, tanto faz, é uma idéia que
necessariamente leva ao totalitarismo.
Então, vamos acelerando para a conlusão que é a provocação que eu tentei colocar para vocês
no começo... Nessa altura do nosso percurso o que nos sobra? Por um lado nos sobra uma tradição
ética que eu apenas mencionei e que talvez seja a única tradição ética propriamente individualista, ou
seja, que a nossa cultura possa aceitar. O defeito dessa tradição ética, é que evidentemente ela não
responde à questão ética. E o que quê é? São as éticas hedonista e utilitária. Utilitários quer dizer: o
meu problema não é saber o que é justo ou o que é errado, meu problema é saber como é que eu posso
fazer melhor o que eu quero. Uma ética utilitarista é sempre possível num quadro individualista, e uma
ética hedonista também, porque simplesmente cada um decide o que quer fazer, presume-se - não está
nada certo do ponto de vista da psicanálise - que ele escolhe segundo o seu prazer.
Por outro lado, a tentativa de nossa cultura de fundar uma referência heteronôma ética, ou seja,
de dispor de um sistema de valores e obrigações que permita regrar nossas condutas - o que é parado-
xal porque nós somos uma cultura fundada na idéia de que não temos isso - essa tentativa nos levou a
falar de três caminhos possíveis: o caminho de uma referência imaginária divina; a procura de algum
fundamento ontológico do sujeito; e a tentativa de confirmar esse fundamento ontológico na realização
social de uma sociedade totalitária. O problema hoje se colocaria, do meu ponto de vista, da maneira
seguinte: como pensar a questão ética sem nos contentar, resignar a uma resposta que venha do real do
corpo, - como sendo tudo que nos sobra como heteronomia possível - que não seja uma resposta nos-
tálgica, heterônoma do tipo “vamos voltar às grandes tradições do passado”, “quem sabe isso nos diga o
que é justo e o que não é”.
Como imaginar, então - não vou dizer uma ética porque no sentido que eu disse antes, nunca
vamos ter, é definitório de nossa cultura que nós não tenhamos - pelo menos, um campo ético abdicando
da idéia de que exista um fundamento ontológico do sujeito? Existem algumas respostas na filosofia e
na sociologia contemporânea, algumas tentativas de respostas, fundamentalmente uma que é represen-
tada pela linha de Apel e Habermas. Mas vocês vão ver que não vai muito longe pela razão seguinte:
afinal de contas o que é justo e o que não é justo se decide pela ação comunicativa, ou seja, pela nego-
ciação. Vamos falando até que, de alguma forma, pelo caminho da confrontação racional, se chegue a
uma decisão, um acordo negociado sobre o que é justo e o que não é justo. O engraçado é que essa
posição que parece tão razóavel e que, alías, é razoável na sua definição, implica justamente um pres-
suposto ontológico, porque pelo menos implica que nós tenhamos em comum a razão. Acontece que
nada prova que a razão seja um pressuposto ontológico, seja um pressuposto aquém (ou além?) das
determinantes culturais. Numa conferência há um ano e meio atrás sobre este tema eu acabava criti-
cando a posição habermaniana e acabava sugerindo que se mandasse Habermas para a Bósnia para
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ver no que dava. Eu acho que não dava muita coisa, a “ação comunicativa”... Não dá muita coisa pela
razão que acabo de dizer: é porque a idéia de que a razão seja um pressuposto ontológico é uma idéia
perfeitamente cultural.
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A outra posição é uma posição meio pragmática - o Roland já fez alusão a isso e estou pensan-
do em particular na posição de Richard Rorty, sobretudo em Contingência, ironia e companhia, o livro
que é bem conhecido... O interesse e a diferença da posição de Rorty relativamente à posição de Habe-
rmas - evidentemente como qualquer neopragmático - é considerar que no campo ético só existem cren-
ças. Nenhuma crença pode se prevalecer de uma relação privilegiada à verdade sobre outras crenças,
são só crenças. E o interesse da posição de Rorty é de pensar que, muito bem, “a única razão que eu
tenho de defender minhas crenças - e numa sociedade individualista faz perfeitamente sentido - não é
porque ela se autoriza no real do povo, não é porque ela se autoriza em Deus, não é porque se autoriza
em algum pressuposto ontológico do sujeito no qual não acredito, mas é simplesmente porque é a mi-
nha.” A única razão que eu tenho de defender minhas crenças é porque são minhas, e também não é
preciso, como Rorty mesmo dizia no Rio há pouco tempo atrás, acreditar com Habermas, no poder infini-
to da razão, porque depois de um pouco de conversa a gente pode até sair no tapa.
Essa posição que é a posição ética no campo da neopragmática, do meu ponto de vista mais in-
teressante, parece ser nossa posição de fato hoje. Ela comporta algumas dificuldades que eu gostaria
de lembrar para dar um pouco ao que acabo de falar. Como é que a gente enfrenta ou lida, mais exa-
tamente, com diferenças culturais? Vocês sabem que uma das propriedades da nossa cultura é que por
um lado ela é conquistadora, expansionista de uma maneira vergonhosa - escolho essa palavra pela
razão que vocês vão ver - porque é a única que se colocou de antemão como sendo universal; mas por
outro lado, curiosamente, nossa cultura tem as maiores dificuldades em entrar numa posição de comba-
te. Vocês entendem porque ela é impedida, porque a sua própria força de expansão é o seu pressupos-
to de universalidade: então de uma certa forma ela não conhece inimigos culturais, ela só conhece insu-
ficientemente desenvolvidos povos à espera das luzes, ela só conhece humanos como nós que estão
esperando nossas luzes. A partir dessa posição é muito complicado para a nossa cultura se defender de
um ataque cultural. Eles existem mas é muito complicado. O que não quer dizer que ela seja menos
agressiva; a sua agressividade passa pelo seu poder de expansão, mas não tanto pelo enfrentamento.
Isso às vezes pode tornar nossa cultura impotente. Se não impotente, pelo menos - e isso é uma reali-
dade hoje - é uma cultura constantemente culpada. A culpa é certamente um traço dominante do indivi-
dualismo contemporâneo. Há culpa, por quê? Porque existe um contraste entre dois traços que são
absolutamente unidos em nossa cultura: seu universalismo, e portanto, sua tolerância. Então, a medida
que nossa cultura universalista se expande, isso contradiz nossa tolerância que portanto, decorre neces-
sariamente de nossa universalidade. Então, essa dupla posição... Mas qualquer diferença faz parte da
humanidade, nós somos a cultura da humanidade, então, toda a humanidade vai estar em nossa cultura.
Isso cria um círculo que faz com que nossa cultura seja eternamente culpada, então, segundo um ritmo
ciclotímico, passa de repente de Jonh Ford a Dança com Lobos (a gente nunca sabe se o índio é o mo-
cinho ou se o índio é bandido: a cada vinte anos muda). Essa ciclotimia da culpa é clássica, é inscrita na
base de nossa cultura, e certamente constitui uma de suas dificuldades e pode até vir a ser o seu ponto
fraco, o seu tendão de Aquiles. Por outro lado é verdade que nós continuamos apelando para uma série

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Fermin Roland Schramm.
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de transcendências ontológicas em nossas situações éticas e continuamos apelando quer seja no real,
quer seja em Deus, quer seja no que seria o estatuto ontológico do sujeito. Isso produz uma grande
dificuldade no debate no campo...
[...] final da segunda fita.
[...] na cultura que é a nossa, no sentido que nós somos produtos dessa cultura, não pode haver
por definição um sistema de valores e obrigações heterônomas. Se não há uma referência ontológica -
por exemplo do lado do sujeito de seu corpo, do que quer que seja, ou do lado de Deus - que possa
substituir essa referência da tradição que, por definição perdemos, então, o que constitui a autoridade de
uma crença ética no nosso mundo moderno onde só há crenças e nenhuma tem um direito de prevalecer
sobre as outras pela sua relação com uma suposta verdade? Fico com Rorty, para dizer então que a
única razão que tenho para defender uma crença é porque é a minha. Então, qual é a fonte de autorida-
de de uma crença? Se vocês quiserem, o que poderia transformar uma crença em verdade? Talvez
fosse preciso se resignar - como não existe vontade geral no sentido de Rousseau, e o século XIX mos-
trou que a tentativa de encarnar a vontade geral custou alguns milhões de vidas - talvez pudéssemos
nos resignar à idéia de que o que faz a autoridade de um juízo ético - embora isso possa parecer uma
grande decepção - é só, e numa sociedade individualista, sua prevalência quantitativa. No mundo indivi-
dualista - não sou o primeiro a dizer isso, foi brilhantemente visto por talvez o maior filósofo da moderni-
dade que é Georg Simmel, e também pela escola de sociologia de Chicago - o que ocupa o lugar da
tradição, ou seja, de uma ordem heterônoma de referência é a opinião pública.
Entendam bem o tipo de estranheza que estou tentando sugerir: é que no campo ético contem-
porâneo o que pode ser dito justo é o que parece justo para a opinião pública. Evidentemente o campo
que nós chamamos opinião pública é um campo de luta, de enfrentamento: não é obrigatório coincidir
com a opinião da maioria. Mas o problema é saber, é levar em conta, inclusive na estratégia política, e
sobretudo na estratégia política: era a razão dessa crítica - a história ao lado do povo. É preciso levar
em conta que crenças diferentes lutam para conquistar a opinião pública. Não lutam para demonstrar
sua verdade e nenhum outro sentido, senão no sentido próprio a uma cultura individualista contemporâ-
nea, onde é verdadeiro o que é a crença da opinião pública, da maioria. “Onde é verdadeiro o que é a
crença da opinião pública, da maioria.” Eu digo isso de novo, e sem ironia. Porque, se nós continuar-
mos a praticar esse tipo de enunciação com ironia: primeiro, vamos perder toda eficácia política; segun-
do, vamos continuar cultuando ou cultivando fés em eventuais ou possíveis ou esperados fundamentos
ontológicos da verdade. Vocês acham que o que estou dizendo é excessivo? Tome qualquer exemplo,
o que faz com que a legislação do aborto possa mudar? Vocês acham que isto é uma discussão sobre a
verdade? O que é bom, ou ruim? Não! É uma mudança de opinião pública. O que faz com que no
DCM a homossexualidade tenha desaparecido como uma patologia? Vocês acham que é uma reflexão
patológica? Não! Foi a pressão dos lobbys homossexuais americanos que fez com que a homossexua-
lidade não aparecesse mais como patologia no DCM3. Mas é evidente que qualquer consideração de
decisões éticas concretas, sociais e históricas nos revela imediatamente que a opinião pública é que
decide a prevalência. E por que não a verdade eventual de uma crença?
É suficiente pensar na evolução de nossos juízos morais, para nos darmos conta disso. Hoje
não é ruim ser homossexual, efetivamente graças a uma mudança na opinião pública. E provavelmente,
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desse ponto de vista, um filme ou uma telenovela possui valor ético quanto a sua eficiência infinitamente
superior a tudo que nós possamos estar dizendo aqui: esse é o campo ético do sujeito contemporâneo.
Uma última coisa... Para ficar no clima, eu teria gostado de falar de outras coisas e dar uma sé-
rie de exemplos para discutir questões éticas concretas, eu teria gostado de falar do famoso debate em
torno das afirmações recentes de Hélio Jaquaribe... Na semana passada no Zero Hora, um jornal de
Porto Alegre, saiu uma charge de Marco Aurelio muito divertida, e vocês vão poder ver rapidamente qual
é a relação com o que eu estou dizendo. Tinha um quadrinho e em cima estava escrito: “Dois ateísmos”.
Havia duas frases: a primeira “Fernando Henrique não acredita em Deus” e a segunda, “Lula não acredi-
ta nas pesquisas de opinião”...

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