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ORGANIZAÇÃO

FRANCIS WILKER

REVISÃO
GIGI CASTRO

CADERNO
DE MONTAR
ESTAÇÕES DO PROCESSO CRIATIVO
DE CAMA DE BALEIAS
ORGANIZAÇÃO
FRANCIS WILKER
REVISÃO
GIGI CASTRO
FOTOGRAFIA E PROJETO GRÁFICO
TIM OLIVEIRA

TEXTOS
DAVID DE ALENCAR
COSMO ALMEIDA
NABAR URIBE
ROBERT BERNARDO EVARISTO
CHRISTIAN DE OLIVEIRA CESARIO
DENIS QUEIROZ
RENATA MILENA

CADERNO
PEDRO DÓRIA
AMANDA MONTEIRO
PEDRO HENRIQUE

DE MONTAR
JANDER ALCÂNTARA
JOSÉ JÚNIOR SANTOS DE ARAÚJO
ALESSANDRA EUGÊNIO LIMA
RENATA FERNANDES CALDAS
ESTAÇÕES DO PROCESSO CRIATIVO
DE CAMA DE BALEIAS

FORTALEZA
2017

ORGANIZAÇÃO
FRANCIS WILKER
HORA DO EMBARQUE
Francis Wilker
I ESTAÇÃO – MODOS DE NARRAR O PROCESSO DE CRIAÇÃO
CONVITE
David de Alencar
ASPECTOS DO PROCESSO COLABORATIVO EM CAMA DE BALEIAS
Robert Bernardo Evaristo
PROCESSO CRIATIVO: CAMA DE BALEIAS
Christian de Oliveira Cesario
MEMÓRIAS, UM LUGAR QUE NOS FAZ RESISTIR AO QUE SE PASSA HOJE!
Rayanne Falcão
MEMÓRIAS CRÍTICAS E SENSÍVEIS DE UM NAUFRÁGIO
Cosmo Almeida
O QUE FICA PARA TRÁS NO PROCESSO COLABORATIVO
Nabar Uribe
II ESTAÇÃO – REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DE ATUAÇÃO
UM CONSTANTE EXERCÍCIO DE EXPERIMENTAÇÃO

Sumário
Denis Queiroz
VULNERABILIDADE DO ATOR, DA CRIAÇÃO E DO PROCESSO
Renata Milena
CORPO DENSO
Pedro Dória
(UMA CARTA)
Amanda Monteiro
A CRIAÇÃO DO PERSONAGEM ALEGÓRICO
Pedro Henrique
III ESTAÇÃO – OUTRAS PARAGENS: MEMÓRIA, IDENTIDADE, ESPAÇO E POLÍTICA
AS ÁGUAS DA MEMÓRIA EM CAMA DE BALEIAS
Jander Alcântara
ATRÁS DO MURO 04 - TIJOLOS DE MEMÓRIA, IDENTIDADE, EXTRATOS
PARA DESCOBRIR E REVELAR QUEM SE É
José Júnior Santos de Araújo
TEATRO E A CIDADE – INVASÃO NA RUA, O VELHO COMO NOVO ESPAÇO CÊNICO
Alessandra Eugênio Lima
A FORMA POLÍTICA DO FAZER TEATRO EM CAMA DE BALEIAS
Renata Fernandes Caldas
EPÍLOGO, OU, PRÓLOGO
UMA CARTA DO DRAMATURGO
João Dias Turchi
Hora do Embarque algumas reflexões sobre o exercício criativo dos poetas da cena.
Um espectro mais abrangente de temáticas dá a tônica da III Estação, que reúne reflexões
que ampliam o olhar da cena para o contexto social mais amplo, envolvendo questões
como o espaço, a conexão do enredo da peça com outras narrativas presentes no universo
Um caderno é muitas vezes um companheiro de viagens que nos acompanha numa aula, nordestino, bem como temas como identidade e política.
nas jornadas das confissões diárias, na antiga coleção de receitas. É espaço de registro, de Cama de Baleias é o meu primeiro trabalho como diretor e professor no Ceará: um pouco
inscrições da memória, de informações, conteúdos, questionamentos, rabiscos, desenhos, o mito de origem de minha relação com a cidade de Fortaleza, um pouco como tatear o
nomes. Guarda letras e tempos. Pessoas e sentimentos. É possível conhecer sobre algo, ou, universo rico e profundo que cada um dos estudantes com os quais trabalhei carrega e é.
a respeito de alguém por meio de anotações ali deixadas. É esse o espírito do Caderno da Também é uma face das minhas questões e sentimentos nesse Brasil-terra-arrasada em que
Montagem que, agora, compartilhamos com você: uma plataforma em que estudantes do não se pode encontrar um único tijolo de confiança nas instituições democráticas. Se para
quinto semestre do curso de Teatro – Licenciatura, da Universidade Federal do Ceará (UFC) onde meus olhos miram o cenário é de ruína e desesperança, sigo acreditando que o trabalho
relatam dimensões do percurso criativo realizado no primeiro semestre letivo de 2017 e que numa sala de aula e o ato de criar são modos de resistir a esses que aí estão, atravancando
resultou no espetáculo Cama de Baleias. o caminho. Por isso, deixo aqui a minha gratidão e carinho à Amanda, Cosmo, Alessandra,
Ao longo do ensino médio e mesmo na graduação, encarar uma página em branco se Dória, Alencar, Jander, Renata, Cícero, Nabar, Pedro, Rayanne, Christian, Robert, Denis, Jota,
mostra muitas vezes um desafio amedrontador. Nada melhor do que enfrentar os desafios Renato, Iure, Renatinha e ao João, pela entrega, confiança e por acreditarem nessa força-
coletivamente por isso, fiz esse convite aos estudantes: o de transformar em letra escrita luta que podem ser a arte e a educação. Obrigado pelos novos aprendizados. Espero que no
suas percepções, descrições, análises e críticas ao processo que vivenciaram na disciplina futuro se lembrem com carinho dessa viagem.
Montagem. Sistematizar um processo de criação não é tarefa fácil quase como tentar Um processo de criação em teatro, talvez, possa ser comparado à aventura de uma viagem:
desenrolar uma espiral, porém é justamente no exercício de descrição e análise que podemos sabemos de um lugar a chegar (o espetáculo), porém as paisagens, alimentos, trocas,
melhor nos apropriar de nossas próprias vivências e aprendizagens, bem como ser capaz de dissabores e conquistas são vivenciadas e descobertas no próprio exercício do viajante,
apontar críticas, sugestões e se projetar no futuro imaginando outros modos de fazer. Dessa no encontro-confronto com o novo território que compreende todos os vetores, materiais,
maneira, é um procedimento fundamental à formação do artista-pesquisador-docente pessoas e condições de um percurso criativo. O autor francês Michel Onfray destaca como
tríade que marca a proposta curricular do curso da UFC. os poetas transformam suas vivências ao longo de uma viagem em texto, em poesia. Como
Nosso caderno se divide em três estações e um epílogo que também poderia ser um prólogo, poetas da cena, atores e atrizes também podem transformar a sua experiência de viajante
onde encontramos uma carta do dramaturgo João Dias Turchi que aborda sua relação com num relato, carta, poema, artigo.
o mar (elemento estruturante na dramaturgia encenada) e oferece o percurso de nossa
(...) mais do que ninguém, o poeta coloca o seu corpo subjetivo no centro do lugar assombrado
própria parceria artística. pela sua consciência e sensibilidade. Todas as suas emoções, sensações, percepções, todas as suas
histórias singulares amadurecem na sua alma fantasiosa e traduzem-se um dia num pequeno texto
Na I Estação encontramos relatos que procuram dar conta do que foi o processo de criação de
que oferece a quinta-essência de sinestesias fantasiosas: sentir cores, saborear perfumes, tocar
Cama de Baleias. Talvez algumas informações se mostrem repetitivas, porém não foi possível sons, escutar temperaturas, vislumbrar ruídos. Pôr em prática todos estes exercícios prova que
negligenciar o desejo de tantos estudantes em tentar criar uma narrativa própria sobre cada viajar pressupõe a confusão de todos os sentidos, depois a sua reativação e a sua recapitulação no
verbo. (2009, p. 31,32 ).
etapa vivenciada e suas descobertas em cada uma delas. Em alguma medida, é como se
diferentes pessoas visitassem uma cidade e nos oferecessem diversificados pontos de vista
Foi essa a derradeira tarefa proposta aos estudantes: compartilhar nossa viagem a partir do
acerca da mesma. Numa outra perspectiva, a recorrência dessa abordagem pode também
seu olhar singular, de seus temas de interesse. É essa a viagem que você, ao tomar seu lugar
dar contornos mais espessos ao itinerário metodológico, estratégias e procedimentos
nesse trem-livro poderá fazer em outros tempos e espaços. Boa viagem!
vivenciados.
A II Estação é dedicada aos textos que mais diretamente focalizam o trabalho do ator e da
Francis Wilker
atriz nessa experiência. Temas como experimentação, corpo, vulnerabilidade, dimensão
ritualística e a criação de personagens alegóricos configuram uma paisagem que nos oferece
III ESTAÇÃO
OUTRAS PARAGENS: MEMÓRIA,
IDENTIDADE, ESPAÇO E POLÍTICA
As águas da memória Paizinho ― assim chamo meu avô ― disse que para conhecer a história de um lugar é preciso
encontrar duas de suas coisas: as pessoas e as águas. Os lugares surgem da necessidade

em Cama de Baleias
da água: a água como alimento, a água para matar a sede, a água como rota de fuga e
descobrimento. Os lugares só existem por causa das pessoas: cada pessoa é um lugar, cada
lugar, várias pessoas. Portanto, água, alimento e histórias são compartilhadas às margens
por Jander Alcântara de um rio ou à beira-mar e vão ― também como a água ― invadindo os espaços com a força
de suas correntezas ou de sua maresia. Inundando. As narrativas são doces e são salgadas.
Sobral ― em alguma data do passado mas que atravessa o presente ―, Ceará, Brasil. À
margem do Rio Acaraú, antiga fazenda Caiçara, surge a Igreja da Sé com seu galinho que
Há uma lembrança para o corpo,
indica os pontos cardeais. Cocoricó. Cinco horas da manhã ― um dia ― ele deve cantar. Os
a tua: é a de um abraço de rede,
mais velhos diziam que um dia Sobral viria a se tornar uma cama de baleias. Isso porque
esse abraço de corpo inteiro
na velha profecia de que o sertão vai virar mar, depois de uma intensa e furiosa chuva, as
de qualquer rede do Nordeste,
ondas do litoral cearense de Fortaleza a Camocim iriam se juntar às águas do açude Araras,
da rede que tua Andaluzia,
rompendo barreiras, quebrando cercas e ganhando terrenos em Sobral ― que estaria
que é tão da sesta, não conhece,
embaixo de toda essa imensidão de água. A única coisa que restaria seria o galinho da igreja
e mais que abraço, é o abraçar
matriz que um dia iria ganhar vida e cantar às cinco horas da manhã ― e junto às águas,
de tudo que o que pode estar nele;
mansas e belas baleias iriam repousar na “Princesa do Norte”. Todos estariam naufragados,
é abraço sem fora e sem dentro,
enterrados embaixo d’água, mas lá: nunca abandonariam suas casas, seus pertences e suas
é como vestir outra pele que ele possui e que o possui
histórias.
uma rede nas veias, febre.
Icó. Jaguaribara. Santana do Acaraú. Viçosa do Ceará. Crato. Juazeiro. Ontem e hoje.
João Cabral de Melo Neto
As narrativas parecem ganhar vários endereços, estreitam-se em alguns momentos,
compartilham de alguns elementos, diferem-se em outros. A exemplo disso temos Cama
Se fecho os olhos, escuto a velha mão enrugada de minha avó com um pinhão em prece para
de Baleias ― cada cidade dessas do Ceará parece também esperar que uma onda gigante
tirar quebranto. Abre os caminhos, Candeinha ― dizia em meio a incensos e cachaças e
a naufrague, que tome conta de suas ruas, invada suas casas e afunde seus quintais. Talvez
frente a um altar de adoração. As histórias são trilhos que norteiam passagens, ajudando
seja o desejo do sertanejo de beber a água ― ou, mesmo, o início se encostando no fim,
nos caminhos, guiando sempre. Eu, na minha matéria de trabalho ― o teatro ― não consigo
como uroboros, ou, ainda, relacionando com o que diz meu avô: os lugares surgem da água
e nem pretendo fugir de seguir os trilhos enferrujados das narrativas que escutava quando
e findam com ela.
criança. Nunca as vivi, mas são parte essencial de mim ― eu sou elas; elas, eu. São minhas
memórias, são minha pele. Mas esse eu não sou eu ― é um eu universal. Cama de baleias ― Fortaleza, Universidade Federal do Ceará (UFC), 2017, Estação João Felipe.
Estudantes-atores-pessoas-sujeitos-memórias. Diversas inundações. “[...] a instância poética
Não desista, ainda, da leitura, em algum momento me farei entender. Por enquanto,
parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico
divagamos juntos como se estivéssemos, nós, a bebericar café ou deitados na rede de João
puro ― o dos tempos já mortos ―, mas de um passado presente cujas dimensões míticas
Cabral de Melo Neto nos quintais da infância. Café e memória são o abraço de corpo inteiro.
se atualizam no modo de ser e do inconsciente” (BOSI, 2000). A montagem de espetáculo
É difícil precisar uma fala sobre a memória por ser uma matéria tão tangível quanto etérea.
da turma do Curso de Teatro da UFC conta a história de uma aldeia que pode ser qualquer
Tangível porque atravessa gerações, vai invadindo os espaços, ganhando terreno. Etérea
uma dessas que já citei ― e que espera ansiosamente pelo dia em que o mar lhe vai invadir,
porque tem necessidade vital de um sujeito para que exista. E como sujeito, está sujeita a
naufragar. E embora construa muros para represar a inundação, a espera com todo fulgor de
diversas faces. “Descrevendo a substância social da memória ― a matéria lembrada ― [...] o
sua existência. As personagens antecipam e principiam o caos do naufrágio, mas lutam para
modo de lembrar é [tanto] individual quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as
deixar um pouco de sua existência para além do seu tempo. Se você pudesse deixar um único
lembranças, mas o recordador [...] vai paulatinamente individualizando a memória” (BOSI,
texto, uma mensagem, apenas uma foto, uma gravação de voz, um parágrafo final, qual seria?
1994).
Terminar é impossível. Isso eu aprendi com o tempo ― esse é um trecho da fala da Cigana
de Amanda e João, atriz e dramaturgo de Cama de Baleias, respectivamente. Ou mais: E se a até precisar rememorar as histórias dos meus antigos, dos que vieram antes de mim mas que
ação que a gente fizesse fosse acompanhar a subida do mar, em tempo real, registrar ela, os são histórias que resistem a qualquer inundação. Tanto que o nome do espetáculo acabou
últimos depoimentos, o mar subindo e deixar esse registro pra alguém que um dia encontre sendo o mesmo da narrativa que já transcrevi aqui antes e isso se deu de forma tão natural
essa cidade e queira saber o que aconteceu aqui? ― João compartilha essa fala com Denis, porque o diálogo das histórias parecia gritar no nosso museu de memórias ― porque como
ator do espetáculo. Esses e outros fragmentos da dramaturgia de João nos mostram essa luta diz minha personagem, um pouco da gente fica em cada lugar pelo qual passou, e de mim e
para deixar registros, cravar espaço na memória. E essa memória só é presente quando a de todo mundo que está envolvido no processo de montagem de Cama de Baleias ficou um
vivemos, quando a compartilhamos, assim como fazemos no nosso espetáculo ― quando as pouco nesse lugar-memória-espetáculo-narrativa-criação.
memórias individuais se tornam compartilhadas, universais/míticas, bem como já estamos Ontem, malas e desejos corriam pelos vagões. Hoje, 18 atores também com malas e
conversando ao longo de todo esse texto. desejos compartilham espaço, tempo e memória na Estação João Felipe. Afinal, as histórias
Esqueci de falar, mas nunca é tarde para lembrar que essas histórias do espetáculo foram podem ser contadas pelas coisas e pelas pessoas, como bem diz a cigana da Amanda. E
escritas e criadas a partir de experiências vividas pelos atores: é a história de cada um que em meio à ferrugem do lugar, fomos revivendo suas narrativas, posto que: “as lembranças
virou nossa, de todos. Francis, diretor do espetáculo, coletou essas narrativas e memórias [...] têm assento nas pedras da cidade presentes em nossos afetos, de uma maneira bem
através de cenas que levávamos para a sala de ensaio, bem como de cartas, manifestos e mais entranhada do que podemos imaginar” (BOSI, 1994). Estar ali e tocar a ferrugem dos
parágrafos que compartilhávamos. Com este material em mão, Francis os enviou para João vagões, ouvir o sino tocar novamente e fazer uma cena no meio dos trilhos é, sem sombra
que criou a dramaturgia original, mas com um pouco de nós em cada palavra. Lembro, de dúvidas, desencavar as memórias daquele lugar e se misturar a elas, criando outras,
inclusive, que o espetáculo recebe esse nome após algumas discussões sobre como deveria dividindo, compartilhando, como um grande abraço na rede de João Cabral de Melo Neto
ser batizado, justamente quando percebemos que essa aldeia-lugar onírico prestes a acabar (1985), um “[...]abraço sem fora e sem dentro/é como vestir outra pele que ele possui e que
que João escreveu poderia ser qualquer cidadezinha do Ceará com sua velha estação de o possui”.
trem abandonada e com a ameaça de inundação como em Cama de Baleias ― isso porque
as narrativas são universais e o teatro é vivo, respira, é presente e se aproveita da ferrugem,
ferrugem essa que se alastra na memória e nos vagões abandonados da Estação João Felipe,
local escolhido para a encenação. Local que se assemelha às nossas narrativas: repleto
de ferrugens e em situação de abandono, em completo naufrágio, mas ao mesmo tempo
presente em meio ao concreto armado e ao barulho do trânsito caótico, rompendo com a
lógica temporal, intrometendo-se na rotina, lembrando-nos o tempo inteiro de onde viemos,
quem somos e o que somos. A Estação João Felipe resiste às intempéries, continua de pé,
atravessando essa Fortaleza que é outra, mas que tem seu passado junto ao presente,
análogos, distantes e roçando um ao outro.
Talvez nada disso tenha sido proposital. Talvez seja um ponto de vista meu que insiste em
transformar tudo em memória e poesia. Talvez por isso essas narrativas e a criação foram se
estruturando juntas.

As intenções se estruturam junto com a memória. São importantes para o criar. Nem sempre
serão conscientes nem, necessariamente, precisam equacionar-se com objetivos imediatos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fazem-se conhecer, no curso das ações, como uma espécie de guia aceitando ou rejeitando BOSI, Alfredo. o Ser e o Tempo da Poesia. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
certas opções e sugestões contidas no ambiente. Às vezes, descobrimos as nossas intenções BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. 15.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
só depois de realizada a ação. (OSTROWER, 1989)
MELO NETO, João Cabral de. AGRESTES. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
E foi no meio do turbilhão da criação que percebi que aquela aldeia onírica era tão minha OSTROWER, Fayga. CRIATIVIDADE E PROCESSOS DE CRIAÇÃO. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
quanto vossa. Parecia falar diretamente comigo, mas eu não conseguia entender de princípio, 1987.
Atrás do muro 04 - tijolos de memória, lá, mas não saberia com certeza a etnia. Eu já reconhecia em mim essa etnia, ainda que
indefinida ― afinal ela estava nos traços do meu rosto e na minha memória. Eu só precisava

identidade, extratos para descobrir


saber onde e como fazer esse acesso. A sugestão era refazer a cena e trazer a questão da
minha identidade indígena para ela.

e revelar quem se é Fui atrás de tudo, mas muito pouco eu tinha. Não moro com meus pais. Aliás, perdi minha
mãe há três anos e tenho pouco diálogo com meu pai. Estava em busca de uma história
de apagamentos e de negações sobre origens étnicas e da falta de consciência sobre quem
por José Júnior Santos de Araújo sou. Fator este que é também uma forma particular de genocídio, ligada à construção de
uma memória seletiva e censurada por uma matriz da colonialidade que ainda permanece
neste tempo. Para realizar este exercício, me olhei por horas no espelho, na tentativa de
Eira e beira/ Onde era mata hoje é Bonfim/ reconhecer e identificar os signos raciais presentes no meu próprio corpo.
De onde meu povo espreitava baleias/
É farol que desnorteia a mim... Recolhi nesses dias elementos dessa memória e construí outras. Comecei buscando uma
imagem de meu pai já com 60 anos sentado de cócoras, olhando os móveis de madeira que
Kirimurê - J. Velloso construía, olhando o tempo no quintal da minha casa. Posição essa que quase eu não consigo
ficar por minutos. Escolhi esta imagem para trabalhar como partitura corporal. Juntei
Acordei cedo ― e coloquei no papel todos os nomes, eram quase todos nomes masculinos. matulão, informações sobre a origem da palavra Camocim e decidi fazer o meu ritual.
Começava com Jesus Cristo, passando por Papai Noel, Lula, até Marcelo Camelo. Na lista
tinha apenas uma mulher: a mulher-barbada. Essas imagens perseguiram meu imaginário Na minha cabeça, já tinha desenhado uma dramaturgia. A cena seria uma espécie de
adolescente e adulto, mas só depois dos 34 anos me permiti a usar barba, embora tivesse documentário do reconhecimento de minhas raízes indígenas, como contraponto à atual
esse fascínio desde criança. Foi em 2015, no segundo semestre do curso de teatro, que fui situação indígena do país. Gritaria pelas etnias dizimadas, me pronunciaria sobre a PEC 215,
deixando aos poucos meus pelos aparecerem e, mesmo com muitas falhas, há dois anos uso que trata da demarcação das terras indígenas, e me juntaria ao grito do Guarani-Kayowá5,
uma barba! Não cheia, mas minha! Vocês não imaginam como isso era importante e, naquele que após a divulgação da carta de suicídio coletivo, moveu nas redes sociais uma ação virtual
momento, era isso que queria dividir no meu inventário de pequenas coragens, atividade em massa de solidariedade à causa, trazendo visibilidade à situação indígena no País pela
do workshop³ que foi proposto pelo professor Francis Wilker no processo de criação do imprensa internacional e causando pressão no Congresso Nacional.
espetáculo Cama de Baleias da disciplina Montagem do Curso de Teatro da Universidade Alimentado por textos, vídeos, conversas com amigos engajados politicamente com o
Federal do Ceará. tema, me vi cheio de materiais a serem experimentados na cena, mas não encontrava em
Montei uma ação performática, na qual citava essa lista de nomes de referências a barbados, mim como fazer aquilo vivo e verdadeiro. Via na minha história um decalque sobre aquele
me despia e cortava meus pelos pubianos e da região das axilas. Depois recolhia e colava com material coletado e sobre o que seria meu, onde estava minha história, minha origem étnica.
cola branca os pelos no meu rosto, nas falhas de minha barba. Tendo no rosto uma barba Lembrei da música Baila Comigo de Rita Lee, na qual ela diz: Se deus quiser, um dia eu quero
completa, cantava e dançava Ana Julia, da banda carioca Los Hermanos, grupo barbudo ser índio/ viver pelado, pintado de verde num eterno domingo ― mas não, eu nunca quis ser
referência da minha juventude. Nessa ação, liberava minha memória e soltava diversas índio. Assim, eu começaria minha cena-manifesto: ― Eu nasci em Fortaleza, mas meu pai é
frases que ouvi ao longo do tempo de amigos, de familiares, da mídia, da moda, da TV. E de Camocim. Eu nasci no dia 21 de maio de 1980, mas só no dia 05 de abril de 2017 descobri
gritava: ― Isso não é barba! É sujeira! ― Você nunca terá barba cheia! ― Índio não tem pelo! que sou índio! E cantava os trechos de Baila Comigo, cantava esta canção e chorava por agora
Essa última já havia sido dita pela minha mãe, e eu não recordava antes da ação; mas na hora entender que nunca quis ser índio.
veio à minha cabeça e a verbalizei. Quando se está num processo teatral como esse, nós, artistas, temos nossa sensibilidade
Na devolutiva sobre as cenas mostradas, o professor pediu que eu falasse sobre a frase Índio aguçada, como se tudo interessasse, tudo que víssemos pudesse ou não ter ligação com a
não tem pelo ― e me indagou sobre minha descendência indígena. Foi como um soco, pois pesquisa ― captamos e atraímos situações. Foi neste momento que me encontrei com um
eu não sabia falar nada sobre isso, só sabia que meu pai era de Camocim4 e que houve índios senhor que foi muito importante para a dramaturgia deste processo e, assim, eu registrei
nosso encontro, no Facebook no dia 05 de abril de 2017: Hoje no ônibus um homem me
disse que as pessoas só gostam de ser índio no carnaval... Ele estava indo pra ocupação fora os objetos molhados, apatia... (Se olha na água que molhou o quarto; como
da Funai em Fortaleza... Na conversa também me descobri Tremembé. Hoje o dia tem me um Narciso, se vê...) ― Quem eu sou, de que fortalezas sou feito? Preciso me
pegado em cheio... aproximar de quem eu sou. Moacir, o filho de Iracema? De que partes de mim
me cortaram, ou cortei? ― engraçado, fazia tempo que eu não sentava desse
Eu estava indo para a faculdade quando, no ônibus, um senhor sentou ao meu lado e
jeito. Aprendi isso com meu pai. Ele até os 65 anos ficava horas nessa posição...
perguntou se eu sabia onde era a FUNAI. Eu quase não acreditei. Eu sabia que o prédio ficava
na Parquelândia, bairro que cruza o meu percurso Benfica-Pici. Acho que até passei uma vez
Em um processo colaborativo, a dramaturgia vai sendo criada coletivamente, até um momento
em frente, mas não tinha como ter certeza. Ele me disse que era de Almofala e estava indo
em que um dramaturgo acessa esse material e também cria, propõe cenas, ressignifica
levar um recurso para os seus companheiros que estavam na Ocupação da FUNAI . Falei que
imagens, trechos, colabora com o material criado pelo ator e pelo diretor ― mas é na cena
me solidarizava com a ocupação e que também era índio, sorrindo meio desconcertado. Ele
que esse material ganha força, no reencontro desse material, agora texto dramatúrgico,
me olhou fortemente enquanto me perguntava se eu sabia minha descendência. Eu disse
com os atores. Engendrado com as outras histórias, criando uma história para ser contada,
que não e falei que meu pai era de Camocim e minha mãe era daqui de Fortaleza. Ele disse
que estabeleça relações com os diversos materiais, chega João Tuchi, dramaturgo goiano
no ato: Você é um Tremembé! E disparou: Os Tremembés vieram do Rio Grande do Norte a
radicado em São Paulo, convidado para o processo. Com todo nosso material que o professor
pé até Parnaíba. Alguns não ultrapassaram o rio. Naquele momento, em pensamento me vi
lhe enviara em mãos, João trabalhou muito rápido e logo chegou às nossas mãos a cena do
no rio que eu brincava em Camocim nas férias escolares. Eu sabia que depois daquele rio já
muro 04.
era Parnaíba, no Piauí. Aquele encontro viraria dramaturgia ― e mais de mim começaria a
aparecer. Não é só texto que se extrai de um processo como o relatado acima. É neste lugar de criação
que o ator observou seu corpo em movimento, afetado por emoções ao compartilhar suas
Na cena, construí uma partitura que misturava os passos do Torém6 , vestido com adereços de
histórias. É ali que o diretor pode visualizar tons, climas, nuances para termos onde revisitar
carnaval, um colar havaiano, misturava os movimentos e falava: ― Quando eu tinha 15 anos,
quando a cena pedir. Com o texto nas mãos, tive o encontro com o ator Jander Âlcantara,
deixei meus cabelos crescerem, chegaram até abaixo do ombro. Meus pais não se opuseram.
companheiro de turma com quem dividiria os dias para a criação, vindo de Sobral, cidade
Era uma cabeleira negra, grande. Nessa época, eu tinha dois apelidos: um era veado, o outro
vizinha a Camocim. Explorando o campus ensaiamos em um espaço do estacionamento que
era índio. Adivinha qual o que eu odiava? Nessa cena eu mostrava fotos, um apito e uma
me lembrava um trilho. Francis, que já tinha visitado a estação, tinha certeza que faríamos
pintura indígena que comprei numa viagem ao estado do Pará. Depois me pintava dizendo
nossa cena em um trilho. Experimentar o texto, criar ações, colocar essas palavras ― que
ter descoberto que o contrário de indígena é alienígena ― e terminava a cena ao som de Um
agora não eram só minhas, nem do Jander, nem do João... ― para fora.
índio, de Caetano Veloso na voz de Maria Bethânia.
Nossa primeira visita à Estação de Trem João Felipe foi muito intensa. Depois de um
Na devolutiva, o professor comentou da força do relato dos apelidos, pediu que eu usasse,
breve aquecimento, lá estávamos eu e Jander nos trilhos, experimentando a cena. Cheios
na próxima apresentação da cena, fotos da minha família e repensasse a música por ter
de emoções, pois ao entrar de novo na estação, abri um portal para um passado próximo.
um outro trabalho da Cia. Brasileira de Teatro, de Curitiba-PR, que utilizava essa mesma
Usei essa estação muito tempo, vim várias vezes ao centro de trem saindo da minha casa
música em uma cena que a atriz se pintava. Outra sugestão era que encontrasse uma forma
da estação do Álvaro Weyne ou da casa de meu irmão saindo do Conjunto Ceará. Minha
de encaixar a personagem de José de Alencar, Iracema, na cena ― e utilizasse fragmentos da
mãe me falou que já fora de Fortaleza para Camocim de trem. Em Camocim está a última
minha carta que escrevera no processo. As cartas eram para os que vieram antes de nós e os
estação de trem de uma das linhas que saía da Estação João Felipe. Até 2010, a estação fazia
que ainda virão.
dois sentidos ao Centro ― um sentido Caucaia, outro sentido Maracanaú ―, ligando duas
Na outra apresentação, na qual gravamos a cena para enviar para o dramaturgo, incorporei cidades da região metropolitana com nomes indígenas. Nestas cidades, temos duas tribos
as observações feitas: com remanescentes que vivem em território demarcado, os Pitaguary de Maracanaú e os
Tapeba de Caucaia. É impossível não lembrar que, até pouco tempo, havia uma piada para
Chove! Minha janela ficou aberta e no meu quarto há um pequeno rio... saindo os amigos que moravam nessas cidades ― eles eram chamados de índios. Quando o trem ou
da cama me vi na poça d’água... algumas roupas espalhadas no chão, revistas ônibus passavam nessas cidades, tínhamos que nos abaixar para não recebermos flechadas.
e sapatos dançavam naquele rio... (Vai até o rio de cócoras) ― Uma imensa Quantas vezes eu ri e reproduzi esse preconceito?
vontade de não fazer nada, não secar esse chão, vontade de simplesmente jogar
Parecia que o tempo não tinha passado mas, sim, havia sido suspenso. Aquele lugar cheio 5. Guarani-Kaiowá, ou Pai-Tavyterã (como se auto-denominam) são uma das etnias indígenas de maior população
de poeira, com piso gasto, vagões de trem parados e muito mato era um retrato do nosso em território brasileiro quase 45.000, estão presentes no sul do Mato Grosso do Sul. São também uma das etnias de
maior expressão, dado que os conflitos que estes grupos enfrentam e sua luta contra interesses econômicos de grandes
descaso e de nossa ânsia do novo. O METROFOR, projeto de metrô, teve sua obra com atraso
latifundiários, voltados à produção agropecuária, foi motivo de grande sensibilização nacional e frequente exposição
de mais de 10 anos ― e como resultado não integrou a antiga estação, quase aniquilou na mídia. Diversas pessoas colocaram o termo Guarani –Kaiowá como seu sobrenome na rede social Facebook, após
aquele espaço, deixando nele mais uma ruína na cidade, à deriva, à espera de um projeto divulgação de sua carta que anunciava "morte coletiva" em vez de emitida ordem de despejo.
de restauro que ainda estar por vir. O que se dará ali? Mais do que isso, outras questões
6. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em Fortaleza, foi ocupada em maio de 2017. Os manifestantes se colocam
aparecem: o que fazemos com os prédios de nossa cidade? Que uso daremos a espaços como contra a extinção de cargos e sucateamento no órgão. A crise refletiu-se nacionalmente causando a exoneração de seu
aqueles? Como lidamos com nossas memórias para além do material? presidente e a tentativa de indicação de um nome ligado a base aliada ao governo apoiada pelo Agronegócio.

Como lidamos com nossa memória? Posso tentar responder: seletivamente, elegendo o que 7. O Torém é uma dança dança específica mantida pelos Tremembé do estado do Ceará. Considerada como uma das
salvaguardar, reproduzindo nossa educação colonizada e branca, reproduzindo discursos principais formas de aglutinação e de organização étnica para os Tremembés de Almofala-CE. Realizada por pessoas de
ambos os sexos, os participantes, cerca de 20 pessoas, dançam em uma roda aos som dos instrumentos iguaré e flauta;
homogêneos que silenciaram processos de significação histórica de diversos povos. Esse
no decorrer da dança, os participantes bebem o mocororó (espécie de vinho de caju fermentado) e cantam músicas
percurso até aqui me mostrou mais que um apreço ao patrimônio material ou imaterial:
utilizando-se da antiga língua Tremembé. A dança consiste na imitação de animais, uma espécie de pantomima que,
me revelou quem eu sou, me fez urgentemente pensar no direito à memória, pelo direito de segundo os próprios Tremembés, é uma forma de imitar os animais que os ensinaram a sobreviver.
saber quem se é.
Aquele espaço contém o que também são camadas de pessoas soterradas. Minha gente REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
indígena morta por todos esses anos. Outros tantos esmagados na construção dessa cidade. RINALDI, Miriam. O Ator no Processo Colaborativo do Teatro da Vertigem. Sala Preta: Revista
Minha gente fortalezense esquizofrênica de uma cidade que quer crescer a todo custo, que de Artes Cênicas. São Paulo, ano 6, n.6, 2006.
só olha para a frente e não olha para trás, para as beiras, paras as margens. Agora estou
eu, enterrado sobre essas memórias, deixando escapar minhas imagens e o som dos apitos. SERAINE, Florival. Sobre o Torém (dança de procedência indígena). IN: Revista do Instituto
Resistindo! do Ceará (ANO XCI Tomo XCI). Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1955.
VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Compreendendo a dança do torém: Visões de
Para minha avó, Maria Pereira da Conceição, folclore, ritual e tradição entre os Tremembé do Ceará. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 9,
que não conheci, meu orgulho, minha inspiração; volume 16(2): 187-228 (2005).
Para meu pai, para que não esqueça a sua origem;
A todas as mães índias. Jornal O POVO. Fortaleza: Fundação Démocrito Rocha, [2017]-. Diário.Disponível em: <
http://www.opovo.com.br/jornal/cotidiano/2017/03/contra-nova-direcao-indigenas-
ocupam-predio-da-funai-em-fortaleza.htm >. Acesso em: 19 jun. 2017.
Portal Digital: Mundo Mira Ira - Danças Tradiconais? Disponivel em: <http://
3. Workshop é um tipo de procedimento de criação cênica comum no Processo Colaborativo. Miriam Rinaldi descreve digitalmundomiraira.com.br/Patrimonio/DancasTradicionais.php?pid=40063 >. Acesso
como a mais efetiva expressão autoral de um ator durante um processo. A autora contextualiza experiências nas em: 19 jun. 2017.
montagens do Teatro da Vertigem e do Tanztheater Wuppertal de Pina Bausch. A definição de workshop apresentada,
então, foi de uma cena criada pelo ator em resposta a uma pergunta ou um tema lançados em sala de ensaio. A introdução Portal Digital: Portal Terra - Apelo dos Guarani Kaiowa ecoa na comunidade internacional.
de perguntas, temas e palavras-chave foi o aspecto fundamental de diferenciação do workshop como procedimento Disponivel em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/apelo-dos-guarani-kaiowa-ecoa-na-
cênico. Nos workshops pospostos logo nos primeiros encontros do semestre, os alunos lançaram-se em improvisações e comunidade-internacional,f6c873f2ef6da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html >. Acesso
construiriam materiais de poéticas diversas. Este material foi também uma espécie de apresentação daqueles artistas ao em: 19 jun. 2017.
professor recém-chegado à cidade e ao Curso de Teatro da UFC.
Portal Digital: Portal de Camocim. Disponivel em: <http://portaldecamocim.com.br/sobre-
4. Camocim é um município do estado do Ceará, localizado no litoral Norte, com mais de 62 mil habitantes e 1158
km². O topônimo camocim, cambucy, camucym ou camotim vem do Tupi Guarani e pode significar buraco ou pote para
camocim/>. Acesso em: 19 jun. 2017.
enterrar defunto. Urna funerária dos indígenas. Provavelmente, Camocim é uma alusão ao ritual funerário (enterro) dos Portal Digital: Povos Indígenas do Brasil, Instituto Socio Ambiental. Disponivel em: <https://
Tremembés.
pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/550>. Acesso em: 19 jun. 2017.
EPÍLOGO
E PRÓLOGO
(Uma carta do dramaturgo) acredito nem desacredito em coincidências, por isso desse momento sobrou essa frase e a foto
do navio afundado.

por João Dias Turchi Antes de chegar em casa, anotei no bloco de notas do celular um primeiro diálogo que eu
gostaria de ouvir com essa música de pano de fundo, uma primeira frase, que era “filho, me
procura no meio do mar”. Eu e Francis somos do meio do Brasil, qualquer mar na nossa infância
e adolescência ficava há pelo menos um dia inteiro de viagem da gente. Talvez por isso o mar
As histórias podem ser contadas pelas pessoas ou pelas coisas que as pessoas deixaram. exerça esse misto de fascinação e medo, e pode ser também que seja ele o nosso fio condutor ―
Perceba, nunca é a mesma história, ainda que se esteja no mesmo espaço e tempo. Existe uma essa distância ao oceano o que nos une como sujeitos e artistas. Na nossa última peça, falamos
relação entre o que aconteceu, o que acontece e o que vai acontecer. O agora é tão rápido que muito sobre o mar que é o mesmo em qualquer parte da costa, em qualquer lugar do mundo e
comporta apenas o momento em que você consegue falar a palavra agora. Agora. Agora é ao longo dos ensaios tentamos em vão chegar até ele, traçar uma trajetória que terminasse em
também sempre passado e futuro. E a história comporta maiúsculas e minúsculas, anônimos e água salgada. Pensei: talvez nessa peça a gente consiga.
nomes próprios, objetos expostos numa loja de departamentos e outros guardados na gaveta As mensagens do Francis continuavam chegando e eu já não sabia dizer o que era um pedido
da cozinha, marcados pelas refeições em que já participaram, tortos pelas vezes em que foram do Francis para escrever uma peça e o que era um desejo meu de falar sobre essa cidade que eu
levados às panelas, ao chão. E o chão muda seu revestimento a cada par de décadas, mas nunca tinha conhecido, de continuar por perto dele, de desembocar no mar.
embaixo dele é sempre igual e mais embaixo ainda a gente provavelmente nunca vai chegar.
Como sempre, nós não conseguimos chegar no oceano. Me vi preso numa estação de trem
Ao centro da Terra. Ao centro do mundo. A um ponto em que a terra e o mundo façam sentido
abandonada, escrevendo histórias sobre as construções e as ruínas do ferro que eu via
completo para todos de todos os lugares.
envelhecido nas fotos do Francis, criando diálogos pra pessoas cujos nomes eu não me
O Francis Wilker me mandou uma mensagem um dia. Não tinha nada escrito, era uma foto de lembrava. Essa foi provavelmente a primeira vez que participei de um processo colaborativo
um navio encalhado no mar. Respondi com alguma figura pré-concebida pelo meu celular, um à distância. Como dramaturgo, eu procuro construir um espaço de dádiva e trocas recíprocas,
coração, um rosto sorrindo, um dedo indicando positivo. No dia seguinte, o Francis me mandou me apresento para o grupo, eles se apresentam para mim, trocamos textos, nos engajamos em
um vídeo dos seus muitos alunos cantando. Alguns estavam sem camiseta. Um deles sapateava. negociações que no fim de um período levam a uma ação pensada por todos, ainda que tenha
Outra batia numa caixa como se fosse um tambor. Assisti a esse vídeo mais de uma vez antes sido eu quem a articulou de maneira definitiva. Eu nunca tenho todos os textos de uma peça, a
de responder qualquer coisa. Eu e Francis falamos muito sobre arte e sobre nossa vida, fora versão final da dramaturgia. Meus arquivos são sempre em word, não em pdf, porque ao longo
e dentro dela, e é quase sempre impossível separar uma coisa da outra. Quando o Francis dos ensaios e apresentações eu incluo e excluo falas, os atores colocam palavras que eu não
decidiu ir pra Fortaleza, São Paulo perdeu um pouco de arte e de vida pra mim. O Francis tinha dito e o texto vai virando uma espécie de programa de ações remontáveis.
foi meu professor e com ele eu aprendi a ver uma cidade diferente do que eu via, a enxergar
Nesse processo, essas negociações também aconteceram, mas mediadas pelo celular do Francis,
possibilidades de se escrever sobre ela, dentro dela ― então quando o Francis foi pra Fortaleza,
suas fotos, vídeos e áudios que me contavam o que estava acontecendo, o que não funcionava e
essa cidade que ele me mostrou foi um pouco junto. A gente continuou se falando e talvez
quais eram os desejos daqueles que iriam falar o que eu punha nesse arquivo aberto.
isso tenha me ajudado a continuar andando pelas ruas e imaginando peças que poderiam
acontecer em terrenos baldios, prédios abandonados, debaixo da ponte, dentro da minha casa, Quando meu avião chegou em Fortaleza, quando eu vi o mar de Fortaleza pela primeira vez,
numa caçamba de lixo, numa praça e em qualquer outra cidade que não essa que coabitamos quando Francis me mostrou um pouco da sua nova cidade, dos seus alunos e eles colocaram o
por um tempo. texto que eu tinha escrito no espaço, eu tive vontade de começar tudo de novo. Porque eu escrevo
pra teatro exatamente pra isso, pra espacializar as palavras, pra que as pessoas possam jogar
Outro dia, o Francis me mandou uma mensagem de voz contando sobre suas primeiras
com elas e jogar elas fora. Eu escrevo pra teatro pra me apaixonar um pouco pelo jeito que
impressões da cidade, sobre ser professor universitário, ter um grupo de alunos que esperam
as pessoas escolhem dizer em voz alta o que a gente escreveu juntos, pra me apaixonar pelas
por respostas e que respondem coisas imprevisíveis. Me contou os caminhos das investigações
pessoas que falam em tempo real o que eu pensei à distância.
e as palavras que usavam como mote: ruína, demolição, destruição, naufrágio. Antes de ouvir
a mensagem de voz do Francis, meu celular tinha randomicamente me colocado para ouvir Agora a peça ainda não existe. Eu escrevo esse texto pra me sentir mais próximo aos atores, à
Fora da Ordem, do Caetano Veloso, aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína. Não Fortaleza, ao Francis. Continuo recebendo mensagens curtas demais pra minha curiosidade
sobre os rumos que o espetáculo está tomando, as mudanças que eu tive que fazer depois da
minha única visita e o que continua fazendo sentido no espaço.
Essa vai ser o último uso da estação de trem antes que ela seja fechada para restauro. Uma
espécie de despedida, um ritual pré-reconstrução. Agora, tenho vontade de começar tudo de
novo, de escrever um texto que fale exatamente sobre os usos da cidade, sobre as margens, o
que perde o sentido, o que é fechado pra restauro. O que acontece com a gente quando nossos
espaços vão sendo lacrados pra restauração?
Eu escrevi uma peça sobre uma cidade cercada pelo oceano que tem medo de se encher de
água. Mas eu queria falar agora sobre o desejo que sinto de chegar até o mar. Talvez um dia,
Francis, a gente consiga escrever sobre isso.

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