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O Pentateuco

Pe. Aldemir F. Belaver

4. Eixos Literários
Quais são os eixos formadores do Pentateuco? Pode-se apontar para um primeiro eixo que circula entre os textos do Gênesis até o Deuteronômio,
que é o eixo chamado Aliança. Esse é um tema que circula entre esses textos, vamos pensar a aliança de Deus com Abraão, desde Gênesis 12. Vemos a
aliança de Deus com Noé, em Gênesis 6, 9, mas também percebemos a proteção a Caim depois que ele matou a Abel, ou a aliança que ele faz com Adão.
Desse modo temos a perspectiva da descrição de uma teologia ou de um eixo que perpassa por esses textos que é a aliança de Deus com o povo, seja ela
representada com Noé, para representar a humanidade, com Abraão para representar os hebreus, ou a aliança de Deus com Moisés na libertação do povo
do Egito. Temos aí um tema que vai circular em todo esse conjunto. Quase que nesse eixo ele vai amarrar, vai dar uma direção, dentro desse conjunto de
textos, que é Aliança.
Mas a aliança vem compreendida com o outro lado nessa direção que é promessa. Aliança e promessa caminham juntas. Desse modo temos a
promessa de descendência nas histórias de Abraão, a promessa de não destruição na narrativa de Noé, do dilúvio, a promessa de terra nas descrições do
Êxodo, a promessa de salvação. Temos aqui, um tema totalmente colado que forma um direcionamento nesse conjunto de histórias, aliança e promessa.
Esse seria um dos eixos fundamentais das narrativas do Pentateuco.
Do outro lado, nós temos mais outros dois temas que formam outro eixo, que seria o Êxodo, a libertação. Esse é um tema importante que vai dar as
amarras do texto em si. Porque é no Êxodo que eles vão dar a indicação para a festa da Páscoa, vão dar indicação de um Deus que é presença. Por isso o
nome de Javé. E é nessa discussão sobre o Êxodo que gira o grande carro chefe do Pentateuco. Porque as histórias vão ser gravadas antes do Êxodo, e
durante o Êxodo. E a perspectiva que termina o Pentateuco é depois do Êxodo. Temos um tema tão forte, o qual já aparece refletido em textos literários
anteriores a história do Êxodo. Por exemplo, quando abrimos Gênesis 12,10-20, a história de Abraão e Sara, onde Abraão ao caminhar para o Egito, desce
ao Egito e vai dizer para Sara: “Sara, você é muito bonita, os homens aqui do Egito vão ficar de olho em você, se perguntarem, diga que és minha irmã”.
Essa é a indicação de Abraão para Sarah. Quando Abraão chega ao Egito, os homens do Egito se gabaram por causa da beleza de Sarah, e aí vão falar para

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o Faraó, e o Faraó toma Sara e a leva para o palácio. Quando o faraó está com Sara no palácio, Deus envia pragas para a casa do Faraó, e o Faraó tem que
libertar Sara, e mandar Sarah e Abraão embora.
Essa narrativa, nestes pequenos versículos, está contando aquilo que está no livro do Êxodo. Primeiro você tem no grande quadro, o povo hebreu
oprimido e massacrado pelo Faraó. Nesse texto você tem Abraão e Sara, mas muito mais Sara, oprimida e massacrada pelo Faraó dentro do Palácio.
Depois num segundo momento, Deus escuta o grito do povo e envia os sinais para libertar o povo do Egito. Neste pequeno texto, Deus ouve Sarah e
manda pragas para que o Faraó a liberte. E no final claro você tem a libertação do povo hebreu, juntamente com a saída de Abraão e Sarah do Egito.
Dessa forma, nessa pequena narrativa, temos uma espécie de síntese de todo o conjunto, que são as histórias do Êxodo. É um grande tema que circula
desde o Êxodo até o Deuteronômio que é a experiência do povo hebreu na sua saída do Egito.
Mas a experiência do povo hebreu que sai do Egito, tem que vir acompanhado de outro tema que amarra aqui esse segundo eixo de direção do
Pentateuco que é a posse da Terra. O Êxodo não existe sem a posse da Terra, ou seja, quase que a libertação do povo hebreu no Egito não tem função se,
não houver a caminhada e a chegada à terra prometida. Por isso que todo conjunto dos textos do Deuteronômio tenta frisar nessa frase: “quando tu
entrares na Terra, observarás e farás isto”, todo o conjunto da Lei tem em vista quando entrares na terra, quando estiveres na terra, farás isto, farás aquilo.
Temos um grande conjunto de histórias que são amarradas, quase que estruturadas, nesses dois eixos: Aliança e promessa; Êxodo e terra.

5. A razão dos mitos?


Mitos são narrativas utilizadas pelos povos antigos para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles.
Os mitos se utilizam de muita simbologia, personagens sobrenaturais, deuses e heróis. Todos estes componentes são misturados a fatos reais,
características humanas e pessoas que realmente existiram. Um dos objetivos do mito é transmitir conhecimento e explicar fatos que a ciência ainda não
havia explicado. O Mito é baseado em histórias ou epopeias (grandes narrativas) não comprovadas que são passadas de geração em geração. Neste
sentido, o Conhecimento Mitológico possui relação com o Senso Comum, ou seja, não possui nenhum tipo de fundamento ou comprovação dos fatos.
Nosso empenho é descobrir, nesses textos bíblicos, o verdadeiro significado desta estória. Qual o fim último que está por trás do texto.
Um primeiro conjunto que está logo na abertura do Pentateuco, é a descrição mítica. Temos que ler todo esse conjunto de mitos como um modo dos
vários grupos interpretarem a sua realidade. Esses mitos, não é que eles foram formados pelo mesmo ambiente, pelo mesmo grupo. São mitos que vem de

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épocas diferentes, são mitos que são releituras, são mitos que são verdadeiros contra mitos, ou seja, eles já conheciam o mito antigo e escreveram um
novo mito para combater aquele mito.
Evidente o mito de Gênesis 1, na criação do céu e da terra, onde Deus cria todo céu e toda a terra em contraposição ao poder do Sol. O Sol só está
lá no quarto dia, e o Sol eles já conheciam o antigo mito babilônico do Marduck, que cria o céu. Marduck é o Sol e o céu. O grupo conhece esse relato
mítico e a partir daí elaboram seu mito com tamanha poesia, tamanha estrutura, dentro daquela lógica dos sete dias, para poder focalizar a grande intenção
do grupo que é a reinvindicação de um tempo de descanso. Por isso que o último relato mítico culmina no sábado, e o sábado, dia do descanso está
atrelado a um grupo dominado, escravizado que luta contra a opressão e exploração do trabalho. É como dizer: precisamos de um tempo de descanso. E
jogam isso ao poder divino, que diz: devemos descansar, porque Deus próprio descansou.
O mesmo no mito do dilúvio, a Arca de Noé e toda aquela história diluviana está em contraposição ao mito do dilúvio babilônico. O mito do dilúvio
babilônico, tinha a intenção de impor medo no meio do povo, e aí você tem nesse relato bíblico, o contra mito porque ele termina justamente com a
afirmação de dilúvio nunca mais. Quando aparece o sinal do arco íris, que não vai ter mais dilúvio, ali está a afirmação do grupo. Não precisamos mais ter
medo, essa historinha já passou. Sendo assim você tem o grupo resistindo aos mitos que lhe são impostos.
Noutra linha você tem os mitos mais voltados para a tradição camponesa, que é o mito de Adão e Eva e o jardim. A horta onde eles são colocados.
Ali está a perspectiva de olhar a vida a partir da fertilidade, a partir da produção, a partir da garantia da comida. Esse é o Adão e Eva. E o que eles vão
perder é essa garantia de comer, essa garantia de produzir. Em cima dessa perda da garantia de comer, produzir, vem o mito, onde se está olhando para as
transformações na sociedade, que é o mito de Caim e Abel. Caim que mata o Abel, não é irmão matando irmão. Caim matando Abel, é o processo de
transformação na sociedade, onde o pastor perde o seu espaço de terra para o agricultor. E por sua vez, o agricultor perde todo o seu espaço produtivo para
a cidade. Por isso no final do mito de Caim e Abel, você tem que Caim mata Abel e foge. Caim vai parar na terra de Nod, e lá na terra de Nod, ele vai ser
nod, ou seja, na terra de ninguém, ele vai ser um zé ninguém, ou seja, ele perdeu todas as suas funções na terra do nada. Ele vai ser andarilho, migrante,
ele perdeu todas a suas funções. E assim, o pastor é totalmente controlado, destruído pelo espaço de agricultura, e o espaço de agricultura é totalmente
controlado e devorado pela cidade.
Esses mitos vão escrevendo todas essas dimensões, daquilo que eles estão vivendo e vendo em todo esse conjunto da realidade. Esses mitos
culminam com a descrição da torre de Babel. A Torre de Babel, não é só a torre. A cidade é a torre e ali nos deparamos com um verdadeiro mito

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antimilitar, onde Deus está vendo a cidade/torre ou a fortificação construída pelos homens, ou construída pelo estado. O mito termina de maneira
brilhante, Deus indo ao encontro para poder destruir essa cidade e está torre para poder parar a construção.
Por fim, temos nesse primeiro bloco, nessa primeira parede, um conjunto de mitos que estão amarrados pelas verdadeiras genealogias, por aquela
construção de histórias de idades fabulosas. Nada mais que um olhar para um tempo primordial, onde o povo tinha muita idade, o povo tinha muitos anos.
Mas é claro e evidente que isso é interpretação para um momento presente. É fato notável quando se chega a 80, ou seja, não se passa de 80. Agora
quando você descreve que alguém, que não passa dos 80, lá eles estão descrevendo alguém que chega ao 980. Esse grande exagero na idade é uma
dimensão muito forte desses mitos em descrever o quanto eles estão projetando para os tempos primordiais. Um tempo onde a vida era melhor, para poder
falar de um tempo que estão vivendo. Onde a vida era melhor em comparação de onde só há miséria, onde só há exploração. E por que desta exploração?
Qual o motivo que estão padecendo nesse momento da história? Claro, pelas escolhas malfeitas durante a história. De como abandonaram Deus e sua
proposta inicial. De como violaram a antiga aliança.

6. A razão das histórias?


Do mesmo modo, quando nos deparamos com os textos bíblicos, encontramos não só mitos, como vimos. Surgem a todo momento verdadeiras
histórias. Diferentemente do mito, as histórias são verdadeiras, e pretendem traduzir as experiências dos primeiros, primitivos povos, que descobriram sua
fé através de uma vivencia, experiência de vida. No concreto de suas vidas. Vamos ver algumas delas.
Nessas histórias ao redor de Abraão e Sara, há uma preocupação enorme de Deus para Abraão ter um filho. Podemos pensar que Deus está mais
preocupado com o filho de Abraão do que o próprio Abraão. Mas isso vai sendo trabalhado nas entrelinhas do texto. Um Deus protetor, um Deus da
Família, um Deus bem fixo nessas histórias do clã, onde essa preocupação toda de Abraão ter um filho, de que Sarah vai ter um filho, é a costura das
narrativas, que são apresentadas pela analogia que está no capítulo 11, 27-32 de gênesis. No versículo 30 tem uma informação meio que estranha em toda
essa genealogia, “e Sarah era estéril, não tinha filhos”. Quando você tem essa frase num conjunto de genealogia, é para mostrar que Sara está fora do
esquema. Porque a genealogia é de se apresentar que tenham filhos, que tenham posteridade. Quais são os filhos da Sara? Não, ela era estéril, não tinha
filhos. Uma nota estranha na apresentação das histórias de Abraão. É a nota que você tem que dar atenção em todo o conjunto. Abraão Caminha o tempo
todo em busca da promessa, da Aliança, em busca da terra em busca de viver. Mas toda a base de sua busca está no filho. Por isso temos as várias

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tentativas de ter filhos por parte deste casal. Ele pode apresentar Eliezer como seu herdeiro, ele pode ter um filho com Agar, e ser Ismael o seu herdeiro.
Ele pode ter um filho com Sara, e esse filho ser fruto da risada, e por isso o nome do menino é risada, Isaque. Temos todo um conjunto de narrativas
focadas em Abraão, preocupadas com o filho. Essa preocupação com o filho para Abraão é algo primordial para garantir herança, terras, para garantir
futuro. Isso vai amarrando no grupo, que vai construindo essas narrativas. É por isso que temos Gênesis 12, com a abertura de Deus chamando Abraão,
para sair de tua terra e ir para uma terra boa. Temos as histórias de Abraão e Ló, que tem a ver com o espaço que eles estão localizados. Temos nos
capítulos 15 e 17 a promessa que está atrelada, evidentemente à terra e filhos e, atreladas ao nome e a circuncisão. Temos todas essas histórias de Agar no
capítulo 16, no capítulo 21. Tudo isso girando em torno da grande dimensão do Abraão que vai atrás de ter um filho. E é claro, essas narrativas são
carregadas de dramas, de vivacidade, porque está sendo narrado, contado.
Vamos imaginar alguém estar narrando para nós que Abraão está à procura de filho, está querendo um filho, e quando chega lá em Gênesis 22,
Deus pede para ele matar o menino. E aí? Acabou a história? Mas em toda essa dimensão que está ali, é toda a vivacidade do texto. Quem produziu isso,
produziu com uma tamanha intenção e astucia, que quando nos aproximamos do texto, quando você vai ler aquela história, que é tão dramática, é nada
mais, olhar para o clã, o quão dramático é a perda do filho, a luta para se ter um filho, para dar continuidade ao clã. Essa é a perspectiva que vai
perpassando. Toda crítica nesse conjunto de histórias que envolve Abraão e Sara é a busca de se ter um filho. Claro que se tem nas entrelinhas muitas
questões redacionais posteriores. Um exemplo, dentro dessa parede que aparece, temos um quadro que colocaram depois na parede. A discussão de
Abraão e Sara de um lado e Agar de outro. E as histórias de Agar tem a ver com o nascimento do filho que é Ismael. Esse Ismael vai ser, de acordo com a
Lei, o herdeiro. Mas temos justamente no capítulo 21 de Gênesis, onde Sara e Abraão mandam Agar e o menino embora. Que no fundo está falando da
discussão, nesse conjunto de narração, ao redor da expulsão, ou o fim do casamento com mulheres estrangeiras. É um tema pós-exílio, quando, no fundo,
o judaísmo, para manter sua identidade, vai ter que evidentemente buscar a purificação do sangue, a purificação da raça. Procura desfazer os casamentos
estrangeiros. Mas tudo isso é colocado nas histórias de Abraão, para poder dizer que lá, nas histórias de Abraão, ele desfez os casamentos. E é claro que
tomando Abraão como exemplo, daquele que expulsou a mulher estrangeira, daquele que expulsou o seu filho, daquele que era filho com uma mulher
estrangeira, justificar suas ações no agora, no hoje da vida. Evidentemente que não sabemos se Abraão fez isso, porém, quem está costurando tudo isso,
quem está descrevendo essa cena do capítulo 21, nada mais está trabalhando aquilo que é a realidade de sua época. É um período marcante da expulsão e
fim dos casamentos mistos.

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Então essa parede, é claro, é uma parede muito bonita das amarras de todas as histórias e buscas do Abraão e da Sara. Tem risada, tem muito
drama no meio dessas histórias todas, são as histórias de Isaac, Jacó e Esaú. Porque as histórias de Isaac, são totalmente coladas nas histórias do Abraão,
quase como se Isaac repetisse Abraão. Mas quando ele começa a contar as histórias do Isaac, ele está mais preocupado com a descrição do conflito
Esaú/Jacó. Nas histórias de Esaú e Jacó, nas histórias de Isaac e nas histórias de Abraão, temos quase que um mesmo ambiente, que são histórias que
circulam preocupados com o itinerário, preocupados com a herança, preocupados com a formação do clã, com a formação do povo. Por isso, quase que
vai num crescente, Abraão, Isaac e Jacó. Jacó terá predileção e vai tomar a herança do Esaú, ou seja, Jacó tomando herança de Esaú, é como Isaac que
toma a herança de Ismael. Nessa construção toda, do que vai em Gênesis 12 até Gênesis 36, temos uma grande formação de histórias e narrativas, que
evidentemente circulam em diferentes ambientes, mas que são costuradas dentro de uma mesma perspectiva, dentro de um mesmo traço cultural. São as
histórias que focalizam o grande tema da herança. Por isso que Jacó é o grande nome da herança, o grande nome da constituição do Israel. Jacó tomando
toda a primogenitura que era dada a Esaú, é o mesmo que Isaac tomando toda a primogenitura que era de Ismael. Nada mais é que a construção de
histórias que eles vão elaborar com a formação do povo. São narrativas mítico-formadoras ou fundacionais. Do que se trabalha com o conceito do povo de
Israel. Vão dizer que o povo de Israel está relacionado com a história de Abrão, Isaac e Jacó.
Outra parede, que é um outro ambiente nessas histórias patriarcais, é a história de José, o filho preferido de Jacó, que vai ser vendido pelos irmãos.
Essa narrativa, ou essa história temos que ler no conjunto literário do Pentateuco, como uma grande historieta. Hoje muitos costumam dizer, uma grande
novela. Não vamos lidar aqui com a discussão literária se é historieta ou se é novela. Claro que o conceito de novela é uma aplicação muito moderna para
você dizer que esses conjuntos literários antigos são novelas. Por isso que fica quase que melhor o tom de conto, ou historieta, para esta obra literária,
onde eles estão justamente trabalhando com o grande drama do irmão, do grande drama dos conflitos familiares, ou dos conflitos clânicos. Temos um
irmão que foi entregue para os egípcios, por causa de ciúmes, por causa de desavenças. Claro, ele está construindo a história dentro do drama de conflito
familiar. É por isso que é uma historieta, porque ela vai ter diferentes dimensões e pode ter diferentes perspectivas para quem conta, ou para quem utiliza
a história. É isso que está numa historieta. Ela pode ser usada por grupos para poder trabalhar a questão do drama humano, do conflito entre irmãos. E
como que se resolve esse conflito? Como é que você quebra ali o sentimento de ira, de raiva, ou de rancor? Isso se perpassa nas histórias de José. Por isso
que termina com José perdoando os irmãos, no tom da grande família, essa é a dimensão que pode estar no conjunto de toda essa historieta.

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Mas tem grupos que vão utilizar essa historieta, justamente, na figura do José que vai parar e vai se tornar ministro do faraó. Muitos grupos vão
utilizar essa história do José, ministro do faraó, ou José com um grande cargo na casa do faraó, ou no palácio do faraó como uma historieta para alimentar
o projeto tributário. Na interpretação do sonho dado por José a fundamentação do tributo para o Estado. Recolher e armazenar em tempos de vacas gordas,
para sobreviver em tempos de vacas magras. Mas quem é que vai sobreviver? Quem é que vai recolher e armazenar? É o palácio. Recolher do povo e
armazenar, então é nessa dimensão para alimentar o projeto tributário. No capítulo 43 de Gênesis, José quando envia os irmãos de volta e quando ele
coloca e entrega um talento, entrega moedas para cada um. Entrega essas moedas, entrega esse dinheiro, para que os irmãos voltem e tragam o dobro,
tragam a mais, ou seja, ali está a artimanha dessa lógica tributária. Você entrega parte da sua produção para o outro, reconhecendo e tendo a certeza de
que ele vai entregar o dobro, sempre a mais. Essa é uma lógica econômica antiga. Hoje a gente diria diferente, mas ali tem suas bases. Evidentemente de
um recolhimento. Essa garantia que você só vai ter e aumentar a sua produção, se você vai alimentar a autoestima do outro, e fazer o outro produzir mais
para você. E é isso que o José faz: os irmãos produzirem, devolverem para ele aquilo que ele deu. E se ele deu um, eles vão trazer dois. Essa é a garantia
que ele tem. Agora como que nessa garantia eles vão trazer os dois? Porque no fundo ele está aqui como o irmão caçula, porque no fundo aqueles irmãos
sabem que já perderam José e o pai ficou muito angustiado. Então, o pai não aguentaria. Jacó não aguentaria perder o outro filho. Esse jogo que está ali na
trama, mas que os redatores, ou quem está trabalhando essa historieta, está trabalhando em outras perspectivas. E no ambiente em que ela é apresentada,
ela pode alimentar um sistema tributário em cima de situações muito cotidianas contadas pelo povo, que são problemas de conflitos familiares. Tanto é
que, das histórias do José, o que é mais lembrado pelo povo em qualquer ambiente, em qualquer lugar, é o drama de ser vendido pelos irmãos. Não do
José que foi parar no palácio e que interpretou os sonhos do faraó. Mas é o José que vai viver esse drama, porque no fundo isso cola muito com aquilo que
o povo vive, o drama dos conflitos familiares.
7. Observações finais
Como se vê, Moisés não pode ser tido como autor do Pentateuco no sentido moderno; não escreveu por inteiro a Lei.
Moisés, porém, é o inspirador de toda a legislação hebraica antiga: ele criou a tradição jurídica e historiográfica de Israel; deu-lhe seus
fundamentos e suas grandes linhas, que os juristas posteriores adaptaram e desenvolveram.
Daí dizer-se que Moisés é o autor "da substância" do Pentateuco. Esta função era suficiente para que os judeus antigos atribuíssem simplesmente
o Pentateuco a Moisés. Os semitas tinham um conceito especial de totalidade: no núcleo inicial de determinada obra já viam incluída toda a evolução

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posterior dessa obra e atribuíam o conjunto inteiro ao autor do núcleo: assim é que Moisés pôde, sem mais, ser considerado pela tradição judaica como
autor do Pentateuco.
O fato de se admitirem fontes e mãos diversas na redação do Pentateuco não exclui a índole inspirada desse livro. Salva-se o conceito de
inspiração, dizendo-se o seguinte: o redator ou os redatores que concorreram diretamente para dar ao Pentateuco a sua forma definitiva, foram iluminados
pelo Senhor a fim de distinguir, em suas fontes ou em seus conhecimentos, o que correspondia e o que não correspondia à mensagem que o Senhor por ele
(ou por eles) queda comunicar aos homens; assim iluminados ou inspirados, só incluíram no texto canônico do Pentateuco os elementos portadores de
autêntica lição religiosa.
Uma palavra final sobre todo esse conjunto do Pentateuco que é perceber dentro de toda essa dimensão da casa, dessa casa com todos esses
cômodos, ela não existe, ela não tem a grande funcionalidade se você não perceber que ela tem luzes, tem clareiras que vão abrir o olhar para todos esses
espaços, que evidentemente é a teologia, ou as teologias que costuram essas narrativas, desde a teologia dos mitos, que é a teologia do Deus que cria, do
Deus voltado para a humanidade, do Deus preocupado com os problemas de corrupção, até as narrativas onde você tem uma teologia de um Deus pessoal,
de um Deus preocupado com Abraão, preocupado com Isaac, preocupado com Jacó, há uma teologia no outro cômodo, de um Deus que ouve o clamor do
teu povo, de um Deus que desce, de um Deus que liberta, até um Deus da lei, que é o Deus que dá a condução para o povo caminhar bem, seguro e feliz
para a terra da promessa. Essa é a grande dimensão do Pentateuco, é isso que a gente tira, ao sair dessa casa, e ao fechar a porta da casa, dizer, olha, eu
aprendi com essas histórias do Pentateuco de um Deus preocupado com a vida, de um Deus preocupado com a caminhada do seu povo.
Bibliografia
BIBLIA DE JERUZALÉM
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. II/I. Ed. Vozes. 1975.
BRIEND, J., Uma leitura do Pentateuco. Ed. Paulinas. 1980.
CHARPENTIER, E., Para uma primeira leitura da Bíblia. Ed. Paulinas. 1980.
LÄPPLE, A., Bíblia: interpretação atualizada e catequese. Vol. 1. Ed. Paulinas. 1978.
LOPEZ, FELIX GARCIA. Pentateuco Vol 3, Coleção Introdução ao Estudo da Bíblia. Editora Ave Maria. 2015.
SKA, Jean Louis. Introdução ao Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3ª ed. São Paulo: Loyola. 2014.

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