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Acta Farmacêutica Portuguesa

2013, vol. 2, n. 2, pp. 121-134


Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes
facilitados com drogas
Beverage Chemical control adulterated in drug facilitated crimes
Prior, J.A.V.1, Ribeiro, D. S. M.1, Santos, J. L. M.1
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

RESUMO

Embora os fármacos sejam desenvolvidos com fins terapêuticos, às vezes algumas substâncias são
utilizadas com objetivos diferentes daqueles que o farmacologista teve em mente. A palavra fármaco
também contempla substâncias psicoativas que podem usar-se com objetivos medicinais ou não-
medicinais nos quais são incluídas substâncias legais e ilegais (comummente designadas por
“drogas”). O uso de algumas substâncias com intenções não terapêuticas tornou-se um problema de
saúde pública crescente, muito importante do ponto de vista de estudos toxicológicos. Quando
supostas vítimas informam que foram roubadas ou assaltadas enquanto incapacitadas por uma
droga, a análise química toxicológica é imperativa para ajudar a fundamentar a denúncia da vítima.
Este tipo de ofensas criminais denomina-se por crimes facilitados por drogas. O ramo da ciência
dedicado a estudos de toxicologia envolve a toxicologia forense e analítica, que são interdisciplinares
e que compreendem todos os factos científicos relacionados com crimes facilitados por drogas.
Normalmente, os casos de crimes facilitados por drogas implicam substâncias com fortes efeitos
depressores do sistema nervoso central, e que são usadas para transformar as pessoas em vítimas
fáceis de roubos ou assaltos sexuais. Dado que novas drogas são continuamente sintetizadas e,
também surgem novos métodos para drogar vítimas sem o seu consentimento ou conhecimento, é
imperativo desenvolver novas metodologias de análise química e toxicológica, para auxiliar na
investigação científica de todos os factos dos crimes cometidos com drogas, ou ainda possibilitar a
implementação de medidas de prevenção. Por exemplo, um modo de drogar vítimas sem o seu
conhecimento é através da colocação disfarçada de drogas em bebidas, nos locais de diversão social,
em festas, em “raves”, etc.. Nestes casos, as bebidas adulteradas são as “armas do crime”.
Neste artigo, será abordado o enquadramento de crimes facilitados por drogas nas ciências de
análise química toxicológica e também, será realizada uma revisão bibliográfica das metodologias
analíticas disponíveis para o controlo químico toxicológico de bebidas adulteradas com drogas de
abuso.
Palavras-chave: Crimes facilitados por drogas; Metodologias automáticas; Bebidas adulteradas;
Drogas de abuso; Rastreio de drogas

1
Requimte/Laboratório de Química Aplicada, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia da
Universidade do Porto, Porto, Portugal

Endereço para correspondência: João A.V. Prior E-mail: joaoavp@ff.up.pt

Submetido/ Submitted: 23 de outubro de 2013| Aceite/Accepted: 20 de novembro de 2013


© Ordem dos Farmacêuticos, SRP ISSN: 2182-3340
Prior, J.A.V., Ribeiro, D. S. M., Santos, J. L. M.

ABSTRACT

Although drugs are developed with therapeutics intentions, sometimes some substances are used for
purposes other than those the pharmacologist had in mind. The word “drug” also involves
psychoactive substances that can be used for medicinal or non-medicinal purposes in which it is
included substances that are legal or illegal. The use of drugs for intentions other than their
therapeutic purposes has become a growing public concern making their study very important from
the toxicological standpoint. When alleged victims report that they were robbed or assaulted while
incapacitated by a drug, toxicological chemical analysis is imperative to help substantiate the victim’s
claim. These criminal offenses are known as drug facilitated crimes. The branch of science dedicated
to toxicology studies has two application fields, forensic and analytical toxicology, that are
interdisciplinary and that comprise all the scientific facts related with crimes committed through the
use of drugs. Most often, the cases of crimes facilitated by drugs involve substances that have strong
central nervous system depressant effects that are availed to easily render victims to robberies or
sexual assaults. As new drugs are continuously being synthetized and new methods are used for
drugging victims without their knowledge or consent it is important to develop new analytical
methods that can assist in the investigation for figuring out all the details about this sort of crimes or
enable ways of their prevention. For example, one way of drugging victims without being aware of is
through drink spiking in social entertainment places, during parties, raves, etc. In these cases, the
spiked beverages are the “crime weapons”.
In this paper, it will be presented the relation of drug facilitated crimes and the toxicology science
and also a review focused on the available analytical methods for the detection of adulterated
beverages with drugs.
Keywords: Drug facilitated crime; Automatic methodology; Spiked drinks; Drugs of abuse; Drug
screening

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INTRODUÇÃO A toxicologia forense pode dividir-se em três


Enquadramento toxicológico áreas diferentes: toxicologia de investigação
A toxicologia é uma área da ciência dedicada “post-mortem”, toxicologia forense de desem-
ao estudo dos efeitos adversos de compostos penho humano e toxicologia ocupacional 4.
estranhos (xenobióticos e agentes químicos, A toxicologia “post-mortem” é a área da
físicos ou biológicos) em organismos vivos e no toxicologia forense onde o toxicólogo ajuda na
ecossistema. investigação da possibilidade de relacionamento
Inserida nesta área de conhecimento cientí- do abuso de álcool, drogas ou outras substân-
fico, a toxicologia analítica lida com a deteção, cias tóxicas com a causa de morte.
identificação e quantificação de substâncias A toxicologia ocupacional determina a au-
tóxicas ou venenos em diversos tipos de sência ou a presença de substâncias proibidas e
amostras, como por exemplo, biológicas (urina, dos seus metabolitos em urina, sendo utilizada
sangue, etc.), ambientais (terra, água e ar) e para controlo dos trabalhadores nos locais de
alimentares (líquidos e sólidos). Desempenha trabalho.
assim um papel importante no prognóstico, A toxicologia de desempenho humano trata
diagnóstico, tratamento e, em alguns casos, na de avaliar a influência de álcool e determinadas
prevenção de envenenamento, dado que os drogas no comportamento humano e no seu
seus estudos incidem na obtenção objetiva de desempenho normal. Deste modo, além das
evidências da natureza e magnitude da exposi- investigações relacionadas com atos de condu-
ção a um composto tóxico específico1. As análi- ção perigosa ou acidentes de viação, a toxico-
ses toxicológicas solicitam-se em várias situa- logia de desempenho humano envolve as invés-
ções, tais como, (i) exames tóxicos hospitalares tigações relacionadas com o conceito de uso de
de foro geral e de emergência, incluindo o drogas para cometer crimes – Crimes Facilitados
rastreio de venenos e (ii) em casos mais especí- por Drogas (DFC).
ficos como de toxicologia forense e rastreio de
drogas de abuso2. De facto, o estudo dos Crimes facilitados por drogas
métodos analíticos usados na análise toxico- O fenómeno de Crimes Facilitados por
lógica de diferentes amostras não pode Drogas (DFC, do inglês “Drug Facilitated Crime”)
dissociar-se de outro campo da toxicologia, e de Assaltos Sexuais Facilitados por Drogas
nomeadamente a toxicologia clínica e forense. (DFSA, do inglês “Drug Facilitated Sexual
A toxicologia forense é um híbrido de Assault”) envolve o uso de substâncias químicas
química analítica e os princípios toxicológicos para modificar o comportamento de um ser
fundamentais. Essencialmente, preocupa-se humano com o intuito da realização de ações
com a deteção e quantificação de agentes criminais, como por exemplo, violações, roubos
tóxicos possivelmente presentes em situações e homicídios, sem o consentimento da vítima,
criminais e por isso é uma ferramenta impor- ou até mesmo, a sua perceção dos aconte-
tante para auxiliar nas investigações médicas ou cimentos.
legais de casos de morte, envenenamento e O crescente número de ocorrências regis-
abuso de droga. De facto, o objetivo principal do tadas (e muitas outras ocorrerão sem denúncia)
toxicólogo forense é encontrar as respostas às de crimes facilitados com o uso de drogas é um
perguntas que surgem durante a investigação problema sério de saúde e segurança pública,
criminal, como: originado pelo frequente aparecimento de no-
(i) “Esta pessoa foi envenenada?”; (ii)“Qual é vas drogas depressoras do sistema nervoso
a natureza do veneno?”; (iii)“Como foi central e também pelo acesso fácil às mesmas,
administrado o veneno?”; (iv)“Quais são os seus dada a dificuldade do seu controlo por parte das
efeitos?”; e (v)“Foi uma quantidade perigosa ou autoridades competentes. O aparecimento de
letal?”3. Assim, a realização de análises químicas novas drogas faz também com que não existam
desempenha um papel muito importante para métodos analíticos para a sua deteção rápida.
esclarecer a presença de um veneno, quantificar Um cenário típico de DFC pode envolver a
a sua concentração e relacionar esta informação adulteração dissimulada de bebidas ou de
com a sua toxicidade conhecida ou efeitos sobre outros alimentos com drogas psicotrópicas de
o organismo. modo a tornar a vítima passiva, submissa e

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incapaz de resistir ao atacante. Nos casos de seja a “arma” do crime. Contudo, a avaliação
DFC, a maioria das vítimas normalmente sofre dos efeitos farmacológicos nas vítimas é de
de perda de memória do que aconteceu durante pouca ajuda para traçar um perfil toxicológico
e de imediato após a ocorrência. De facto, na numa situação em que se desconfia de ter
mente do agressor, uma droga ideal deve ser ocorrido um crime do tipo DFC. De facto, os
aquela que está prontamente disponível, é fácil efeitos depressores do sistema nervoso central
de administrar, atua rapidamente na perda da da maioria das substâncias implicadas em DFC
consciência e faz com que a vítima tenha são muito semelhantes, o que torna difícil
amnésia anterógrada de todos os eventos que identificar a droga específica usada só pela
ocorrem durante a influência da droga utilizada. avaliação dos sintomas das vítimas9. Além disso,
Além disso, também deve originar na vítima os efeitos farmacológicos das drogas co-
desinibição, relaxamento de músculos voluntá- mummente usadas em crimes do tipo DFC são
rios e perda do controlo5. característicos de uma intoxicação com etanol,
Neste artigo, além do enquadramento do levando em muitas investigações legais a supor
fenómeno de crimes facilitados por drogas na que a vítima estaria sob o efeito de etanol em
área das análises químicas e toxicológicas, é fei- vez de ter sido drogada e consequentemente,
ta uma revisão das metodologias analíticas dis- não é efetuada uma investigação minuciosa
poníveis para o controlo toxicológico de bebidas para determinar o que realmente aconteceu10.
adulteradas com drogas associadas a DFC. Por isso, é imperativo a recolha de matrizes de
amostras adequadas e analisá-las recorrendo a
Substâncias comummente utilizadas metodologias analíticas de elevado desempe-
O maior desafio encontrado na investigação nho para permitir a identificação da substância
de um caso de DFC é a dificuldade na desco- utilizada no crime.
berta do tipo de droga que se usou para come-
ter o crime. De facto, segundo a Sociedade dos Tabela 1. Lista de drogas reconhecidas ou suspeitas de
Toxicólogos Forenses (SOFT, do inglês “Society terem sido usadas em DFC. (Adaptado de (SOFT) SoFT 6)
Etanol Análogos de benzodiazepinas
of Forensic Toxicologists”) existem mais de 50
Zolpidem
drogas reconhecidas ou suspeitas de terem sido GHB e análogos Zopiclone
usadas para cometer DFC6. As substâncias mais Ácido gama- Zaleplon
hidroxibutírico 1,4-
comummente encontradas nos alegados crimes Butanodiol Anti-histamínicos
do tipo DFC (Tabela 1) podem ser drogas de Gama-butirolactona Bromfeniramina
abuso recreativas, medicamentos sujeitos a Clorofeniramina
Benzodiazepinas
receita médica obrigatória, medicamentos não Difenidramina
Alprazolam
Doxilamina
sujeitos a receita médica e etanol. Entre os Clonazepam
Clorodiazepóxido
fármacos normalmente implicados nestes casos Diazepam Barbitúricos
podem destacar-se as benzodia-zepinas Amobarbital
Flunitrazepam Butalbital
(flunitrazepam, diazepam, etc.), análogos de
Lorazepam Pentobarbital
benzodia-zepinas (zopiclone, zolpidem, etc.), Oxazepam Fenobarbital Secobarbital
barbitúricos, anti-histamínicos e inclusive, um Triazolam
antidiabético oral (glibenclamida) com pelo Drogas diversas
Estimulantes Cetamina
menos um caso registado7. As substâncias Anfetaminas Escopolamina
mencionadas acima têm todas em comum Cocaína Ácido valpróico
Metanfetamina
algumas propriedades ansiolíticas, calmantes ou MDMA
hipnóticas e são depressores do sistema nervo- Legenda: MDMA, 3,4-metilenodioximetamfetamina;
so central. Adicionalmente, os seus efeitos são GHB, ácido gama-hidroxibutírico
perigosamente potenciados quando as drogas
são ingeridas com álcool8. MATRIZES DE AMOSTRAS
Nos casos de DFC, a identificação da droga A seleção da amostra correta para uma
utilizada para cometer o crime (e que constitui análise toxicológica é outra questão muito im-
uma evidência de crime) é extremamente im- portante a considerar numa investigação de
portante para estabelecer uma queixa criminal suspeita de DFC. As amostras normalmente
contra o perpetra- dor, desde que a droga usada escolhidas para a análise toxicológica são

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espécimes biológicos, nomeadamente urina e investigação de crimes DFC. As amostras mais


sangue, incluindo, plasma e soro. Contudo, os comummente usadas na análise toxicológica
resultados da análise toxicológica nestas complementar são o cabelo e fluidos orais
matrizes de amostras podem fornecer um (saliva)12.
resultado negativo apesar de uma droga ter sido O cabelo constitui uma amostra importante
de fato ingerida. Esta situação pode ocorrer para executar uma análise toxicológica. De
porque as amostras biológicas impõem facto, a análise de cabelo possibilita aumentar o
procedimentos de colheita especiais. Um dos intervalo de tempo para deteção de drogas, de
problemas mais evidentes é o atraso na semanas a meses dependendo do comprimento
denúncia do crime por diversas razões, como do cabelo, e também distinguir uma exposição
por exemplo, devido à amnésia anterógrada da única do uso crónico de uma droga, conheci-
vítima, confusão mental que origina dúvidas mento esse de extrema importância. Adicio-
sobre o que pode ter acontecido e, possível- nalmente, a estabilidade da droga dentro da
mente outras razões de foro psicológico matriz de cabelo é alta por longos períodos de
incluindo vergonha, medo e negação da tempo, desde que as amostras recolhidas sejam
ocorrência. Assim, pode decorrer tempo sufi- armazenadas ao abrigo da luz e humidade.
ciente durante o qual a droga sofre metabo- Adicionalmente, as análises do cabelo envolvem
lização no organismo e eliminação pelas vias procedimentos de recolha não-invasivos e fáceis
biológicas normais. Consequentemente, as de executar. Contudo, algumas desvantagens
substâncias ingeridas podem atingir níveis de foram identificadas no uso de amostras de
concentração no organismo abaixo dos limites cabelo para análise toxicológica. Um problema
de deteção dos métodos de análise disponíveis. importante é a possibilidade de obter falsos
De facto, a maioria das drogas de DFC têm um resultados positivos devido à contaminação
tempo de semivida muito curto, sendo ambiental do cabelo. Além disso, considerando
rapidamente biotransformadas em vários meta- que o cabelo é uma matriz complexa, a sua
bolitos inativos e sofrer imediata eliminação. análise implica procedimentos de pré-trata-
Como consequência dos rápidos processos de mento laboriosos para evitar a possibilidade de
metabolização das drogas, é muito importante existência de interferentes nas análises toxico-
para o analista assegurar que as amostras lógicas. Finalmente, é importante referir que
biológicas são obtidas rapidamente, embora para obter informações de um abuso crónico de
nem sempre seja possível. A utilização de drogas a análise de cabelo assume uma
amostras biológicas de sangue para análises importância elevada, mas para obter dados
toxicológicas é muito útil mas apenas quando o sobre o uso de drogas num curto prazo após a
crime de DFC ocorreu no espaço de 24 horas ingestão, as amostras de urina ou sangue são as
anteriores à colheita. Em alternativa, as análises mais indicadas não se podendo depender
de urina têm algumas vantagens porque estas apenas da análise ao cabelo12.
amostras têm um intervalo de tempo maior As amostras de saliva já se usaram em
para a deteção das drogas frequentemente investigações de crimes DFC apresentando
usadas em DFC, e seus metabolitos. Contudo, algumas vantagens. Uma das vantagens é que a
recomenda-se que a colheita de amostra de colheita de amostra pode executar-se sob a
urina ocorra até 96 horas após a suposta supervisão direta das autoridades, sem necessi-
ingestão da droga pela vítima11. Quando tar de técnicas invasivas (como na colheita de
excedido o prazo final para reunir amostras de amostra de sangue) ou a perda da privacidade
urina e sangue, a análise toxicológica para (como na colheita de amostra de urina). No
identificar drogas DFC nestas amostras tem entanto, estas amostras têm algumas desvan-
pouco interesse, porque o risco de não se tagens entre as quais, pode destacar-se a
detetar a droga aumenta consideravelmente quantidade insuficiente da amostra colhida da
embora na realidade possa ter ocorrido um vítima. De facto, há algumas drogas que podem
crime facilitado com o uso de drogas. inibir a secreção de saliva e provocar secura na
Nos últimos anos, o uso de outras matrizes boca. Outra desvantagem é o curto tempo de
de amostras para análises toxicológicas comple- deteção, porque a concentração de drogas na
mentares tem assumido especial relevância na saliva depende da concentração plasmática das

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mesmas. Assim, drogas que têm curtos tempos da droga e a análise das amostras. Assim, a
de semivida e que são rapidamente elimina- das combinação destes fatores indica que a análise
do organismo são detetadas na saliva apenas das bebidas adulteradas nestes crimes é muito
por um curto período de tempo. Tal constitui importante, dado que pode ser o único modo de
uma desvantagem das amostras de saliva contornar alguns problemas inerentes na
comparativamente às amostras de cabelo ou análise de amostras biológicas da vítima. De
urina12. facto, os níveis de concentração das drogas nas
Concluindo, apesar da deteção da droga de bebidas adulteradas são muito mais altos do
abuso nos fluidos biológicos da vítima ser de que os encontrados em amostras biológicas, por
extrema importância para estabelecer uma causa da maior estabilidade das drogas nas
acusação eficaz, os resultados da análise bebidas, onde o biometabolismo das substân-
toxicológica nestes casos são geralmente cias não ocorre. Considerando o aumento dos
negativos devido a problemas, tais como o casos de crimes executados com o auxílio de
atraso na comunicação da ocorrência, a drogas, são comercializados no Reino Unido, por
administração de uma dose única e o curto exemplo, alguns kits que afirmam detetar no
tempo de semivida de algumas destas local a presença de drogas em bebidas.
substâncias. Estes factos originam concen- Contudo, um estudo efetuado por Beynon et
trações dessas substâncias abaixo dos limites de al13 demonstrou que dois kits bem conhecidos
deteção das metodologias analíticas de controlo para detetar em bebidas algumas drogas usadas
toxicológico, ou a total eliminação das drogas do em crimes DFC têm uma acentuada falta de
corpo das vítimas. Substâncias como o ácido seletividade e sensibilidade. De facto, o uso de
gama-hidroxibutírico (GHB) podem ser elimina- tais kits pode fornecer falsos resultados
das do organismo num período de 12 horas. negativos na deteção de drogas de abuso,
Além das análises toxicológicas executadas aumentando a preocupação relativa à verdadei-
em amostras biológicas da vítima (sangue, urina, ra dimensão de crimes perpetrados com o
saliva ou cabelo) para descobrir a substância auxílio de bebidas adulteradas com drogas no
usada no crime, as autoridades competentes Reino Unido.
foram aconselhadas por investigadores de O rastreio rápido e a análise toxicológica de
crimes do tipo DFC a procurar qualquer outro drogas colocadas intencionalmente em bebidas
item de possível relevância nos locais do crime, representa um desafio para os laboratórios
como bebidas ou resíduos de bebida com forenses e uma necessidade de desenvolvi-
suspeita de adulteração. mento científico de novas técnicas analíticas ou
a melhoria de metodologias já existentes.
ADULTERAÇÃO DE BEBIDAS
No decorrer de uma investigação de suspeita METODOLOGIAS ANALÍTICAS TOXICOLÓGICAS
de crime perpetrado com o auxílio de drogas Um dos problemas mais importante numa
colocadas clandestinamente em bebidas, estas investigação de DFC é a limitação da sensibi-
devem ser analisadas para a presença de drogas lidade das metodologias analíticas de rastreio e
como parte da investigação. As pretensas das utilizadas como métodos confirmatórios,
bebidas adulteradas no local do crime devem dado que algumas substâncias, como por exem-
ser recolhidas pelas autoridades para serem plo, as benzodiazepinas, são utilizadas frequen-
submetidas a análises toxicológicas em temente numa dose baixa e única. Assim, a ne-
laboratório ou, alternativamente, se as cessidade de desenvolver novas metodologias
autoridades tiverem meios suficientes, pode analíticas é evidente, podendo encontrar-se na
executar-se uma análise de rastreio no local. literatura científica diversos trabalhos de inves-
Como já se mencionou, quando se realizam tigação realizados nos últimos anos para ras-
análises toxicológicas em amostras biológicas, treio e quantificação de drogas geralmente
numa investigação de crime do tipo DFC, os utilizadas em DFC, em diferentes amostras 14.
principais problemas encontrados relacionam-se Os métodos de rastreio de drogas utilizadas
com os limites de deteção das metodologias em crimes DFC incluem imunoensaios com
analíticas, a colheita e conservação de amostras marcador enzimático (EMIT, do inglês “enzyme
biológicas e o tempo decorrido entre a ingestão multiplied immunoassay”), imunoensaios de

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fluorescência polarizada (FPIA, do inglês “fluo- Em 1998, Sarin et al.16 desenvolveram uma
rescence polarisation immunoassay”) e kits de metodologia baseada em cromatografia de alta
“Abuscreen OnTrak” ou “OnLine imunoassays” eficiência em camada fina para deteção e
(Roche Diagnostics)15. determinação de diazepam em bebidas,
Para a confirmação da presença e identifi- implicando uma extração líquido-líquido com
cação de drogas utilizadas em DFC foram clorofórmio e éter dietílico para pré-tratamento
desenvolvidas algumas metodologias de da amostra.
separação envolvendo cromatografia gasosa, Em seguida, Chen e Hu17, em 1999, aplicaram
cromatografia líquida e eletroforese capilar um método de deteção por eletronebulização
(incluindo cromatografia eletrocinética micelar direta/espectrometria de massa para análise
(MEKC, do inglês “micellar electrokinetic chro- qualitativa de nove benzodia-zepinas em várias
matography”) e eletroforese capilar de zona bebidas. Também neste estudo, as amostras
(CZE, do inglês “capillary zone electropho- foram sujeitas a um pré-tratamento por
resis”)) que podem ser acopladas com diversas extração líquido-líquido com clorofórmio antes
técnicas de deteção, como por exemplo, da análise. Na opinião dos autores, o método é
espectrometria de massa, espectrofotometria uma alternativa eficiente para identificar drogas
na região do ultravioleta, matriz de fotodíodos, em amostras de bebidas encontradas nos locais
fluorescência, ionização em chama (FID, do de crime.
inglês “flame ionization”), captura de eletrões Depois, em 2004, Rao et al.18 propuseram
(ECD, do inglês “electron capture”) e detetor de uma metodologia baseada em HPLC de fase
azoto e fósforo (NPD, do inglês “nitrogen reversa com deteção por matriz de fotodíodos
phosphorous”)14. para a separação, identificação e determinação
A generalidade das metodologias analíticas simultânea de hidrato de cloral, diazepam e
desenvolvidas para o controlo químico toxico- alprazolam em bebidas alcoólicas fermentadas.
lógico, usadas como métodos confirmatórios, Neste trabalho, o único pré-tratamento de
destina-se à análise de amostras biológicas, amostra necessário foi uma filtração por
encontrando-se apenas um número muito membranas de nylon com malha de 0,45nm. No
reduzido de metodologias para a deteção de mesmo ano, Bishop et al.19 descreveram um
drogas de abuso em bebidas. método baseado em cromatografia eletro-
cinética micelar, com recurso ao tensioativo
METODOLOGIAS ANALÍTICAS PARA ANÁLISE DE aniónico sulfato dodecil de sódio (SDS), para a
BEBIDAS separação e deteção de benzodiazepinas e ácido
Um estudo de revisão realizado por Brown e gama-hidroxibutírico (GHB) em várias bebidas, e
Melton14, sobre métodos analíticos de em que se realizou uma extração líquido-líquido
determinação e quantificação de drogas com acetato de etilo para as bebidas que
publicados entre 2000 e 2010, revelou que a continham benzodia-zepinas.
maioria de técnicas de análise de flunitra- Em 2005, Olsen et al.20 empregaram uma
zepam, GHB e cetamina, implica a deteção em cromatografia líquida com eletronebulização e
amostras biológicas, enquanto só 4%, 5% e 2% deteção por espetrometria de massa para a
das técnicas de análise, respetivamente, se determinação de drogas em diferentes bebidas.
destinaram a ser realizadas em bebidas. Também avaliaram se nove fármacos com
efeitos sedativos e obtidos comercialmente,
Métodos instrumentais de elevado quando acrescentados a bebidas diferentes
desempenho analítico causavam a incapacitação de vítimas e também,
Uma avaliação da literatura científica se os comprimidos causavam a modificação da
permitiu compilar os trabalhos científicos que aparência e gosto das bebidas. Concluíram que
envolvem o desenvolvimento de metodologias quando adicionado numa determinada quanti-
analíticas para identificação e/ou quantificação dade a uma bebida, os fármacos testados po-
de drogas de abuso em bebidas, potencial- dem causar a diminuição das capacidades
mente utilizadas em crimes do tipo DFC. Esses motoras e de perceção ou, mesmo a incapa-
trabalhos encontram-se compilados na Tabela 2 citação. Adicionalmente, as drogas testadas
e são descritos resumidamente. causaram a alteração da aparência das bebidas

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e a maioria dos fármacos modificou o gosto da ma-butirolactona em 50 bebidas. Neste traba-


bebida original. lho, as amostras foram analisadas inicialmente
Também em 2005, Elliott et al.21 analisaram usando cromatografia gasosa com detetor de
as substâncias ácido gama-hidroxibutírico e ga- ionização de chama (GC-FID) e de seguida usou-se

Tabela 2. Métodos para determinação e quantificação de drogas DFC em bebidas


Substância Matriz Preparação de Separação e Recuperaçã LOD LOQ Refer.
amostra deteção o µg mL-1 µg mL-1
DIA Refrigerantes, LLE com HPTLC - UV 74 %
– 84 - - (16)
sumos de frutas clorofórmio e
éter dietílico
BZDs Bebidas alcoólicas, LLE com DEP-MS - - - (17)
chás e sumos clorofórmio e
isopropanol
DIA, ALP e CHL Bebida alcoólica - RP-HPLC-DAD - 0,4 – 4,5 - (18)
“Toddy”
GHB e BZDs Refrigerantes, LLE com acetato MECK - 31,8 GHB - (19)
água, bebidas de etilo (BZDs) e 0,722-4,37BZDs
alcoólicas, sumos diluição (GHB)
BZDs e outros Água, refrigerantes - LC-ESI-MS - - - (20)
sedativos e cerveja

GHB e GBL Bebidas alcoólicas, LLE com GC-FID GC-MS - 3GHB - (21)
sumos e água clorofórmio e 5GBL
derivatização
com TMS
GHB Água, cerveja e SPME com GC-MS - - 1,5 (22)
refrigerantes derivatização
direta na fibra
GHB Cerveja - NMR - - - (23)
CLO, FLU e NIT Bebidas LLE com acetato MECK-LIF 79 – 88 13 - (24)
de etilo
BZDs Refrigerantes, CZE-DAD 49,8 – 2,7-41,5 9,0 – (25)
bebidas alcoólicas - 135,8 138,2
e sumos
FLU e NIT Refrigerantes LLE LC-DED 78 – 95,5 0,02 - (26)
com
diclorometano
BZDs e KET Sumos e cerveja LLE com GC – MS 73 – 112,6 1,3 – 34,2 3,9 – (27)
clorofórmio e 103,8
isopropanol
GHB e GBL Bebidas alcoólicas, - NMR – PURGE - 0,03 – 0,1 1,1 – 9,8 (28)
refrigerantes,
sumos e água

FLU Bebidas alcoólicas, - DESI – MS - - 3 (29)


refrigerantes e
sumos

SCO Bebidas alcoólicas LLE com metanol P-CE-C4D - 2,6 (bebidas) - (30)
e creme hidratante (creme) e 0,6 (creme)
diluição (bebidas)
Legenda: DIA, diazepam; BZDs, benzodiazepinas; ALP, alprazolam; CHL, hidrato de cloral; GHB, ácido y-hidroxibutírico ;
GBL, y-butirolactona; CLO, clonazepam; FLU, flunitrazepam; NIT, nitrazepam; KET, cetamina; SCO, escopolamina; TMS,
trimetilsilano; LLE, extração líquido-líquido; SPME, microextração em fase sólida; HPTLC, cromatografia de alta eficiência
em camada fina; DEP, sonda por eletronebulização direta; RP-HPLC, cromatografia líquida de alta eficiência em fase
reversa; MECK, cromatografia eletrocinética micelar; LC, cromatografia líquida; ESI, ionização por eletronebulização; MS,
espectrometria de massa; GC, cromatografia gasosa; FID, deteção por ionização com chama; NMR, ressonância magnética
nuclear; LIF, fluorescência induzida por laser; CZE, eletroforese capilar por zona; P-CE, eletroforese capilar portátil; DAD,
deteção por matriz de fotodíodos; DED, deteção eletroquímica; DESI, dessorção/ionização por eletronebulização; C4D,
deteção condutimétrica; LOD, limite de deteção; LOQ, limite de quantificação

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cromatografia gasosa com espetrometria de metodologia baseada em cromatografia gasosa


massa para a confirmação dos resultados com espetrometria de massa para a determi-
positivos obtidos previamente por GC-FID. Os nação simultânea de algumas benzodiazepinas e
autores extraíram as drogas de várias bebidas cetamina em diversas bebidas. As drogas foram
usando clorofórmio. extraídas das bebidas adulteradas por extração
Nesse mesmo ano, Meyers et al.22 desen- líquido-líquido com uma mistura 1:1 de
volveram um método de análise de GHB em clorofórmio e isopropanol.
várias bebidas alcoólicas e não alcoólicas. O Mais recentemente, em 2011, Lesar et al.28
método desenvolvido envolveu inicialmente a analisaram algumas bebidas adulteradas com
extração de GHB de amostras aquosas por GHB e GBL através de 1H-NMR com um método
microextração em fase sólida (SPME) seguido de de supressão de água denominado PURGE. O
derivatização direta na fibra seguido de análise método de PURGE em combinação com a
por GC-MS. técnica de 1H-NMR permitiu a identificação
Em 2006, Grootveld et al.23 exploraram uma direta e a quantificação de GHB e GBL em todas
metodologia baseada em espectroscopia de as bebidas exceto o vinho no qual a
ressonância magnética nuclear 1H de alta quantificação exata não foi alcançada devido a
resolução para a deteção e quantificação de interferências da matriz da amostra.
GHB em saliva humana e em cerveja não Também em 2011, D’Aloise e Chen29 usaram
alcoólica. uma nova técnica de desadsorção/ionização por
Bishop et al.24 em 2007 desenvolveram um eletronebulização acoplado a espetrometria de
método rápido de análise microfluídico para a massa para a determinação de flunitrazepam
deteção de benzodiazepinas em bebidas adul- em várias bebidas. A bebida adulterada com
teradas. Neste trabalho, utilizou-se cromato- flunitrazepam analisou-se sem necessidade de
grafia eletrocinética micelar com um corante de qualquer pré-tratamento.
cianina (Cy5) para a deteção indireta por Em 2013, Sáiz et al.30 desenvolveram um
fluorescência. Ainda, usou-se uma extração método de determinação de escopolamina em
líquido-líquido com acetato de etilo para seis bebidas alcoólicas e num creme hidratante
concentrar as amostras. utilizando um equipamento portátil de eletro-
Ainda em 2007, Webb et al.25 desenvolveram forese capilar, modificado pelos autores. A
uma metodologia baseada em eletroforese análise do creme foi realizada após um proce-
capilar de zona (CZE) com deteção por matriz de dimento de pré-tratamento da amostra por
fotodíodos (DAD) para a separação e determi- extração com metanol, enquanto as amostras
nação de seis benzodiazepinas em várias de bebidas implicaram unicamente como trata-
bebidas frequentemente consumidas em bares mento a diluição das mesmas.
e festas. Este método empregou um tubo As metodologias descritas para a análise
capilar duplamente revestido com cloreto de toxicológica de bebidas com drogas usadas em
poli (dialildimetilamónio) e sulfato de dextrano. crimes do tipo DFC são muito exatas e algumas
Neste trabalho, nenhum pré-tratamento de apresentam elevada sensibilidade e seletivi-
amostra foi necessário para quantificar cinco dade, contudo a maioria dos procedimentos
benzodiazepinas nas bebidas testadas, com a mencionados necessitam de equipamento
exceção do vinho, cuja complexidade da matriz dispendioso, analistas altamente especializados
para análise não permitiu a quantificação exata e exigem um tratamento de amostras laborioso
de nitrazepam. e específico usando reagentes de elevado risco
Honeychurch e Hart26, em 2008, descreve- ambiental. Adicionalmente, estas técnicas só se
ram uma técnica por cromatografia líquida (LC) executam em condições de laboratório muito
com deteção eletroquímica para determinar especiais com a intervenção rigorosa dos técni-
flunitrazepam e nitrazepam em bebidas adulte- cos especializados. Também, é importante
radas. As bebidas testadas foram submetidas a considerar que nem todos os laboratórios dis-
um procedimento de pré-tratamento de amos- põem de orçamento para a aquisição e manu-
tra antes da análise, através de uma extração tenção de muitos dos equipamentos necessários
líquido-líquido com diclorometano. nas metodologias de análise referidas. Os
Em 2009, Acikkol et al.27 desenvolveram uma métodos acima mencionados constituem, sem

129
Prior, J.A.V., Ribeiro, D. S. M., Santos, J. L. M.

qualquer dúvida, alternativas robustas para do sistema de fluxo, dado que as etapas
análises químicas toxicológicas, sobretudo como sucessivas de um procedimento típico na análise
metodologias confirmatórias com alta confia- em fluxo incluindo a inserção de amostra, a
bilidade nos resultados fornecidos. No entanto, adição de reagentes e a propulsão das soluções
a maioria das metodologias já desenvolvidas, são efetuadas pelo mesmo componente do
para controlo químico toxicológico de bebidas sistema de fluxo e não por equipamentos
adulteradas com drogas de abuso, são diversos, separados e de controlo individual.
completamente impróprias para rastreios rápi- Deste ponto de vista, é de referir ainda o avanço
dos das bebidas nos locais de consumo ou do evidente na miniaturização dos sistemas de
crime, dado que exigem equipamentos análise.
científicos de elevada dimensão e requerem A análise em fluxo por multi-impulsão é
tempos de preparação de amostra e análise baseada na utilização de várias micro-bombas
elevados. solenoides, uma por cada solução de reagente
O desenvolvimento de novas metodologias envolvida na análise, que podem funcionar
analíticas para rápido rastreio ”in situ” de dro- individualmente ou em combinação na impulsão
gas de abuso em bebidas é muito importante do de líquidos podendo atuar ao mesmo tempo
ponto de vista forense e toxicológico. Assim, como dispositivos de inserção de
para uma rápida deteção de drogas de abuso amostra/reagente e unidades de comutação
nos locais de consumo, o objetivo principal é entre as soluções.
utilizar metodologias simples, rápidas, fiáveis e As características e as potencialidades dos
ainda com outras especificações que permitam sistemas de fluxo baseados no conceito de
a execução de análises fora do ambiente de um multi-impulsão tornam esta estratégia de fluxo
laboratório, nomeadamente: automáticas, pe- uma ferramenta útil na implementação de
quenas dimensões, portáteis, reduzido consumo procedimentos analíticos, que podem usar-se
energético, versatilidade e facilidade de com vantagens significativas relativamente às
operação. estratégias convencionais de análise. De facto, a
Para este fim, o recurso a métodos natureza do fluxo pulsado em combinação com
automáticos de análise e mais precisamente as múltiplas tarefas executadas pela micro-bomba
metodologias baseadas na análise em fluxo e o seu controlo individual por meio de um
podem assumir um papel importante. computador permite implementar sistemas
analíticos em fluxo mais compactos e que inte-
Metodologias automáticas em fluxo gram menos componentes, controlados com
A automação dos procedimentos analíticos uma grande simplicidade operacional. A porta-
em análises químicas permite efetuar rápida- bilidade destes sistemas, em virtude da sua
mente a análise de um grande número de miniaturização e exigências reduzidas de ener-
amostras, com a diminuição da intervenção gia para funcionar, permite o transporte para
humana, e redução considerável do volume dos fora do ambiente de laboratório e assim,
reagentes e amostras necessários à análise. possibilita executar análise de campo.
Os métodos automáticos de análise têm Outra característica essencial dos sistemas
aplicação em variados campos, inclusive análises de multi-impulsão é a versatilidade na imple-
clínicas e toxicológicas; controlo de processos mentação de uma grande variedade de métodos
industriais, de matéria-prima e produto acaba- analíticos. Na literatura científica encontram-se
do; análise regular do ar, água e solo; e controlo diversos trabalhos que descrevem várias meto-
de qualidade de alimentos, produtos farmacêu- dologias explorando o conceito de multi-im-
ticos e agrícolas31. pulsão com diferentes técnicas de deteção,
O conceito de multi-impulsão32 através da como por exemplo, espectrofotometria, fluores-
utilização de micro-bombas solenóides apare- cência e quimioluminescência.
ceu em 2002, e constituiu uma nova estratégia Considerando as vantagens da análise em
de fluxo com características hidrodinâmicas fluxo por multi-impulsão, este conceito foi
distintas (fluxo pulsado) das outras metodolo- também aplicado no desenvolvimento de
gias de fluxo e com outras diferenças importan- sistemas automáticos para o controlo químico e
tes, nomeadamente, a conceção e montagem toxicológico de bebidas adulteradas com subs-

130
Acta Farmacêutica Portuguesa, 2013, vol. 2, n. 2

tâncias de abuso potencialmente utilizadas em


crimes do tipo DFC.
Em 2010, Ribeiro et al.33 desenvolveram um
sistema miniaturizado e automático de análise
em fluxo por multi-impulsão para o controlo
químico de diazepam em bebidas alcoólicas
adulteradas, com deteção fluorométrica (Figura
1). A metodologia explorada neste trabalho
envolveu apenas a foto-degradação de diaze- Figura 2. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). PC–
micro-computador; P1, P2, P3–micro-bombas solenoides
pam com radiação ultravioleta e monitorização
(volume interno de 10 µL); X, ponto confluência; D–detetor
dos produtos de degradação fluorescentes. A de fluorescência (ex=301 nm e em=404 nm); AP–percurso
interferência na análise de compostos fluores- analítico de 10 cm; S–amostra: glibenclamida em 50%
centes das bebidas constituiu uma desvanta- etanol/0,2 mol L-1 H2SO4; C–solução transportadora: 0,2
gem, pelo que restringiu a aplicação a bebidas mol L-1 H2SO4; R, 0,03 mol L-1 SDS; W–dreno. (Adaptado
34
de Ribeiro et al. )
alcoólicas brancas.
Em 2012, Ribeiro et al.35 desenvolveram uma
metodologia analítica para o controlo toxico-
lógico de chás adulterados com glibenclamida
(Figura 3). Dada a complexidade das amostras
de chás, bebidas ricas em diversos compostos
que interferem em muitas metodologias de
análise, foi implementado num sistema de fluxo
miniaturizado um processo de separação
Figura 1. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). P1, baseado numa unidade de pré-separação
P2–micro-bombas solenoides (volume interno de 10µL); X
constituída por uma mini-coluna com carvão
–ponto confluência; R–reator de 2 m; D–detetor de fluo-
rescência (ex = 272 e em = 450 nm); L –lâmpada de ultra- vegetal ativado, para a extração em linha de
violeta da Philips; AP–percurso analítico de 10 cm; S– glibenclamida em amostras de chás adultera-
amostra; C–solução transportadora (0,2 mol L-1 NaOH); W
33
dos. O processo de separação (adsorção e
–dreno. (Adaptado de Ribeiro et al. ) . desadsorção) foi auto-matizado. A natureza de
fluxo pulsado caracte-rístico da metodologia em
Também Ribeiro et al. 34, em 2011, imple- fluxo de multi-impulsão foi muito importante na
mentaram uma nova metodologia química para eficiência do processo de separação em linha,
a determinação de glibenclamida em bebidas principalmente, no fenómeno de desadsorção
alcoólicas adulteradas com o fármaco antidiabé- do fármaco do carvão vegetal ativado. A
tico. Neste trabalho, o conceito de química monitorização foi realizada por fluorescência.
supramolecular foi explorado através da utiliza-
ção de um tensioativo aniónico, o dodecil sulfa-
to de sódio, para promover um meio micelar
organizado que se verificou otimizar a emissão
de radiação fluorescente do fármaco em meio
ácido (Figura 2). A portabilidade e o controlo
simples do sistema de fluxo verificaram-se
devido à sua simples configuração e, também se
demonstrou o potencial da metodologia propôs-
ta como um instrumento analítico valioso para a Figura 3. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). P1,
determinação de glibenclamida em bebidas P2, P3–micro-bombas solenoides; X, ponto confluência; V1,
V2, V3, V4–válvulas solenoides (linha–solenoide desligado;
alcoólicas intencionalmente adulteradas. tracejado–solenoide ligado); D –detetor de fluorescência
O funcionamento do sistema de análise (ex=300 nm e em=404 nm); CL–coluna de separação
desenvolvido e os resultados com ele obtidos contendo carvão ativado (5,0 cm e d.i. 0,2 cm); S–amostra:
permitiram verificar a importância da sua possí- glibenclamida em 0,01 mol L-1 NaOH; C–solução de
lavagem e condicionadora: 0,01 mol L-1 NaOH; E–solução
vel aplicação em investigações laboratoriais de
eluente: 0,01 mol L-1 CTAB, 70 % etanol e 1,0 mol L-1 HCl;
controlo toxicológico. 35
W–dreno. (Adaptado de Ribeiro et al. )

131
Prior, J.A.V., Ribeiro, D. S. M., Santos, J. L. M.

CONCLUSÕES analíticos mais miniaturizados baseados em


As metodologias automáticas desenvolvidas análise em fluxo, com inferiores consumos
para o controlo toxicológico de bebidas consti- energéticos e de reagentes, deve ser explorado
tuíram uma notável contribuição para os méto- para obter-se métodos alternativos de análise
dos de rastreio rápido de drogas usadas em passíveis de utilização em análises de campo,
DFC, colocadas discretamente em bebidas para o rastreio rápido e em tempo-real de
alcoólicas e não alcoólicas, com o intuito de drogas em bebidas adulteradas em locais de
cometer crimes. As novas metodologias analí- entretenimento social. No entanto, é impor-
ticas possibilitam atuar na prevenção de abusos tante não esquecer que os resultados de uma
por drogas e auxiliam no apuramento das análise toxicológica podem ter sérias conse-
responsabilidades legais dos crimes que quências forenses e legais, pelo que a quali-
envolvem as drogas de abuso. Considerando as dade dos métodos analíticos precisa de um
características especiais dos sistemas de análise controlo constante e rigoroso.
em fluxo por multi-impulsão, incluindo o tipo de
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