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História, imagem e narrativas

No 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br

A atualidade das histórias em quadrinhos no Brasil:


a busca de um novo público

Waldomiro Vergueiro
Professor Titular do Departamento de Biblioteconomia e Documentação
Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos (NPHQ)
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
wdcsverg@usp.br

Resumo
Discute o desenvolvimento das histórias em quadrinhos no Brasil, apontando, em anos recentes para a
emergência de novas tipologias de produtos quadrinhísticos, direcionados para públicos mais adultos. Destaca
produções no estilo underground, obras em coletânea e quadrinizações de obras literárias, distinguindo-as como
alternativas viáveis para estabelecimento e florescimento de uma indústria autóctone de histórias em quadrinhos
no país.

Palavras-chave
Histórias em quadrinhos – Brasil. Histórias em quadrinhos adultas.

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História, imagem e narrativas
No 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br

Introdução

É indiscutível que, nos últimos anos, as histórias em quadrinhos passaram por diversas
transformações no mundo ocidental, visando sua adaptação a uma nova realidade. O móvel de
muitas dessas transformações esteve relacionado, em grande parte dos casos, a um novo
entendimento sobre o papel dos quadrinhos na sociedade e à derrubada de antigos
preconceitos, que preconizavam os produtos da linguagem gráfica seqüencial como
prioritariamente direcionados ao público infanto-juvenil. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação eletrônicas representou o
ápice de um processo de concorrência entre os diversos meios de comunicação de massa que
se iniciou com o advento da televisão, em meados do século 20, fazendo com que as histórias
em quadrinhos passassem a enfrentar uma diversidade de meios de entretenimento como
nunca antes haviam enfrentado, freqüentemente saindo perdedoras no objetivo de prender a
atenção de seu público. Assim, a indústria produtora de histórias em quadrinhos teve que
buscar alternativas para responder de forma eficiente à concorrência desses meios de
comunicação e informação, diversificando as características dos produtos que disponibilizava
e redirecionando seus esforços de disseminação para públicos que pudessem se mostrar mais
receptivos a seus produtos.
Esse movimento de adaptação dos produtos quadrinhísticos pôde ser observado em
várias partes do mundo, iniciando-se nas economias mais avançadas da Europa e América do
Norte, onde a indústria de quadrinhos apresentava maiores proporções. No entanto, não tardou
muito para que igual necessidade ficasse patente para as indústrias de países em
desenvolvimento, especialmente na América Latina, em que às condições de concorrência
desfavoráveis vieram se juntar contextos econômicos ainda mais adversos, que muitas vezes
levaram ao fechamento de empresas editoriais estabelecidas no mercado, aparentemente
sólidas e com longa trajetória de atuação na área.
Isso ocorreu em diversos países da América Latina. Períodos de recessão econômica
concorreram para que a editora Columba, na Argentina, praticamente encerrasse suas
atividades na área e para que a editora Abril, abandonasse a publicação de quadrinhos
produzidos pelas norte-americanas DC e Marvel Comics no Brasil e passasse a concentrar seu

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trabalho em quadrinhos na publicação dos personagens Disney, tradicionais produtos da


editora.
A par do impacto da inovação tecnológica no mundo do entretenimento, a indústria
produtora de quadrinhos do mundo ocidental passou a conviver nas últimas duas décadas com
os materiais provenientes da indústria oriental, os mangás, que “invadiram” os diversos países
com quadrinhos de diferentes proposições temáticas e produtos direcionados para públicos
segmentados, além de contar com uma ousada estratégia de marketing e um esquema
coordenado de lançamentos de novos produtos, que inter-relacionava produções de desenho
animado para a televisão, produções cinematográficas, jogos eletrônicos, bonecos e produtos
assemelhados, granjeando cada vez mais o interesse dos leitores de histórias em quadrinhos.
Isto representou o embate de duas estratégias industriais de dominação do mercado de
entretenimento em quadrinhos, em que as vitórias iniciais foram predominantemente da
indústria invasora de raízes orientais, que ano a ano ampliou sua participação no mercado de
quadrinhos dos diversos países.
Grande número de obras no estilo mangá foi produzido nas últimas décadas nos países
ocidentais, inclusive incorporando a reversão do mecanismo de leitura tradicional e a adoção
do modelo oriental de leitura, em que a história passa a ser lida da direita para a esquerda; esta
alternativa de publicação dos quadrinhos oriundos de países orientais, além de buscar sua
justificação com o argumento de que tal medida concorre para a preservação da obra original,
também possibilitou o barateamento dos produtos e maior rapidez de publicação, o que apenas
colaborou para o aumento da eficiência da indústria japonesa de quadrinhos em sua atuação no
Ocidente. Este contexto de produção também se reproduziu nos países latino-americanos.
As tendências acima mencionadas tiveram impacto significativo na realidade brasileira,
implicando no re-direcionamento de setores da indústria produtora e na emergência de
produtos diferenciados de história em quadrinhos que buscaram ir além dos públicos
tradicionais da indústria quadrinhística, o que também implicou na diversificação dos pontos
de venda. Assim, às tradicionais bancas de jornal vieram se juntar as gibiterias – adaptação,
em língua portuguesa, da denominação dada às lojas especializadas norte-americanas, as
comic stores ou comic shops -, e as grandes livrarias do país, que se transformaram em
espaços privilegiados para alcançar um consumidor de maior idade e maior nível de exigência.
Essa transformação de mercado, ainda em processo, representou até o momento uma

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alternativa viável para a permanência dos produtos da linguagem gráfica seqüencial no país,
ampliando sua visibilidade e colaborando para o aumento de sua aceitação pela sociedade
brasileira.

O humor gráfico como espaço privilegiado para a divulgação da linguagem gráfica


seqüencial no Brasil

Segundo Lailson de Holanda Cavalcanti (2005), o primeiro exemplo no país de um “desenho


que representa a realidade de forma humorística e alegórica” data de 1831, na publicação O
Corcundão, do estado de Pernambuco, enquanto que a primeira revista de caricaturas regular e
de larga duração foi a Semana Ilustrada, do alemão Henrique Fleiuss, que se constituiu no
modelo de todas as publicações humorísticas brasileiras do século 19.
Verifica-se, assim, a precoce participação do humor gráfico na discussão da realidade
política e social brasileira, que tem uma história de artistas combativos, cujas obras tiveram
um grande impacto social. Este foi o caso, entre outros, do italiano Angelo Agostini, grande
crítico do período do Segundo Império no país. Com um traço bastante pessoal e dono de um
humor ferino e destruidor, esse autor é, inclusive, identificado como o introdutor da linguagem
gráfica seqüencial no país e como um dos precursores da 9ª Arte, principalmente por suas
séries As aventuras de Nhô Quim (FIGURA 1) e As aventuras de Zé Caipora, criadas,
respectivamente, em 1869 e 1883, em que surgiram os primeiros personagens fixos dos
quadrinhos nacionais (CARDOSO, 2005).

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FIGURA 1

Em As Aventuras de Nhô-Quim, o protagonista é um caipira que viaja à capital do Império, entrando


muitas vezes em conflito com os costumes da população urbana.

Agostini esteve também ligado à introdução das histórias em quadrinhos direcionadas


ao público infantil brasileiro, uma vez que elaborou o logotipo para a revista O Tico-Tico,
publicada pela Editora O Malho, a primeira revista infantil a publicar regularmente quadrinhos
no Brasil1. No entanto, mais do que essa revista, pode-se afirmar que o direcionamento dos
produtos da linguagem gráfica seqüencial para um público diverso ao do adulto – alvo
primordial do humor gráfico veiculado nas publicações humorísticas do século 19 e início do
século 20 -, ocorreu com a introdução, no país, do modelo norte-americano de quadrinhos, a
partir da publicação do Suplemento Juvenil (FIGURA 2), em 1934, pelo jornalista e editor
Adolfo Aizen, após viagem que este fez aos Estados Unidos e na qual se familiarizou com os
suplementos ilustrados dos jornais norte-americanos2.

1
Criada em 1905, a revista O Tico-Tico foi publicada até 1962, acompanhando a infância de várias gerações de
brasileiros. Idealizada por Renato de Castro, Cardoso Júnior e Manoel Bonfim, ela foi baseada em sua congênere
francesa La Semaine de Susette, representando o modelo de publicações para a infância brasileira na primeira
metade do século 20. Por ela passaram vários dos primeiros autores de quadrinhos do país, como Max Yantok,
Alfredo e Osvaldo Storni, Miguel Hochman, Luís Sá e J. Carlos, bem como diversos escritores de renome no
país, entre os quais podem ser destacados Josué Montello, Leonor Posada, Osvaldo Orico, José Lins do Rego,
Bastos Tigre, Olavo Bilac, Cardoso Júnior, Coelho Neto, Murilo Araújo, Catulo da Paixão Cearense, Malba
Tahan, Humberto de Campos, Arnaldo Niskier, Eustórgio Wanderley e Gustavo Barroso. Além de ter elaborado
o logotipo da revista, Angelo Agostini também dela participou com ilustrações para as diversas matérias que a
compunham e com a elaboração de uma coluna própria. (VERGUEIRO, SANTOS, 2005)
2

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FIGURA 2

O Suplemento Juvenil representou a entrada maciça dos heróis norte-americanos no Brasil,


popularizando-os em nível nacional.

A partir da introdução do modelo norte-americano no país, a trajetória das histórias em


quadrinhos no território brasileiro passaria pelos mesmos percalços enfrentados em outros
países, sendo idolatrada por adolescentes e desacreditada pela maioria dos educadores e
intelectuais. Assim, apesar do trabalho de divulgação e organização de eventos por muitos
entusiastas do meio, como foi o caso da Primeira Exposição Internacional de Histórias em
Quadrinhos, realizada em 1951 na cidade de São Paulo (MOYA, 2001), e a quadrinização de
obras da literatura e de biografias dos santos da Igreja Católica como demonstração da
possibilidade de utilização dos recursos dos quadrinhos para a transmissão de mensagens de
maior conteúdo cultural (MOYA, D´ASSUNÇÃO, 2002), as histórias em quadrinhos no Brasil
não escaparam da sina de serem consideradas produto cultural de segunda classe que devia ser
objeto de desconfiança por parte de pais e educadores (FIGURA 3).

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FIGURA 3

Edição Maravilhosa e Série Sagrada, dois títulos que buscavam criar um ambiente favorável para as
histórias em quadrinhos no Brasil, quebrando os preconceitos contra os produtos da linguagem gráfica
seqüencial.

No entanto, apesar da atmosfera desfavorável predominante em grandes parcelas da


sociedade, as histórias em quadrinhos no Brasil conseguiram atrair a atenção de grandes
artistas, muitos dos quais não se satisfizeram em produzir apenas para o entretenimento das
crianças, mas buscaram utilizar a linguagem gráfica seqüencial como um instrumento de
contestação e denúncia das mazelas sociais. Nesse sentido, é importante destacar o trabalho de
artistas como Henfil (SEIXAS, 1996) e de publicações como O Pasquim, que, durante o
período da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985, realizaram intensa atividade de crítica
social e política, uma atividade que teve prosseguimento mesmo depois do término do
período de exceção e que encontrou seguidores em artistas como Angeli e Laerte, entre outros
(SILVA, 2002). A par disso, o florescimento de uma significativa produção de revistas
alternativas e de fanzines (MAGALHÃES, 2003) garantiu a existência, com uma certa
constância, de uma produção subterrânea de produtos quadrinhísticos veiculados fora do
circuito comercial e destinados a leitores mais velhos (FIGURA 4).

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FIGURA 4

Graúna, de Henfil, a apoteose da linguagem dos quadrinhos como instrumento de denúncia


social e luta política na época da ditadura brasileira.

Os fatores acima assinalados colaboraram para que a busca de novos públicos e maior
diversidade temática para os quadrinhos ocorresse de forma relativamente tranqüila no Brasil
quando os primeiros indícios de declínio do mercado começaram a ser vislumbrados, durante a
década de 1980. Nesse sentido, a criação da Editora Devir, em 1987, na cidade de São Paulo,
pode ser vista como uma primeira iniciativa no sentido de influenciar a mudança do mercado
consumidor, na medida em que intentava, segundo palavras da própria editora,

atender ao crescente número de leitores de histórias em quadrinhos que queriam


discutir e acompanhar tudo sobre os seus personagens ou revistas preferidas. Para
isso (a editora) criou um sistema inovador similar ao de uma assinatura, conhecido
como "Sistema de Reservas". Isso permitiu que um público muito exigente,

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composto por colecionadores e amantes da imaginação, pudesse ter acesso e criasse


uma ponte com o mercado norte-americano de quadrinhos, e também com uma
grande variedade de títulos de editoras independentes americanas e européias, de
forma a encontrar esse material em diversos pontos em todo o Brasil. (DEVIR,
LIVRARIA, 2007)

Tratava-se, então, de uma tentativa de adequação do mercado consumidor brasileiro às


características do mercado norte-americano, pleiteando a instalação de comic stores e a
instauração do modelo de aquisição antecipada pelos revendedores, abolindo-se a
consignação, prática comum das bancas de jornal. Embora provavelmente equivocada em suas
premissas, ela estabeleceu as diretrizes para a publicação e disseminação de materiais voltados
para um público diverso daquele composto por crianças e adolescentes, tradicionais
consumidores das revistas de super-heróis e dos quadrinhos infantis de autores brasileiros
como Maurício de Sousa e Ziraldo Alves Pinto.
Na esteira do trabalho dessa editora, outros empreendedores do ramo editorial
brasileiro também começaram a se voltar para novos segmentos de mercado, inicialmente
alicerçando-se no trabalho de profissionais da linguagem gráfica seqüencial do exterior e
posteriormente buscando valorizar o artista nacional, o que possibilitou o re-direcionamento
de uma parcela significativa do que correntemente é disponibilizado ao público leitor.

Prioridade ao público adulto como elemento de renovação do mercado brasileiro de


quadrinhos

No Brasil, as últimas duas décadas apenas intensificaram a tendência de lançamentos de


quadrinhos para públicos diferenciados, acompanhando um processo de segmentação de
mercados também ocorrido em outros países. Uma análise da disponibilidade de obras desse
segmento de mercado evidencia a presença de editoras com no máximo vinte anos de atuação
na área de quadrinhos e a produção de artigos de maior qualidade gráfica3; no entanto, em
conseqüência dessa busca de maior qualidade editorial, esses produtos também são
comercializados a um maior custo para o consumidor, o que, sob muitos aspectos, restringe
seu potencial de vendas. Tratam-se ainda, em grande parte, de títulos com tiragens

3
Entre elas podem ser incluídas, entre outras, a Mythos Editora, criada em 1996; a Conrad Editora, de 1993; e a
Pixel Media, formada em inícios da presente década pela parceria das editoras Ediouro e Futura Comunicação.

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relativamente modestas, cujas características os fazem ficar mais próximos do mercado


livreiro tradicional do que do de histórias em quadrinhos propriamente dito.
Grande parte dessa produção destinada ao público adulto é veiculada em espaços
diferentes das tradicionais bancas de jornal, o que pode dar a impressão de que é iminente o
abandono das bancas como espaço privilegiado para comercialização de histórias em
quadrinhos no Brasil; no entanto, embora a participação das livrarias seja essencial para
veiculação desses materiais, é viável defender que a ampliação do público de quadrinhos não
deve prescindir ou absolutamente descartar, a priori, a comercialização nesse popular espaço
de vendas, uma vez que os contextos para veiculação de histórias em quadrinhos devem ser
vistos de forma complementar e não como ambientes de concorrência. Nesse sentido têm
atuado as gibitecas brasileiras, bibliotecas com acervo especializado em histórias em
quadrinhos, que proporcionam locais privilegiados para acesso e leitura de todos os tipos de
publicações a todos os tipos de públicos.4
Uma análise do mercado brasileiro de quadrinhos nas últimas duas décadas permite
constatar que o número de publicações direcionadas para segmentos de público adulto
aumentou substancialmente, embora a publicação de títulos para o público infantil e
adolescente seja ainda bastante substancial. Isto é muito significativo em relação ao futuro da
linguagem gráfica seqüencial no Brasil, pois sinaliza para o atendimento a uma demanda que
até recentemente se encontrava órfã, representada por aqueles leitores de histórias em
quadrinhos que, tendo passado o período da adolescência, não mais se satisfazem com as
temáticas aventureiras e humorísticas dos quadrinhos direcionados para essa faixa de público e
buscam produtos com maior profundidade narrativa, que tratem de temas mais ousados e
incluam aspectos eróticos e realistas da vida social contemporânea. A análise possibilita
também identificar a presença de grande número de obras estrangeiras no mercado, composta
majoritariamente por graphic novels e mangás para adultos; no primeiro caso encontram-se os
trabalhos de artistas como Neil Gaiman (Sandman), Joe Sacco (Palestina, Gorazde), Will
Eisner (No Centro da Tempestade, Avenida Dropsie), Frank Miller (Sincity, Trezentos de
Esparta) e Alan Moore (Watchmen, Do Inferno), enquanto que no segundo despontam os

4
A primeira Gibiteca brasileira foi criada na cidade de Curitiba, em 1982, seguida, em 1991, pela Gibiteca
Henfil, na cidade de São Paulo, as duas maiores expoentes de diversas outras gibitecas menores, localizadas em
cidades como Santos, Santo André, São Carlos, Natal, Londrina, entre outras.

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trabalhos de Keiji Nakazawa (Gen), Osamu Tezuka (Adolf, Buda) e Hayao Miyazaki
(Nausicaa) (FIGURA 5).

FIGURA 5

Diversas graphic novels e mangás disponíveis para o público brasileiro, um segmento mais sofisticado
do mercado de quadrinhos norte-americano e japonês ao alcance do público brasileiro.

Identifica-se também, nos últimos tempo, o crescimento regular da publicação de


álbuns oriundos da indústria européia, embora basicamente ainda restrita ao trabalho de
autores mais conhecidos, como Hugo Pratt (A balada do mar salgado), Milo Manara (Clic),
Moebius (Incal) e Guido Crepax (Valentina). Infelizmente, no entanto, a publicação dos
trabalhos de autores latino-americanos de histórias em quadrinhos como Alberto Breccia,
Héctor Oesterheld, Carlos Trillo, José Muñoz e Carlos Sampayo, entre outros, ainda é uma
exceção no mercado brasileiro, onde são veiculados apenas autores mais consagrados como
Quino (Mafalda) e Maitena (Mulheres alteradas).

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No que diz respeito à produção brasileira propriamente dita, alvo principal deste texto,
pode-se identificar a paulatina ampliação do número de artistas no mercado, com maior
variedade de enfoques e estilos narrativos. De uma maneira geral, o mercado para adultos se
divide em obras ligadas ao estilo underground e coletâneas com materiais de novos artistas;
nos últimos tempos, inclusive, nota-se também o incremento de obras de caráter educacional,
com o lançamento de quadrinizações de obras literárias, que recupera uma linha de
publicações bastante popular nas décadas de 1950 e 1960.

O estilo underground

De uma certa forma, além de seguidores diretos do trabalho dos artistas do quadrinho
underground norte-americano, como Robert Crumb e Gilbert Shelton, em que prevalece a
crítica de costumes, o humor irreverente, a crônica de experiências pessoais e a exploração de
temáticas sexuais, autores como Angeli, Laerte, Glauco, Adão Iturrusgarai, Fernando
Gonsalez dão continuidade à obra do já mencionado artista Henfil, enveredando para a crítica
social e de costumes. Autores consagrados,
Laerte, Angeli e Glauco já são veteranos na área de quadrinhos, com constante
presença em jornais brasileiros e grande parte de sua produção mais representativa tendo sido
realizada nas décadas de 1980 e 1990; atualmente, seu trabalho é objeto de coletâneas e
republicações que mantêm satisfeito um público bastante fiel (FIGURA 6).
Apesar de ter surgido depois dos três artistas acima mencionados, em um certo sentido
também Fernando Gonsalez pode ser considerado um veterano dos quadrinhos, com seu
personagem Níquel Náusea sendo publicado no jornal A Folha de S. Paulo há mais de 16
anos. Seu trabalho de quadrinhos já ganhou vários prêmios e é regularmente publicado na
forma de álbuns, sempre com ótima receptividade (FIGURA 6).
Oriundo do sul do país, Adão Iturrusgarai ganhou notoriedade com a publicação da
revista Dundun, publicação que teve o apoio por parte de órgãos governamentais contestado
judicialmente, devido a suas características de irreverência e ao teor erótico de seu conteúdo.
Posteriormente, mudando-se para o sudeste, Adão desenvolveu personagens próprios como a
jovem Aline e a dupla homossexual Rock e Hudson, que caíram no gosto do público (FIGURA
6).

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Artistas como Lourenço Mutarelli e Caco Galhardo podem também ser considerados
como pertencentes ao estilo underground, principalmente devido às características
autobiográficas de seu trabalho, no caso do primeiro, e ao componente humorístico de sua
obra, no caso do segundo, mas não atuam exclusivamente nesse segmento artístico. Mutarelli,
nos últimos anos, tem se dedicado à elaboração de obras de conteúdo mais ficcional com seu
personagem Diomedes, enveredando para o estilo policial noir e se aproximando da produção
de graphic novels; por sua vez, Caco Galhardo desenvolveu recentemente um trabalho que
enfoca a transposição de uma obra literária para a linguagem dos quadrinhos, afastando-se um
pouco do estilo predominante em sua tira Os Pescoçudos.
Outros artistas que têm proximidade com este estilo mas que não poderiam ser
rigorosamente nele enquadrados são os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Ba, que ganharam
destaque com os álbuns da série 10 Pãezinhos e também diversificam bastante sua produção.

FIGURA 6

Angeli, Laerte e Fernando Gonsalez, autores consagrados no país, representantes do estilo


underground em quadrinhos adaptado ao gosto dos leitores brasileiros.

Coletâneas

No Brasil, a publicação de coletâneas com histórias em quadrinhos de diversos artistas e


diferentes estilos narrativos não obteve o sucesso que atingiu em outros países latino-
americanos, como é o caso da Argentina, em que revistas desse tipo dominaram o mercado
durante boa parte da segunda metade do século 20. Na década de 1990, no entanto, o número
de publicações desse tipo experimentou um evidente incremento no mercado brasileiro de

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quadrinhos, representando a oportunidade de disseminação do trabalho de autores que antes


restringiam sua produção a fanzines e revistas alternativas, em sua maioria auto-editadas. A
mais importante publicação desse tipo é a “revista” Front (FIGURA 7), que é publicada com
periodicidade irregular e dá espaço para quadrinhos de caráter humorístico, dramático,
sarcástico ou irônico; embora publicada por uma editora comercial, a publicação é
normalmente organizada na forma de uma cooperativa de autores, costumando concentrar
cada edição em uma linha temática específica, possibilitando um caleidoscópio de histórias
que consegue atender a diferentes gostos. Contrariamente aos quadrinhos produzidos no estilo
underground acima mencionado, esse tipo de publicações não se restringe a uma única linha
de quadrinhos, podendo abranger autores com as mais diferentes tendências e influências,
desde aficionados de super-heróis a adeptos de uma linha mais introspectiva.

Figura 7

Publicada pela Editora Via Lettera, de São Paulo, a premiada revista Front dá guarida tanto a artistas
iniciantes como a veteranos na área, representando uma alternativa viva e dinâmica na produção de
quadrinhos no Brasil.

Na mesma linha da Front estão outras obras publicadas em anos recentes, como Dez na Área,
um na banheira e ninguém no gol, Fábrica de Quadrinhos e Domínio Público, entre outras,
que encontram cada vez maior receptividade entre os leitores brasileiros.

Quadrinização de obras literárias

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Ocorrendo esporadicamente desde o início dos anos 2000, a produção de histórias em


quadrinhos com esse enfoque narrativo parece ter se incrementado no Brasil a partir da
segunda metade da presente década. Entre as poucas iniciativas ocorridas na primeira metade
da década destaca-se o livro Contos em Quadros, adaptação em quadrinhos de três contos de
escritores brasileiros: Pai contra mãe (Machado de Assis), O Bebê de tarlatana rosa (João do
Rio) e Apólogo brasileiro sem véu de alegoria (Alcântara Machado), realizada por Célia Lima
e J. Rodrigues para a Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora. Outro trabalho digno de
destaque é a edição de Galvez, O Imperador do Acre, adaptação da obra de Márcio Souza,
com roteiro de Domingos Demasi e Desenhos de Miguel Imbiriba, patrocinado pela Secretaria
Executiva de Cultura, do governo do Pará, um álbum esplendoroso, publicado em 2004. No
entanto, por serem publicados fora do circuito Rio-São Paulo, tais obras não obtiveram grande
divulgação, ficando infelizmente restritas a um pequeno número de admiradores. A mesma
sorte teve a transposição para quadrinhos de um dos maiores poemas brasileiros, o “auto de
Natal” Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, obra realizada pelo artista
Miguel Falcão – que poeticamente assina o trabalho em palíndromo, Leugim... -, e publicada
no final de 2005 pela Editora Massangana, braço editorial da Fundação Joaquim Nabuco, de
Recife (FIGURA 8).

FIGURA 8

Galvez, o Imperador do Acre, e Morte e Vida Severina, dois exemplos da tendência de


transposição de obras literárias para a linguagem gráfica seqüencial, que tem proporcionado
trabalhos de grande primor artístico, mas que nem sempre conseguem divulgação nacional.

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Em 2005, debruçando-se sobre a obra de Cervantes, Caco Galhardo mostrou estar à


altura da tarefa de trazer ao público brasileiro mais uma quadrinização da obra do autor
espanhol. Em traços caricaturais, seu trabalho se destacou por uma abordagem fidedigna, que
buscou manter a atmosfera um pouco dantesca que predomina na obra. O autor brasileiro, em
uma opção bastante feliz, preferiu inclusive utilizar o próprio texto original na sua
quadrinização, transcrevendo praticamente de forma literal a tradução para a língua portuguesa
feita por Sérgio Molina.
As mudanças na educação brasileira nos últimos anos, principalmente a inclusão das
histórias em quadrinhos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) como uma das
alternativas de complementação didática no ensino formal, também parecem ter colaborado
para que a quadrinização de obras literárias encontrasse novo fôlego no país. Esta é a linha
seguida pela Editora Escala Educacional, de São Paulo, com a publicação da série Literatura
brasileira em quadrinhos, iniciada em 2005, voltada para a aplicação em sala de aula. A
coleção busca transpor para a linguagem das histórias em quadrinhos obras consagradas de
grandes autores brasileiros, colocando-as ao alcance dos estudantes do país, tendo até o
momento publicado as edições de O homem que sabia javanês, Miss Edith e seu filho, A nova
Califórnia e Um músico extraordinário, de Lima Barreto; Uns braços, A casa secreta, O
alienista, A cartomante e O enfermeiro, de Machado de Assis; Brás, Bexiga e Barra Funda,
de Antonio Alcântara Machado; O cortiço, de Aluísio Azevedo e Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antonio de Almeida. (FIGURA 9)

FIGURA 9

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Uma linha de materiais em quadrinhos, de conteúdo paradidático, representando uma aposta ousada na
utilização pelas escolas brasileiras.

Os dois últimos anos no Brasil assistiram ao lançamento de diversos outros títulos


voltados para a quadrinização de obras literárias, que chamaram a atenção de público e crítica
por seu alto nível de qualidade artística. Entre eles, podem ser destacados Os Lusíadas, nas
transposições realizadas tanto por Lailson de Holanda Cavalcanti como por Fido Nesti; A
Relíquia, de Eça de Queiroz, com quadrinização do artista underground Marcatti; e O
Alienista, de Machado de Assis, com desenhos de Gabriel Bá e Fábio Moon (Figura 10).

FIGURA 10

Dois grandes mestres da literatura portuguesa e brasileira em quadrinhos, pelas mãos de grandes
artistas da área.

Conclusão

Embora seja provavelmente prematuro visualizar em curto espaço de tempo qualquer tipo de
reversão significativa do mercado de produção e consumo de histórias em quadrinhos no
Brasil, o panorama traçado nas páginas anteriores parece sinalizar a existência de uma forte
tendência em direção à diversificação de públicos e produtos. Esta é uma novidade
alvissareira, pois aponta caminhos para a superação da crise trazida pelo impacto da
concorrência das novas tecnologias e da perda de leitores ocorrida nos últimos anos. Nesse
sentido, um dado bastante promissor foi a inclusão, em 2006, de vários títulos de quadrinhos

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no Programa Nacional Biblioteca na Escola, que permite acreditar na diminuição das barreiras
para o ingresso dos materiais quadrinhísticos em ambiente escolar no país5.
Se, por si só, essas mudanças e iniciativas serão suficientes para garantir a existência
de uma indústria autóctone forte na produção de histórias em quadrinhos é ainda uma
incógnita de difícil decifração. Sabe-se, no entanto, que essa diversidade representa um trunfo
considerável nessa luta e por isso deve ter sua importância devidamente equacionada,
tomando-se o cuidado de não minimizá-la – o que ocorreria pelo desprezo em relação a seu
potencial de transformação de mercado -, ou maximizá-la exageradamente – o que se daria por
sua eleição como a única alternativa viável para sobrevivência dos quadrinhos no país. Trata-
se, ao fim das contas, de uma das muitas estratégias possíveis para avanço da linguagem
gráfica seqüencial no Brasil e certamente tem mostrado resultados satisfatórios até o
momento, devendo ser refinada para sua maior eficiência. Isso poderá ser feito pela definição
de outros segmentos do público adulto, como o das mulheres, de profissionais liberais, de
grupos étnicos, etc. Tudo indica que, devidamente trabalhada, essa estratégia poderá continuar
a trazer bons resultados no futuro.

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Os títulos de quadrinhos incluídos no Programa em 2006 foram: Asterix e Cleópatra, de R. Goscinny e A.
Uderzo; Toda Mafalda, de Quino; Na prisão, de Kazuichi Hanawa; Dom Quixote em quadrinhos, adaptação da
obra de Miguel Cervantes por Caco Galhardo; Santô e os pais da aviação, de Spacca; A metamorfose, adaptação
da obra de Franz Kafka por Peter Kuper; Níquel Náusea – Nem tudo que balança cai, de Fernando Gonsales; Pau
pra toda obra, de Gilmar; A Turma do Pererê – As gentilezas, de Ziraldo.

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História, imagem e narrativas
No 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br

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