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1) Pode contar que modificações foram feitas nesta edição?

Como foi, pra vc,


revisitar esse texto? Achou que faltava algo?

R - Além de uma revisão rigorosa do texto original, a nova edição incorpora


informações inéditas que, a meu ver, contribuem para dar aos leitores uma visão ainda
mais abrangente da rica trajetória de Henfil. Entre as atualizações feitas, gostaria de
salientar a revelação de trechos da correspondência entre Henfil e seu irmão, o
saudoso sociólogo Herbert de Souza, quando Betinho vivia exilado no Canadá,
durante a ditadura militar. Numa das cartas mais expressivas, Henfil ressalta a sua
consciência sobre a missão (palavra por redigiu com letras maiúsculas) que tomou
para si de tentar salvar o mundo através do permanente envolvimento com
reivindicações e lutas por justiça social. Era um papel messiânico, não só dele, mas
da parte de sua geração que, militando na esquerda católica no começo dos anos
1960, se assumiu como defensora e intérprete dos valores humanistas, combatendo
desigualdades e injustiças. Outro acréscimo que merece destaque diz respeito a
documentos que obtive no arquivo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI),
hoje sob a guarda do Arquivo Nacional, em Brasília. Eles mostram como os agentes
de órgãos de segurança da ditadura monitoravam o quadro de humor que Henfil
protagonizava no célebre programa TV Mulher, da TV Globo, no início da década de
1980. Os relatórios enviados ao SNI o enquadravam como "subversivo", alertando que
ele tentava criar situações e fazia entrevistas que procuravam passar aos
telespectadores mensagens "inadequadas" de cunho político. Significa que Henfil,
enquanto artista engajado, era duplamente vigiado pela repressão: de um lado, os
censores que cortavam ou vetavam pilhas de seus cartuns na grande imprensa e na
imprensa alternativa; de outro, os arapongas que o consideravam um “elemento
nocivo” na programação de um canal de televisão com grande audiência.

2) Há uma certa atualidade nessa biografia, especialmente quando pensamos no


momento que o Brasil vive agora. Vc concorda? E o que a biografia do Henfil é capaz
de nos dizer sobre o Brasil contemporâneo?

R - Sem dúvida, lida hoje, a biografia de Henfil é de uma atualidade desconcertante.


Não são poucas as passagens do livro em que você termina de ler e acaba
exclamando: mas isso está ocorrendo agora no Brasil! Não é difícil entender a razão.
Boa parte da obra de Henfil aborda problemas socioeconômicos e mazelas políticas
que, na essência, permanecem os mesmos, décadas depois. Ou seja, o país continua
atolado em seus próprios impasses, infelizmente. São muitos os desenhos de Henfil
sobre corrupção, crise econômica, desemprego, violência policial, descrédito dos
políticos, agressões ao meio-ambiente, saúde pública em frangalhos, aumento da
pobreza... O afiado senso de humor e o inconformismo de Henfil seguem sendo
referências vigorosas diante de uma realidade que não cessa de reproduzir injustiças
e exclusões. Isso tem a ver com a sua coerência ético-política e com a sua
característica singular de fazer uma crítica implacável do sistema dominante sem
deixar de ser hilariante em suas tiradas.

3) Estamos ficando intolerantes? Há espaço para o humor na intolerância?

R - O humor inteligente pode ser um antivírus contra a intolerância. Quando consegue


manejar bem a ironia, o gosto pela polêmica, o deboche na medida certa e o espírito
aberto ao contraditório, o humor é capaz de deixar tontas muitas mentes intolerantes.

4) Qual o futuro da charge no Brasil? E que lugar ela ocupa nesse cenário de crise do
jornalismo? O humor ainda tem espaço como crítica na sociedade contemporânea?
(Penso no que aconteceu, por exemplo, com o Charlie Hebdo?

R - Mais do que nunca, charges e cartuns são (e continuarão sendo) de extrema valia
como meio de expressão alternativo que permite pontuações críticas sobre fatos que
afetam o cotidiano das pessoas e as aspirações da coletividade. Com extraordinária
capacidade de síntese e espírito insubmisso, os melhores chargistas e cartunistas
põem na alça de mira arranjos e idiossincrasias do poder e denunciam interesses
econômicos gananciosos, preconceitos, discriminações e imposturas. Não raro, eles
trazem à luz situações que os poderosos desejariam a todo custo ocultar. O
entendimento de Henfil sobre o lugar crítico reservado ao humor está bem resumido
nesta afirmação: “Acho que quem está a fim de fazer humor para popularizar o
sistema deveria ser bancário. Atrapalharia menos. O humor que vale para mim é
aquele que dá um soco no fígado de quem oprime.”

5) Em determinado trecho do livro, você diz que Henfil definiu a provocação como raiz
das situações humorísticas. O que ele fazia ainda é possível no Brasil de hoje, numa
sociedade preocupada com o politicamente correto?

R - Justamente porque a sociedade atual parece preocupada com o politicamente


correto, o humor provocativo, sobretudo quando expõe contradições sociais e
políticas, se torna um elemento quase indispensável para se contrapor ao status quo e
ao conservadorismo. Ele põe em xeque consensos de ocasião; questiona hipocrisias e
falácias; e geralmente busca difundir visões alternativas e posições mais arejadas e
progressistas.

6) Você fala, em um trecho, que ficar indiferente era a única postura inadmissível em
1968. E hoje, qual a única postura inadmissível?

R – Não ser solidário às lutas pela emancipação social e pelos direitos da cidadania,
em oposição ao quadro calamitoso em que se encontra nosso país.

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