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L@MPREGO NHUMBUG@KU

O MISTÉ
MISTÉRIO D@ ONÇ@ PIFEIR@

EDU@RDO M@CEDO E M@RCOS WENDELL


FORT@LEZ@ – NOVEMBRO/2015
Na Serra do Ororubá,
Território Xukuru,
Há uma furna escondida
Onde dorme um canguçu,
Em meio a restos de peba,
E ossadas de caititu.

A gruta encerra um mistério


Que há muito tem inspirado
O povo dos arredores:
Um pífano bem guardado,
Longe dos ossos, num canto,
Limpo, novo e conservado.

A razão para este fato,


Segundo ouvi relatar,
É tema deste poema
Que agora vou debulhar,
Com metro e rima corretos
Para o cordel exaltar.

Num lugarejo encravado


No agreste pernambucano,
Acontecia um festejo
Que atraía todo ano
Pifeiros de toda parte
Para o seu sopé serrano.

Vinham bandas cearenses,


Do Piauí, potiguares,
Da Bahia, Paraíba
E da terra dos Palmares.
Do Estado do Pernambuco,
Dos mais longínquos lugares.
O nome do povoado
Já dava grande sinal
Da tradição que compunha
Sua força cultural:
Batizava-se o lugar
Por "Várzea do Tabocal".

Sua santa padroeira,


Nossa Senhora das Dores,
Era a dona dos festejos,
Das orações e clamores.
Mas também um outro santo
Tinha lá seus seguidores.

“Frei Benedito, o Pifeiro”,


Era um santo popular.
Consagrado milagreiro
Pelo povo do lugar,
A quem rogavam por água
E louvavam a tocar.

Vinham das bandas de pífano


As musicais homenagens.
Do frade artesãos faziam
De barro muitas imagens
Para vender aos romeiros
Em suas peregrinagens.

Contava uma antiga história


Que Frei Benedito havia
Enfrentado o próprio diabo
Coa música que saía
Da flautinha de taboca
Que no cós sempre trazia.
Tabocal era uma terra
Cabocla por tradição.
Lá se enxergava o Brasil
Profundo com perfeição.
As veias da mestiçagem
Pulsavam naquele chão.

Neste amálgama de fé
E primevas tradições,
Veio ao mundo um tocador
Cujos toques e bordões
Despertava em toda a gente
As maiores sensações.

Num raiar do mês primeiro,


Janeiro, no dia seis,
Uma banca cabaçal
Que louvava os Santos Reis
Entrou, como de costume,
Num ranchinho camponês.

Os músicos, bem fardados


De uniforme azul do céu,
Entraram tocando loas,
Fazendo grande escarcéu.
Mas tão logo lá entraram
Foram tirando o chapéu.

Pois ali, na camarinha,


Uma mulher dava a luz;
Os homens, silenciados,
Fizeram sinal da cruz.
Rompeu-se em seguida um choro
E deu-se um “viva” a Jesus!
Nascera um neném saudável,
Face mostrando rubor.
Ligeiro, tocou a banda
Uma toada em louvor
Ao menino que nascia,
Bem como a Nosso Senhor.

O pequeno demonstrava
Grande fôlego chorando.
Seu pulmão era robusto,
Tanto que os pifes tocando
Em altura equiparavam
Aos berros que ele ia dando.

Neste instante sua mãe


Que inda não tinha escolhido
Um nome para o filhinho
Teve o caso resolvido:
“Vai se chamar Epifânio
E será muito querido”.

Epifânio cresceu forte


E assim que pôde soprar
Ganhou uma taboquinha
Na qual danou-se a tocar
Melodias infantis
E modinhas do lugar.

Muito cedo ganhou fama:


Antes de virar brochote
Todo mundo lhe queria
Pra tocar baião e xote.
As bandas o disputavam
Para tê-lo por mascote.
Era a maior atração
Ver aquele rapazinho
Com os mais ligeiros dedos
Tocando qual passarinho.
Todo o mundo se encantava
Ao vê-lo pelo caminho.

Mas não levou muito tempo


Para Epifânio notar
Que era um músico distinto,
De engenho peculiar.
Logo chegara o momento
Da própria banda montar.

O melhor dos zabumbeiros,


O mais destro em bater pratos,
Na caixa o de mais primor,
Escolhia sem recatos,
Pois para tocar com ele
Não faltavam candidatos.

Sua banda era um estouro;


Toda mulher esquentava.
Fosse solteira, casada,
Viúva se balançava.
Nenhuma ficava inerte
Ao que Epifânio tocava.

Os velhos também vibravam


Ao ritmo da zabumbada.
Crianças, homens e moços
Aderiam à toada.
Qualquer esqueleto ao som
Sacudia sua ossada.
Porém, um problema veio
A se tornar recorrente;
Com Epifânio nenhum
Pifeiro seguia em frente,
Uma vez que ele enxergava
O próprio umbigo somente.

É que o dom de que dispunha


Má sorte rendeu também,
Pois quando estava em parelha
Não dava chance a ninguém,
Sentia necessidade
De sempre se por além.

O resultado, destarte,
Foi que ele passou a ver
Os colegas de instrumento
Quais rivais a combater.
Daí nunca mais a banda
Veio outro pifeiro a ter.

O rapaz de gênio forte


Amigo nenhum fazia.
Era a flauta de taboca
Sua grande companhia.
Varava noites tocando
Até o raiar do dia.

Isto possibilitou-lhe
Fazer do dom excelência.
A prática no instrumento
Lhe rendeu tanta fluência
Que inspirava aos vinte anos
Cinquenta de experiência.
Se por um lado era destro,
Um músico virtuoso,
Ao mesmo tempo a cabeça
Lhe tornava temeroso.
Sofria com a ideia
De não ser vitorioso.

Não aceitava parelha,


Não admitia que um par
Se aproximasse de si
Pois, assim, em seu pensar,
Meio caminho era andado
Para outro lhe ultrapassar.

Além da falta de amigos,


Seu tormento lhe rendia
Obcecada devoção,
Pois mil súplicas fazia
Aos santos aos quais rezava
Pra ser melhor cada dia.

Agora vamos aos fatos


Que importam neste romance.
Voltemo-nos aos detalhes
Atentos a cada lance
Pois a narrativa agora
Será plena de nuance.

Mais um mês se aproximava


De festas em Tabocal
E o rapaz, muito empolgado
Para tocar no local,
Intensificava os treinos
Nas flautas do taquaral.
A noite tinha varado
Estudando o instrumento
E adormecera pouco antes
Do sol ressurgir rebento.
No pingo do meio dia
Acordara sonolento.

– Epifânio, te levanta
Que já é hora do almoço!
Da cozinha, sua mãe
Lhe chamava em alvoroço.
Mal levantou-se e foi logo
Pegando o pífano o moço.

No trajeto para a mesa


Debulhou novo baião
Com o qual sonhara enquanto
Dormia o sono de então.
Sentou à mesa coa mãe
Após pedir-lhe a bênção.

– Vou me superar esse ano;


Vou tocar pra nunca mais
Deixar brecha pra pifeiro
Pensarem que são os tais.
Valei-me Frei Benedito!
Melhorar nunca é demais!

– Pega, filho, aqui seu prato,


Coma bem que em sete dias
Você toca e Tabocal
Vai se encher de melodias.
Será lindo e, como sempre,
Vamos ter só alegrias.
Assim disse sua mãe,
Que há tempos enviuvara.
– Mãe, eu sei que as festas são
Como fogo de coivara:
Ligeiro se queima tudo,
No chão não sobra uma vara.

– Quem vara verde não for


E não demonstrar ciência
Pelo fogo é condenado
Às cinzas da decadência.
Nestes termos Epifânio
À conversa deu sequência.

– Por isso, mãe, não intento


Em ser terceiro ou segundo.
Sei que tenho condição,
Pois sou tocador fecundo
E assim quero ser lembrado:
"Maior pifeiro do mundo".

– Menino, já és bastante,
Fique certo, tenha paz.
Quem muito quer muito perde,
Ouça sua mãe, rapaz.
Agora, cuide do prato,
Deixe de ser contumaz!

A semana correu cheia


De expectativa pro povo,
Que esperava o ano inteiro
Para festejar de novo.
A cidade renascia
Qual pinto que sai do ovo.
O movimento era grande:
Pelas ruas caminhões
Lotados de sertanejos
Que deixavam seus rincões.
Tabocal era um rio onde
Afluíam multidões.

Uma novena em louvor


À santa, Virgem Maria!
Na matriz o velho sino
Tocava ao raiar do dia
E o cortejo da alvorada
Em frente à igreja seguia.

As bandinhas se alternavam
Entre hinos, marchas, louvores.
Eram pífanos, triângulos,
Pratos e muitos tambores
Em franca apresentação,
Cercados de expectadores.

Depois duma hora de música


À missa dava-se início.
As bandas silenciavam;
Era momento propício
Para que os fiéis rezassem,
Pedindo em seu benefício.

Dos nove dias de festa


Enfim chegara o primeiro.
Epifânio tocaria
somente no derradeiro,
Pois cabia a cada banda
Tocar por um dia inteiro.
O rapaz, bem como os outros
Músicos que ali estavam,
Adiantou-se e se juntou
Àqueles que ajoelhavam.
Porem suas orações
Eram mantras que ecoavam:

- Minha santinha querida,


Dai-me ciência, suplico;
Faz com que minhas tabocas
Emitam o som mais rico,
Que todo tom que eu tirar
Garanto que a vós dedico.

- Logo chegará o dia


De tocar para essa gente.
Permita que eu me supere
E que a mim vejam somente.
Faz com que meu pife entoe
Os salmos do Onipotente.

E diante do altar benzendo,


Compenetrado e contrito,
Suplicou também aos santos
E pediu a Benedito,
O frade, pelo seu sopro,
Rogando-lhe o dom bendito.

Terminada a extensa missa


Todo o povo, em demasia,
Ao comércio da cidade
Seguiu como em romaria.
Era o período do ano
Melhor para a economia.
Mercado municipal:
O local efervescente
Da cultura popular.
Desafios e repente,
De embolada e de viola
Pro gosto de toda a gente.

Artesãos do barro, couro,


Talhadores da imburana,
Folheteiros declamando
Histórias de Taprobana
E as bandas tocando a Briga
Do cão coa suçuarana.

Também rumou Epifânio


Coa multidão ao mercado.
Avistou logo uma banda,
Seguiu de pife empunhado
E chegou junto dos outros
Tocando seu floreado.

Chegou fazendo o cachorro,


Ganindo como os caninos,
Imitou o caboré,
Soltando piados finos,
Tocou o Baião do bode
E outros clássicos nordestinos.

Fez o gosto do povão,


Na frente duma bodega.
Até que, enquanto tocava,
Ali chegou um colega
Que resolveu tocar junto
Iniciando uma refrega.
Quando Epifânio chegara
Junto da banda, mais cedo,
Um conterrâneo que estava
A tocar saiu com medo
Deixando o rapaz sozinho
A comandar o folguedo.

Já este outro era de fora


E desconhecia as manhas
Do pifeiro varzeense.
Logo, foi sem artimanhas
Juntando-se ao tocador
Lhe enchendo de raiva e sanhas.

Diante de tamanha afronta


Epifânio resolveu
Intimidar o “oponente”
Tocando o pífano seu
Com todo virtuosismo
Que sua vida lhe deu.

Tendo por certo que o outro


Co’ aquilo desistiria,
Foi grande sua surpresa
Percebendo a maestria
Com a qual lhe acompanhava
O causador da porfia.

Quanto mais ele tocava,


Incrementando o baião,
Mais o outro se empolgava
Acompanhando em refrão.
Alfim quem aproveitava
Era a grande multidão.
Um mundo de expectadores
Se aglomerava em redor
Dos dois exímios flautistas
Que já minavam suor
De tanta força fazerem,
Cada qual sendo melhor.

Tocaram à exaustão
Em cadência acelerada,
Até o momento em que
O conjunto fez parada
Porque teve o zabumbeiro
Sua baqueta quebrada.

As palmas da multidão
Troaram qual foguetório,
Desses de renovação,
De ano novo ou de casório,
Mas o que deu-se em seqüência
Deu margem a falatório.

Em meio àquela ovação


O forasteiro estendeu
Sua mão para Epifânio
Mas este as costas lhe deu.
Foi-se embora furioso,
Todo o povo percebeu.

Em casa entrou feito mudo;


Pela mãe passou direto.
No quarto armou sua rede,
Deitou-se calado, quieto.
Quando a mulher lhe abordou,
Permaneceu circunspeto.
- Que bicho te mordeu, filho?
Entrou sem pedir a bença?
Será que desconta raiva
Nesta que só em ti pensa?
O que a ti tenha ocorrido,
Tu maltratar-me compensa?

Sabemos nós, meus leitores,


O que a mãe tambem sabia:
Era por sentir ciúme
Que o rapaz ali roia.
“Decerto outro bom pifeiro
Ele viu naquele dia”.

- Menino, deixe de ser


Tão voltado para si.
No mundo há muitas pessoas
Mas ninguém igual a ti.
Inda mais sendo você
O mor pifeiro daqui.

Sua mãe tendo lhe dito


Isto por obrigação,
Uma vez que já sabia
Que debaixo de emoção
Epifânio não abria,
Nem pra trem nem caminhão!

Foi-se o dia, veio a noite


E o nosso pifeiro em casa.
Aquela contrariedade
Fez seu peito arder em brasa.
Bastou sua mãe deitar
Pra súplica correr rasa.
Ante o pequeno oratório
Que existia na morada
Se ajoelhou Epifânio
E rogando à santa amada
Rezou um terço completo,
De oração encarrilhada.

Pediu: - Ó, Santa Maria


Ilumine meu caminho.
No meu dia me permita
Que eu me consagre sozinho
Como maior tocador
Desse universo todinho.

Dizendo isto, foi ao quarto


E do interior do armário
Tirou seu santo de barro,
Enrolou-o no rosário
E o pôs ao lado da imagem
Da santa, no santuário.

Novamente de joelhos
Sua reza retomou.
Todas orações e terços
Que conhecia rezou
Até que, rendido ao sono,
No chão mesmo ele tombou.

De manhã foi acordado


Para tomar seu café.
Durante os dias seguintes
Evitou ir ao banzé.
Em casa permaneceu
Sete dias sem dar fé!
Foi uma semana inteira
Divida entre tocar
E rezar para Maria
E seu santo popular.
Na noite do dia sétimo
Foi difícil despertar.

Acordado pelos gritos


Dos colegas lhe chamando,
Com o sol quase nascendo
Levantou-se e foi botando
O fardamento da banda
Que a mãe estava engomando.

Então à igreja seguiram,


Aos toques do alvorecer.
Quase ninguém, lá chegando,
Havia pra receber
A banda, que parecia
Que fazia o sol nascer.

Uma marcha, outra, um hino


E aos poucos os populares
Iam chegando, um a um,
Dos mais diversos lugares.
Com pouco um rumor de música
E gente ganhava os ares.

Não por ser último dia


Ali havia mais gente.
O motivo era Epifânio,
Cuja fama, realmente,
Atraía expectadores
Para assistí-lo somente.
Por hora e pouco tocaram
Em grande desenvoltura.
A percussão, alinhada,
Retumbava à boa altura,
Acompanhando o pifeiro
Na base da embocadura.

Soaram as badaladas
E à missa se deu início.
Os músicos encerraram
Em atenção ao ofício
Do padre enquanto Epifânio
Rogava em seu benefício.

Reza feita, na sequência,


Conforme se praticava,
Seguiu todo pro mercado
O povo que lá estava,
Exceto nosso pifeiro
Que então a tudo estranhava.

Devido àquele incidente,


Co’o colega de instrumento,
Ele evitou outro encontro,
Outra prova, outro tormento.
Pra ele, ir para casa
Mostrou-se mais a contento.

Chegada a hora do almoço,


À mesa, não quis comer.
A mãe já se angustiava
Vendo seu filho a sofrer,
Porém, não tinha maneira
Da situação resolver.
Enquanto a tarde passava
Em Várzea do Tabocal,
Fagueira, tranquila e mansa,
Era a confusão mental
Que acometia Epifânio,
Pifeiro fenomenal.

No quarto se perguntava
Se havia tocado bem.
Ia e voltava a questão
Num maldito vai e vem.
As lembranças do mercado
Lhe atormentavam também.

- Parece que não há rogo,


Orações, preces ou prantos,
Que eleve minhas quimeras
Até a altura dos santos.
Eu que minha fé professo
E propago aos quatro cantos...

- Pra ser bem aventurado


O que seria preciso?
Praticar a penitência,
Se isolar, viver diviso?
Ser um ermitão, morrer,
Pra alcançar o paraíso?

Coisas desta natureza


Lhe ocuparam toda a tarde.
Em meio à imensa angústia,
Feito labareda que arde,
Esqueceu-se dum detalhe
Que lhe causou grande alarde.
À tarde, às ave-marias,
Um cortejo se formava
Para transportar a Santa
Que de casa se mudava.
Cada dia uma família
A santa imagem guardava.

Seguia abrindo caminho


Para o andor uma banda.
Cada dia um novo grupo
Seguiria a veneranda,
Tarefa que a todos era
A mais honrosa demanda.

Epifânio, ao se lembrar,
Que era vez da banda sua,
Ligeiro vestiu-se e foi
Em carreira pela rua.
Na igreja, quando apontou,
Tocava a percussão crua.

Meteu-se em meio aos tambores


E começou a tocar
Enquanto todos seguiam
Tendo por destino o lar
Em que a santa se encontrava,
Para irem-na buscar.

A imagem foi carregada


Por algumas das pessoas
Que acompanhavam a banda,
Entoando hinos e loas.
Porém, um entre os demais
Não ‘stava em condições boas.
Veio a missa vespertina
Que mais fiéis atraía
Do que aquela matinal.
A multidão preenchia
Toda a praça e arredores
Do templo que reluzia.

Após a solenidade
Era a apresentação
Da banda da vez que vinha
Entreter a multidão.
Mas vejam, leitores, como
Se deu esta ocasião.

Epifânio, nesta feita,


Não acompanhou o rito,
Não rezou as orações,
Não se ajoelhou contrito.
Como nunca houvera outrora,
O rapaz estava aflito.

Só pensava que não era


Aquilo que intencionava:
O maior dos tocadores
Que nos pífanos soprava.
Desolado, sua mente
No vácuo se desmanchava.

Chegada a bênção final


Acabava-se o mister
Religioso e começavam
Os folguedos pra quem quer
Comer, beber e dançar
Ao som do esquenta mulher.
Numa grande expectativa
Varzeenses e romeiros
Aguardavam Epifânio
Soprar os toques primeiros.
Todos queriam ouvir
Os seus baiões prazenteiros.

E o sopro saiu enfim.


A nota desonerada
Pulou do pife pra fora
Capenga, tosca, toldada,
Outra puxando e mais outra,
Numa grotesca zoada.

A percussão inda entrou


Tentando em vão se encaixar
À melodia alquebrada
Mas obrigou-se a parar,
Pois não havia maneira
De Epifânio acompanhar.

Logo a platéia, na rua,


Inflamada por cruéis,
Em vaias se desmanchou,
À forma de mil tropéis,
Uma vez que os tocadores
Não cumpriram seus papéis.

Epifânio, qual fumaça


Que desintegra no céu,
Num piscar de olhos sumiu
Em meio àquele escarcéu.
No lugar aonde estava
Ficou só, mesmo, o chapéu.
Procuravam-lhe os colegas
Em toda parte da festa.
Sua mãe, com quem topava,
Dizia, de mão na testa:
- Viu meu filho por aí?
Ele é tudo que me resta!

Após tamanha afiliação


Epifânio, envergonhado
E furioso seguiu
Para além do povoado,
À Serra do Ororubá,
Ao arvoredo fechado.

Chegando à boca da mata,


O rapaz se acocorou
E olhando a floresta escura
Só, consigo, ele pensou:
“Aqui vive o encantado
Que a finada vó contou”.

E, inflando o pulmão completo,


Tocou uma melodia
Bem diferente daquelas
Que em Tabocal se ouvia.
Com um canto ancestral, índio,
Ela mais se parecia.

Aquela música antiga


Fluía naturalmente,
Embora ele nunca houvesse
Composto, sequer em mente.
Eram tons que ora ecoavam
Oriundos do inconsciente.
Qual nós, que somos caboclos
Deste sertão sem medida,
Epifânio tinha os genes
Da velha raça perdida:
O sangue tapuia, atávico,
Sempre a pautar sua vida.

Naquele momento em que


A amargura lhe minava
Sua essência de gentio,
Que rara manifestava,
Tomou-lhe de sopetão
Qual bordoada de clava.

Enquanto soprava o pífano,


Epifânio assim pensou:
“Fé cristã que me despreza,
Que não zela a quem orou,
Que com nada paga a reza
De quem a ti devotou.

Santos de gesso, madeira,


Barro que abunda no rio,
Vos desprezo por inteiro.
Eu - índio - vos deprecio!
Rogo agora aos ancestrais
E os invoco em desafio."

Deixou o pife e bradou:


- Minha devoção se encerra!
Oh, grande Ipu Aridu,
Senhor das matas da serra,
Atende ao chamado deste
Filho da raça, da terra!
Tornando à embocadura,
Tocou mais alto, mais forte.
De súbito um chacoalhar
Nas plantas de todo porte
E um grunhido desmedido
De inspirar temor e morte.

Manteve-se o rapaz firme,


Sem arredar pé dali,
Tocando. Pôde notar
Algo vindo para si;
Eis que surgem, mata afora,
Dois guaxinins, um quati.

A estes juntam-se dez


Cassacos, vinte preás,
Doze mocós, punarés,
Três gatos maracajás.
Montando duas raposas
Um casal de carcarás.

Os carcarás revoaram
Buscando, no alto, poleiro
E quando os acompanhou
Coa vista nosso pifeiro,
Pôde enxergar no arvoredo
Vultos de urubu banzeiro.

Vários tipos de gavião,


Esvoaçando e piando.
Caborés e bacuraus
Perto do chão revoando.
Urutau de olho grelado,
Por trás da rama espiando.
As aves e os passarinhos
Deixavam as copas cheias,
Dividindo espaço com
Soins de caretas feias.
Macacos-pregos desciam
Dos troncos para as areias.

Pelo chão ele notou


Profusão de rastejantes.
Surucucus, jararacas,
Rãs e cobras verdejantes.
Camaleões e calangos,
Tejos, jabutis gigantes.

Os animais eram tantos


Que a partir de certa altura
Epifânio não deu conta
De ver tanta criatura:
Paca, veado, nambu,
Ema de grande estatura...

Por fim deixaram a mata


Dois caititus, dois queixadas,
Mais duas suçuaranas
Muito grandes e alongadas.
Então todos serenaram
Olhando para as ramadas.

Neste instante sombra humana


Aos poucos se desentoca;
Em consequência Epifânio
Deixa de lado a taboca.
Medo e ânsia são o misto
De sensações que lhe toca.
Emerso da mata escura
Surge um índio centenário.
O velho Ipu Aridu,
Um ser mítico, lendário,
Gênio protetor das matas
E do povo originário.

Portando um grande tacape,


Em trajes de palha e penas,
No rosto marcas da idade
(Prováveis duas centenas!),
Embora, em contradição,
Mostrasse ter forças plenas.

- Filho nosso, tão ausente,


Não sabes da minha espera.
Nas matas desta montanha
Habito com bicho e fera
Aguardando vossa vinda:
Tua e da tua quimera.

-Vejo que sofres aflito


Por motivo de desejo.
Fala a nós o que tu queres,
Pois que tens pressa, bem vejo.
Confessa para este pai
Qual seria o teu ensejo.

Estas palavras falou


O ancião para o rapaz,
O qual, decidido e frio,
Disse-lhe em tom contumaz:
- Ser primeiro sem segundo,
É isto que aqui me traz.
Epifânio foi falando
E o velho se acocorou.
Preparando seu cachimbo
A uma pedra apontou
Defronte de si, na qual
O rapaz logo sentou.

O pifeiro confessou-lhe
Da sua grande vontade,
Que queria ser flautista
Sem par, sem rivalidade
Que pudesse por em cheque
Sua superioridade.

Pitando o velho cachimbo,


Ipu Aridu ouvia.
Enquanto o rapaz falava
A fumaça que subia
Circulava em espiral
E sobre os dois se esvaía.

Tendo falado Epifânio


Foi a vez de Ipu dizer:
- Filho, o que vens me pedir
É difícil de fazer.
Não por mim, mas, sim, por ti,
Pelo custo que vais ter.

- Velho pai, não interessa


A mim, custe o que custar,
O preço da minha escolha,
Terei prazer em pagar.
- Porém, devo lhe advertir,
Sua vida vai mudar.
- Não importa a qual mudança
Eu farei enfrentamento;
Me disponho a qualquer coisa
Pra alcançar o meu intento!
Assim findava a questão
O pifeiro de talento.

O velho índio levantou-se


E voltou-se à mata escura.
Erguendo a borduna à frente,
Poferiu a baixa altura
Palavras no idioma brobo,
Língua daquela cultura.

Em seguida ele agachou-se,


Apanhou terra na mão,
Soprou fumaça sobre ela,
Entoou uma canção
E virou-se a Epifânio
Que olhava com atenção.

E disse: - A partir de agora


Viverás aqui na serra,
Integrado com a mata,
Com as águas, com a terra.
Tua vida entre as pessoas
Aqui, neste ponto, encerra.

- Assim passarás os dias


Ouvindo as aves canoras
Que cantam floresta adentro
Desde o romper das auroras
Até as bocas de noite
As toadas mais sonoras.
- Com elas vais aprender
A tocar qual ninguém mais.
Conforme vais conviver
Nas matas co’os animais,
Serás deles guardião
Dotado de dons letais.

- Trasfigurarás em onça,
A maior desta floresta,
Tornando-te homem de novo
Somente em noite de festa,
Quando tocarás pra gente
Da forma mais imodesta.

- Porém, quando gente for,


A tocar pelo festejo,
Antes do raiar do sol
Deixa o povo seranejo,
Pois que senão levarás
Tragédia pro vilarejo.

Na direção de Epifânio
Estendeu a mão fechada.
O jovem posicionando
Sob ela a sua, espalmada,
Recebeu a areia toda
Pelo velho derramada.

Caído o último dos grãos


O velho índio retomou:
- Agora está feito, filho.
Atendi ao que rogou.
Parto pro descanso eterno
Graças a ti que chegou.
Deu as costas e partiu
À floresta o xukuru.
Porém, antes de sumir
Virou-se Ipu Aridu
E falou para Epifânio:
“Lamprego nhumbugaku”!

Longe, em casa, a mãe do moço


Rezava em frente ao altar
Rogando ao céu que Epifânio
Logo tornasse ao seu lar.
Nas mãos o frade de barro
Estreitava com pesar.

Ouvindo as últimas letras


Faladas pelo ancião
O moço cerrou com força
O pó que tinha na mão.
Neste instante sua mãe
Pressentiu no coração.

A imagem de Benedito,
Que ela mantinha nos braços,
Deslizou de suas mãos
E lançou-se nos espaços.
Alfim, no chão, expiraram:
Ela morta, ele em pedaços.

Embrenhou-se na floresta
Uma enorme onça-pintada,
A qual seguiram os bichos,
Formando densa manada.
Toda a serra adormeceu
Envolta na madrugada.
Epifanio nunca mais
Fora visto em Tabocal.
Uns diziam que morrera,
Outros que no litoral
Vivia. Já uns achavam
Que virara um animal.

Sustentavam-se estes últimos


No fato de que um pifeiro
Desconhecido todo ano
Lá surgia, sobranceiro,
Tocando à noite nas festas
Com ares de feiticeiro.

Ao findar a sua música,


Mística, maravilhosa,
Sumia de toda vista
De forma estranha, espantosa.
Fossem caçar, só achavam
Pegadas de onça manhosa.

Pegadas estas que levam


À misteriosa furna,
A qual poucos alcançaram,
Pois quem se aproxima escuta
Esturros tão desgraçados
Que desiste da conduta.

* * *

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